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90 anos de Problemas da criação de Dostoiévski (1929-2019): o texto em seu e em nosso tempo

O pensador russo Mikhail Bakhtin (1895-1975) publicou seu primeiro livro em 1929 com o título Проблемы творчества Достоевского [Problemas da criação de Dostoiévski], obra que, apesar da situação marginal do autor na esfera universitária soviética nos anos 1920, suscitou de imediato uma série de resenhas dentro e fora da União Soviética1 1 No artigo de Grillo (2019), realizam-se análises, bem como traduções integrais e parciais dessas resenhas. . A sutileza e a profundidade das análises estilísticas operadas por Bakhtin tiveram repercussão instantânea na crítica literária soviética e mesmo estrangeira do final dos anos 1920, muito embora críticas duras tenham sido proferidas contra a tese da criação do romance polifônico por Fiódor Dostoiévski, compreendida como uma “ideologia que determinou sua forma artística, sua construção romanesca excepcionalmente complexa e totalmente nova” (БАХТИН, 1929, p.4БАХТИН, М. М. M. Проблемы творчества Достоевского [Problemas da criação de Dostoiévski]. Ленинград: Прибой, 1929.). Problemas da criação de Dostoiévski foi reeditado, significativamente ampliado e publicado em 1963 com o título Проблемы поэтики Достоевского [Problemas da poética de Dostoiévski], edição a partir da qual foi traduzido em diversos países e línguas, inclusive no Brasil no início dos anos 1980 pelo conhecido tradutor e eslavista brasileiro Paulo Bezerra.

Em 2018 Sheila Grillo realizou um estágio de pesquisa no Instituto da Literatura Mundial de Gorki (IMLI) em Moscou, com financiamento da FAPESP e supervisão de Andrei Kofman, a fim de coletar material para a tradução e realizar a escrita de um ensaio introdutório para o texto Проблемы творчества Достоевского [Problemas da criação de Dostoiévski] (1929). A tradução iniciou-se em janeiro de 2018 em parceria com Ekaterina Vólkova Américo (UFF). Nessa mesma época surgiu a ideia de organizar um Colóquio Internacional dedicado à discussão da obra de 1929 sobre Dostoiévski, evento que aconteceu entre 26 a 28/11/2019, na Universidade de São Paulo, com financiamentos da FAPESP e da própria USP e do qual participaram pesquisadores, graduandos e pós-graduandos de universidades brasileiras e russas. O título do evento “90 anos de Problemas da obra de Dostoiévski (1929-2019)” revela que, à época, as tradutoras pretendiam traduzir a palavra russa творчествo, substantivo derivado do verbo russo творить [criar], na mesma direção da única tradução realizada até o momento: a versão italiana Problemi dell’opera di Dostoevskij (1997). Apesar de o termo “obra” ser uma possibilidade de tradução, as discussões com estudiosos russos, brasileiros e até de um eslavista espanhol, levaram as tradutoras a mudar para “criação”, escolha embasada na morfologia da palavra em russo e no sentido desse termo enquanto processo ativo do autor, em pleno acordo com a abordagem bakhtiniana a respeito dos contos, novelas e romances de Dostoiévski. Problemas da criação de Dostoiévski encontra-se atualmente em fase de revisão na Editora 34, com previsão de lançamento para março de 2021.

Durante o Colóquio foi lançada a tradução de uma coletânea de ensaios, artigos, resenhas e poemas de Valentín Volóchinov: A palavra na vida e a palavra na poesia (2019) e a coletânea Linguagem e conhecimento (Bakhtin, Volóchinov, Medviédev) (BRAIT; PISTORI; FRANCELINO, 2019BRAIT, B.; PISTORI, M. H. C.; FRANCELINO, P. F. Linguagem e conhecimento (Bakhtin, Volóchinov, Medviédev). Campinas: Pontes, 2019.)2 2 Uma resenha desse livro aparece em Barbosa (2020). , duas publicações que atestam a presença e a relevância dos conceitos, ideias, e métodos desenvolvidos por Bakhtin e o Círculo. A coletânea de textos de Volóchinov é resenhada neste número por Heber de Oliveira Costa e Silva (UFPE), que faz uma análise crítica cuidadosa e bem fundamentada deles à luz de autores como Faraco, Sériot, Geraldi, entre outros.

Além das mesas redondas com pesquisadores brasileiros e russos, o Colóquio contou com a apresentação de comunicações por professores, pesquisadores, pós-graduandos e graduandos de diversas universidades brasileiras e estrangeiras, parte das quais foi submetida em forma de artigos à revista Linha d'Água e, após avaliação de pareceristas, compôs o número 33 (3), 20203 3 Ver Editorial em https://www.revistas.usp.br/linhadagua/issue/view/11597/1904 Acesso em 27/01/2021. .

Os trabalhos apresentados nas mesas do referido Colóquio por pesquisadores de universidades de diversas partes do Brasil, bem como de Moscou - Andrei Kofman, vice-diretor e pesquisador do “Instituto da Literatura Mundial de Gorki” (IMLI), instituto em que Mikhail Bakhtin defendeu sua tese sobre Rabelais em 1946; Svetlana Dubróvskaia e Nikolai Vassíliev, ambos professores na Universidade Estatal de Saránsk, onde Bakhtin trabalhou da segunda metade dos anos 1940 até o início dos anos 1960 - foram submetidos a pareceristas da Bakhtiniana. Revista de Estudos do Discurso e, após rigorosa avaliação por pares, editados para compor o presente número.

Os artigos aqui selecionados articulam-se em torno de quatro eixos:

1) A recepção crítica de PCD e de PPD na União Soviética, na Rússia e no exterior. Os trabalhos desse eixo se concentraram na coleta, sistematização e discussão de resenhas críticas, análises e menções às obras em bibliografia de diversas partes do mundo, com destaque para o Brasil e a União Soviética, Rússia.

Nesse eixo insere-se o artigo de intitulado “Бахтин почти мой товарищ..”: специфике последней волны русской рецепции Проблем творчества Достоевского [“Bakhtin foi quase meu colega...”: sobre a especificidade da última onda da primeira recepção russa do livro Problemas da criação de Dostoiévski]. Nele Svetlana Dubróvaskaia (Universidade Estatal Nacional Ogarióv de Pesquisa de Mordóvia – Saránsk, Rússia) divide a recepção do referido livro de Bakhtin em duas fases: a primeira, entre 1929 e 1930, constituída pelas resenhas produzidas imediatamente após a publicação; e a segunda, à qual é dedicada a maior atenção da autora, situa-se entre 1940 e 2010. Ligando essas duas fases ou “волны” (“ondas”, termo da autora), Svetlana argumenta que a resenha-artigo de Lunatchárski (1929)ЛУНАЧАРСКИЙ [LUNATCHÁRSKI], A. В. О многоголоности Достоевского [Sobre a multivocalidade de Dostoiévski], Новый мир, n. 10, c.195-209, Москва, 1929. desempenhou um papel decisivo na recepção de Problemas da criação de Dostoiévski, uma vez que seu prestígio político (foi membro do Comissariado Popular da Educação, espécie de Ministério da Educação do governo soviético) e acadêmico fizeram com que a resenha-artigo tenha sido reeditada em coletâneas de trabalhos de Lunatchárski e regularmente citada por especialistas, quando analisaram a contribuição do livro de Bakhtin sobre Dostoiévski.

Dubróvskaia situa o início da segunda fase ou onda de recepção durante o processo de defesa da dissertação de Bakhtin sobre Rabelais em 1946, quando o livro sobre Dostoiévski é citado por diversos membros da banca de defesa do “Instituto da Literatura Mundial de Gorki” (IMLI) e por Víktor Vinográdov, eminente linguista e teórico da literatura soviético, membro da Comissão Superior de Certificação (Высшая аттестационная комиссия)4 4 Órgão do Ministério da Educação na União Soviética e que permanece na Federação Russa contemporânea, responsável pela certificação das defesas e diplomas equivalentes ao doutorado e à livre-docência brasileiros. . Nos anos 1950, o texto de Bakhtin sobre Dostoiévski é por diversas vezes citado e lembrado em razão de um interesse crescente pela obra de Fiódor Dostoiévski, muito embora a tese sobre a polifonia de seus romances e o papel do autor neles suscitar discordância nos teóricos da literatura que mencionam Bakhtin, entre os quais merece ainda destaque o famoso iniciador do formalismo russo Víktor Chklóvski. Svetlana assim sintetiza a relevância de seu trabalho no último período do artigo: “analisadas em sua totalidade, as respostas ao livro Problemas da criação de Dostoiévski permitem elucidar e esclarecer os detalhes, completar e detalhar os episódios do diálogo entre o pensador e os seus oponentes”.

Também neste eixo, porém com uma abordagem memorialista, o premiado escritor de ficção, teórico da literatura e professor Cristóvão Tezza (Universidade Federal do Paraná), em seu artigo Bakhtin - uma memória pessoal, relembra que, na passagem dos anos 1970 para 1980, o horizonte acadêmico brasileiro, tanto nos estudos da linguagem quanto no da literatura, era dominado por uma onda formal-racionalizante, que decretava como princípio norteador da teoria literária “extraia do texto, como irrelevante, tudo que não é literatura, e então você chegará à essência do objeto estético” e anunciava a morte do romance. Ao revelar seu desconforto e discordância com essa concepção da literatura, Tezza narra seu primeiro contato com a obra de Bakhtin: a leitura do segundo capítulo de O discurso no romance. Nas mãos do escritor de ficção e estudioso da literatura e da linguagem, esse texto teve o impacto de deslocar a concepção da essência da prosa como análise da construção composicional para outro terreno: “ao escrever, o que eu faço com a voz dos outros?” Essa mudança tem implicações para a história da gênese do romance, que Tezza sintetiza com grande clareza e perspicácia. O escritor e teórico da literatura prossegue mencionando diversas facetas da obra de Mikhail Bakhtin – a filosófica, a político-marxista, a mística, a religiosa, a linguística, a da teoria da literatura – para encerrar suas memórias com a apresentação de sua concepção de literatura elaborada em diálogo com os textos de Mikhail Bakhtin, no qual os complexos conceitos de dialogismo e polifonia ocupam um lugar central.

No artigo Bakhtin e Lunatcharski: um diálogo, João Vianney Cavalcanti Nuto (Universidade Nacional de Brasília) investiga o diálogo entre Bakhtin e Lunatcharski, não só, mas de modo central, por meio da resenha О многоголоности Достоевского [Sobre a multivocalidade de Dostoiévski] (1929). Essa resenha-artigo desempenhou um papel importante na reelaboração do livro sobre Dostoiévski em 1963 e, também - em razão do prestígio político e acadêmico do resenhador e de sua crítica no geral positiva ao livro de Bakhtin – no abrandamento da pena de Bakhtin em 1930 e na defesa em 1946 de sua tese de doutoramento sobre Rabelais. Nessas duas situações, a resenha de Lunatchárski é citada em documentos como prova da qualidade do trabalho e do reconhecimento científico de Bakhtin. João Vianney faz um levantamento muito bem feito e localiza os pontos “nevrálgicos” do diálogo entre Bakhtin e Lunatchárski, entre Lunatchárski e os chamados formalistas e futuristas russos, entre Bakhtin/Medviédev/Volóchinov e, por um lado, Lunatchárski, e por outro, os formalistas, que auxiliam uma melhor compreensão da especificidade do pensamento de Bakhtin e do Círculo.

2) Análise das traduções de PCD e de PPD em diversas línguas do mundo, com destaque para as escolhas dos tradutores, os diversos elementos peritextuais (prefácios, glossário, notas etc.), as teorias de tradução adotadas etc.

Neste eixo insere-se o artigo de Beth Brait (Pontifícia Universidade Católica de São Paulo e CNPq) Problemas da poética de Dostoiévski: a recepção brasileira, em que a autora, com base no conceito de “re-tradução”, analisa o que denomina “textos-moldura” (prefácio, posfácio, orelha etc.) da obra de Bakhtin sobre Dostoiévski, a primeira a ser vertida diretamente do russo no Brasil, publicada em 1981 pelo tradutor e célebre eslavista brasileiro, Paulo Bezerra. O objetivo da autora é investigar como as re-traduções modificam o acesso ao conhecimento produzido na língua-fonte e em um dado espaço-tempo, por meio da tradução na língua de chegada, em um outro espaço-tempo, em outra cultura. Ao percorrer as cinco edições brasileiras de Problemas da poética de Dostoiévski, Brait descreve e analisa como os textos-moldura reposicionam, reinterpretam, reformulam a obra e os conceitos bakhtinianos, ao revelarem a presença cada vez mais marcante - nesses textos-moldura - da voz do tradutor: ao mesmo tempo individual e social, subjetiva e representativa da comunidade científica brasileira em dado tempo e espaço.

No artigo A concepção de polêmica velada em duas edições da obra de Bakhtin sobre Dostoiévski, Maria Inês Batista Campos (Universidade de São Paulo) faz uma pertinente comparação entre a tradução italiana de Problemas da obra de Dostoiévski [Problemi dell’opera di Dostoevskij, 1929/1997] e a tradução brasileira de Problemas da poética de Dostoiévski (2015[1963]), com o propósito de cotejar o conceito de polêmica velada nas edições de 1929 e 1963 e, para isso, concentra-se na análise de Memórias do subsolo (2000 [1864]), explorando as várias polêmicas no discurso interior do protagonista. Em um primeiro momento, a autora expõe as alterações de organização e de enfoque epistemológico (passagem do método sociológico para a metalinguística, entre outros) das duas edições, separadas por 34 anos. E, em seguida, compara a análise bakhtiniana da polêmica velada na novela de Dostoiévski Memórias do subsolo, entendida como um tipo ativo de palavra bivocal que se desdobra tanto no discurso interior do personagem, quanto nos diversos campos da vida social de seu tempo.

3) A discussão de conceitos formulados nessa obra: polifonia, voz, dialogismo, diálogo, relações dialógicas, palavra/discurso, romance de tipo monológico, romance de tipo polifônico, paródia, estilização, polêmica aberta e velada etc.

No escopo desse eixo, encontra-se o artigo de Andrei Kofman (Instituto Górki da Literatura Mundial – Moscou) Следуя путями Бахтина…[Seguindo os caminhos de Bakhtin…], em que os conceitos bakhtinianos de “пороговое пространство” [espaço limiar] e “кризисное время” [tempo de crise] ilumina o desenvolvimento, por Kofman, dos pares opostos “замкнутое пространство” [espaço fechado] e “открытое пространство” [espaço aberto], para operar uma análise do primeiro e provavelmente mais célebre romance de Dostoiévski Преступление и наказание [Crime e castigo]. É enriquecedor observar como Andrei Kófman, célebre teórico russo da literatura e hispanista, compreende a especificidade da obra de Mikhail Bakhtin: (i) seu pensamento é simultaneamente sempre preciso e aberto ao complemento e ao desenvolvimento; (ii) nos livros Problemas da criação/poética de Dostoiévski (1929/1963), o caráter aberto das ideias de Bakhtin corresponde aos caráteres dos personagens de Dostoiévski, ou seja, sua inconclusibilidade interior e capacidade de resistir a qualquer determinação conclusiva vinda do exterior; 3) o antidogmatismo enquanto princípio básico, ou seja, Bakhtin não almeja afirmar a verdade última, mas apontar caminhos por meio dos quais é possível e necessário continuar suas descobertas; esse princípio pode explicar a divulgação de seus trabalhos pelo mundo todo. Por meio da análise de excertos do romance, Andrei Kofman evidencia como Dostoiévski intencionalmente construiu o romance com base nos pares opostos acima mencionados, para chegar ao texto bíblico que sustenta o romance: uma paráfrase da ressurreição de Lázaro, paráfrase entendida no sentido de reprodução metafórica do enredo ou de algum de seus elementos básicos. Embora não use o conceito de “relação dialógica”, Kofman demonstra, de modo original, como chegar à relação genética entre enunciados de gêneros distintos.

Em seu artigo O conceito de ideologema na criação artística da obra de Dostoiévski, Irene Machado (Universidade de São Paulo) desenvolve e formula um conceito mencionado, mas, a nosso ver, pouco elaborado no conjunto dos trabalhos de Bakhtin, Medviédev e Volóchinov: o ideologema. A autora propõe, de modo original e consistente, que o ideologema seja compreendido como “um movimento de ideias em que a ideologia se manifesta como potencial geradora de formas”, ou seja, trata-se do aspecto criativo sem o qual a ideologia não ocorre. Analisando excertos de Crime e castigo, O idiota e Os irmãos Karamázov, de Fiódor Dostoiévski, Irene Machado contrapõe a ideologia geradora de formas de representação orientadas pela monologia à ideologia geradora de formas segundo o princípio dialógico-polifônico, esta última norteadora da criação do romancista russo. Segundo Machado, na ideologia geradora de formas da composição dialógico-polifônica, a ideia se corporifica em entoações posicionadas de sujeitos discursivos, cujos ideologemas, gerados no processo de interação discursiva entre consciências, os consagram como ideólogos. Os ideologemas geradores de formas dos romances de Dostoiévski respondem não só ao seu tempo e espaço, mas dialogam com o grande tempo, para revelar novas camadas de sentido.

No artigo A análise de discursos comparativa no Brasil: uma reflexão a partir da noção de categoria, Daniela Nienkötter Sardá (FAPESP-Diálogo-USP) desenvolve uma reflexão de caráter epistemológico fundamental sobre a noção de “categoria” – muito empregada em análises, mas, a nosso ver, ainda pouco esclarecida - na metalinguística bakhtiniana e na Análise de Discursos Comparativa (CLESTHIA - axe sens et discours, Paris III). A autora mostra a polifonia – às vezes contraditória, a nosso ver – do emprego desse termo por pesquisadores franceses e brasileiros e, com isso, abre espaço para um uso mais consciente e controlado de “categoria”, que tem uma grande importância para a metodologia em Análise de Discursos Comparativa, Análise Dialógica de Discursos e Análises de/do Discurso de diferentes vertentes (francesa, crítica, inglesa etc.)

A exposição dos conceitos de “relações dialógicas” e “discurso bivocal” e, em seguida, sua reelaboração na análise de interações escritas entre autor e revisor são o foco do artigo de Vanessa Fonseca Barbosa - Relações dialógicas e discurso bivocal na atividade de trabalho do revisor em teses acadêmicas: tensões e(m) sentidos (Universidade de São Paulo). Atividade cada vez mais presente na esfera científica e ainda pouco estudada nessa mesma esfera, o artigo de Vanessa traz exemplos e análises reveladores das tensões e acordos entre autor e revisor, bem como evidencia que a atividade deste vai muito além da correção gramatical do texto.

Os conceitos de polêmica aberta e velada como um tipo ativo de palavra ou discurso bivocal orientam as análises empreendidas por Pedro Farias Francelino (Universidade Federal da Paraíba) no artigo No(s) (des/re)encontro(s) das vozes, a construção dialógica da polêmica em enunciados de temática político-religiosa. Por meio da análise de duas postagens de Facebook com temática político-religiosa, o autor mostra a relevância dos supracitados conceitos para descrever, compreender e interpretar enunciados contemporâneos, bem como identifica, com muita clareza e precisão, posições axiológicas fundantes do debate brasileiro atual que ocorre no entrecruzamento das esferas ideológicas (ou da atividade humana) política, religiosa e midiática.

4) A recuperação do contexto de produção de PCD (1929) e PPD (1963), com destaque para o horizonte acadêmico russo, soviético e europeu, constituído por filósofos, teóricos da literatura, psicólogos, linguistas, cujas obras entraram no diálogo formador do pensamento bakhtiniano.

Nessa direção, Nikolai Vassíliev (Universidade Estatal Nacional Ogarióv de Pesquisa de Mordóvia – Saránsk, Rússia), no artigo Читательские заметки по поводу книги М. М. Бахтина Проблемы творчества /поэтики Достоевского [Observações de leitura sobre o livro de M. M. Bakhtin Problemas da criação/poética de Dostoiévski], defende que, atualmente na Rússia, o referido livro de Bakhtin representa um fato da história do pensamento das ciências humanas na União Soviética no que concerne à: (i) interação velada entre a filologia, a filosofia e em parte a teologia; e (ii) abordagem inovadora do sistema artístico de Dostoiévski, cuja obra encontrava-se sob proibição ideológica em meados do século XX, na União Soviética. Ao observar esses dois aspectos, Vassíliev objetiva chamar a atenção para circunstâncias subentendidas e não explícitas do livro de Bakhtin sobre Dostoiévski publicado em 1929.

A primeira circunstância não explícita é a impossibilidade - declarada por Bakhtin em entrevista a Kójinov e Botcharóv (teóricos da literatura soviéticos responsáveis pela publicação das obras de Bakhtin a partir dos anos 1960) - de tratar das questões filosóficas e religiosas na obra de Dostoiévski, em razão do ateísmo e do marxismo soviéticos. A segunda é a articulação “eclética” (termo de Vassíliev) entre fundamentos marxistas e religiosos para a concepção da consciência do ser humano. A terceira é a influência do estruturalismo na metodologia tardia de Bakhtin por meio de categorias binárias presentes no carnaval: frente e atrás, juventude e velhice, vida e morte, sabedoria e burrice etc. Ainda sobre o carnaval, Vassíliev chama a atenção para a sua ausência em Problemas da criação de Dostoiévski (1929) e sua presença ativa em Problemas da poética de Dostoiévski (1963). Em seguida, Nikolai pontua três circunstâncias ligadas à proposição da metalinguística: a afirmação por Bakhtin de que uma das raízes dessa disciplina se encontra no pensador alemão Karl Vossler e seus discípulos, a distinção entre filosofia da linguagem e metalinguística, e ainda uma origem mais antiga da disciplina proposta por Bakhtin a partir do pensamento greco-latino antigo. Na sequência, destaca-se o surgimento e a cristalização do conceito de “большое время” [grande tempo] nos trabalhos de Bakhtin a partir dos anos 1940. Adiante, a mudança do termo “творчество” [criação] (1929) para “поэтика” [poética] (1963) nos livros sobre Dostoiévski revela a intenção de Bakhtin de colocar em primeiro plano questões literárias e estilísticas, em detrimento de aspectos biográficos e do contexto de produção do escritor. Importante concluir com parte das palavras finais do Vassíliev sobre as variadas “vozes” científicas com as quais o pensamento bakhtiniano dialogou: pensamento greco-romano antigo, cristianismo, da Europa Ocidental, pré-revolucionário, soviético e, em parte, até estruturalista.

O artigo de Ekaterina Vólkova Américo (Universidade Federal Fluminense), O subtexto religioso em Problemas da criação de Dostoiévski: da união de toda a humanidade à polifonia, levanta um importante aspecto do texto de Bakhtin sobre Dostoiévski ainda pouco conhecido e explorado no Brasil: seu diálogo velado com filósofos religiosos russos. Por meio desse diálogo, recuperam-se dimensões novas do difícil conceito bakhtiniano de polifonia:

o ideal da união universal de Soloviov, Merejkóvski, Volýnski e Ivánov confrontado com a constatação do subsolo sombrio da alma humana na obra de Mikhailóvski e Chestov; a primazia da individualidade e seu caráter inacabado, destacado por Rózanov; a posição contemplativa do autor, observada por Ivánov, bem como o método da penetração no eu alheio; a liberdade de escolha que Dostoiévski atribui às personagens e que, na concepção de Berdiáev, se manifesta em seu caráter cindido; a ideia de aplicar o conceito musical de polifonia a outras esferas artísticas, sugerida por Ivánov (p.262-263).

Encerrando seu artigo com a menção a quadros ilustres de pintores russos (Aparição de Cristo diante do povo (1857), de Aleksandr Ivanov e A procissão religiosa na província de Kursk (1883), de Iliá Riépin), Vólkova demonstra como o conceito bakhtiniano de polifonia pode ser melhor e mais profundamente compreendido ao considerarmos as grandes questões da cultura russa do século XIX, com destaque para temas religiosos tais como: a crise da fé e o isolamento e o individualismo em conflito com o ideal de sobórnost (fraternidade universal).

Por fim, neste eixo insere-se ainda o artigo Problemas da criação de Dostoiévski (1929): gênese do texto e fontes bibliográficas, em que Sheila Grillo (Universidade de São Paulo e CNPq) objetiva aprofundar a compreensão do conceito de romance polifônico proposto pela primeira vez por Bakhtin em PCD (1929), por meio da pesquisa da gênese do texto e dos interlocutores russos e soviéticos de duas áreas: crítica/teoria literária e filosofia. Um ponto central desenvolvido no artigo foi a constatação de que, apesar de Bakhtin não ter sido o primeiro a propor que a polifonia, o contraponto de vozes e a relação eu/outro fossem princípios norteadores da arte de Dostoiévski, sua teoria da polifonia demonstrou, por meio de análises estilísticas e metalinguísticas e com a ajuda de exemplos concretos retirados de textos de Dostoiévski, como esses princípios filosóficos, ideológicos, antropológicos e políticos adquiriram ou, na formulação acima de Irene Machado, geraram uma forma artística.

De forma complementar aos artigos, muitos dos quais referem as obras bakhtinianas a partir do original russo, encontra-se abaixo as obras e ensaios do Círculo de Bakhtin publicados em cada um dos volumes das Obras reunidas em russo, com a respectiva tradução nas versões em português e inglês (cf. Grillo, 2009GRILLO, S. V. C. ; GUEDES-PINTO, A. L.; CAMPOS, M. I. B. (Eds.). Editorial. O autor e o ser humano por trás de Problemas da criação de Dostoiévski (1929). Linha d'Água, 33(3), p.1-23, set./ dez. 2020., p.170-174).


M. M. Bakhtin: Sobránie sotchiniénii - Obras reunidas – Collected Works

Como podem ver os leitores, trata-se de um número muito especial que, celebrando os 90 anos da importante obra Problemas da criação de Dostoiévski, reúne pesquisadores brasileiros de 7 diferentes universidades brasileiras (USP, PUC-SP, UFPR, UNB, UFF, UFPB, UFPE) e duas universidades russas (Instituto Górki da Literatura Mundial e Universidade Estatal Nacional Ogarióv de Pesquisa de Mordóvia Saransk). Convidamos todos – leitores, autores e colaboradores - a saborear e incluir em suas pesquisas esse conjunto que, mais uma vez, dá ao periódico Bakhtiniana a oportunidade de participar ativamente da vida cultural e acadêmica brasileira e internacional. As submissões, assim como sua rigorosa seleção, realizada por competentes e colaborativos pareceristas do Conselho e ad hoc, permitiu chegar a este excelente resultado: Bakhtiniana mantém-se firme no compromisso de sempre criar possibilidades dialógicas entre a pesquisa ligada aos estudos da linguagem.

Finalmente, devemos agradecer muito especialmente, neste número, a Jennifer Sarah Cooper (UFRN), Larissa de Pinho Cavalcanti (UFRPE), Paulo Rogério Stella (UFAL), Ubiratã Kickhöfel Alves (UFRGS) e Valéria Silveira Brisolara (UniRitter), membros de nossa Editoria de Língua Estrangeira, assim como a Carlos Júnior Gontijo Rosa/Pós-doc/FAPESP/PUC-SP. Num momento difícil, esses editores e o pesquisador nos deram uma pronta, eficiente e inestimável colaboração, sem a qual este número não teria sido publicado. E nossa gratidão, mais uma vez, dirige-se também ao constante e importante apoio, auxílio e reconhecimento da PUC-SP, por meio do Plano de Incentivo à Pesquisa (PIPEq)/Publicação de Periódicos (PubPer-PUCSP) – 2021, Solicitação 18.937. Por outro lado, lamentamos imensamente, assim como toda a comunidade acadêmica e científica, o desaparecimento do apoio da CAPES e do CNPq aos periódicos brasileiros de excelência, configurando, também nesta área, o descaso pela ciência que tem marcado o atual governo. Não fossem os especialistas nos socorrerem graciosamente, este número, que além de bilíngue (português-inglês) traz três artigos trilíngues, não se concretizaria.

Notes

  • 1
    No artigo de Grillo (2019)GRILLO, S. V. C. Problemas da obra de Dostoiévski no espelho da crítica soviética e estrangeira. Revista da Anpoll (Online), v. 1, p.176-196, 2019., realizam-se análises, bem como traduções integrais e parciais dessas resenhas.
  • 2
    Uma resenha desse livro aparece em Barbosa (2020)BARBOSA, V. F. Resenha: BRAIT, B.; PISTORI, M. H. C.; FRANCELINO, P. F. (Orgs.). Linguagem e conhecimento (Bakhtin, Volóchinov, Medviédev). Campinas, SP: Pontes Editores, 2019, 327p. Linha D’Água (Online), São Paulo, v. 33, n. 3, p.267-276, set.-dez. 2020..
  • 3
  • 4
    Órgão do Ministério da Educação na União Soviética e que permanece na Federação Russa contemporânea, responsável pela certificação das defesas e diplomas equivalentes ao doutorado e à livre-docência brasileiros.

REFERÊNCIAS

  • БАХТИН, М. М. M. Проблемы творчества Достоевского [Problemas da criação de Dostoiévski]. Ленинград: Прибой, 1929.
  • BACHTIN, M. M. Problemi dell’opera di Dostoevskij. Tradução Margherita de Michiel e Augusto Ponzio. Bari: Edizioni dal Sud, 1997.
  • BAKHTIN, M. Problemas da poética de Dostoiévski. Tradução Paulo Bezerra. 5. ed. Rio de Janeiro: Forense Universitária, 2010.
  • BARBOSA, V. F. Resenha: BRAIT, B.; PISTORI, M. H. C.; FRANCELINO, P. F. (Orgs.). Linguagem e conhecimento (Bakhtin, Volóchinov, Medviédev) Campinas, SP: Pontes Editores, 2019, 327p. Linha D’Água (Online), São Paulo, v. 33, n. 3, p.267-276, set.-dez. 2020.
  • BRAIT, B.; PISTORI, M. H. C.; FRANCELINO, P. F. Linguagem e conhecimento (Bakhtin, Volóchinov, Medviédev). Campinas: Pontes, 2019.
  • DOSTOIÉVSKI, F. Memórias do subsolo. Tradução e prefácio de Boris Schnaiderman. 3. ed. São Paulo: Editora 34, 2000.
  • GRILLO, S. V. C. Problemas da obra de Dostoiévski no espelho da crítica soviética e estrangeira. Revista da Anpoll (Online), v. 1, p.176-196, 2019.
  • GRILLO, S. V. C. ; GUEDES-PINTO, A. L.; CAMPOS, M. I. B. (Eds.). Editorial. O autor e o ser humano por trás de Problemas da criação de Dostoiévski (1929). Linha d'Água, 33(3), p.1-23, set./ dez. 2020.
  • https://www.revistas.usp.br/linhadagua/article/view/178177/165328 acesso em 27/01/2020.
    » https://www.revistas.usp.br/linhadagua/article/view/178177/165328
  • ЛУНАЧАРСКИЙ [LUNATCHÁRSKI], A. В. О многоголоности Достоевского [Sobre a multivocalidade de Dostoiévski], Новый мир, n. 10, c.195-209, Москва, 1929.
  • MEDVIÉDEV, P. N. O método formal nos estudos literários. Introdução crítica a uma poética sociológica. Tradução Sheila de Camargo Grillo e Ekaterina Vólkova Américo. São Paulo: Contexto, 2012. [1928]
  • VOLÓCHINOV, V. N. (Círculo de Bakhtin). Marxismo e filosofia da linguagem. Problemas fundamentais do método sociológico na ciência da linguagem. Tradução Sheila Grillo e Ekaterina e Vólkova Américo. 2. ed. São Paulo: Editora 34, 2018. [1929]
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Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    18 Jun 2021
  • Data do Fascículo
    Apr-Jun 2021
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