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A concepção de polêmica velada em duas edições da obra de Bakhtin sobre Dostoiévski

RESUMO

Este artigo é o resultado de uma análise comparativa entre as duas edições da obra de Mikhail Bakhtin: Problemas da obra de Dostoiévski, primeira edição, em 1929, e Problemas da poética de Dostoiévski, revista e publicada em 1963. O objetivo é estabelecer uma comparação do conceito de polêmica velada presente nesses livros, com foco nas formas de presença do discurso do outro. A metodologia é partir da análise bakhtiniana da novela Memórias do subsolo (1864), de Fiódor Dostoiévski, em especial quanto à formulação linguístico-discursiva de polêmica velada. Em que medida as alterações presentes na segunda edição contribuem para novos esclarecimentos da polêmica? Os resultados apontam a existência de mudanças e de permanências, o que permite esclarecer a importância central do conceito de polêmica para a análise do discurso alheio nos discursos literários e também nos discursos de circulação social.

PALAVRAS-CHAVE:
Polêmica velada; Discurso alheio; Alteridade; Dostoiévski; O homem do subsolo

ABSTRACT

This article is the result of a comparative analysis of two editions of Bakhtin’s work: Problems of Dostoevsky’s Creation, first published in 1929, and Problems of Dostoevsky’s Poetics, revised and published in 1963. The objective is to compare how the two editions present the concept of hidden polemic focusing on the forms in which the other’s discourse is present. The methodology relies on a Bakhtinian analysis of the novella Notes from Underground (1864) by Fyodor Dostoevsky, in particular, the linguistic-discursive formation of the hidden polemic. In what ways do the alterations in the second edition contribute to new insights regarding the polemic? Results point to the existence of preservations and changes that clarify the importance of the concept of polemic for the analysis of the other’s discourse in literary discourses, and also discourses in social circulation.

KEYWORDS:
Hidden polemic; Other’s discourse; Alterity; Dostoevsky; Underground Man

Suas várias redações dos seus livros sobre Dostoiévski, que cobrem um período de quarenta tumultuosos anos, tornam claro que Bakhtin aprendeu bem as lições polifônicas da figura que escolheu como sua autoridade [...] Bakhtin pleiteia a superioridade de uma abordagem dialógica da literatura e da vida em relação a uma abordagem monológica, mas ele o faz em diferentes vozes e por diferentes meios.

Katherine Clark and Michael Holquist

Lendo Memórias do subsolo, temos a impressão de dispor de um testemunho direto de Dostoiévski-o-ideólogo. É então por ele também que devemos começar, se quisermos ler Dostoiévski hoje em dia.

Tzvetan Todorov

Considerações iniciais

O importante estudo de Mikhail Bakhtin sobre Dostoiévski ocupa um lugar de destaque nos estudos literários, linguísticos, culturais, epistemológicos uma vez que permite pensar a cultura como resposta às questões sociais e de conhecimento. De Problemas da obra de Dostoiévski (1929), do início da carreira, a Problemas da poética de Dostoiévski (1963), do auge da carreira, houve um intervalo de 34 anos, até o filósofo da linguagem apresentar sua edição revista e ampliada. O leitor brasileiro teve acesso a esse texto pela tradução de Paulo Bezerra, em 1981, feita a partir dos originais russos. As revisões à primeira edição foram feitas pelo mesmo tradutor em 2008 e 2010. A tradução direta do russo de Problemas da obra de Dostoiévski está em curso, sob responsabilidade das professoras Sheila Grillo e Ekaterina Américo.

O objetivo deste artigo é comparar o conceito de polêmica velada presente nas edições de 1929 e 1963. Para esse propósito, vamos retomar a análise desenvolvida por Bakhtin em torno dos vários procedimentos discursivos desse conceito e, particularmente, no monólogo Memórias do subsolo (1864), seguindo o estudo bakhtiniano em torno da polêmica aberta e velada entre o homem do subsolo e os escritores, as opiniões e a filosofia de seu tempo. O narrador-personagem, sem nome, faz uma espécie de confissão do subsolo da dor humana e congrega ao seu percurso narrativo a voz do eu/outro. A história se passa na cidade de São Petersburgo no período vivido pela Rússia czarista do século XIX. Para o crítico Schnaiderman, “o subsolo do personagem, aquele ‘paradoxalista’ e ‘anti-herói’, conforme o próprio escritor o definiu, constitui o clímax do ‘desligamento do solo’, em que vivia boa parte da sociedade russa” (1983, p.31). A personagem se constrói no embate com o discurso do outro, com seus interlocutores, às vezes próximos, outras, desprezados.

Para compreender as permanências e acréscimos do conceito de polêmica presentes nas duas edições, o texto está organizado nas seguintes etapas: 1) retomar a sequência dos capítulos das edições de 1929 e 1963, com foco nas questões ligadas ao discurso refletido do outro, em particular o conceito de polêmica velada; 2) recuperar a análise bakhtiniana do discurso literário e humano de Memórias do subsolo, buscando a compreensão da polêmica velada não como categoria a priori, mas como discurso refletido do outro, mantendo o estudo comparativo das edições; 3) finalizar com as permanências e alterações encontradas nas duas edições sem ter como objetivo uma análise estilística dos textos citados de Dostoiévski, por se apresentar como uma dificuldade a comparação feita a partir de duas traduções advindas do italiano e do português, e não do original russo.

1 Comparando as edições

A leitura de Problemas da obra de Dostoiévski (1929/1997) permite identificar diferenças da edição revista, conforme já assinalaram vários estudiosos. Os pesquisadores americanos Morson e Emerson assinalam: “Comparado com a redação posterior, o volume de 1929 é, pois, um estudo mais enxuto, mais orientado para a palavra prosaica” (2008, p.103). A primeira traz um enfoque sociológico e a segunda, dialógico, além de algumas supressões e substanciais acréscimos. Também Bubnova destaca algumas diferenças:

o livro de 1963 tem uma estrutura distinta de seu protótipo de 1929; a fraseologia ‘sociológica’ muito ad hoc às exigências ideológicas do momento em que foi escrito o livro, se recortou consideravelmente; agregou-se um novo capítulo, extenso (o IV), que descreve as origens da novela dialógica (2012, p.39).

Ao retomarmos o contexto em que esse livro foi produzido, Brait esclarece:

A época de elaboração, publicação e recepção de Problemas da obra de Dostoiévski deve ser pensada como um longo e complexo período que envolve efervescência intelectual, artística e, ao mesmo tempo, posicionamentos políticos, intelectuais e religiosos sujeitos a duras penas: Bakhtin foi preso em 1928 (2009, p.50).

A partir dessa breve contextualização feita por alguns estudiosos da obra de Bakhtin, passamos a apresentar a chegada das duas edições ao Ocidente, e de modo mais específico, as traduções, a estrutura da obra, localizando as permanências e mudanças de foco. A primeira edição (1929) conta até o momento somente com a tradução italiana da pesquisadora Margherita de Michiel1 1 A edição italiana tem Introduzione, traduzione e comento di Margherita De Michiel, e prezentazione di Augusto Ponzio. , publicada em 1997, enquanto a segunda edição (1963) teve traduções para vários idiomas: em italiano, contou com a tradução de Giuseppe Garritano (Einaudi, Torino), em 1968/2002; em francês, duas traduções apareceram em 1970, uma feita por Isabelle Kolitcheff (Seuil, Paris) e outra por Guy Verret (L’age d’Homme, Lausanne, Suíça); em inglês, há também duas traduções, uma feita por R. William Rotsel, em 1973 e outra de Caryl Emerson, em 1984/2006 (University of Minnesota Press, Minneapolis); em espanhol, a tradução é de Tatiana Bubnova, em 1986, no México (Fondo de Cultura Económica, México).

Quanto à estrutura da obra, começamos a comparação pelos prefácios. Na edição de 1929, Bakhtin explicita que seu foco está na prosa de Dostoiévski e na metodologia: “A presente análise baseou-se na convicção de que toda obra literária é interna, imanentemente sociológica. Nela se cruzam forças sociais vivas, avaliações sociais vivas penetram cada elemento da sua forma” (BAKHTIN, 2015a, p.311BAKHTIN, M. M. Problemas da poética de Dostoiévski. 5. ed. revista. Tradução direta do russo Paulo Bezerra. Rio de Janeiro: Forense Universitária, 2015a.). Já no prefácio à edição de 1963, o autor marca uma mudança de projeto: “O presente livro é dedicado aos problemas da poética de Dostoiévski e analisa a sua obra somente sob esse ângulo de visão” (2015a, p.1).

Quanto ao sumário, Problemas da obra de Dostoiévski está organizado em duas partes: Romance polifônico de Dostoiévski (Configuração do problema) e A palavra em Dostoiévski (Ensaio de Estilística), e cada parte subdividida em quatro capítulos. Em Problemas da poética de Dostoiévski, o sumário foi reorganizado em cinco capítulos, com modificações e ampliações no texto.

Quanto à organização dos capítulos, a edição de 1929 traz como primeiro capítulo “Peculiaridade fundamental da obra de Dostoiévski e seu enfoque na crítica literária” (32 p.), trazendo a proposta de Bakhtin de cunho teórico, sem mencionar a narrativa de Memórias do subsolo. No primeiro capítulo da edição de 1963, intitulado “O romance polifônico de Dostoiévski e seu enfoque na crítica literária” (48 p.), a discussão fica em torno do romance polifônico. De acordo com as notas da tradutora De Michiel (1997, p.124, nota 52), Bakhtin retoma a proposta do crítico Bóris Engelgardt sobre o romance ideológico de Dostoiévski e a discute, acrescentando uma menção à Memórias do subsolo:

Cada ideia dos heróis de Dostoiévski (“O homem do subsolo”, Raskólnikov, Ivan e outros) sugere desde o início uma réplica de um diálogo não-concluído. Essa ideia não tende para o todo sistêmico-monológico completo e acabado. Vive em tensão na fronteira com a ideia de outros, com a consciência de outros. É a seu modo episódica e inseparável do homem (BAKHTIN, 2015a, p.36BAKHTIN, M. M. Problemas da poética de Dostoiévski. 5. ed. revista. Tradução direta do russo Paulo Bezerra. Rio de Janeiro: Forense Universitária, 2015a.).

No final do capítulo, há um acréscimo de quatorze páginas, para atualizar a crítica feita sobre a obra de Dostoiévski dos anos 30 e 40. Bakhtin dá voz a vários críticos, para depois defender que “Dostoiévski teve a capacidade de auscultar relações dialógicas em toda a parte, em todas as manifestações da vida humana consciente e racional; para ele, onde começa a consciência começa o diálogo” (BAKHTIN, 2015a, p.47BAKHTIN, M. M. Problemas da poética de Dostoiévski. 5. ed. revista. Tradução direta do russo Paulo Bezerra. Rio de Janeiro: Forense Universitária, 2015a.). Na sequência do texto, retoma alguns críticos da década de 1950, com trabalhos em que predominam as análises histórico-literárias e histórico-sociológicas. Dedica atenção especial a dois textos em que o tema das relações dialógicas está presente: Prós e contras: Notas sobre Dostoiévski (1957), de Victor Chklovski e Dostoiévski Artista (1959), de Leonid Grossman.

Chklovski explica a natureza dialógica da estrutura romanesca de Dostoiévski e o conceito de polêmica: “Não só as personagens polemizam em Dostoiévski, os elementos isolados do desenvolvimento do enredo estão de certa maneira, em recíproca contradição: os fatos são diversamente interpretados” (BAKHTIN, 2015a, p.46-47BAKHTIN, M. M. Problemas da poética de Dostoiévski. 5. ed. revista. Tradução direta do russo Paulo Bezerra. Rio de Janeiro: Forense Universitária, 2015a.). Já o escritor russo Grossman esclarece o princípio musical da polifonia a partir da música e cita como exemplo Memórias do subsolo:

Pode-se decifrar assim, a curta, mas significativa, indicação de Dostoiévski, numa carta ao irmão, e referente à publicação que então se propunha das Memórias do subsolo na revista Vriêmia. A novela divide-se em três capítulos ... O primeiro terá cerca de 1 ½ folhas ... [...] Você compreende o que é em música, uma passagem. [...] A novela é construída na base do contraponto artístico. No segundo capítulo, o suplício psicológico da jovem decaída responde à ofensa recebida pelo seu supliciado do primeiro capítulo, e ao mesmo tempo se opõe, pela humildade, à sensação que ele experimenta do amor-próprio ferido e irritado. E isso constitui justamente o ponto contra ponto (punctum contra punctum). São vozes diferentes, cantando diversamente o mesmo tema (BAKHTIN, 2015a, p.48-49BAKHTIN, M. M. Problemas da poética de Dostoiévski. 5. ed. revista. Tradução direta do russo Paulo Bezerra. Rio de Janeiro: Forense Universitária, 2015a.; itálicos no original).

Diante das observações de Grossman, o filósofo da linguagem acrescenta: “Para Dostoiévski, tudo na vida é diálogo, ou seja, contraposição dialógica” (2015a, p.49; itálicos no original).

No segundo capítulo das duas edições, Bakhtin refere-se à consciência de si, do mundo do homem do subsolo e o que os outros pensam sobre o mundo, mantendo o mesmo texto.

Edição de 1929 Edição de 1963 Capítulo 2 O herói em Dostoiévski (14p.) Capítulo 2 A personagem e seu enfoque pelo autor na obra de Dostoiévski (34p.) O herói do subsolo estende o ouvido para cada palavra alheia sobre ele mesmo, quase como se se olhasse em todos os espelhos das consciências alheias, conhece todas as possíveis refrações de sua própria imagem neles; ele conhece também sua própria definição objetiva, neutra, tanto a respeito da consciência do outro quanto a respeito da sua autoconsciência, leva em conta o ponto de vista de um ‘‘terceiro’’ (BACHTIN, 1997, p.138)2. O herói do subsolo dá ouvido a cada palavra dos outros sobre si mesmo, olha-se aparentemente em todos os espelhos das consciências dos outros, conhece todas as possíveis refrações da sua imagem nessas consciências; conhece até a sua definição objetiva, neutra tanto em relação à consciência alheia quanto à sua própria autoconsciência, leva em conta o ponto de vista de um “terceiro” (BAKHTIN, 2015a, p.59).

Nesse capítulo 2 da edição de 1963, há um acréscimo de sete páginas para tratar da incompletude interna do homem, da não coincidência consigo mesmo. Bakhtin reitera como o herói em Dostoiévski tende sempre a despedaçar a moldura das palavras alheias que o definem e o completam. Assim, considera o homem do subsolo “o primeiro herói-ideólogo na obra de Dostoiévski” (BAKHTIN, 2015a, p.66BAKHTIN, M. M. Problemas da poética de Dostoiévski. 5. ed. revista. Tradução direta do russo Paulo Bezerra. Rio de Janeiro: Forense Universitária, 2015a.), e com isso lança polêmica com os socialistas, uma vez que defende a liberdade do homem e a possibilidade de romper com as leis impostas.

O título do terceiro capítulo e o texto permanecem os mesmos nas duas edições com foco no herói de Dostoiévski e na relação de inacabamento fundamental das várias narrativas. Exemplifica o modo como o homem do subsolo trava o embate com o mundo, porque tem profunda consciência de si mesmo e das relações rígidas que dominavam o sistema social na Rússia do século XIX, tornando-se um ideólogo.

Edição de 1929 Edição de 1963 Capítulo 3 A ideia em Dostoiévski (15p.) Capítulo 3 A ideia em Dostoiévski (26p.) O herói de Dostoiévski não é apenas uma palavra sobre si mesmo e seu círculo íntimo, ele também é uma palavra sobre o mundo: ele não é apenas um ser consciente, é um ideólogo. O "homem do subsolo" já é um ideólogo, mas a criação ideológica dos personagens atinge plenitude de significado nos romances [...] É por isso que a palavra sobre o mundo se funde com a palavra confissão sobre si mesmo (BACHTIN, 1997, p.149). O herói dostoievskiano não é apenas um discurso sobre si mesmo e sobre seu ambiente imediato, mas também um discurso sobre o mundo: ele não é apenas um ser consciente, é um ideólogo. O “homem do subsolo” já é um ideólogo, mas a criatividade ideológica dos heróis adquire pleno significado nos romances [...] Por isso, o discurso sobre o mundo se funde com o discurso confessional sobre si mesmo (BAKHTIN, 2015a, p.87).

Conforme a análise avança, Bakhtin explica a articulação da polêmica com a narrativa dostoievskiana, argumentando também que a construção sintática é uma forma de manifestação da linguagem com um traço marcante da polêmica. Em Memórias do subsolo, no capítulo 3 da primeira parte, por exemplo, o narrador emprega as aspas e repete a expressão “dois e dois são quatro” para se contrapor ao discurso científico, construindo uma polêmica com o positivismo da época. A ideia é produzir outro sentido, atacando o racionalismo

“Não é possível”, vão gritar-vos, “não podeis rebelar-vos: isto significa que dois e dois são quatro! ‘Não é possível’, vão gritar-vos, ‘não podereis rebelar-vos: isto significa que dois e dois são quatro! A natureza não voz pede licença; ela não tem nada a ver com os vossos desejos nem com o fato de que as suas leis vos agradem ou não. Deveis aceitá-la tal como ela é e, consequentemente, também todos os seus resultados. Um muro é realmente um muro... etc. etc.” Meu Deus, que tenho eu com as leis da natureza e com a aritmética, se, por algum motivo, não me agradam essas leis e dois e dois são quatro? (DOSTOIÉVSKI, 2003, p.25DOSTOIÉVSKI, F. M. Memórias do subsolo. Tradução Boris Schnaiderman. 4. ed. São Paulo: Editora 34, 2003.).

Na sequência da leitura da edição de 1929, o leitor se depara com cerca de 11 páginas do capítulo 4, intitulado “Função do enredo de aventura nas obras de Dostoiévski”. O foco recai nas funções da trama, e no primeiro parágrafo Bakhtin esclarece que os princípios da conexão entre consciências e as vozes dos heróis não se enquadram nos limites da trama e serão tratados na segunda parte da obra.

Edição de 1929 Edição de 1963 Capítulo 4 Função do enredo de aventura nas obras de Dostoiévski (11p.) Capítulo 4 Peculiaridades do gênero, do enredo e da composição das obras de Dostoiévski (91p.)

Na edição de 1963, o capítulo 4 foi substancialmente reelaborado, com acréscimo de 90 páginas e uma ampla análise das tradições de gênero no desenvolvimento da prosa artística europeia, à qual o romance polifônico de Dostoiévski está vinculado. Bakhtin acrescenta algumas obras de Dostoiévski e retoma Memórias do subsolo, como uma narrativa “construída como diatribe (conversa com um interlocutor ausente)” (BAKHTIN, 2015a, p.178BAKHTIN, M. M. Problemas da poética de Dostoiévski. 5. ed. revista. Tradução direta do russo Paulo Bezerra. Rio de Janeiro: Forense Universitária, 2015a.). Também observa que essa novela está repleta de polêmica aberta, isto é, orientada para o discurso refutável do outro, e de polêmica velada, quando está orientada para um objeto habitual, mas atacando o discurso do outro indiretamente, entrando em conflito com ele como que no próprio objeto. Trazem marcas essenciais da confissão.

2 Memórias do subsolo e a polêmica velada

O conceito de polêmica velada está presente nas duas edições e vamos compará-las identificando as permanências e acréscimos. Na edição de 1929, a segunda parte intitula-se A palavra em Dostoiévski (Ensaio em estilística), subdividida em quatro seções, enquanto na edição de 1963 vai ocupar o capítulo 5 com o título O discurso em Dostoiévski. De acordo com Morson e Emerson, o original de 1929 “dá uma ênfase proporcionalmente muito maior à tipologia do discurso em prosa do que a edição de 1963. Não só a palavra poética está ausente do título e do sumário como a palavra prosaica está presente” (2008, p.102).

Na edição de 1929, o capítulo 1 da segunda parte Tipos de palavra prosaica. A palavra em Dostoiévski (BACHTIN, 1997, p.185BACHTIN, M. M. Problemi dell’opera di Dostoevskij. Introduzione, Traduzione e comento di Margherita De Michiel. Prezentazione di Augusto Ponzio. Bari: Edizioni dal Sud, 1997.) analisa a importância estilística da dupla orientação do discurso do outro. Na edição de 1963, há algumas mudanças e muitas permanências. O capítulo “O discurso em Dostoiévski” está organizado em quatro seções, englobando os quatro capítulos da segunda parte da edição de 1929. No início desse capítulo, Bakhtin acrescenta uma importante introdução sob o subtítulo Algumas observações metodológicas prévias, marcando sua posição em relação ao discurso dialógico.

Nas duas edições, Bakhtin apresenta a tipologia do discurso em prosa, e identifica o discurso bivocal de orientação única que expressa as intenções do autor sem refração no discurso do outro (discursos monológicos), o discurso bivocal de orientação vária e o tipo ativo ou discurso refletido do outro, em que a palavra do outro influencia de fora para dentro o discurso do autor. Entre esse tipo ativo está a polêmica interna velada como uma forma ativa de dialogismo. A polêmica se constrói no confronto com a palavra do outro que se impõe ao autor, obrigando a modificações na estrutura e na trajetória do texto. De todo modo, o discurso do autor é tenso, ambivalente e traz dois acentos, pois mantém a sua presença e a do outro. O discurso do outro orienta o discurso do narrador não só quanto ao conteúdo, mas nas formas sintáticas e nas expressões como repetição, reformulação constante da mesma expressão.

Segundo Bakhtin, o discurso polêmico está presente com frequência na vida cotidiana, nos momentos em que se tem por objetivo ser hostil ao discurso do outro e as “indiretas” e as “alfinetadas” se incorporam ao discurso. Também amplia a noção de polêmica aberta, quando o discurso do outro é enfrentado como um objeto, que contesta diretamente a palavra do outro e essa não penetra no seu interior. É um discurso sobre o discurso do outro. Sem dúvida, a análise mais detalhada é do conceito de polêmica velada presente no discurso literário de Dostoiévski, em que o narrador de autobiografias e confissões estrutura o seu discurso de forma polêmica.

O quadro síntese do discurso bivocal está presente nas duas edições (BACHTIN, 1997, p.205-206BACHTIN, M. M. Problemi dell’opera di Dostoevskij. Introduzione, Traduzione e comento di Margherita De Michiel. Prezentazione di Augusto Ponzio. Bari: Edizioni dal Sud, 1997./BAKHTIN, 2015a, p.228-229BAKHTIN, M. M. Problemas da poética de Dostoiévski. 5. ed. revista. Tradução direta do russo Paulo Bezerra. Rio de Janeiro: Forense Universitária, 2015a.). Ao se referir ao tipo ativo, o discurso mais complexo, o filósofo da linguagem traz uma orientação para o discurso alheio, como a polêmica interna velada, réplica do diálogo, diálogo velado, autobiografia e confissão polemicamente refletidos. Bakhtin explica sua compreensão de polêmica velada:

Edição de 1929 Edição de 1963 Capítulo 1 da segunda parte – O discurso em Dostoiévski Tipos de palavra prosaica. A palavra em Dostoiévski (29p.) Capítulo 5 O discurso em Dostoiévski Tipos de discurso na prosa. O discurso dostoievskiano (27p.) Na polêmica velada, a palavra autoral é dirigida, como todas as outras palavras, ao próprio objeto, mas nisso cada afirmação sobre o objeto constrói-se de modo que, além de seu sentido objetal, se ataque polemicamente a palavra alheia sobre o mesmo tema, a afirmação alheia sobre o mesmo objeto. A palavra dirigida ao seu objeto enfrenta-se, no próprio objeto, com a palavra alheia. A palavra alheia em si mesma não é reproduzida, ela é somente subentendida: mas a estrutura inteira do discurso seria absolutamente outra, se não houvesse essa reação à palavra alheia que é subentendida. [...] A matiz polêmica da palavra manifesta-se também em outros signos puramente linguísticos: na entonação e na construção sintática (BACHTIN, 1997, p.200-201). Na polêmica velada, o discurso do autor está orientado para o seu objeto, como qualquer outro discurso; neste caso, porém, qualquer afirmação sobre o objeto é construída de maneira que, além de resguardar seu próprio sentido objetivo, ela possa atacar polemicamente o discurso do outro sobre o mesmo assunto e a afirmação do outro sobre o mesmo objeto. Orientado para o seu objeto, o discurso se choca no próprio objeto com o discurso do outro. Este último não se reproduz, é apenas subentendido [...] O colorido polêmico do discurso manifesta-se em outros traços puramente linguísticos: na entonação e na construção sintática (BAKHTIN, 2015a, p.224).

Conforme argumenta Tezza (2003, p.239)TEZZA, C. Entre a prosa e a poesia: Bakhtin e o formalismo russo. Rio de Janeiro: Rocco, 2003., o quadro proposto por Bakhtin de tipos de discurso não é uma abstração, mas abre para uma análise estilística detalhada dos textos de Dostoiévski em que os conceitos de polêmica interna velada, réplica do diálogo, diálogo velado, autobiografia e confissão polemicamente refletidos são aprofundados no capítulo seguinte.

Vamos nos deter em dois aspectos: na extensa análise bakhtiniana do discurso do outro em Memórias do subsolo e no conceito de polêmica velada das duas edições. Entre os muitos exemplos destacados por Bakhtin, começamos com as diferentes polêmicas do homem do subsolo, presente no capítulo 1 da segunda parte da novela, intitulada A propósito da neve molhada. De um lado, o narrador se sabe um sujeito ridículo e, de outro, deseja que os outros o admirem. Por se sentir angustiado, procura se isolar no seu subterrâneo e se recusa a se identificar como parte do “rebanho” social em que vive. Nas ruas e no trabalho, ele polemiza com o discurso do outro, isto é, com seus colegas de trabalho, seus superiores, enfim, com a ideologia do seu tempo.

Temia, também, a ponto de adoecer, tornar-me ridículo, e, por isto, adorava como um escravo a rotina em tudo o que se relacionava com coisas exteriores; entregava-me amorosamente à vida cotidiana e comum e do fundo da alma assustava-me ao notar em mim alguma excentricidade. E como poderia deixar de ser assim? Eu era doentiamente cultivado, como deve ser um homem de nossa época. Eles, pelo contrário, eram todos embotados e parecidos entre si, como carneiros de um rebanho. É possível que eu fosse o único em toda a repartição a ter continuamente a impressão de ser um covarde e um escravo, e talvez tivesse esta impressão justamente porque era cultivado (DOSTOIÉVSKI, 2003, p.57DOSTOIÉVSKI, F. M. Memórias do subsolo. Tradução Boris Schnaiderman. 4. ed. São Paulo: Editora 34, 2003.).

Seguindo a exposição do capítulo 2 de 1929 e a seção 2 de 1963, Bakhtin retoma mais um discurso do homem do subsolo, dirigindo-se aos imbecis, canalhas, anciãos respeitáveis e perfumados, de cabelos grisalhos. O sofrimento desse homem tem a ver com a consciência de sua infelicidade e com a consciência de que existe algo melhor na vida que não pode ser alcançado. Há uma polêmica cínica com as memórias a respeito da natureza humana, o que é assustador, e que ele olha de esguelha na fenda do subterrâneo.

Edição de 1929 Edição de 1963 Capítulo 2 da segunda parte – O discurso em Dostoiévski A palavra monológica do herói e a palavra narrativa nas novelas de Dostoiévski (41p.) Capítulo 5 O discurso em Dostoiévski Seção 2: O discurso monológico do herói e o discurso narrativo nas novelas de Dostoiévski (40p.) ‘Viver mais de quarenta anos é uma coisa inconveniente, é vulgar, imoral! Quem vive mais de quarenta anos? Respondam-me sinceramente, honestamente. Eu vos direi quem: os imbecis e os patifes, ninguém mais. E isso eu direi na cara de todos os velhos, na cara de todos esses velhos respeitáveis, de todos esses velhos das coroas de prata e perfumados! Eu digo tudo isso na cara do mundo inteiro. Eu tenho o direito de falar assim, porque, de minha parte, viverei até os sessenta anos. Até os sessenta anos viverei!... Esperem! Deixem-me retomar o folego um momento [...] (BACHTIN, 1997, p.245). Viver além dos quarenta é indecente, vulgar, imoral! Quem é que vive além dos quarenta? Respondei-me sincera e honestamente. Dir-vos-ei: os imbecis e os canalhas. Di-lo-ei na cara de todos os anciões, de todos esses anciões respeitáveis, perfumados, de cabelos argênteos! Di-lo-ei na cara de todo o mundo! Tenho direito de falar assim, porque eu próprio hei de viver até os sessenta! Até os setenta! Até os oitenta! Um momento! Deixai-me tomar fôlego ... (BAKHTIN, 2015a, p.264).

Bakhtin analisa nessa seção o discurso do protagonista no primeiro capítulo de Memórias de subsolo, apresentando as entonações como marcadores da polêmica velada. Ele ressalta, no entanto, que o interlocutor está presente de modo invisível. A gradação do tom negativo no trecho selecionado traz os discursos polêmicos, a repetição do léxico – quarenta, sessenta, setenta oitenta, e o uso da pontuação como exclamação, interrogação e reticências expõem o discurso do outro. Essa caracterização traz as marcas de antecipação de reação do outro, de ataque polêmico contra os anciões respeitáveis. E realça a finalização do narrador com uma antecipação da réplica do outro, os senhores que o desprezam e mesmo assim ele se sustenta na sua superioridade intelectual:

Edição de 1929 Edição de 1963 Capítulo 2 A palavra monológica do herói e a palavra narrativa nas novelas de Dostoiévski (41p.) Capítulo 5 O discurso em Dostoiévski Seção 2: O discurso monológico do herói e o discurso narrativo nas novelas de Dostoiévski (40p.) Com certeza, vocês estarão pensando, senhores, que eu queira fazê-los rir, não? Bom, até nisso vocês erraram. Eu realmente não sou aquele tipo divertido que acreditam, ou que talvez acreditem que eu seja; e, por outro lado, se vocês, irritados como estão por todas essas minhas conversas (sim porque eu já sinto que estão irritados), tivessem a ideia de me perguntar quem eu exatamente sou, eu então responderia que sou um conselheiro de colégio’ (BACHTIN, 1997, p.245). Pensais acaso, senhores, que eu queria fazer-vos rir? É um engano. Não sou de modo algum tão alegre como vos parece, ou como vos possa parecer. Aliás, se irritados com toda esta tagarelice (e eu já sinto que vos irritastes), tiverdes a ideia de me perguntar quem, afinal, sou eu, responder-vos-ei: sou um assessor-colegial (DOSTOIEVSKI, 2003, p.17) (BAKHTIN, 2015a, p.264).

Nessa perspectiva, a palavra do narrador se relaciona com o discurso do outro e no início do segundo capítulo da novela outro procedimento discursivo é empregado pelo autor: a réplica antecipada, semelhante à polêmica velada, como destaca Bakhtin.

Edição de 1929 Edição de 1963 Capítulo 2 A palavra monológica do herói e a palavra narrativa nas novelas de Dostoiévski (41p.) Capítulo 5 O discurso em Dostoiévski Seção 2: O discurso monológico do herói e o discurso narrativo nas novelas de Dostoiévski (40p.) Aposto que vocês estão pensando que eu escrevo tudo isso por fanfarronice, ou para fazer o espirituoso às custas dos homens de ação, e que sempre, por amor de uma fanfarronice de péssimo gosto, eu também esteja fazendo tinir minha espada, como aquele meu oficial. (BACHTIN, 1997, p.246). Pensais, sou capaz de jurar, que escrevo tudo isto para causar efeito, para gracejar sobre os homens de ação, e também por mau gosto; que faço tilintar o sabre, tal como o meu oficial. (BAKHTIN, 2015a, p.264-265).

Nas duas edições, a análise da novela se mantém sem alteração, e mostra que o narrador provoca no leitor reações contraditórias, antecipa a reação do outro de fazer rir e, ao mesmo tempo, de ironizar. Nesse percurso, o foco de análise é o fenômeno estilístico-discursivo da antecipação das réplicas dos outros como uma peculiaridade estrutural sui generis. A função é que o herói mantenha a última palavra, uma vez que ele teme que venham a pensar que ele se arrependa diante do outro, ou lhe peça perdão; no entanto, esse medo mostra a sua dependência.

Segundo Bakhtin, o sofrimento do homem do subsolo é proveniente da sua plena consciência e do seu andar em círculos: humilhar ou destruir o outro como forma para recuperar seu amor próprio, mas sem sucesso. Assim, “graças a essa relação com a consciência do outro obtém-se um original perpetuum mobile da polêmica interior do herói com o outro e consigo mesmo, um diálogo sem fim no qual uma réplica gera outra, a outra gera uma terceira em movimento perpétuo” (BACHTIN, 1997, p.247BACHTIN, M. M. Problemi dell’opera di Dostoevskij. Introduzione, Traduzione e comento di Margherita De Michiel. Prezentazione di Augusto Ponzio. Bari: Edizioni dal Sud, 1997.; BAKHTIN, 2015a, p.266BAKHTIN, M. M. Problemas da poética de Dostoiévski. 5. ed. revista. Tradução direta do russo Paulo Bezerra. Rio de Janeiro: Forense Universitária, 2015a.). O exemplo selecionado de Memórias do subsolo foi retirado do segundo capítulo da parte 2, e materializa as oposições dialógicas sem saída, abrindo para nenhuma porta.

Edição de 1929 Edição de 1963 Capítulo 2 A palavra monológica do herói e a palavra narrativa nas novelas de Dostoiévski (41p.) Capítulo 5 O discurso em Dostoiévski Seção 2: O discurso monológico do herói e o discurso narrativo nas novelas de Dostoiévski (40p.) Vocês dirão que é vulgar e desprezível colocar à mostra tudo isso [os sonhos do herói, M.B.] como se eu estivesse na feira, depois de todos os estados de embriaguez e as lágrimas que confessei agora há pouco. Mas por que seria desprezível, meus senhores? [...] (BACHTIN, 1997, p.247). Dir-me-eis que é vulgar e ignóbil levar agora tudo isso (os sonhos do herói – M.B.) para a feira, depois de tantos transportes e lágrimas por mim próprio confessados. Mas ignóbil por quê? [...] (BAKHTIN, 2015a, p.266).

A forma como o protagonista se coloca na delicada situação de quem está dialogando/polemizando com o outro, a maneira como se defende, comprova, na verdade, que ele depende do outro. Mas é uma contabilidade de afetos e de ódio em que a polêmica velada é o exemplo de como o protagonista se torna muitas vezes impiedoso, cruel, com seus leitores, com os outros e com ele mesmo (autoconsciência dialogada).

A consciência do protagonista mostra esse perpetuum mobile, recurso que gera um diálogo interminável, no qual uma réplica sempre gera outra. Na edição americana de 1963, Emerson recuperou uma nota de rodapé dos originais russos, em que Bakhtin se refere a este círculo do diálogo: “Isso pode ser explicado pelas semelhanças genéricas entre Memórias do subsolo e a sátira menipeia” (BAKHTIN, 2006, p.268BAKHTIN, M. M. Problems of Dostoevsky’s Poetics. Edition and Translation Caryl Emerson. Introduction by Wayne C. Booth. 10 ed. Minneapolis/London: Universtiy of Minnesota Press, 2006.).

Bakhtin cita ainda alguns exemplos que trazem o sofrimento humano. Entre eles, a dor de dente do narrador durante um mês inteiro e, ao mesmo tempo, o prazer dele em sentir essa dor. É necessária atenção para compreender o quanto esse comentário reflete o discurso interior, extremamente polêmico.

Edição de 1929 Edição de 1963 Capítulo 2 A palavra monológica do herói e a palavra narrativa nas novelas de Dostoiévski (41p.) Capítulo 5 O discurso em Dostoiévski Seção 2: O discurso monológico do herói e o discurso narrativo nas novelas de Dostoiévski (40p.) Sim, exatamente assim, eu roubo vossa tranquilidade, eu atormento vossa alma, não deixo ninguém dormir em toda a casa. E isso exatamente porque vocês não devem dormir, mas sim sentir vocês também, em cada momento, que eu estou com dor de dentes. Agora para vocês eu não sou mais aquele herói que queria parecer antes, mas simplesmente um pequeno covarde, um chenapan. Que seja! Estou realmente contente que vocês finalmente entenderam (BACHTIN, 1997, p.249). Eu os inquieto, faço-lhes mal ao coração, não deixo ninguém dormir em casa. Pois não durmam, sintam vocês também, a todo instante, que estou com dor de dente. Para vocês eu já não sou o herói que anteriormente quis parecer, mas simplesmente um homem ruinzinho, um chenapan. Bem seja! Estou muito contente porque vocês me decifraram [...]” (BAKHTIN, 2015a, p.268).

Dostoiévski agrega ao processo da consciência e do discurso do homem do subsolo outro recurso linguístico-discursivo ao texto, as evasivas, reservado para mudar o sentido último e definitivo do seu discurso. Segundo Bakhtin, se o discurso deixa essa evasiva, isto deve se refletir fatalmente em sua estrutura:

Esse possível ‘outro’ sentido, isto é, a evasiva deixada, acompanha como uma sombra a palavra. [...] Por exemplo, a definição confessional de si mesmo com evasivas (a forma mais difundida em Dostoiévski) é, pelo sentido, a última palavra sobre si mesmo, a definição final de si mesmo, mas em realidade ela conta com a apreciação contrária que o outro faz do herói (2015a, p.269).

A análise observa um processo cíclico, que se desdobra e se aprofunda na confissão com exemplos de diálogos com vários interlocutores, tratados com muito respeito na segunda pessoa do plural “vós” e, ao mesmo tempo, leitores ridicularizados, e ele mesmo, todos confrontados sem trégua até o fim. No trecho abaixo, a marca do interlocutor como uma sombra, ausente presente, está sinalizada por Bakhtin com o uso do itálico.

Edição de 1929 Edição de 1963 Capítulo 2 A palavra monológica do herói e a palavra narrativa nas novelas de Dostoiévski (41p.) Capítulo 5 O discurso em Dostoiévski Seção 2: O discurso monológico do herói e o discurso narrativo nas novelas de Dostoiévski (40p.) [...] eu triunfava sobre qualquer coisa, e todos, obviamente, eram reduzidos a poeira [...] Todos choravam e me beijavam (ou teriam sido uns verdadeiros otários), e eu andava, descalço e faminto, pregando as novas ideias e derrotava os retrógrados em Austerlitz (BACHTIN, 1997, p.251). Eu, por exemplo, triunfo sobre todos; todos, naturalmente, ficam reduzidos a nada [...]. Todos choram e me beijam (de outro modo, que idiotas seriam eles!), e eu vou, descalço e faminto, pregar as novas ideias, e derroto os retrógrados em Austerlitz. (grifo do autor) (BAKHTIN, 2015a, p.70).

Bakhtin argumenta que a materialidade da polêmica está sinalizada no final da narrativa, em que o narrador se recusa a continuar a escrever suas memórias. O protagonista volta a se enfrentar com a contabilidade do ódio, diante de si e do outro, polemizando não só com as pessoas, mas com outras ideologias, com seu próprio pensamento. Bakhtin afirma que “a polêmica com o outro a respeito de si mesmo é complexificada em Memórias do subsolo pela polêmica com o outro sobre o mundo e a sociedade [...] o herói do subsolo é um ideólogo” (2015a, p.273).

A caracterização do discurso do outro e do conceito de polêmica velada aparece no capítulo 4 O diálogo em Dostoiévski (23p.) da edição de 1929, e permanece na edição de 1963 com o mesmo nome no capítulo 5 O discurso em Dostoiévski. Bakhtin dedica um capítulo/seção analisando tipos de discurso refletido do outro na prosa de Dostoiévski, e consagra especial atenção novamente ao discurso do outro em Memórias do subsolo, particularmente, a réplica antecipável do outro, diálogo interior, polêmica interior.

Para compreender esses discursos, o filósofo da linguagem examina um exemplo da crueldade e talvez da dor maior do relacionamento entre o homem do subsolo e Liza, uma prostituta que se apaixonara por ele, e o procura no seu apartamento. Diante da dor daquele homem, ela se condói por ele e o entende. Mas por medo de amá-la, o narrador a maltrata e a humilha, uma vez que ele não é capaz de aceitar a compaixão da jovem mulher, e a polêmica que se instaura é então com a natureza humana: “O ‘homem do subsolo’ permanece em sua irremediável oposição ‘ao outro’” (BAKHTIN, 2015a, p.295BAKHTIN, M. M. Problemas da poética de Dostoiévski. 5. ed. revista. Tradução direta do russo Paulo Bezerra. Rio de Janeiro: Forense Universitária, 2015a.).

Edição de 1929 Edição de 1963 Parte II - Capítulo 4 O diálogo em Dostoiévski (2 p.) Capítulo 5/ seção 4 O diálogo em Dostoiévski (18p.) Também, as lágrimas de agora há pouco, aquelas lágrimas de mulherzinha envergonhada, que, diante de você, não consegui conter: até por elas, jamais te perdoarei! E o que eu agora te confesso, o mesmo a você nunca perdoarei! assim ele grita durante sua confissão para a moça que o ama. ‘Mas o compreende ou não, que agora que eu te disse essas coisas te odiarei porque você estava aqui me escutando? [...] (BACHTIN, 1997, p.283) E nunca desculparei também a você as lágrimas de há pouco, que não pude conter, como uma mulher envergonhada! E também nunca desculparei a você as confissões que lhe estou fazendo agora! Assim grita ele durante as suas confissões à moça que por ele se apaixonara. Mas compreende você como agora, depois de lhe contar tudo isso, vou odiá-la porque esteve aqui e me ouviu? [...] (BAKHTIN, 2015a, p.214)

Considerações finais

A importância da leitura e releitura de Problemas da obra de Dostoiévski, de 1929, com foco no conceito de polêmica velada e a comparação com a edição de 1963, indicando permanências, supressões e acréscimos, permitiu iluminar o conceito de polêmica velada não só como modalidade discursiva que se desdobra no discurso interior, partindo do exterior, presente na consciência da personagem, mas uma abordagem que se amplia com os acréscimos, e possibilita compreender a presença do discurso polêmico nos diversos campos da vida social em que circula.

Quanto aos acréscimos à Problemas da poética de Dostoiévski, de 1963, principalmente em O discurso em Dostoiévski (capítulo 5), há uma mudança de concepção: o foco recai na poética de Dostoiévski. Quando Bakhtin analisa as narrativas de Dostoiévski, foca no discurso do outro, incluindo a polêmica velada, evasivas, ressalvas, marcas de um espaço privilegiado de procedimentos valorativos.

A leitura de Memórias do subsolo nas lentes bakhtinianas desafia as muitas visões do mundo tradicional e se manifesta no confronto de ideias, discutindo o conceito de polêmica interna velada não como um recurso linguístico, mas linguístico-discursivo. A partir das notas da tradução italiana, é possível compreender a reelaboração do discurso bivocal presente em Problemas da poética de Dostoiévski, com acréscimos fundamentais em relação à ideia de natureza dialógica. A noção de Metalinguística aparece somente na obra de 1963:

A estilística deve basear-se não apenas e nem tanto na linguística quanto na metalinguística, que estuda a palavra não no sistema da língua e nem num “texto” tirado da comunicação dialógica, mas precisamente no campo propriamente dito da comunicação dialógica, ou seja, no campo da vida autêntica da palavra (BAKHTIN, 2015a, p.231-232BAKHTIN, M. M. Problemas da poética de Dostoiévski. 5. ed. revista. Tradução direta do russo Paulo Bezerra. Rio de Janeiro: Forense Universitária, 2015a.).

Essa formulação substituiu o raciocínio sociológico presente na edição de 1929 e foi suprimida da edição revista e assim recuperamos o texto de 1929: “O problema da orientação do discurso para a palavra de outro é da maior importância sociológica. O discurso, por sua natureza, é social” (BACHTIN, 1997, p.210BACHTIN, M. M. Problemi dell’opera di Dostoevskij. Introduzione, Traduzione e comento di Margherita De Michiel. Prezentazione di Augusto Ponzio. Bari: Edizioni dal Sud, 1997.). Sistematicamente, há um apagamento dos vestígios do sociológico na edição de 1963 e pode ser localizada na mesma passagem várias substituições: de “problemas essenciais da sociologia do discurso” ([1929] (1997, p.211) para “estudo da metalinguística” (BAKHTIN, 2015a, p.211BAKHTIN, M. M. Problemas da poética de Dostoiévski. 5. ed. revista. Tradução direta do russo Paulo Bezerra. Rio de Janeiro: Forense Universitária, 2015a.); “um dado grupo social” (1997, p.211BAKHTIN, M. M. Problemas da poética de Dostoiévski. 2. ed. revista Tradução Paulo Bezerra. Rio de Janeiro, Forense Universitária, 1997.) é reformulado para “ uma dada época” (2015a, p.232); “situação social” se transforma em “situação histórica”; a expressão “importância primordial para a sociologia do discurso artístico (1997, p.212) é transformada em “primordial para o estudo do discurso artístico” (2015a, p.233). Nessa direção, De Michiel, em nota de rodapé, explica que a equivalência bakhtiniana é exposta à distância nas duas edições: o “social” passa a ser o “dialógico”, de modo que o linguístico, que segmenta a realidade circundante, também muda (1997, p.210).

Finalmente, a visão bakhtiniana de polêmica, baseada na concepção de discurso do outro, está radicalmente relacionada ao discurso literário e também à vida social do ser humano. De modo que a mudança na edição 1963 está relacionada à perspectiva de uma ciência da linguagem, isto é, a Metalinguística. Grillo (2013)GRILLO, S. V. C. Divulgação científica: linguagens, esferas e gêneros. Tese de livre-docência. Universidade de São Paulo, São Paulo, 2013. e Souza (2002)SOUZA, G. T. A construção da metalinguística (fragmentos de uma ciência da linguagem na obra de Bakhtin e seu círculo). 2002. 175 p. Tese (Doutorado em Linguística) – Faculdade de Filosofia Letras e Ciências Humanas, Universidade de São Paulo, São Paulo. traçam um importante percurso sobre a construção da Metalinguística como uma ciência da linguagem e comentam o privilégio do discurso bivocal. A respeito desse assunto ainda, finalizo com as considerações de Souza sobre o confronto das duas edições:

A coexistência desse ângulo sociológico com um ângulo dialógico e a inversão da categoria do diálogo de segundo para primeiro plano levaram Bakhtin à própria criação de uma nova ciência da linguagem cujo objeto, são exatamente, as relações dialógicas na comunicação dialógica do “homem com o homem”, do “enunciado no enunciado” (2002, p.107).

Notes

  • 1
    A edição italiana tem Introduzione, traduzione e comento di Margherita De Michiel, e prezentazione di Augusto Ponzio.
  • 2
    Todas as traduções da versão italiana de POD foram realizadas por Elisabetta Santoro, Departamento de Letras Modernas, Universidade de São Paulo, especialmente para o desenvolvimento desta pesquisa.

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Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    18 Jun 2021
  • Data do Fascículo
    Apr-Jun 2021

Histórico

  • Recebido
    20 Maio 2020
  • Aceito
    26 Mar 2021
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