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As particularidades da palavra, o privilégio da língua: especificidades e primazia do linguístico, em Volóchinov e Benveniste

RESUMO

Este artigo objetiva delimitar uma preeminência do linguístico frente às demais semioses. Para tanto, são orquestradas duas reflexões que, para além do Curso de linguística geral, de Ferdinand de Saussure, abordam as especificidades que conduzem a essa preeminência. São elas: as reflexões de Valentin N. Volóchinov e de Émile Benveniste. Em Volóchinov, estão postas especificidades do linguístico atinentes ao funcionamento sociocultural da palavra, portanto, externas ao signo. Em Benveniste, estão dadas especificidades internas à língua, relativas à capacidade de a língua se autointerpretar e interpretar os demais sistemas. Finalmente, com base nas conclusões decorrentes das análises teóricas, defende-se que tais especificidades poderiam nortear discussões sobre o lugar do linguístico no debate em torno do ensino escolar de língua portuguesa.

PALAVRAS-CHAVE:
Signo linguístico; Volóchinov; Benveniste; Língua; Discurso

ABSTRACT

This article aims to establish a preeminence of language in relation to the other forms of semiosis. To this end, we orchestrate two reflections that, beyond Ferdinand de Saussure’s Course in General Linguistics, address the specificities that lead to such a preeminence. They are: the reflections by Valentin N. Vološinov and Émile Benveniste. Vološinov advances specificities of language regarding the socio-cultural functioning of the word, thus external to the sign. Benveniste discusses specificities that are internal to language, related to its ability to interpret itself and interpret the other systems. Finally, based on the conclusions derived from the theoretical analyses, we argue that such specificities could guide discussions about the place of language in the debate on school teaching of Portuguese.

KEYWORDS:
Linguistic Sign; Vološinov; Benveniste; Language; Discourse

Considerações preliminares

Não é novidade, e muito menos sem razão, que o Curso de linguística geral (daqui por diante, CLG ou Curso), publicado em 1916 e atribuído ao linguista genebrino Ferdinand de Saussure (1857- 1913), fixou-se como ponto de referência para boa parte das reflexões modernas em torno do signo linguístico. Com a formulação de conceitos como “arbitrariedade do signo” e “linearidade do signo”, com a elaboração de sua teoria do valor, além das próprias distinções entre “significante” e “significado” e entre “relações sintagmáticas” e “relações associativas”, o CLG certamente agrega algo às ideias sobre o signo, elaboradas desde Agostinho de Hipona1 1 Embora certas ideias de Agostinho a respeito da linguagem apareçam desde a obra De magistro, de 389 d.C., aqui, destacamos especialmente as seguintes palavras, presentes em A doutrina cristã, de 397 d.C.: “denomino sinais a tudo o que se emprega para significar alguma coisa além de si mesmo” (AGOSTINHO, 2002, p.43). .

Há uma questão, porém, que, em nosso entendimento, precisa ser ressaltada: as formulações saussurianas em torno do signo são importantes, mas não são o limite e nem mesmo o fundamento de toda discussão moderna que passa pela questão do signo linguístico. A despeito dos estudiosos que partem do Curso ou a ele se limitam, de fato, há pensadores que estabelecem sua discussão a partir de outro fundamento, que não Saussure. De semelhante forma, há aqueles que, mesmo interagindo com Saussure, não o tomam como sendo a última palavra. Verificar os termos pelos quais a ideia de signo comparece em outras propostas parece, então, ser um exercício importante de reflexão, que permite maior entendimento das epistemologias subjacentes a importantes teorias acerca da linguagem humana. Assim, nas próximas páginas, queremos discorrer sobre as reflexões propostas pelo pensador russo Valentin N. Volóchinov (1895-1936) e pelo linguista sírio-francês Émile Benveniste (1902-1976) em torno do lugar condigno ao linguístico diante de outros tipos de semiose.

No que se segue, tentamos demonstrar que tanto no pensamento de Volóchinov – exposto, principalmente, na obra Marxismo e filosofia da linguagem. Problemas fundamentais do método sociológico na ciência da linguagem (doravante, MFL), de 1929 – quanto nas reflexões de Benveniste – presentes, sobretudo, no ensaio “Semiologia da língua” (de agora em diante, também SL), de 1969 –, a questão da preeminência do linguístico ganha dimensões ainda não devidamente consideradas por muitos leitores. Mais precisamente, buscamos pôr em relevo o fato de que, com Volóchinov (2018a)VOLÓCHINOV, V. (Círculo de Bakhtin). Marxismo e filosofia da linguagem: problemas fundamentais do método sociológico na ciência da linguagem. Tradução, notas e glossário Sheila Grillo e Ekaterina Vólkova Américo; ensaio introdutório de Sheila Grillo. 2.ed. São Paulo: Editora 34, 2018a. [1929], na esteira do filósofo neokantiano Ernst Cassirer (1874-1945), apresenta-se um conjunto de questões que visam destacar a primazia da palavra frente a outros tipos de signo. Da mesma maneira, intentamos evidenciar o quanto a proposta de Benveniste [1969], avançando em relação aos conceitos de signo e língua presentes em Saussure [1916], inclina-se para o reconhecimento de um lugar ímpar para a língua, em face dos outros sistemas de signos.

Para articular os olhares de Volóchinov [1929] e Benveniste [1969] sobre essa preeminência do linguístico frente às demais semioses e, ao mesmo tempo, acentuar a distinção entre seus pontos de partida, importa esclarecer, desde já, uma pertinente questão terminológica e conceitual. Como argumentamos nas páginas seguintes, a despeito da possibilidade de se traduzir o termo russo slovo2 2 Os termos russos, assim apresentados, estão transliterados do alfabeto cirílico para o alfabeto romano. por “palavra” ou por “discurso”3 3 Quanto a isso, pode-se consultar a pertinente nota das tradutoras, que acompanha o título do ensaio “A palavra na vida e a palavra na poesia: para uma poética sociológica”, em Volóchinov (2019a). , fato é que, por esse termo, Volóchinov (2018a)VOLÓCHINOV, V. (Círculo de Bakhtin). Marxismo e filosofia da linguagem: problemas fundamentais do método sociológico na ciência da linguagem. Tradução, notas e glossário Sheila Grillo e Ekaterina Vólkova Américo; ensaio introdutório de Sheila Grillo. 2.ed. São Paulo: Editora 34, 2018a. [1929] remete ao que entende ser o signo linguístico, numa formulação conceitual que guarda distância do conceito de signo mais famoso em terras ocidentais, a saber, o conceito saussuriano, exposto no CLG. Em veia similar, devemos adiantar que, como se verá em nossa argumentação, o conceito expresso pelo termo francês langue, em Benveniste (2006b)BENVENISTE, É. Semiologia da língua. [1969]. In: BENVENISTE, É. Problemas de linguística geral II. Tradução Eduardo Guimarães et al. 2.ed. Campinas, SP: Pontes Editores, 2006b, p.43-67., não se limita a um sistema de signos, conforme proposto por Saussure (2012)SAUSSURE, F. Curso de linguística geral. Organização Charles Bally e Albert Sechehaye; com a colaboração de Albert Riedlingler; prefácio à edição brasileira de Isaac Nicolau Salum; tradução Antônio Chelini, José Paulo Paes e Izidoro Blikstein. 28.ed. São Paulo: Cultrix, 2012. [1916]. Na verdade, o conceito de língua em Benveniste (2006b)BENVENISTE, É. Semiologia da língua. [1969]. In: BENVENISTE, É. Problemas de linguística geral II. Tradução Eduardo Guimarães et al. 2.ed. Campinas, SP: Pontes Editores, 2006b, p.43-67. abrange o sistema de signos de Saussure (2012)SAUSSURE, F. Curso de linguística geral. Organização Charles Bally e Albert Sechehaye; com a colaboração de Albert Riedlingler; prefácio à edição brasileira de Isaac Nicolau Salum; tradução Antônio Chelini, José Paulo Paes e Izidoro Blikstein. 28.ed. São Paulo: Cultrix, 2012. [1916], mas vai além. Assim, temos, com Benveniste (2006b)BENVENISTE, É. Semiologia da língua. [1969]. In: BENVENISTE, É. Problemas de linguística geral II. Tradução Eduardo Guimarães et al. 2.ed. Campinas, SP: Pontes Editores, 2006b, p.43-67., “não mais a língua entendida como um sistema de signos, mas a língua assumida pelo homem que fala, pelo homem na língua” (FLORES, 2017, p.1023FLORES, V. N. O que há para ultrapassar na noção saussuriana de signo? De Saussure a Benveniste. Gragoatá, Niterói, v. 22, n. 44, p.1005-1026, set.- dez. 2017. Disponível em: https://periodicos.uff.br/gragoata/article/view/33546/19533. Acesso em: 01 fev. 2021.
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).

É importante considerar, neste ponto, que, ao falarmos de “primazia da palavra frente a outros tipos de signos” e em “lugar ímpar para a língua, em face dos outros sistemas de signos”, estamos, com base em Volóchinov (2018a)VOLÓCHINOV, V. (Círculo de Bakhtin). Marxismo e filosofia da linguagem: problemas fundamentais do método sociológico na ciência da linguagem. Tradução, notas e glossário Sheila Grillo e Ekaterina Vólkova Américo; ensaio introdutório de Sheila Grillo. 2.ed. São Paulo: Editora 34, 2018a. [1929] e Benveniste (2006b)BENVENISTE, É. Semiologia da língua. [1969]. In: BENVENISTE, É. Problemas de linguística geral II. Tradução Eduardo Guimarães et al. 2.ed. Campinas, SP: Pontes Editores, 2006b, p.43-67. – respectivamente –, dando destaque a propriedades que, no conjunto dos sistemas de signos, são exclusivas da língua. Talvez, para alguns, isso soe como uma tentativa de hierarquização, a qual, ao fim e ao cabo, inferiorizaria os outros sistemas. Para nós, porém, o foco não é uma comparação que possibilite hierarquizar, mas, antes, a constatação das especificidades do linguístico. Quanto às consequências das constatações de Volóchinov e Benveniste, não vemos outro meio de lidar, senão reconhecendo a primazia do linguístico.

Posto isso, apresentamos nosso percurso. Na seção inicial, evidenciando o vínculo de MFL com Cassirer (2001)CASSIRER, E. A filosofia das formas simbólicas. Vol. I: A linguagem. Tradução Marion Fleischer. São Paulo: Martins Fontes, 2001. [1923], trataremos das particularidades da palavra que, segundo Volóchinov, conferem a ela um lugar de destaque. Em seguida, lembrando a relação que SL mantém com Saussure (2012)SAUSSURE, F. Curso de linguística geral. Organização Charles Bally e Albert Sechehaye; com a colaboração de Albert Riedlingler; prefácio à edição brasileira de Isaac Nicolau Salum; tradução Antônio Chelini, José Paulo Paes e Izidoro Blikstein. 28.ed. São Paulo: Cultrix, 2012. [1916], destacamos o privilégio da língua que, de acordo com Benveniste, a coloca em posição ímpar. Por fim, na condição de considerações finais, mais do que discorrer sobre os possíveis percursos investigativos que se abrem com tais formulações, salientamos o fato de que essa atribuição de primazia ao linguístico tem muito a dizer em relação à prática docente e a determinadas orientações curriculares que avançam no debate público.

1 Volóchinov e as particularidades da palavra

Como se sabe, MFL explicitamente apresenta a oposição de Volóchinov a Saussure (2012)SAUSSURE, F. Curso de linguística geral. Organização Charles Bally e Albert Sechehaye; com a colaboração de Albert Riedlingler; prefácio à edição brasileira de Isaac Nicolau Salum; tradução Antônio Chelini, José Paulo Paes e Izidoro Blikstein. 28.ed. São Paulo: Cultrix, 2012. [1916]. Por esse motivo, estamos inclinados a pensar que, para evitar certos equívocos interpretativos, é preciso pontuar já de partida: a entrada de Volóchinov na discussão sobre o mundo dos signos, nos três capítulos da primeira parte de MFL, muito antes de evidenciar uma interação com Saussure (2012)SAUSSURE, F. Curso de linguística geral. Organização Charles Bally e Albert Sechehaye; com a colaboração de Albert Riedlingler; prefácio à edição brasileira de Isaac Nicolau Salum; tradução Antônio Chelini, José Paulo Paes e Izidoro Blikstein. 28.ed. São Paulo: Cultrix, 2012. [1916], deixa ver a influência de Cassirer (2001)CASSIRER, E. A filosofia das formas simbólicas. Vol. I: A linguagem. Tradução Marion Fleischer. São Paulo: Martins Fontes, 2001. [1923] sobre o pensador russo. Isso significa dizer que a longa reflexão de Volóchinov (2018a)VOLÓCHINOV, V. (Círculo de Bakhtin). Marxismo e filosofia da linguagem: problemas fundamentais do método sociológico na ciência da linguagem. Tradução, notas e glossário Sheila Grillo e Ekaterina Vólkova Américo; ensaio introdutório de Sheila Grillo. 2.ed. São Paulo: Editora 34, 2018a. [1929] sobre o mundo dos signos, presente na primeira parte de MFL, é devida, mais propriamente, à sua familiaridade com os escritos de Cassirer; em especial, com o primeiro volume de A filosofia das formas simbólicas (a partir daqui, também FFS), o qual é dedicado à temática da linguagem.

Nesse particular, vale lembrar que, no quarto relatório de atividades entregue ao Instituto de História Comparada das Literaturas e Línguas do Ocidente e do Oriente (ILIAZV), o então pesquisador pós-graduando Valentin N. Volóchinov menciona sua preparação de duas traduções, sendo uma delas a tradução de A filosofia das formas simbólicas (cf. GRILLO; AMÉRICO, 2019, p.40GRILLO, S.; AMÉRICO, E. V. Registros de Valentin Volóchinov nos arquivos do ILIAZV. (Ensaio introdutório). In: VOLÓCHINOV, V. (Círculo de Bakhtin). A palavra na vida e a palavra na poesia: ensaios, artigos, resenhas e poemas. Organização, tradução, ensaio introdutório e notas Sheila Grillo e Ekaterina Vólkova Américo. São Paulo: Editora 34, 2019, p.7-56.). Em adição a isso, devemos ter em mente que, tanto em seu plano de trabalho para MFL quanto no próprio texto publicado em 1929, Volóchinov registra o que parece configurar certo aceno positivo para com a obra de Cassirer. Isto é, no plano de trabalho para MFL, o autor afirma que o texto de Cassirer, original de 1923, é uma “obra neokantiana fundamental na filosofia da linguagem” (VOLÓCHINOV, 2018b, p.337VOLÓCHINOV, V. Plano de trabalho de Volóchinov. [s.d.]. In: VOLÓCHINOV, V. (Círculo de Bakhtin). Marxismo e filosofia da linguagem: problemas fundamentais do método sociológico na ciência da linguagem. Tradução, notas e glossário Sheila Grillo e Ekaterina Vólkova Américo; ensaio introdutório Sheila Grillo. 2.ed. São Paulo: Editora 34, 2018b, p.325-352.). Similarmente, no texto de MFL propriamente dito, por meio de notas complementares, Volóchinov (2018a)VOLÓCHINOV, V. (Círculo de Bakhtin). Marxismo e filosofia da linguagem: problemas fundamentais do método sociológico na ciência da linguagem. Tradução, notas e glossário Sheila Grillo e Ekaterina Vólkova Américo; ensaio introdutório de Sheila Grillo. 2.ed. São Paulo: Editora 34, 2018a. [1929] parece, em alguma medida, eximir Cassirer das críticas que dirige ao que afirma ser a concepção da “filosofia idealista da cultura e dos estudos culturais de cunho antropológico” (VOLÓCHINOV, 2018a, p.94VOLÓCHINOV, V. (Círculo de Bakhtin). Marxismo e filosofia da linguagem: problemas fundamentais do método sociológico na ciência da linguagem. Tradução, notas e glossário Sheila Grillo e Ekaterina Vólkova Américo; ensaio introdutório de Sheila Grillo. 2.ed. São Paulo: Editora 34, 2018a. [1929]), e, além disso, registra seu entendimento de que, até aquele momento – isto é, 1929 –, “o único ensaio de peso sobre a história da filosofia da linguagem e da linguística” (VOLÓCHINOV, 2018a, p.147VOLÓCHINOV, V. (Círculo de Bakhtin). Marxismo e filosofia da linguagem: problemas fundamentais do método sociológico na ciência da linguagem. Tradução, notas e glossário Sheila Grillo e Ekaterina Vólkova Américo; ensaio introdutório de Sheila Grillo. 2.ed. São Paulo: Editora 34, 2018a. [1929]) estaria no capítulo inicial de FFS.

Além de tudo isso, e considerando que a temática do signo é fundamental em MFL – estando presente já na primeira página do primeiro capítulo da parte inicial –, é um fato sintomático que a primeira menção a Saussure apareça somente no que se pode considerar o último terço do primeiro capítulo da segunda parte, ou seja, apenas quando Volóchinov já havia discutido o caráter fundamental do signo, o lugar da palavra enquanto signo, a relação entre signo e ideologia e, até mesmo, a relação entre signo e consciência.

Em acréscimo, devemos dizer que, além de não acusar reconhecimento algum das considerações saussurianas em torno de uma semiologia a ser construída, Volóchinov (2018a)VOLÓCHINOV, V. (Círculo de Bakhtin). Marxismo e filosofia da linguagem: problemas fundamentais do método sociológico na ciência da linguagem. Tradução, notas e glossário Sheila Grillo e Ekaterina Vólkova Américo; ensaio introdutório de Sheila Grillo. 2.ed. São Paulo: Editora 34, 2018a. [1929], logo após apresentar trechos do CLG, e por toda a extensão da discussão que imprime a respeito das ideias que atribui a Saussure (2012)SAUSSURE, F. Curso de linguística geral. Organização Charles Bally e Albert Sechehaye; com a colaboração de Albert Riedlingler; prefácio à edição brasileira de Isaac Nicolau Salum; tradução Antônio Chelini, José Paulo Paes e Izidoro Blikstein. 28.ed. São Paulo: Cultrix, 2012. [1916], reiteradamente menciona e censura o que entende ser um sistema imutável de “formas” (forma, em russo) normativamente idênticas4 4 Mesmo sabendo que o CLG “foi amplamente discutido logo depois de seu aparecimento em 1916 e, assim, exerceu uma influência formadora sobre o desenvolvimento da linguística soviética” (LÄHTEENMÄKI, 2006, p.190; cf., também, SÉRIOT, 2015, p.107-108), é importante considerar que sua primeira publicação em russo é de 1933, ou seja, posterior à publicação de MFL. Assim, não estamos certos de quais foram as condições em que Volóchinov teve contato com a obra de Saussure. . Sem discutir, aqui, os qualificadores utilizados por Volóchinov (2018a)VOLÓCHINOV, V. (Círculo de Bakhtin). Marxismo e filosofia da linguagem: problemas fundamentais do método sociológico na ciência da linguagem. Tradução, notas e glossário Sheila Grillo e Ekaterina Vólkova Américo; ensaio introdutório de Sheila Grillo. 2.ed. São Paulo: Editora 34, 2018a. [1929], importa observar que o termo “znak”, equivalente ao português “signo” e onipresente nos momentos anteriores de MFL, parece ser deixado de lado nas ocasiões em que o russo faz referência àquilo que, parece-nos, seria o signe de Saussure (2012)SAUSSURE, F. Curso de linguística geral. Organização Charles Bally e Albert Sechehaye; com a colaboração de Albert Riedlingler; prefácio à edição brasileira de Isaac Nicolau Salum; tradução Antônio Chelini, José Paulo Paes e Izidoro Blikstein. 28.ed. São Paulo: Cultrix, 2012. [1916]. Aliás, temos até uma hipótese para essa consistência terminológica tão incomum em Volóchinov (2018a)VOLÓCHINOV, V. (Círculo de Bakhtin). Marxismo e filosofia da linguagem: problemas fundamentais do método sociológico na ciência da linguagem. Tradução, notas e glossário Sheila Grillo e Ekaterina Vólkova Américo; ensaio introdutório de Sheila Grillo. 2.ed. São Paulo: Editora 34, 2018a. [1929]: para nós, o pensador russo não utiliza o termo equivalente a “signo” para fazer referência ao trabalho de Saussure exatamente porque intenta preservar o referido termo, tão importante em MFL, do conceito que julga observar no trabalho do genebrino, qual seja, um conceito supostamente marcado por normatividade e imutabilidade – ambas, ao que parece, vinculadas à tese saussuriana da arbitrariedade (cf. VOLÓCHINOV, 2018a, p.157VOLÓCHINOV, V. (Círculo de Bakhtin). Marxismo e filosofia da linguagem: problemas fundamentais do método sociológico na ciência da linguagem. Tradução, notas e glossário Sheila Grillo e Ekaterina Vólkova Américo; ensaio introdutório de Sheila Grillo. 2.ed. São Paulo: Editora 34, 2018a. [1929]).

Assim, apesar da seduzente ilusão do significante, o termo equivalente a “signo”, em MFL, não corresponde ao conceito de signo presente no CLG. Quer dizer, embora vocábulos equivalentes ao português “signo” estejam presente em ambas as obras, a formulação saussuriana não se apresenta como suficiente para Volóchinov (2018a)VOLÓCHINOV, V. (Círculo de Bakhtin). Marxismo e filosofia da linguagem: problemas fundamentais do método sociológico na ciência da linguagem. Tradução, notas e glossário Sheila Grillo e Ekaterina Vólkova Américo; ensaio introdutório de Sheila Grillo. 2.ed. São Paulo: Editora 34, 2018a. [1929]. No conceitual desse pensador, os signos são fenômenos materiais, cuja eclosão está condicionada ao processo de interação, o que lhes confere, por consequência, a mutabilidade que, segundo o russo, não estaria contemplada no trabalho de Saussure, visto que a perspectiva saussuriana, supõe Volóchinov (2018a)VOLÓCHINOV, V. (Círculo de Bakhtin). Marxismo e filosofia da linguagem: problemas fundamentais do método sociológico na ciência da linguagem. Tradução, notas e glossário Sheila Grillo e Ekaterina Vólkova Américo; ensaio introdutório de Sheila Grillo. 2.ed. São Paulo: Editora 34, 2018a. [1929], exclui o trabalho do falante nos processos de formação histórica da língua (cf., e.g., VOLÓCHINOV, 2018a, p.96; 198VOLÓCHINOV, V. (Círculo de Bakhtin). Marxismo e filosofia da linguagem: problemas fundamentais do método sociológico na ciência da linguagem. Tradução, notas e glossário Sheila Grillo e Ekaterina Vólkova Américo; ensaio introdutório de Sheila Grillo. 2.ed. São Paulo: Editora 34, 2018a. [1929]). Nas palavras de Volóchinov (2018a, p.109VOLÓCHINOV, V. (Círculo de Bakhtin). Marxismo e filosofia da linguagem: problemas fundamentais do método sociológico na ciência da linguagem. Tradução, notas e glossário Sheila Grillo e Ekaterina Vólkova Américo; ensaio introdutório de Sheila Grillo. 2.ed. São Paulo: Editora 34, 2018a. [1929], grifos no original):

todo signo surge entre indivíduos socialmente organizados no processo de sua interação. Portanto, as formas do signo são condicionadas, antes de tudo, tanto pela organização social desses indivíduos quanto pelas condições mais próximas da sua interação. A mudança dessas formas acarreta uma mudança do signo.

A essa altura, vale recordar, com Faraco (2013)FARACO, C. A. A ideologia no/do Círculo de Bakhtin. In: PAULA, L.; STAFUZZA, G. (orgs.). Círculo de Bakhtin: pensamento interacional. Campinas, SP: Mercado de Letras, 2013, p.167-182., que os termos equivalentes a “ideologia” e “ideológico” são utilizados, em MFL, em duas acepções distintas: em primeiro lugar, para aludir à visão de mundo própria de um determinado grupo social; em segundo lugar, para fazer referência aos campos de criação da cultura formalizados, tais como a arte, a ciência, o direito e a religião5 5 Ao que nos parece, ainda hoje, precisamos insistir no fato de que, como se pode ver, nenhum dos termos “carrega um sentido crítico, negativo ou pejorativo – como algumas vezes parece estar pressuposto na vulgata [bakhtiniana]” (FARACO, 2013, p.180). O leitor interessado pode consultar, ainda, Lähteenmäki (2012). . Assim, numa formulação muita próxima àquela de Cassirer (2001)CASSIRER, E. A filosofia das formas simbólicas. Vol. I: A linguagem. Tradução Marion Fleischer. São Paulo: Martins Fontes, 2001. [1923], o autor de MFL pontua a relação inextrincável entre os signos e o que denomina “campo[s] da criação ideológica” (VOLÓCHINOV, 2018a, p.94VOLÓCHINOV, V. (Círculo de Bakhtin). Marxismo e filosofia da linguagem: problemas fundamentais do método sociológico na ciência da linguagem. Tradução, notas e glossário Sheila Grillo e Ekaterina Vólkova Américo; ensaio introdutório de Sheila Grillo. 2.ed. São Paulo: Editora 34, 2018a. [1929]), isto é, os vários campos de criação da cultura.

Dito de modo mais preciso, na exposição de sua proposta filosófica atinente às formas simbólicas6 6 A miríade de expressões utilizadas por Cassirer (2001) para remeter à ideia de “forma simbólica” dificulta a apresentação de um inventário mais completo. Ainda assim, vejamos algumas das expressões escolhidas pelo autor de FFS. Para Cassirer, a forma simbólica “conhecimento” – a ciência, vale dizer – “representa apenas um tipo particular de configuração na totalidade das apreensões e interpretações espirituais do ser. (...) Mas ao lado dessa forma de síntese intelectual, que se representa e reflete no sistema dos conceitos científicos, existem outros modos de configuração dentro da totalidade da vida espiritual” (CASSIRER, 2001, p.18; grifo nosso). Para não nos estendermos, diremos que, pelo exposto em FFS, “o conceito de forma simbólica seria equivalente aos conceitos de: (i) manifestações culturais; (ii) formas de espírito; (iii) objetivações; (iv) modalidades de conhecimento; (v) compreensão do mundo; e (vi) modos básicos de experiências” (PORTA, 2011b, p.58). , assumidas, basicamente, como modos específicos de apreender e configurar o mundo (e.g., linguagem, ciência, mito, arte etc.), Cassirer (2001, p.32)CASSIRER, E. A filosofia das formas simbólicas. Vol. I: A linguagem. Tradução Marion Fleischer. São Paulo: Martins Fontes, 2001. [1923] estabelece a função simbólica e, consequentemente, os signos como sendo o “elemento mediador abrangente, no qual todas as criações espirituais [i.e., formas simbólicas] se encontram, por mais diferentes que sejam”. Isso equivale a dizer que, para Cassirer (2001, p.29)CASSIRER, E. A filosofia das formas simbólicas. Vol. I: A linguagem. Tradução Marion Fleischer. São Paulo: Martins Fontes, 2001. [1923], em última instância, o signo é o almejado “momento que se reencontra em cada uma das formas espirituais [i.e., formas simbólicas] fundamentais, mas que, por outro lado, não se repete completamente da mesma forma em nenhuma delas”.

Segundo entendemos, o raciocínio de Volóchinov (2018a)VOLÓCHINOV, V. (Círculo de Bakhtin). Marxismo e filosofia da linguagem: problemas fundamentais do método sociológico na ciência da linguagem. Tradução, notas e glossário Sheila Grillo e Ekaterina Vólkova Américo; ensaio introdutório de Sheila Grillo. 2.ed. São Paulo: Editora 34, 2018a. [1929] segue por um caminho muito similar. Afinal, como pontua – em uma passagem que, proporcionalmente à fama, carrega a incompreensão –, “onde não há signo também não há ideologia” (VOLÓCHINOV, 2018a, p.91VOLÓCHINOV, V. (Círculo de Bakhtin). Marxismo e filosofia da linguagem: problemas fundamentais do método sociológico na ciência da linguagem. Tradução, notas e glossário Sheila Grillo e Ekaterina Vólkova Américo; ensaio introdutório de Sheila Grillo. 2.ed. São Paulo: Editora 34, 2018a. [1929]; grifo no original); o que, bem entendido, significa que qualquer campo de criação da cultura, e mesmo qualquer produto atinente a esses campos, só pode emergir via signo.

Assim, pois, parece-nos claro o quanto as ideias de Cassirer (2001)CASSIRER, E. A filosofia das formas simbólicas. Vol. I: A linguagem. Tradução Marion Fleischer. São Paulo: Martins Fontes, 2001. [1923] em relação ao signo e às formas simbólicas influenciam o pensador russo. Entretanto, ainda é necessário destacar uma última questão: se Cassirer (2001)CASSIRER, E. A filosofia das formas simbólicas. Vol. I: A linguagem. Tradução Marion Fleischer. São Paulo: Martins Fontes, 2001. [1923] deixa diversos estudiosos com dúvidas quanto ao lugar da língua em relação às outras formas de apreensão e configuração do mundo – como a ciência, a arte e o mito –7 7 De fato, seria interessante saber como Volóchinov interpretou Cassirer (2001) nesse quesito. Porém, até onde sabemos, não há elementos que possam ser tidos como prova, ou mesmo indício, de alguma interpretação. Seja como for, vale ressaltar que, no conjunto de intepretações que incidem sobre a filosofia de Cassirer, o fato de ser, ou não, a linguagem “uma forma simbólica privilegiada ou fundamental, de modo tal que esteja pressuposta em toda outra, existindo entre ela e o resto uma relação essencialmente assimétrica” (PORTA, 2011a, p.297), ainda se apresenta como uma daquelas questões concretas “não definitivamente respondidas em relação à ‘filosofia das formas simbólicas’” (PORTA, 2011a, p.296). , Volóchinov (2018a)VOLÓCHINOV, V. (Círculo de Bakhtin). Marxismo e filosofia da linguagem: problemas fundamentais do método sociológico na ciência da linguagem. Tradução, notas e glossário Sheila Grillo e Ekaterina Vólkova Américo; ensaio introdutório de Sheila Grillo. 2.ed. São Paulo: Editora 34, 2018a. [1929], por seu turno, é mais categórico. Para o autor de MFL, a palavra é a condição para – e, logo, elemento constitutivo de – qualquer campo de criação da cultura, seja esse campo a ciência, a religião, a arte etc.8 8 A seguir, trataremos dessa questão mais detidamente. .

Com essas observações, consideramos estar justificado o nosso entendimento de que é sob a influência do primeiro volume de FFS, e não do CLG, que Volóchinov (2018a)VOLÓCHINOV, V. (Círculo de Bakhtin). Marxismo e filosofia da linguagem: problemas fundamentais do método sociológico na ciência da linguagem. Tradução, notas e glossário Sheila Grillo e Ekaterina Vólkova Américo; ensaio introdutório de Sheila Grillo. 2.ed. São Paulo: Editora 34, 2018a. [1929] discute as particularidades do linguístico, da palavra. Assim sendo, avancemos.

O texto volochinoviano de 1929, ou seja, o já mencionado Marxismo e filosofia da linguagem, tem como uma de suas direções discutir uma perspectiva materialista e sociológica para os estudos da linguagem. Por esse motivo, então, Volóchinov inicia a primeira parte de sua magnum opus discutindo a relação entre aquilo que ele denomina “ciência das ideologias” e a filosofia da linguagem. Mais especificamente, o autor empreende uma proposta que objetiva, a partir das questões atinentes à língua, dar maior consistência ao tratamento da problemática das ideologias – isto é, da problemática que envolve os campos de criação da cultura, tais como a arte, a ciência, a filosofia, a religião etc.

Para levar a termo tal empreendimento, o pensador russo inicia considerando que todo objeto atinente a algum campo de criação da cultura carrega em si uma significação, ou seja, a propriedade de significar. Conforme sustenta,

qualquer produto ideológico é não apenas uma parte da realidade natural e social – seja ele um corpo físico, um instrumento de produção ou um produto de consumo – mas também, ao contrário desses fenômenos, reflete e refrata outra realidade que se encontra fora dos seus limites. Tudo o que é ideológico possui uma significação: ele representa e substitui algo encontrado fora dele, ou seja, ele é um signo. Onde não há signo também não há ideologia. Pode- se dizer que um corpo físico equivale a si próprio: ele não significa nada e coincide inteiramente com a sua realidade única e natural. Nesse caso, não temos como falar de ideologia (VOLÓCHINOV, 2018a, p.91-92VOLÓCHINOV, V. (Círculo de Bakhtin). Marxismo e filosofia da linguagem: problemas fundamentais do método sociológico na ciência da linguagem. Tradução, notas e glossário Sheila Grillo e Ekaterina Vólkova Américo; ensaio introdutório de Sheila Grillo. 2.ed. São Paulo: Editora 34, 2018a. [1929]; grifos no original).

Deve-se observar que, nessa formulação, para além de alegar que os objetos ideológicos – isto é, os produtos de determinado campo de criação da cultura – têm a propriedade de “representa[r] e substitui[r] algo encontrado fora dele[s]” (VOLÓCHINOV, 2018a, p.91VOLÓCHINOV, V. (Círculo de Bakhtin). Marxismo e filosofia da linguagem: problemas fundamentais do método sociológico na ciência da linguagem. Tradução, notas e glossário Sheila Grillo e Ekaterina Vólkova Américo; ensaio introdutório de Sheila Grillo. 2.ed. São Paulo: Editora 34, 2018a. [1929]), o autor deixa transparecer sua concepção de que, ao lado da “realidade natural e social”, há uma realidade sígnica. Essa concepção, deve-se dizer, é explicitada quando Volóchinov (2018a, p.93VOLÓCHINOV, V. (Círculo de Bakhtin). Marxismo e filosofia da linguagem: problemas fundamentais do método sociológico na ciência da linguagem. Tradução, notas e glossário Sheila Grillo e Ekaterina Vólkova Américo; ensaio introdutório de Sheila Grillo. 2.ed. São Paulo: Editora 34, 2018a. [1929]; grifo no original) afirma que, “além dos fenômenos da natureza, dos objetos tecnológicos e dos produtos de consumo, existe um mundo particular: o mundo dos signos9 9 Quanto a isso, vale lembrar algumas palavras de Cassirer (2001). Ao censurar a posição epistemológica que denomina “sensualismo dogmático”, o filósofo afirma: “ele falha em reconhecer que existe uma atividade do próprio sensível, que, como disse Goethe, existe uma ‘imaginação sensível exata’, que se manifesta nos mais diversos campos da atividade espiritual. Com efeito, em todos estes campos o veículo propriamente dito do seu desenvolvimento imanente consiste no fato de produzirem um mundo de símbolos próprio e livre, situado ao lado e acima do mundo das percepções: um mundo que, de acordo com a sua natureza imediata, ainda traz as cores do sensível, as quais, porém, representam uma sensibilidade já configurada e, portanto, dominada pelo espírito. Não se trata aqui de algo sensível simplesmente dado e encontrado, e sim de um sistema de multiplicidades sensíveis, produzidas por alguma forma de atividade criadora livre” (CASSIRER, 2001, p.33; grifos no original). .

A essa discussão, Volóchinov agrega, ainda, outros tantos apontamentos atinentes à natureza fundamentalmente social do signo. Contudo, para o nosso objetivo, importa salientar somente os motivos que fazem da palavra o signo ideológico – insistimos: atinente a um dado campo de criação da cultura – par excellence.

Segundo entendemos, são cinco os motivos de Volóchinov para alegar uma singularidade da palavra frente a outros signos: em primeiro lugar, a palavra é ímpar por sua “pureza sígnica” (VOLÓCHINOV, 2018a, p.101VOLÓCHINOV, V. (Círculo de Bakhtin). Marxismo e filosofia da linguagem: problemas fundamentais do método sociológico na ciência da linguagem. Tradução, notas e glossário Sheila Grillo e Ekaterina Vólkova Américo; ensaio introdutório de Sheila Grillo. 2.ed. São Paulo: Editora 34, 2018a. [1929]), ou seja, porque é o signo mais representativo do que é ser signo; em segundo lugar, é ímpar por sua neutralidade; em terceiro lugar, em razão de sua onipresença na comunicação cotidiana; em quarto lugar, seu papel peculiar é devido à “sua capacidade de ser palavra interior” (VOLÓCHINOV, 2018a, p.101VOLÓCHINOV, V. (Círculo de Bakhtin). Marxismo e filosofia da linguagem: problemas fundamentais do método sociológico na ciência da linguagem. Tradução, notas e glossário Sheila Grillo e Ekaterina Vólkova Américo; ensaio introdutório de Sheila Grillo. 2.ed. São Paulo: Editora 34, 2018a. [1929]), isto é, por ser o signo da consciência; por fim, em quinto lugar, seu caráter excepcional deve-se à sua incontornável presença na realização de qualquer produto cultural, independentemente de qual seja o campo de criação da cultura em questão. Reflitamos mais detalhadamente sobre cada um desses motivos.

No que toca ao primeiro motivo, o ponto de Volóchinov (2018a)VOLÓCHINOV, V. (Círculo de Bakhtin). Marxismo e filosofia da linguagem: problemas fundamentais do método sociológico na ciência da linguagem. Tradução, notas e glossário Sheila Grillo e Ekaterina Vólkova Américo; ensaio introdutório de Sheila Grillo. 2.ed. São Paulo: Editora 34, 2018a. [1929] parece ser simples: se o que é característico dos signos é a significação – reiteramos: a propriedade de representar e substituir outra realidade que se encontra fora dos seus limites –, não há nada mais representativo do que é ser signo do que a palavra. De acordo com o autor de MFL, “toda a sua [i.e., da palavra] realidade é integralmente absorvida na função de ser signo. Não há nada na palavra que permaneça indiferente a essa função e que não seja gerado por ela” (VOLÓCHINOV, 2018a, p.98-99VOLÓCHINOV, V. (Círculo de Bakhtin). Marxismo e filosofia da linguagem: problemas fundamentais do método sociológico na ciência da linguagem. Tradução, notas e glossário Sheila Grillo e Ekaterina Vólkova Américo; ensaio introdutório de Sheila Grillo. 2.ed. São Paulo: Editora 34, 2018a. [1929]). Em outros termos, nenhum outro signo encarna tão bem o papel de promotor da significação quanto o faz a palavra.

Embora Volóchinov (2018a)VOLÓCHINOV, V. (Círculo de Bakhtin). Marxismo e filosofia da linguagem: problemas fundamentais do método sociológico na ciência da linguagem. Tradução, notas e glossário Sheila Grillo e Ekaterina Vólkova Américo; ensaio introdutório de Sheila Grillo. 2.ed. São Paulo: Editora 34, 2018a. [1929] não articule necessariamente esses motivos numa inter-relação de causa e efeito, pode-se dizer que o primeiro motivo parece estritamente ligado – como causa e/ou efeito – ao segundo. Em mais detalhe, para o pensador russo, esse segundo motivo, para se alegar uma particularidade da palavra frente aos demais signos, refere-se ao fato de que ela não possui compromisso exclusivo com um campo de criação da cultura em especial. Para Volóchinov (2018a, p.99VOLÓCHINOV, V. (Círculo de Bakhtin). Marxismo e filosofia da linguagem: problemas fundamentais do método sociológico na ciência da linguagem. Tradução, notas e glossário Sheila Grillo e Ekaterina Vólkova Américo; ensaio introdutório de Sheila Grillo. 2.ed. São Paulo: Editora 34, 2018a. [1929], grifo no original), a palavra é “um signo neutro” ou – se se assumir as infelicidades de que tal expressão poderá, atualmente, estar passível – um signo culturalmente livre, isto é, um signo que, diferentemente de outros tipos de signo – “a imagem artística, o símbolo religioso, a fórmula científica, a norma jurídica” (VOLÓCHINOV, 2018a, p.94VOLÓCHINOV, V. (Círculo de Bakhtin). Marxismo e filosofia da linguagem: problemas fundamentais do método sociológico na ciência da linguagem. Tradução, notas e glossário Sheila Grillo e Ekaterina Vólkova Américo; ensaio introdutório de Sheila Grillo. 2.ed. São Paulo: Editora 34, 2018a. [1929]) –, não está atado a um campo específico da criação cultural. Conforme assevera,

todos os demais materiais sígnicos são especializados em campos particulares da criação ideológica. Cada campo possui seu próprio material ideológico e forma seus próprios signos e símbolos específicos que não podem ser aplicados a outros campos. Nesse caso, o signo é criado por uma função ideológica específica e é inseparável dela. Já a palavra é neutra em relação a qualquer função ideológica específica. Ela pode assumir qualquer função ideológica: científica, estética, moral, religiosa (VOLÓCHINOV, 2018a, p.99VOLÓCHINOV, V. (Círculo de Bakhtin). Marxismo e filosofia da linguagem: problemas fundamentais do método sociológico na ciência da linguagem. Tradução, notas e glossário Sheila Grillo e Ekaterina Vólkova Américo; ensaio introdutório de Sheila Grillo. 2.ed. São Paulo: Editora 34, 2018a. [1929]; grifo no original).

Quanto ao terceiro motivo para se atestar o “papel excepcional da palavra” (VOLÓCHINOV, 2018a, p.100VOLÓCHINOV, V. (Círculo de Bakhtin). Marxismo e filosofia da linguagem: problemas fundamentais do método sociológico na ciência da linguagem. Tradução, notas e glossário Sheila Grillo e Ekaterina Vólkova Américo; ensaio introdutório de Sheila Grillo. 2.ed. São Paulo: Editora 34, 2018a. [1929]), sua formulação em MFL está indissoluvelmente ligada a um conceito fundamental para o todo da proposta volochinoviana, a saber, o conceito de “comunicação cotidiana”, lugar em que efetivamente se materializa a “ideologia do cotidiano”. Como lembra Volóchinov (2018a, p.99-100VOLÓCHINOV, V. (Círculo de Bakhtin). Marxismo e filosofia da linguagem: problemas fundamentais do método sociológico na ciência da linguagem. Tradução, notas e glossário Sheila Grillo e Ekaterina Vólkova Américo; ensaio introdutório de Sheila Grillo. 2.ed. São Paulo: Editora 34, 2018a. [1929], grifos no original):

existe um campo enorme da comunicação ideológica que não pode ser atribuído a uma esfera ideológica. Trata-se da comunicação cotidiana. Essa comunicação é extremamente importante e rica em conteúdo. Por um lado, ela entra em contato com os processos produtivos e, por outro, ela se relaciona com as várias esferas ideológicas já formadas e especializadas. Ainda voltaremos a abordar esse campo específico da ideologia do cotidiano no capítulo seguinte. Apenas mencionaremos aqui que a palavra é o material mais usual da comunicação cotidiana.

Obviamente, no trecho supramencionado, poderíamos ter subtraído o esclarecimento sobre o que se verá no capítulo seguinte de MFL. Entretanto, ao nosso ver, mais do que uma informação de ordem secundária, importante apenas para o leitor do livro na íntegra, tal esclarecimento revela um fato frequentemente desconsiderado: aquilo que, posteriormente, Volóchinov (2018a)VOLÓCHINOV, V. (Círculo de Bakhtin). Marxismo e filosofia da linguagem: problemas fundamentais do método sociológico na ciência da linguagem. Tradução, notas e glossário Sheila Grillo e Ekaterina Vólkova Américo; ensaio introdutório de Sheila Grillo. 2.ed. São Paulo: Editora 34, 2018a. [1929] tratará como “psicologia social” e, sobretudo, como “ideologia do cotidiano”, assumindo ser o elo material entre a base socioeconômica – a infraestrutura – e os diferentes campos da criação cultural – a superestrutura –, não pode existir, senão materializado na “comunicação cotidiana”, da qual a palavra é o signo indiscutivelmente mais habitual. Assim, na medida em que figura como elemento sígnico mais comum, “o signo verbal [i.e., a palavra] é o caminho mais fácil e abrangente para acompanhar o caráter ininterrupto do processo dialético de mudança que ocorre da base em direção às superestruturas” (VOLÓCHINOV, 2018a, p.114VOLÓCHINOV, V. (Círculo de Bakhtin). Marxismo e filosofia da linguagem: problemas fundamentais do método sociológico na ciência da linguagem. Tradução, notas e glossário Sheila Grillo e Ekaterina Vólkova Américo; ensaio introdutório de Sheila Grillo. 2.ed. São Paulo: Editora 34, 2018a. [1929]).

É nessa formulação, na qual se deixa perceber o elemento linguístico como fundamento primeiro para a compreensão da relação entre base e superestrutura, que Volóchinov (2018a, p.106VOLÓCHINOV, V. (Círculo de Bakhtin). Marxismo e filosofia da linguagem: problemas fundamentais do método sociológico na ciência da linguagem. Tradução, notas e glossário Sheila Grillo e Ekaterina Vólkova Américo; ensaio introdutório de Sheila Grillo. 2.ed. São Paulo: Editora 34, 2018a. [1929]; grifo no original) destaca a onipresença social da palavra. Segundo entende, “a palavra participa literalmente de toda interação e de todo contato entre as pessoas: da colaboração no trabalho, da comunicação ideológica, dos contatos eventuais cotidianos, das relações políticas etc.” (VOLÓCHINOV, 2018a, p.106VOLÓCHINOV, V. (Círculo de Bakhtin). Marxismo e filosofia da linguagem: problemas fundamentais do método sociológico na ciência da linguagem. Tradução, notas e glossário Sheila Grillo e Ekaterina Vólkova Américo; ensaio introdutório de Sheila Grillo. 2.ed. São Paulo: Editora 34, 2018a. [1929]; grifo nosso). Logo, não seria sem razão a sua distinção em relação aos demais tipos de signos.

Na condição de quarto motivo especial que alça a expressão linguística a uma situação de destaque, específica, face aos outros signos, Volóchinov (2018a)VOLÓCHINOV, V. (Círculo de Bakhtin). Marxismo e filosofia da linguagem: problemas fundamentais do método sociológico na ciência da linguagem. Tradução, notas e glossário Sheila Grillo e Ekaterina Vólkova Américo; ensaio introdutório de Sheila Grillo. 2.ed. São Paulo: Editora 34, 2018a. [1929] menciona a relação entre palavra, corpo e consciência. Mais especificamente, o autor de MFL destaca o fato de que a palavra

é produzida por meio do organismo individual, sem a ajuda de quaisquer instrumentos e sem nenhum material extracorporal. Isso determinou o fato de que a palavra se tornou o material sígnico da vida interior: a consciência (discurso interior). Pois a consciência foi capaz de se desenvolver apenas graças a um material flexível e expresso por meio do corpo. A palavra foi justamente esse material. A palavra pode servir como um signo de uso interior, por assim dizer; ela pode realizar-se como signo sem ser plenamente expressa no exterior (VOLÓCHINOV, 2018a, p.100VOLÓCHINOV, V. (Círculo de Bakhtin). Marxismo e filosofia da linguagem: problemas fundamentais do método sociológico na ciência da linguagem. Tradução, notas e glossário Sheila Grillo e Ekaterina Vólkova Américo; ensaio introdutório de Sheila Grillo. 2.ed. São Paulo: Editora 34, 2018a. [1929]; grifo no original).

Como é possível observar pelo trecho supracitado, o pensador russo considera que os outros tipos de signo, dos quais anteriormente cita “a imagem artística, o símbolo religioso, a fórmula científica, a norma jurídica” (VOLÓCHINOV, 2018a, p.94VOLÓCHINOV, V. (Círculo de Bakhtin). Marxismo e filosofia da linguagem: problemas fundamentais do método sociológico na ciência da linguagem. Tradução, notas e glossário Sheila Grillo e Ekaterina Vólkova Américo; ensaio introdutório de Sheila Grillo. 2.ed. São Paulo: Editora 34, 2018a. [1929]), não podem, por si mesmos, servir como signo interior, ou seja, dar lugar à consciência. Essa posição de signo interior, de elemento basilar da consciência humana, no entender de Volóchinov (2018a)VOLÓCHINOV, V. (Círculo de Bakhtin). Marxismo e filosofia da linguagem: problemas fundamentais do método sociológico na ciência da linguagem. Tradução, notas e glossário Sheila Grillo e Ekaterina Vólkova Américo; ensaio introdutório de Sheila Grillo. 2.ed. São Paulo: Editora 34, 2018a. [1929], é característica unicamente da palavra.

É justamente em decorrência desse quarto motivo que Volóchinov (2018a)VOLÓCHINOV, V. (Círculo de Bakhtin). Marxismo e filosofia da linguagem: problemas fundamentais do método sociológico na ciência da linguagem. Tradução, notas e glossário Sheila Grillo e Ekaterina Vólkova Américo; ensaio introdutório de Sheila Grillo. 2.ed. São Paulo: Editora 34, 2018a. [1929] pode, então, assumir a quinta e última razão que o faz tomar a palavra como sendo de um caráter singular em relação aos demais tipos de signo. Para o autor de MFL, “esse papel excepcional da palavra como um meio da consciência determina o fato de que a palavra acompanha toda a criação ideológica como seu ingrediente indispensável” (VOLÓCHINOV, 2018a, p.100VOLÓCHINOV, V. (Círculo de Bakhtin). Marxismo e filosofia da linguagem: problemas fundamentais do método sociológico na ciência da linguagem. Tradução, notas e glossário Sheila Grillo e Ekaterina Vólkova Américo; ensaio introdutório de Sheila Grillo. 2.ed. São Paulo: Editora 34, 2018a. [1929]; grifo no original). Aqui, então, não se trata mais de ser a palavra um signo culturalmente livre. Mais do que isso, o que se enuncia é o fato de que, por ser o elemento do discurso interior, ou seja, da consciência, a palavra instaura-se como condição para quaisquer outras criações culturais. Nos termos do pensador russo,

os processos de compreensão de qualquer fenômeno ideológico (de um quadro, música, rito, ato) não podem ser realizados sem a participação do discurso interior. Todas as manifestações da criação ideológica, isto é, todos os outros signos não verbais são envolvidos pelo universo verbal, emergem nele e não podem ser nem isolados, nem completamente separados dele. (...) todos esses signos ideológicos que não podem ser substituídos pela palavra ao mesmo tempo apoiam-se nela e são por ela acompanhados, assim como o canto recebe um acompanhamento musical (VOLÓCHINOV, 2018a, p.100-101VOLÓCHINOV, V. (Círculo de Bakhtin). Marxismo e filosofia da linguagem: problemas fundamentais do método sociológico na ciência da linguagem. Tradução, notas e glossário Sheila Grillo e Ekaterina Vólkova Américo; ensaio introdutório de Sheila Grillo. 2.ed. São Paulo: Editora 34, 2018a. [1929]).

Finalizado esse passeio entre os motivos que, segundo Volóchinov (2018a)VOLÓCHINOV, V. (Círculo de Bakhtin). Marxismo e filosofia da linguagem: problemas fundamentais do método sociológico na ciência da linguagem. Tradução, notas e glossário Sheila Grillo e Ekaterina Vólkova Américo; ensaio introdutório de Sheila Grillo. 2.ed. São Paulo: Editora 34, 2018a. [1929], colocam o elemento linguístico em uma situação de destaque frente ao demais signos, vale colocar em relevo sua afirmação, publicada em ensaio datado de 1930, de que “sem a ajuda da palavra não teriam surgido a ciência, a literatura etc., em suma, nenhuma cultura poderia ter existido se a humanidade tivesse sido privada da possibilidade da comunicação social, cuja forma materializada é a nossa língua” (VOLÓCHINOV, 2019b, p.251VOLÓCHINOV, V. Estilística do discurso literário I: O que é a linguagem/língua?. In: VOLÓCHINOV, V. (Círculo de Bakhtin). A palavra na vida e a palavra na poesia: ensaios, artigos, resenhas e poemas. Organização, tradução, ensaio introdutório e notas Sheila Grillo e Ekaterina Vólkova Américo. São Paulo: Editora 34, 2019b, p.234-265. [1930]; grifo no original).

Conforme entendemos, a referida passagem do artigo de 1930 corrobora aquilo que, mediante os cinco motivos elencados acima, buscamos enfatizar: para Volóchinov, cabe à palavra, enquanto signo linguístico, um lugar de primazia em relação aos outros tipos de signos.

2 Benveniste e o privilégio da língua

Quem lê atentamente o CLG percebe que, no pensamento inconcluso do mestre de Genebra, há uma interessante questão a ocupar, futuramente, os linguistas. Discorrendo sobre a Semiologia enquanto uma ciência a se construir, que estaria incumbida de estudar “a vida dos signos no seio da vida social” e que, por isso, nos ensinaria “em que consistem os signos, que leis os regem” (SAUSSURE, 2012, p.47SAUSSURE, F. Curso de linguística geral. Organização Charles Bally e Albert Sechehaye; com a colaboração de Albert Riedlingler; prefácio à edição brasileira de Isaac Nicolau Salum; tradução Antônio Chelini, José Paulo Paes e Izidoro Blikstein. 28.ed. São Paulo: Cultrix, 2012. [1916]; grifo no original), Saussure (2012, p.48)SAUSSURE, F. Curso de linguística geral. Organização Charles Bally e Albert Sechehaye; com a colaboração de Albert Riedlingler; prefácio à edição brasileira de Isaac Nicolau Salum; tradução Antônio Chelini, José Paulo Paes e Izidoro Blikstein. 28.ed. São Paulo: Cultrix, 2012. [1916] propõe que “a tarefa do linguista é definir o que faz da língua um sistema especial no conjunto dos fatos semiológicos”.

Ainda que constituinte de um pensamento em formação, essa importante tarefa que Saussure atribui aos linguistas permite observar que, para o genebrino, não se pode colocar a língua no mesmo patamar dos outros sistemas semiológicos, isto é, no mesmo patamar dos outros sistemas de signos que exprimem ideias, como é o caso da escrita, dos ritos simbólicos, dos sinais militares etc. (cf. SAUSSURE, 2012, p.47SAUSSURE, F. Curso de linguística geral. Organização Charles Bally e Albert Sechehaye; com a colaboração de Albert Riedlingler; prefácio à edição brasileira de Isaac Nicolau Salum; tradução Antônio Chelini, José Paulo Paes e Izidoro Blikstein. 28.ed. São Paulo: Cultrix, 2012. [1916]). Dito de outro modo, com essa proposta, fica claro que, para Saussure (2012)SAUSSURE, F. Curso de linguística geral. Organização Charles Bally e Albert Sechehaye; com a colaboração de Albert Riedlingler; prefácio à edição brasileira de Isaac Nicolau Salum; tradução Antônio Chelini, José Paulo Paes e Izidoro Blikstein. 28.ed. São Paulo: Cultrix, 2012. [1916], a língua é o principal desses sistemas, mas que ainda precisará ser explicitado, pelos linguistas, aquilo que a põe em tal situação privilegiada.

Com essa passagem rápida pelos dizeres de Saussure (2012)SAUSSURE, F. Curso de linguística geral. Organização Charles Bally e Albert Sechehaye; com a colaboração de Albert Riedlingler; prefácio à edição brasileira de Isaac Nicolau Salum; tradução Antônio Chelini, José Paulo Paes e Izidoro Blikstein. 28.ed. São Paulo: Cultrix, 2012. [1916], julgamos estarem postas condições melhores para uma compreensão mais efetiva do que se enuncia no texto de Benveniste. Datado de 1969, o ensaio “Semiologia da língua” pode ser visto como o ápice daquilo que Flores (2013, p.26)FLORES, V. N. Introdução à teoria enunciativa de Benveniste. São Paulo: Parábola, 2013. – numa organização, para fins puramente didáticos, da teoria enunciativa de Benveniste – denominou “momento da distinção semiótico/semântico”. Isso porque, conforme entendemos, esse texto sintetiza e organiza de modo mais preciso aquilo que fora esboçado, primeiramente, em “Os níveis da análise linguística” (1962/1964) e, depois, em “A forma e o sentido na linguagem” (1966/1967).

Como o primeiro parágrafo deixa antever, a reflexão de Benveniste tem por intuito discutir uma resposta satisfatória para a seguinte questão: “qual é o lugar da língua entre os sistemas de signos?” (BENVENISTE, 2006b, p.43BENVENISTE, É. Semiologia da língua. [1969]. In: BENVENISTE, É. Problemas de linguística geral II. Tradução Eduardo Guimarães et al. 2.ed. Campinas, SP: Pontes Editores, 2006b, p.43-67.). Esta pergunta, pelo que se pode ler no texto de Benveniste, instaura-se como uma consequência do empreendimento que, em certa medida, foi levado a cabo, de diferentes modos, pelo filósofo americano Charles Sanders Peirce (1839-1914) e pelo já citado Saussure: a tentativa de formular as bases do que seria uma ciência dos signos. Vale observar, aliás, que tal pergunta aproxima-se da já mencionada afirmação saussuriana de que “a tarefa do linguista é definir o que faz da língua um sistema especial no conjunto dos fatos semiológicos” (SAUSSURE, 2012, p.48SAUSSURE, F. Curso de linguística geral. Organização Charles Bally e Albert Sechehaye; com a colaboração de Albert Riedlingler; prefácio à edição brasileira de Isaac Nicolau Salum; tradução Antônio Chelini, José Paulo Paes e Izidoro Blikstein. 28.ed. São Paulo: Cultrix, 2012. [1916]).

Assumindo um tom crítico à proposta peirciana, Benveniste (2006b, p.44)BENVENISTE, É. Semiologia da língua. [1969]. In: BENVENISTE, É. Problemas de linguística geral II. Tradução Eduardo Guimarães et al. 2.ed. Campinas, SP: Pontes Editores, 2006b, p.43-67. afirma que “no que concerne à língua, Peirce não formula nada de preciso nem de específico”. E mais: segundo Benveniste (2006b, p.44)BENVENISTE, É. Semiologia da língua. [1969]. In: BENVENISTE, É. Problemas de linguística geral II. Tradução Eduardo Guimarães et al. 2.ed. Campinas, SP: Pontes Editores, 2006b, p.43-67., o filósofo americano “não se interessou jamais pelo funcionamento da língua, nem mesmo lhe prestou atenção”.

Para Benveniste (2006b)BENVENISTE, É. Semiologia da língua. [1969]. In: BENVENISTE, É. Problemas de linguística geral II. Tradução Eduardo Guimarães et al. 2.ed. Campinas, SP: Pontes Editores, 2006b, p.43-67., as formulações de Peirce não podem auxiliar o linguista na construção de uma “semiologia da língua como sistema” (BENVENISTE, 2006b, p.45BENVENISTE, É. Semiologia da língua. [1969]. In: BENVENISTE, É. Problemas de linguística geral II. Tradução Eduardo Guimarães et al. 2.ed. Campinas, SP: Pontes Editores, 2006b, p.43-67.), se não por outros motivos, principalmente em virtude de certo hipersemioticismo que o linguista sírio-francês observa na proposta de Peirce:

a dificuldade, que impede toda aplicação particular dos conceitos peircianos, com exceção da tripartição bem conhecida, mas que permanece um quadro muito geral, está em que definitivamente o signo é colocado na base do universo inteiro, e que ele funciona por sua vez como princípio de definição para cada elemento e como princípio de explicação para todo o conjunto, abstrato ou concreto. O homem inteiro é um signo, seu pensamento é um signo, sua emoção é um signo (BENVENISTE, 2006b, p.45BENVENISTE, É. Semiologia da língua. [1969]. In: BENVENISTE, É. Problemas de linguística geral II. Tradução Eduardo Guimarães et al. 2.ed. Campinas, SP: Pontes Editores, 2006b, p.43-67.).

Em outros termos, Benveniste (2006b)BENVENISTE, É. Semiologia da língua. [1969]. In: BENVENISTE, É. Problemas de linguística geral II. Tradução Eduardo Guimarães et al. 2.ed. Campinas, SP: Pontes Editores, 2006b, p.43-67. concebe que, nas formulações do americano, tudo é signo; não há uma distinção entre o signo e o – por assim dizer – objeto significado. Logo, não há uma relação de significância e, na medida em que todos os signos funcionam de forma idêntica, não se pode falar de diferentes sistemas de signos.

Esse problema, que Benveniste (2006b)BENVENISTE, É. Semiologia da língua. [1969]. In: BENVENISTE, É. Problemas de linguística geral II. Tradução Eduardo Guimarães et al. 2.ed. Campinas, SP: Pontes Editores, 2006b, p.43-67. identifica nas bases da proposta de Peirce, não será identificado, da mesma forma, no programa saussuriano. Segundo Benveniste (2006b, p.49)BENVENISTE, É. Semiologia da língua. [1969]. In: BENVENISTE, É. Problemas de linguística geral II. Tradução Eduardo Guimarães et al. 2.ed. Campinas, SP: Pontes Editores, 2006b, p.43-67., uma vez que, “para Saussure, diferentemente do que para Peirce, o signo é antes de tudo uma noção linguística, que mais largamente se estende a certas ordens de fatos humanos e sociais”, pode-se afirmar que, no pensamento saussuriano, os signos possuem uma área de domínio, a qual “compreende, além da língua, os sistemas homólogos ao da língua”.

Benveniste (2006b)BENVENISTE, É. Semiologia da língua. [1969]. In: BENVENISTE, É. Problemas de linguística geral II. Tradução Eduardo Guimarães et al. 2.ed. Campinas, SP: Pontes Editores, 2006b, p.43-67., porém, não deixa de constatar um certo problema passível de apreensão no CLG: ao mesmo tempo que se diz que a Linguística é parte da Semiologia, esta pensada como uma ciência futura que “nos ensinará em que consistem os signos, que leis os regem” (SAUSSURE, 2012, p.47SAUSSURE, F. Curso de linguística geral. Organização Charles Bally e Albert Sechehaye; com a colaboração de Albert Riedlingler; prefácio à edição brasileira de Isaac Nicolau Salum; tradução Antônio Chelini, José Paulo Paes e Izidoro Blikstein. 28.ed. São Paulo: Cultrix, 2012. [1916]), há uma apresentação do signo linguístico como sendo o instrumento que caracteriza a semiologia própria da Linguística. Em outros termos, Benveniste (2006b)BENVENISTE, É. Semiologia da língua. [1969]. In: BENVENISTE, É. Problemas de linguística geral II. Tradução Eduardo Guimarães et al. 2.ed. Campinas, SP: Pontes Editores, 2006b, p.43-67. percebe que, ao contrário da ideia de que a Semiologia “nos ensinará em que consistem os signos, que leis os regem” (SAUSSURE, 2012, p.47SAUSSURE, F. Curso de linguística geral. Organização Charles Bally e Albert Sechehaye; com a colaboração de Albert Riedlingler; prefácio à edição brasileira de Isaac Nicolau Salum; tradução Antônio Chelini, José Paulo Paes e Izidoro Blikstein. 28.ed. São Paulo: Cultrix, 2012. [1916]), o próprio Saussure já dá mostras de que a Semiologia, como uma ciência mais ampla, só poderá ser constituída a partir de uma base sólida, qual seja, a Linguística. Assim, para Benveniste (2006b)BENVENISTE, É. Semiologia da língua. [1969]. In: BENVENISTE, É. Problemas de linguística geral II. Tradução Eduardo Guimarães et al. 2.ed. Campinas, SP: Pontes Editores, 2006b, p.43-67., o fato de Saussure (2012)SAUSSURE, F. Curso de linguística geral. Organização Charles Bally e Albert Sechehaye; com a colaboração de Albert Riedlingler; prefácio à edição brasileira de Isaac Nicolau Salum; tradução Antônio Chelini, José Paulo Paes e Izidoro Blikstein. 28.ed. São Paulo: Cultrix, 2012. [1916] considerar que a Linguística, por ser a ciência que estuda o principal dos sistemas semiológicos, pode ser pensada como o modelo para a Semiologia – “a Linguística pode erigir-se em padrão de toda Semiologia, se bem a língua não se configurar senão como um sistema particular” (SAUSSURE, 2012, p.108SAUSSURE, F. Curso de linguística geral. Organização Charles Bally e Albert Sechehaye; com a colaboração de Albert Riedlingler; prefácio à edição brasileira de Isaac Nicolau Salum; tradução Antônio Chelini, José Paulo Paes e Izidoro Blikstein. 28.ed. São Paulo: Cultrix, 2012. [1916]) – revela dois fatos: em primeiro lugar, que o pensamento do genebrino “é menos claro sobre a relação da linguística com a semiologia, ciência dos sistemas de signos” (BENVENISTE, 2006b, p.49BENVENISTE, É. Semiologia da língua. [1969]. In: BENVENISTE, É. Problemas de linguística geral II. Tradução Eduardo Guimarães et al. 2.ed. Campinas, SP: Pontes Editores, 2006b, p.43-67.); em segundo lugar, que “a semiologia como ciência dos signos permanece em Saussure como uma visão prospectiva, que em seus traços mais precisos se modela sobre a linguística” (BENVENISTE, 2006b, p.50BENVENISTE, É. Semiologia da língua. [1969]. In: BENVENISTE, É. Problemas de linguística geral II. Tradução Eduardo Guimarães et al. 2.ed. Campinas, SP: Pontes Editores, 2006b, p.43-67.).

Ainda a respeito do vínculo entre Linguística e Semiologia, Benveniste (2006b)BENVENISTE, É. Semiologia da língua. [1969]. In: BENVENISTE, É. Problemas de linguística geral II. Tradução Eduardo Guimarães et al. 2.ed. Campinas, SP: Pontes Editores, 2006b, p.43-67. entende que Saussure (2012)SAUSSURE, F. Curso de linguística geral. Organização Charles Bally e Albert Sechehaye; com a colaboração de Albert Riedlingler; prefácio à edição brasileira de Isaac Nicolau Salum; tradução Antônio Chelini, José Paulo Paes e Izidoro Blikstein. 28.ed. São Paulo: Cultrix, 2012. [1916] deixa de definir a natureza desse vínculo. Sobre isso, Saussure (2012)SAUSSURE, F. Curso de linguística geral. Organização Charles Bally e Albert Sechehaye; com a colaboração de Albert Riedlingler; prefácio à edição brasileira de Isaac Nicolau Salum; tradução Antônio Chelini, José Paulo Paes e Izidoro Blikstein. 28.ed. São Paulo: Cultrix, 2012. [1916] teria se limitado a evocar o princípio da arbitrariedade do signo, o qual “governaria o conjunto dos sistemas de expressão e nesse sentido a língua” (BENVENISTE, 2006b, p.50BENVENISTE, É. Semiologia da língua. [1969]. In: BENVENISTE, É. Problemas de linguística geral II. Tradução Eduardo Guimarães et al. 2.ed. Campinas, SP: Pontes Editores, 2006b, p.43-67.). Em sua aula de 6 de janeiro de 1969, em curso sobre Semiologia no Collège de France, Benveniste explicita sua crítica a Saussure (2012)SAUSSURE, F. Curso de linguística geral. Organização Charles Bally e Albert Sechehaye; com a colaboração de Albert Riedlingler; prefácio à edição brasileira de Isaac Nicolau Salum; tradução Antônio Chelini, José Paulo Paes e Izidoro Blikstein. 28.ed. São Paulo: Cultrix, 2012. [1916] quanto a esse aspecto: “ele [Saussure] se contentou em remeter à semiologia futura a tarefa de definir o signo, seu lugar etc. Ele somente disse que a língua era o ‘principal’ sistema semiológico. Porém, sob qual ponto de vista?” (BENVENISTE, 2014, p.103BENVENISTE, É. Últimas aulas no Collège de France (1968 e 1969). Tradução Daniel Costa da Silva et al. São Paulo: Editora Unesp, 2014.). Por último, ainda em SL, Benveniste assinala a limitação das referências, por parte de Saussure (2012)SAUSSURE, F. Curso de linguística geral. Organização Charles Bally e Albert Sechehaye; com a colaboração de Albert Riedlingler; prefácio à edição brasileira de Isaac Nicolau Salum; tradução Antônio Chelini, José Paulo Paes e Izidoro Blikstein. 28.ed. São Paulo: Cultrix, 2012. [1916], a outros sistemas de signo.

Essas constatações a respeito do programa saussuriano possibilitam a Benveniste (2006b)BENVENISTE, É. Semiologia da língua. [1969]. In: BENVENISTE, É. Problemas de linguística geral II. Tradução Eduardo Guimarães et al. 2.ed. Campinas, SP: Pontes Editores, 2006b, p.43-67. destacar que o objeto da Semiologia não pode ser apenas os sistemas de signos tomados individualmente. Antes, pelo menos de igual modo, a Semiologia deve também investigar as próprias relações existentes entre os diferentes sistemas que a constituem. Assim, dado o que se observou em Saussure (2012)SAUSSURE, F. Curso de linguística geral. Organização Charles Bally e Albert Sechehaye; com a colaboração de Albert Riedlingler; prefácio à edição brasileira de Isaac Nicolau Salum; tradução Antônio Chelini, José Paulo Paes e Izidoro Blikstein. 28.ed. São Paulo: Cultrix, 2012. [1916], nada mais natural do que, com vistas a se chegar a uma melhor compreensão da Semiologia, partir do único sistema que se lhe pode servir de modelo: a língua. É, pois, por essa espécie de raciocínio silogístico que se pode conceber que o problema capital da Semiologia – o único que, uma vez resolvido, poderá lançar-lhe luz – é “o estatuto da língua em meio aos sistemas de signos” (BENVENISTE, 2006b, p.51BENVENISTE, É. Semiologia da língua. [1969]. In: BENVENISTE, É. Problemas de linguística geral II. Tradução Eduardo Guimarães et al. 2.ed. Campinas, SP: Pontes Editores, 2006b, p.43-67.).

Para refletir sobre esse problema capital da Semiologia, Benveniste (2006b, p.52BENVENISTE, É. Semiologia da língua. [1969]. In: BENVENISTE, É. Problemas de linguística geral II. Tradução Eduardo Guimarães et al. 2.ed. Campinas, SP: Pontes Editores, 2006b, p.43-67.; grifos no original) afirma que “o caráter comum a todos os sistemas e o critério de sua ligação à semiologia é a sua propriedade de significar ou SIGNIFICÂNCIA, e sua composição em unidades de significância, ou SIGNOS”. A essa afirmação, segue-se uma sofisticada argumentação que intenciona elencar dois grupos de características que podem estabelecer as devidas distinções entre os diferentes sistemas: por um lado, o grupo das configurações externas de um dado sistema; por outro, o grupo das configurações internas. O primeiro grupo congrega o modo operatório de um dado sistema – definido a partir do sentido corporal ao qual o sistema se dirige – e o seu domínio de validade – entendido como o campo de atividade humana em que tal sistema é socialmente legitimado. Por sua vez, o segundo grupo abarca o número e a natureza dos signos de um dado sistema – vale dizer, a quantidade e a constituição dos signos que formam o sistema –, bem como o seu tipo de funcionamento – compreendido como o tipo de relação que se estabelece entre os signos desse sistema.

Assim, Benveniste avança em sua proposta afirmando que o estabelecimento das quatro características distintivas, subsumida em dois diferentes grupos, torna possível “depreender dois princípios que dizem respeito às relações entre sistemas semióticos [i.e., semiológicos]” (BENVENISTE, 2006b, p.53BENVENISTE, É. Semiologia da língua. [1969]. In: BENVENISTE, É. Problemas de linguística geral II. Tradução Eduardo Guimarães et al. 2.ed. Campinas, SP: Pontes Editores, 2006b, p.43-67.).

O primeiro princípio, denominado princípio de não-redundância entre sistemas, advoga que sistemas semiológicos de bases diferentes não podem ser utilizados para – por assim dizer – enunciar algo igual. Nas palavras de Benveniste (2006b, p.54BENVENISTE, É. Semiologia da língua. [1969]. In: BENVENISTE, É. Problemas de linguística geral II. Tradução Eduardo Guimarães et al. 2.ed. Campinas, SP: Pontes Editores, 2006b, p.43-67.; grifo do autor), “a não-conversibilidade entre sistemas de bases diferentes é a razão da não-redundância no universo dos sistemas de signos. O homem não dispõe de vários sistemas distintos para a MESMA relação de significação”.

Por seu turno, o segundo princípio, que podemos chamar de princípio da não transistematicidade do signo, consiste no fato de que “o valor de um signo se define somente no sistema que o integra” (BENVENISTE, 2006b, p.54BENVENISTE, É. Semiologia da língua. [1969]. In: BENVENISTE, É. Problemas de linguística geral II. Tradução Eduardo Guimarães et al. 2.ed. Campinas, SP: Pontes Editores, 2006b, p.43-67.). Isso significa dizer que aquilo que julgamos ser um mesmo signo servindo a dois sistemas semiológicos diferentes só tem aparência de semelhança, pois, no fim das contas, seu valor é estabelecido pela relação que traça junto aos outros signos de seu sistema, e não somente por sua identidade10 10 A propósito dessa questão, vale observar a seguinte afirmação de Benveniste (2006b, p.54, grifos nossos): “dois sistemas podem ter um mesmo signo em comum sem que daí resulte sinonímia ou redundância, quer dizer que a identidade substancial de um signo não conta, mas somente sua diferença funcional”. Conforme julgamos, essa formulação benvenistiana do princípio da não transistematicidade do signo permite ver uma ressonância da noção de valor proposta no CLG. Além disso, traz-nos à memória um dos elementos-chave do trabalho inicial de Ernst Cassirer, que publica, em 1910, o célebre Substanzbegriff und Funktionsbegriff: Untersuchungen über die Grundfragen der Erkenntniskritik [Conceito de substância e conceito de função: investigações sobre as questões básicas da crítica do conhecimento], que, como se sabe, tem clara ressonância em outras obras do autor, como no volume de A filosofia das formas simbólicas dedicado à linguagem. Ao que nos parece, a proximidade entre a noção de valor do CLG e o trabalho de Cassirer, praticamente contemporâneo, merece uma investigação mais detida. .

Como temos visto, em “Semiologia da língua”, o progresso no raciocínio benvenistiano deve-se a uma destacada habilidade de encadear argumentos e inferir as possíveis implicações. Esse é também o movimento realizado diante dos dois princípios expostos anteriormente – o princípio de não-redundância entre sistemas e o princípio da não transistematicidade do signo. Para Benveniste (2006b, p.54)BENVENISTE, É. Semiologia da língua. [1969]. In: BENVENISTE, É. Problemas de linguística geral II. Tradução Eduardo Guimarães et al. 2.ed. Campinas, SP: Pontes Editores, 2006b, p.43-67., a afirmação de tais princípios conduz a um importante questionamento: “os sistemas de signos são então tantos outros mundos fechados, não tendo entre eles senão uma relação de coexistência talvez fortuita?”

Mais do que simplesmente negar que a única relação possível entre os diferentes sistemas de signos seja a relação de coexistência, Benveniste (2006b)BENVENISTE, É. Semiologia da língua. [1969]. In: BENVENISTE, É. Problemas de linguística geral II. Tradução Eduardo Guimarães et al. 2.ed. Campinas, SP: Pontes Editores, 2006b, p.43-67. afirma o caráter fundamental de outra relação, a relação semiótica. Para o autor, “é preciso que a relação colocada entre sistemas semióticos seja ela própria de natureza semiótica” (BENVENISTE, 2006b, p.54BENVENISTE, É. Semiologia da língua. [1969]. In: BENVENISTE, É. Problemas de linguística geral II. Tradução Eduardo Guimarães et al. 2.ed. Campinas, SP: Pontes Editores, 2006b, p.43-67.). Quer dizer, na perspectiva de Benveniste, entre diferentes sistemas de signos há uma relação em que um se apresenta como sistema interpretante e outro como sistema interpretado. Tal relação tem como conditio sine qua non o fato de ambos os sistemas de signos serem, eles mesmos, nutridos por um mesmo meio cultural.

Dessa forma, após um trecho dedicado a comparações entre língua e música, e entre língua e as “artes ditas plásticas” (BENVENISTE, 2006b, p.57BENVENISTE, É. Semiologia da língua. [1969]. In: BENVENISTE, É. Problemas de linguística geral II. Tradução Eduardo Guimarães et al. 2.ed. Campinas, SP: Pontes Editores, 2006b, p.43-67.), as ideias de Benveniste levam-nos a compreender que, à medida que se pode tomar a sociedade como sendo um sistema de signos, pode-se dizer que a relação entre o sistema de signos denominado “língua” e o sistema de signos denominado “sociedade” configura-se uma relação semiótica (cf. BENVENISTE, 2006b, p.63BENVENISTE, É. Semiologia da língua. [1969]. In: BENVENISTE, É. Problemas de linguística geral II. Tradução Eduardo Guimarães et al. 2.ed. Campinas, SP: Pontes Editores, 2006b, p.43-67.). Mais precisamente, uma relação semiótica em que a língua, enquanto sistema de signos, interpreta a sociedade, também tomada como um sistema de signos11 11 Cabe esclarecer que, para Benveniste, em “Semiologia da língua” (2006b), de 1969, e em “Estrutura da língua e estrutura da sociedade” (2006a), de 1968/1970, o termo interpretar e seus correlatos – isto é, interpretante e interpretado – são movimentados em uma acepção bastante singular. Sem entrar em muitos pormenores, diremos que, se o papel do interpretante é interpretar, no contexto desses escritos, interpretar é “fazer existir o interpretado e transformá-lo em noção inteligível” (BENVENISTE, 2006a, p.98). Logo, não soa estranho que, para o linguista sírio-francês, em termos de relação semiológica, “somente a língua torna possível a sociedade” (BENVENISTE, 2006b, p.63). .

Reformulando os nossos apontamentos anteriores, diremos, então, que a formulação proposta em “Semiologia da língua” não somente se aproxima, mas, antes, instaura-se como a própria resposta de Benveniste a Saussure (2012)SAUSSURE, F. Curso de linguística geral. Organização Charles Bally e Albert Sechehaye; com a colaboração de Albert Riedlingler; prefácio à edição brasileira de Isaac Nicolau Salum; tradução Antônio Chelini, José Paulo Paes e Izidoro Blikstein. 28.ed. São Paulo: Cultrix, 2012. [1916]. Tomada ao pé da letra, se “a tarefa do linguista é definir o que faz da língua um sistema especial no conjunto dos fatos semiológicos” (SAUSSURE, 2012, p.48SAUSSURE, F. Curso de linguística geral. Organização Charles Bally e Albert Sechehaye; com a colaboração de Albert Riedlingler; prefácio à edição brasileira de Isaac Nicolau Salum; tradução Antônio Chelini, José Paulo Paes e Izidoro Blikstein. 28.ed. São Paulo: Cultrix, 2012. [1916]), Benveniste (2006b)BENVENISTE, É. Semiologia da língua. [1969]. In: BENVENISTE, É. Problemas de linguística geral II. Tradução Eduardo Guimarães et al. 2.ed. Campinas, SP: Pontes Editores, 2006b, p.43-67. cumpriu a tarefa proposta: o que dá à língua, enquanto sistema de signos, um lugar privilegiado frente aos demais sistemas é exatamente sua capacidade única de interpretar todos os outros, sem que ela mesma possa ser por eles interpretada. Nesse sentido, interessa-nos subscrever as palavras do linguista sírio-francês sobre a relação semiótica:

do ponto de vista da língua, é a relação fundamental, aquela que divide os sistemas em sistemas que articulam, porque manifestam sua própria semiótica, e sistemas que são articulados e cuja semiótica não aparece senão através da matriz de um outro modo de expressão. Pode-se assim introduzir e justificar este princípio de que a língua é o interpretante de todos os sistemas semióticos [i.e., semiológicos]. Nenhum outro sistema dispõe de uma “língua” na qual possa se categorizar e se interpretar segundo suas distinções semióticas, enquanto que a língua pode, em princípio, tudo categorizar e interpretar, inclusive ela mesma (BENVENISTE, 2006b, p.62BENVENISTE, É. Semiologia da língua. [1969]. In: BENVENISTE, É. Problemas de linguística geral II. Tradução Eduardo Guimarães et al. 2.ed. Campinas, SP: Pontes Editores, 2006b, p.43-67.; grifos nossos).

Isso posto, interessa, agora, observar que, mais do que realizar a tarefa deixada pelo mestre de Genebra – reiteramos: dizer o que faz da língua um sistema especial no conjunto dos fatos semiológicos –, Benveniste propõe-se a dar um passo ainda mais adiante: elucidar o motivo pelo qual a língua, enquanto sistema de signos, configura-se o sistema interpretante de todos os outros sistemas de signos (cf. BENVENISTE, 2006b, p.64BENVENISTE, É. Semiologia da língua. [1969]. In: BENVENISTE, É. Problemas de linguística geral II. Tradução Eduardo Guimarães et al. 2.ed. Campinas, SP: Pontes Editores, 2006b, p.43-67.). Para ele, nessa articulação entre responder e justificar – característica marcante de seus textos –, a resposta a essa questão deve evitar confundir as causas com as consequências; logo, não pode ser disposta em termos que alegam a disseminação e a eficácia da língua nos processos de interação12 12 Pensamos que, nesse ponto, é possível perceber com mais clareza um dos elementos que diferem Benveniste (2006b) de Volóchinov (2018a). Para Benveniste (2006b), aquilo que podemos conceber como sendo a onipresença social da palavra, elemento destacado por Volóchinov (2018a), não é a causa do lugar singular condigno ao linguístico em relação aos outros tipos de signo. Antes, tal condição é apenas uma consequência do que verdadeiramente confere essa singularidade ao linguístico: a sua dupla significância. .

Muito antes disso, o linguista atesta que a condição especial da língua no todo da Semiologia deve-se ao fato de ser “investida de uma DUPLA SIGNIFICÂNCIA” (BENVENISTE, 2006b, p.64BENVENISTE, É. Semiologia da língua. [1969]. In: BENVENISTE, É. Problemas de linguística geral II. Tradução Eduardo Guimarães et al. 2.ed. Campinas, SP: Pontes Editores, 2006b, p.43-67.; grifo no original). Isto é, ao mesmo tempo em que a língua comporta um modo de significação que é semiótico, tomado como sendo atinente ao sistema de signos, ela também abrange um modo de significação semântico, o qual é plural e diz respeito ao discurso. O primeiro modo, lembra-nos o autor, valida-se pelo critério do reconhecimento, vale dizer, da identificação; o segundo, por sua vez, valida-se pelo critério da compreensão. Importa dar lugar às palavras do próprio Benveniste (2006b, p.66)BENVENISTE, É. Semiologia da língua. [1969]. In: BENVENISTE, É. Problemas de linguística geral II. Tradução Eduardo Guimarães et al. 2.ed. Campinas, SP: Pontes Editores, 2006b, p.43-67.:

o privilégio da língua é de comportar simultaneamente a significância dos signos e a significância da enunciação. Daí provém seu poder maior, o de criar um segundo nível de enunciação, em que se torna possível sustentar propósitos significantes sobre a significância. É nesta faculdade metalinguística que encontramos a origem da relação de interpretância pela qual a língua engloba os outros sistemas.

Com essa formulação, é importante que se frise, Benveniste (2006b)BENVENISTE, É. Semiologia da língua. [1969]. In: BENVENISTE, É. Problemas de linguística geral II. Tradução Eduardo Guimarães et al. 2.ed. Campinas, SP: Pontes Editores, 2006b, p.43-67. não somente apresenta aquilo que, sob sua ótica, confere primazia ao linguístico. Mais do que isso, essa formulação permite ao autor de SL ultrapassar o conceito de língua apresentado no CLG. Quer dizer, ao propor uma articulação entre semiótico e semântico, Benveniste (2006b)BENVENISTE, É. Semiologia da língua. [1969]. In: BENVENISTE, É. Problemas de linguística geral II. Tradução Eduardo Guimarães et al. 2.ed. Campinas, SP: Pontes Editores, 2006b, p.43-67. faz surgir uma concepção em que a língua é sistema de signos, mas não somente sistema de signos; antes, ela engloba, também, “o acontecimento que cada enunciação suscita” (FLORES, 2017, p.1023FLORES, V. N. O que há para ultrapassar na noção saussuriana de signo? De Saussure a Benveniste. Gragoatá, Niterói, v. 22, n. 44, p.1005-1026, set.- dez. 2017. Disponível em: https://periodicos.uff.br/gragoata/article/view/33546/19533. Acesso em: 01 fev. 2021.
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). Eis, portanto, o motivo de Benveniste (2006b)BENVENISTE, É. Semiologia da língua. [1969]. In: BENVENISTE, É. Problemas de linguística geral II. Tradução Eduardo Guimarães et al. 2.ed. Campinas, SP: Pontes Editores, 2006b, p.43-67. para admitir a primazia do linguístico: a dupla significância da língua, na medida em que comporta o sistema de signos e a enunciação (o discurso), o semiótico e o semântico, permite que a língua interprete o mundo e a si própria. Desse privilégio da língua surge a primazia do linguístico.

Considerações finais

Anunciamos em nossas “Considerações preliminares” que, neste momento final, faríamos um pequeno “desvio” em relação à linha de raciocínio adotada no decorrer deste texto. Dito de outro modo, antecipamos que, mais do que abordar o percurso investigativo acerca da linguagem que cada um dos autores aqui apresentados proporciona, buscaríamos esboçar algum deslocamento, para o âmbito da reflexão sobre a prática docente, daquilo que consideramos, em cada um, a primazia do linguístico. Em especial, faríamos algum deslocamento para pensar sobre as orientações curriculares que tanto têm ocupado o debate público.

Havia, portanto, desde o começo, um propósito explícito que norteou o caminho tracejado. Esse propósito, porém, não foi aqui tomado como meio para chegar a um ponto final, mas como meio para chegar a um posto de observação da linguagem. Explicamo-nos.

Acreditamos que nosso percurso deixou claro que os dois pensadores aqui mobilizados – Volóchinov e Benveniste – permitem argumentar em favor de uma primazia do linguístico em relação aos demais sistemas simbólicos. Há, então, uma coincidência quanto a esse aspecto. No entanto, tal coincidência não impede que se vislumbre a singularidade do raciocínio de cada um.

Volóchinov (2018a)VOLÓCHINOV, V. (Círculo de Bakhtin). Marxismo e filosofia da linguagem: problemas fundamentais do método sociológico na ciência da linguagem. Tradução, notas e glossário Sheila Grillo e Ekaterina Vólkova Américo; ensaio introdutório de Sheila Grillo. 2.ed. São Paulo: Editora 34, 2018a. [1929], cabe lembrar, apresenta cinco pontos que fazem da palavra o signo por excelência: sua pureza sígnica, sua neutralidade cultural, sua destacada participação na comunicação cotidiana, sua condição de signo da consciência e sua presença obrigatória como “acompanhante” de qualquer produto cultural. Certamente, não infringiríamos o sistema de pensamento do autor se considerássemos tais pontos como especificidades do linguístico, as quais, na falta de expressão melhor, podem ser tomadas como externas ao próprio signo. Quer dizer, especificidades atinentes ao funcionamento sociocultural da palavra.

Benveniste (2006b)BENVENISTE, É. Semiologia da língua. [1969]. In: BENVENISTE, É. Problemas de linguística geral II. Tradução Eduardo Guimarães et al. 2.ed. Campinas, SP: Pontes Editores, 2006b, p.43-67., por sua vez, ao destacar a dupla significância da língua, isto é, os âmbitos semiótico e semântico, como algo que coloca a língua em uma posição de sistema significante preeminente – posição da qual qualquer consideração pragmática que se possa fazer é apenas consequência, e não causa –, joga luzes sobre o funcionamento interno da língua. Bem entendido, na opinião do linguista, é a articulação em duas dimensões, a do semiótico (da significância dos signos) e a do semântico (da significância da enunciação), que permite à língua falar de si e dos outros sistemas, revelando-se, então, o sistema simbólico por excelência. Aqui, diremos, estão dadas especificidades internas.

Nessa direção, se é verdade que, de um lado, Volóchinov (2018a)VOLÓCHINOV, V. (Círculo de Bakhtin). Marxismo e filosofia da linguagem: problemas fundamentais do método sociológico na ciência da linguagem. Tradução, notas e glossário Sheila Grillo e Ekaterina Vólkova Américo; ensaio introdutório de Sheila Grillo. 2.ed. São Paulo: Editora 34, 2018a. [1929] nos diz que basta vermos o funcionamento sociocultural da linguagem verbal para nos convencermos de sua primazia; não é menos verdade que, de outro lado, Benveniste (2006b)BENVENISTE, É. Semiologia da língua. [1969]. In: BENVENISTE, É. Problemas de linguística geral II. Tradução Eduardo Guimarães et al. 2.ed. Campinas, SP: Pontes Editores, 2006b, p.43-67. nos diz que basta vermos como a língua funciona em sua imanência e em contraste com os outros sistemas de signos para nos convencermos de sua preeminência. Estão reunidas, dessa maneira, as especificidades externas e internas para se alçar o linguístico a um lugar de preeminência.

Ora, tais especificidades não seriam suficientes para alertar, a quem quer que seja, que o ensino de língua portuguesa nas escolas, antes de se estruturar sobre uma discussão em torno de linguagens, deveria se construir sobre a primazia do linguístico? Eis um posto de observação da linguagem que exigiria de todos nós um recomeço!

  • 1
    Embora certas ideias de Agostinho a respeito da linguagem apareçam desde a obra De magistro, de 389 d.C., aqui, destacamos especialmente as seguintes palavras, presentes em A doutrina cristã, de 397 d.C.: “denomino sinais a tudo o que se emprega para significar alguma coisa além de si mesmo” (AGOSTINHO, 2002, p.43AGOSTINHO, S. A doutrina cristã: manual de exegese e formação cristã. São Paulo: Paulus, 2002.).
  • 2
    Os termos russos, assim apresentados, estão transliterados do alfabeto cirílico para o alfabeto romano.
  • 3
    Quanto a isso, pode-se consultar a pertinente nota das tradutoras, que acompanha o título do ensaio “A palavra na vida e a palavra na poesia: para uma poética sociológica”, em Volóchinov (2019a)VOLÓCHINOV, V. A palavra na vida e a palavra na poesia: para uma poética sociológica. In: VOLÓCHINOV, V. (Círculo de Bakhtin). A palavra na vida e a palavra na poesia: ensaios, artigos, resenhas e poemas. Organização, tradução, ensaio introdutório e notas Sheila Grillo e Ekaterina Vólkova Américo. São Paulo: Editora 34, 2019a, p.109-146. [1926].
  • 4
    Mesmo sabendo que o CLG “foi amplamente discutido logo depois de seu aparecimento em 1916 e, assim, exerceu uma influência formadora sobre o desenvolvimento da linguística soviética” (LÄHTEENMÄKI, 2006, p.190LÄHTEENMÄKI, M. Da crítica de Saussure por Voloshinov e Iakubinski. In: FARACO, C. A.; TEZZA, C.; CASTRO, G. (orgs.). Vinte ensaios sobre Mikhail Bakhtin. Petrópolis, RJ: Vozes, 2006, p.190-207.; cf., também, SÉRIOT, 2015, p.107-108SÉRIOT, P. Voloshinov e a filosofia da linguagem. Tradução Marcos Bagno. São Paulo: Parábola, 2015.), é importante considerar que sua primeira publicação em russo é de 1933, ou seja, posterior à publicação de MFL. Assim, não estamos certos de quais foram as condições em que Volóchinov teve contato com a obra de Saussure.
  • 5
    Ao que nos parece, ainda hoje, precisamos insistir no fato de que, como se pode ver, nenhum dos termos “carrega um sentido crítico, negativo ou pejorativo – como algumas vezes parece estar pressuposto na vulgata [bakhtiniana]” (FARACO, 2013, p.180FARACO, C. A. A ideologia no/do Círculo de Bakhtin. In: PAULA, L.; STAFUZZA, G. (orgs.). Círculo de Bakhtin: pensamento interacional. Campinas, SP: Mercado de Letras, 2013, p.167-182.). O leitor interessado pode consultar, ainda, Lähteenmäki (2012)LÄHTEENMÄKI, M. Valentin Voloshinov: signos, ideologia e sentido. In: ZANDWAIS, A. (org.). História das ideias: diálogos entre linguagem, cultura e história. Passo Fundo, RS: Ed. Universidade de Passo Fundo, 2012, p.92-119..
  • 6
    A miríade de expressões utilizadas por Cassirer (2001)CASSIRER, E. A filosofia das formas simbólicas. Vol. I: A linguagem. Tradução Marion Fleischer. São Paulo: Martins Fontes, 2001. [1923] para remeter à ideia de “forma simbólica” dificulta a apresentação de um inventário mais completo. Ainda assim, vejamos algumas das expressões escolhidas pelo autor de FFS. Para Cassirer, a forma simbólica “conhecimento” – a ciência, vale dizer – “representa apenas um tipo particular de configuração na totalidade das apreensões e interpretações espirituais do ser. (...) Mas ao lado dessa forma de síntese intelectual, que se representa e reflete no sistema dos conceitos científicos, existem outros modos de configuração dentro da totalidade da vida espiritual” (CASSIRER, 2001, p.18CASSIRER, E. A filosofia das formas simbólicas. Vol. I: A linguagem. Tradução Marion Fleischer. São Paulo: Martins Fontes, 2001. [1923]; grifo nosso). Para não nos estendermos, diremos que, pelo exposto em FFS, “o conceito de forma simbólica seria equivalente aos conceitos de: (i) manifestações culturais; (ii) formas de espírito; (iii) objetivações; (iv) modalidades de conhecimento; (v) compreensão do mundo; e (vi) modos básicos de experiências” (PORTA, 2011b, p.58PORTA, M. A. G. O problema da “filosofia das formas simbólicas”. In: PORTA, M. A. G. Estudos neokantianos. São Paulo: Edições Loyola, 2011b, p.45-70.).
  • 7
    De fato, seria interessante saber como Volóchinov interpretou Cassirer (2001)CASSIRER, E. A filosofia das formas simbólicas. Vol. I: A linguagem. Tradução Marion Fleischer. São Paulo: Martins Fontes, 2001. [1923] nesse quesito. Porém, até onde sabemos, não há elementos que possam ser tidos como prova, ou mesmo indício, de alguma interpretação. Seja como for, vale ressaltar que, no conjunto de intepretações que incidem sobre a filosofia de Cassirer, o fato de ser, ou não, a linguagem “uma forma simbólica privilegiada ou fundamental, de modo tal que esteja pressuposta em toda outra, existindo entre ela e o resto uma relação essencialmente assimétrica” (PORTA, 2011a, p.297PORTA, M. A. G. Hermenêutica de uma “filosofia das formas simbólicas”. In: PORTA, M. A. G. Estudos neokantianos. São Paulo: Edições Loyola, 2011a, p.295-322.), ainda se apresenta como uma daquelas questões concretas “não definitivamente respondidas em relação à ‘filosofia das formas simbólicas’” (PORTA, 2011a, p.296PORTA, M. A. G. Hermenêutica de uma “filosofia das formas simbólicas”. In: PORTA, M. A. G. Estudos neokantianos. São Paulo: Edições Loyola, 2011a, p.295-322.).
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    A seguir, trataremos dessa questão mais detidamente.
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    Quanto a isso, vale lembrar algumas palavras de Cassirer (2001)CASSIRER, E. A filosofia das formas simbólicas. Vol. I: A linguagem. Tradução Marion Fleischer. São Paulo: Martins Fontes, 2001. [1923]. Ao censurar a posição epistemológica que denomina “sensualismo dogmático”, o filósofo afirma: “ele falha em reconhecer que existe uma atividade do próprio sensível, que, como disse Goethe, existe uma ‘imaginação sensível exata’, que se manifesta nos mais diversos campos da atividade espiritual. Com efeito, em todos estes campos o veículo propriamente dito do seu desenvolvimento imanente consiste no fato de produzirem um mundo de símbolos próprio e livre, situado ao lado e acima do mundo das percepções: um mundo que, de acordo com a sua natureza imediata, ainda traz as cores do sensível, as quais, porém, representam uma sensibilidade já configurada e, portanto, dominada pelo espírito. Não se trata aqui de algo sensível simplesmente dado e encontrado, e sim de um sistema de multiplicidades sensíveis, produzidas por alguma forma de atividade criadora livre” (CASSIRER, 2001, p.33CASSIRER, E. A filosofia das formas simbólicas. Vol. I: A linguagem. Tradução Marion Fleischer. São Paulo: Martins Fontes, 2001. [1923]; grifos no original).
  • 10
    A propósito dessa questão, vale observar a seguinte afirmação de Benveniste (2006b, p.54BENVENISTE, É. Semiologia da língua. [1969]. In: BENVENISTE, É. Problemas de linguística geral II. Tradução Eduardo Guimarães et al. 2.ed. Campinas, SP: Pontes Editores, 2006b, p.43-67., grifos nossos): “dois sistemas podem ter um mesmo signo em comum sem que daí resulte sinonímia ou redundância, quer dizer que a identidade substancial de um signo não conta, mas somente sua diferença funcional”. Conforme julgamos, essa formulação benvenistiana do princípio da não transistematicidade do signo permite ver uma ressonância da noção de valor proposta no CLG. Além disso, traz-nos à memória um dos elementos-chave do trabalho inicial de Ernst Cassirer, que publica, em 1910, o célebre Substanzbegriff und Funktionsbegriff: Untersuchungen über die Grundfragen der Erkenntniskritik [Conceito de substância e conceito de função: investigações sobre as questões básicas da crítica do conhecimento], que, como se sabe, tem clara ressonância em outras obras do autor, como no volume de A filosofia das formas simbólicas dedicado à linguagem. Ao que nos parece, a proximidade entre a noção de valor do CLG e o trabalho de Cassirer, praticamente contemporâneo, merece uma investigação mais detida.
  • 11
    Cabe esclarecer que, para Benveniste, em “Semiologia da língua” (2006b), de 1969, e em “Estrutura da língua e estrutura da sociedade” (2006a), de 1968/1970, o termo interpretar e seus correlatos – isto é, interpretante e interpretado – são movimentados em uma acepção bastante singular. Sem entrar em muitos pormenores, diremos que, se o papel do interpretante é interpretar, no contexto desses escritos, interpretar é “fazer existir o interpretado e transformá-lo em noção inteligível” (BENVENISTE, 2006a, p.98BENVENISTE, É. Estrutura da língua e estrutura da sociedade. In: BENVENISTE, É. Problemas de linguística geral II. Tradução Eduardo Guimarães et al. 2.ed. Campinas, SP: Pontes Editores, 2006a, p.93-104. [1968/1970]). Logo, não soa estranho que, para o linguista sírio-francês, em termos de relação semiológica, “somente a língua torna possível a sociedade” (BENVENISTE, 2006b, p.63BENVENISTE, É. Semiologia da língua. [1969]. In: BENVENISTE, É. Problemas de linguística geral II. Tradução Eduardo Guimarães et al. 2.ed. Campinas, SP: Pontes Editores, 2006b, p.43-67.).
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    Pensamos que, nesse ponto, é possível perceber com mais clareza um dos elementos que diferem Benveniste (2006b)BENVENISTE, É. Semiologia da língua. [1969]. In: BENVENISTE, É. Problemas de linguística geral II. Tradução Eduardo Guimarães et al. 2.ed. Campinas, SP: Pontes Editores, 2006b, p.43-67. de Volóchinov (2018a)VOLÓCHINOV, V. (Círculo de Bakhtin). Marxismo e filosofia da linguagem: problemas fundamentais do método sociológico na ciência da linguagem. Tradução, notas e glossário Sheila Grillo e Ekaterina Vólkova Américo; ensaio introdutório de Sheila Grillo. 2.ed. São Paulo: Editora 34, 2018a. [1929]. Para Benveniste (2006b)BENVENISTE, É. Semiologia da língua. [1969]. In: BENVENISTE, É. Problemas de linguística geral II. Tradução Eduardo Guimarães et al. 2.ed. Campinas, SP: Pontes Editores, 2006b, p.43-67., aquilo que podemos conceber como sendo a onipresença social da palavra, elemento destacado por Volóchinov (2018a)VOLÓCHINOV, V. (Círculo de Bakhtin). Marxismo e filosofia da linguagem: problemas fundamentais do método sociológico na ciência da linguagem. Tradução, notas e glossário Sheila Grillo e Ekaterina Vólkova Américo; ensaio introdutório de Sheila Grillo. 2.ed. São Paulo: Editora 34, 2018a. [1929], não é a causa do lugar singular condigno ao linguístico em relação aos outros tipos de signo. Antes, tal condição é apenas uma consequência do que verdadeiramente confere essa singularidade ao linguístico: a sua dupla significância.

REFERÊNCIAS

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  • BENVENISTE, É. Estrutura da língua e estrutura da sociedade. In: BENVENISTE, É. Problemas de linguística geral II Tradução Eduardo Guimarães et al 2.ed. Campinas, SP: Pontes Editores, 2006a, p.93-104. [1968/1970]
  • BENVENISTE, É. Semiologia da língua. [1969]. In: BENVENISTE, É. Problemas de linguística geral II Tradução Eduardo Guimarães et al 2.ed. Campinas, SP: Pontes Editores, 2006b, p.43-67.
  • BENVENISTE, É. Últimas aulas no Collège de France (1968 e 1969) Tradução Daniel Costa da Silva et al São Paulo: Editora Unesp, 2014.
  • CASSIRER, E. A filosofia das formas simbólicas. Vol. I: A linguagem. Tradução Marion Fleischer. São Paulo: Martins Fontes, 2001. [1923]
  • FARACO, C. A. A ideologia no/do Círculo de Bakhtin. In: PAULA, L.; STAFUZZA, G. (orgs.). Círculo de Bakhtin: pensamento interacional. Campinas, SP: Mercado de Letras, 2013, p.167-182.
  • FLORES, V. N. Introdução à teoria enunciativa de Benveniste São Paulo: Parábola, 2013.
  • FLORES, V. N. O que há para ultrapassar na noção saussuriana de signo? De Saussure a Benveniste. Gragoatá, Niterói, v. 22, n. 44, p.1005-1026, set.- dez. 2017. Disponível em: https://periodicos.uff.br/gragoata/article/view/33546/19533 Acesso em: 01 fev. 2021.
    » https://periodicos.uff.br/gragoata/article/view/33546/19533
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Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    29 Nov 2021
  • Data do Fascículo
    Jan-Mar 2022

Histórico

  • Recebido
    22 Mar 2021
  • Aceito
    22 Ago 2021
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