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Territórios em expansão: reflexões sobre transformações recentes em uma aldeia Kalapalo

Expanding territories: recent transformations in a Kalapalo village

Resumo

Neste texto, serão apresentadas algumas reflexões acerca das implicações de um processo de aproximação dos Kalapalo em relação ao ‘mundo dos brancos’. O foco está principalmente na abertura de uma estrada ligando a aldeia Aiha (localizada na margem direita do rio Culuene) ao município de Querência, Mato Grosso, e na criação de um ponto de conexão com a internet, na mesma aldeia. Ambos os processos estão diretamente relacionados à ampliação do fluxo de dinheiro na aldeia, principalmente por meio das políticas previdenciárias e de transferência de renda, e vêm produzindo significativas transformações no cotidiano do local desde meados de 2018. O argumento central do texto é de que esses elementos – o dinheiro, a estrada e a internet – possibilitam aos Kalapalo a criação de conexões espaço-temporais, aproximando territórios e pessoas antes desconectados. Esse movimento, ao mesmo tempo que amplia as possibilidades de experimentação de outros modos de vida, garante, em alguma medida, a configuração de uma noção de ‘boa distância’ em relação ao mundo não indígena.

Palavras-chave
Povos ameríndios; Transformação; Territórios; Alto Xingu; Kalapalo

Abstract

This paper examines some of the implications of a process of rapprochement between the Kalapalo and the “world of white people,” focusing mainly on the construction of a road connecting the Aiha village (on the right bank of the Culuene River) with the municipality of Querência, Mato Grosso, and the creation of an internet connection point in the same village. Both processes are directly related to the growing flow of money into the village, mainly through social security policies (pensions) and cash transfer programs, and have significantly transformed daily life in the village since mid-2018. We suggest that these elements (money, the road, and the internet) allow the Kalapalo to create and establish new spatiotemporal connections, bringing together territories and previously disconnected people. While this can offer chances to experiment with other ways of life, to a certain extent this movement guarantees the establishment of the notion of “good distance” from the non-indigenous world.

Keywords
Amerindian peoples; Transformation; Territory; Upper Xingu; Kalapalo

INTRODUÇÃO

A intenção deste texto é discutir algumas das implicações de um processo de aproximação dos Kalapalo (povo falante de uma variante da família linguística karib, no Alto Xingu) em relação ao ‘mundo dos brancos’. O foco recai principalmente no contexto de abertura de uma estrada que liga a aldeia Aiha (localizada na margem direita do rio Culuene) ao município de Querência, Mato Grosso, e na disponibilização de pontos de conexão com a internet, na mesma aldeia. Ambos os processos estão diretamente relacionados à ampliação do fluxo de dinheiro na aldeia, principalmente por meio das políticas previdenciárias (aposentadorias) e de transferência de renda, como era o caso do Bolsa Família1 1 Programa de transferência condicionada de renda, criado em 2003, destinado a famílias que possuam renda mensal per capita de até R$ 200 (cotação vigente em novembro de 2021). O programa foi revogado pela Medida Provisória n. 1.061, de 9 de agosto de 2021, que criou o Auxílio Brasil. , e vêm produzindo significativas transformações no cotidiano da aldeia desde meados de 2018. O argumento central é de que esses elementos – o dinheiro, a estrada e a internet – estabelecem novas conexões espaço-temporais, aproximando territórios e pessoas antes desconectados, ao mesmo tempo em que reforçam redes e relações já existentes. Esse movimento, ao mesmo tempo que amplia as possibilidades de experimentação de outros modos de vida, garante, em alguma medida, a configuração de uma noção de ‘boa distância’ em relação ao mundo não indígena.

As questões aqui discutidas estão fundamentadas em uma pesquisa prolongada junto aos Kalapalo de Aiha, distribuída em diversas estadas na aldeia entre 2006 e 2022, além de conversas em outros momentos e espaços (nas cidades ou por meio de redes sociais). Também foram utilizadas atas das reuniões de governança (tema que será apresentado adiante), realizadas entre 2017 e 2019, em que o tema das estradas compôs as pautas. Antes de prosseguir com o argumento, entretanto, serão apresentadas três situações etnográficas que ajudarão a compreender melhor o contexto abordado.

Nas aldeias do Alto Xingu, mortos ilustres e seus parentes mais próximos (pais, filhos, irmãos e irmãs) devem ser, idealmente, homenageados em uma festa, com a participação de convidados de todas as etnias que vivem na região. A festa, em geral, ocorre em alguma das aldeias consideradas ‘principais’ (onde vivam muitas pessoas, com chefes ‘reconhecidos’), no mesmo local onde o morto deve ser enterrado. Todavia, com a dispersão das aldeias Kalapalo nos últimos 20 anos (somando, atualmente, 12 assentamentos, sendo Aiha o principal), potencializado pelas dificuldades logísticas de transporte, nem sempre os enterros podem ser realizados da forma desejada. A filha da irmã mais velha do principal cacique de Aiha morreu, em 2014, na pequena aldeia localizada junto à Coordenação Técnica Local do Kuluene, na margem sul do Território Indígena do Xingu (TIX). Muito triste, a família tinha pressa para enterrar o corpo, mas não possuía combustível para o transporte fluvial até Aiha, onde gostariam que ela estivesse enterrada. Com isso, a falecida acabou sendo enterrada na mesma aldeia em que faleceu, e seus parentes próximos, de Aiha, se deslocaram até lá para chorar sobre seu túmulo. Não houve festa em sua homenagem.

O ano era 2015, auge do período das chuvas. Diferentemente do que acontecia no período de seca, parte da estrada de terra que corta o sul do TIX, dando acesso às aldeias que margeiam o rio Kuluene, encontrava-se alagada e com tráfego restrito. Com isso, um longo trecho do trajeto entre Canarana (a principal cidade da região em termos comerciais e a mais acessada pelos Kalapalo naquele momento) e a aldeia Aiha precisava ser feito pelo rio Culuene. Apesar das dificuldades logísticas, depois de conseguir juntar o dinheiro necessário, um dos principais lutadores de Aiha foi a Canarana comprar uma desejada moto, que seria utilizada para participar das festas intercomunitárias que estavam por vir logo no início da estação seca. Voltou dirigindo a moto, mas precisou carregá-la no barco, para contornar o trecho de estrada mais alagado. Com fortes ventos e muita chuva, o barco virou no meio do trajeto. As pessoas que estavam a bordo conseguiram nadar até a margem, mas a moto e todos seus pertences foram para o fundo do rio. A moto nunca foi recuperada.

Entre 2008 e meados de 2015, a aldeia Aiha esteve sem uma construção considerada adequada para realização das atividades da escola que funciona nela. Depois que a construção anterior, feita em madeira e coberta de palha, foi derrubada em razão das precárias condições em que se encontrava, uma estrutura provisória chegou a ser construída, com a mobilização dos professores da aldeia. Todavia, essa estrutura ainda não era considerada adequada, por ser composta por um único ambiente, que precisava ser compartilhado por mais de uma turma ao mesmo tempo. Havia muitas promessas por parte das gestões municipais e estaduais de que seria enviado material para a construção de um novo prédio para a escola na aldeia. Seja por falta de condições para o transporte, seja por falta de efetiva mobilização dos gestores, a nova escola de madeira e com telhado de fibrocimento só foi construída em meados de 2015, utilizando materiais e mão de obra disponibilizados pela Secretaria Estadual de Educação do estado do Mato Grosso (SEDUC-MT). Essa nova construção permitiu a ampliação das turmas existentes e a criação de novas turmas de Ensino Médio. O novo prédio possui três salas de aula separadas, além de um espaço para realizarem atividades administrativas e armazenarem material.

Esses três relatos são alguns dos muitos eventos mais ou menos recentes que fizeram com que os Kalapalo de Aiha se mobilizassem para a abertura da estrada que, hoje, liga a aldeia ao limite leste do TIX, possibilitando o acesso facilitado para a população desta e de outras aldeias ao município de Querência. O que é chamado aqui de estradas são os caminhos de terra, abertos em meio à mata ou ao campo, que ligam as aldeias alto-xinguanas aos mais diversos locais dentro do TIX, independentemente de seu tamanho ou extensão. As primeiras discussões que acompanhei a respeito dessa estrada aconteceram ainda em 2014 e, em meados de 2018, o traçado foi finalizado, com um trajeto total de cerca de 40 km, podendo ser todo percorrido com motos, carros ou pequenos caminhões e caminhonetes.

As estradas são desejadas por seu potencial de criar conexões e relações com espaços e pessoas distantes (sejam outros xinguanos, indígenas não xinguanos ou não indígenas). Ao criarem conexões, contribuem para a expansão dos “espaços-tempos intersubjetivos” das pessoas (Munn, 1986Munn, N. D. (1986). The fame of Gawa. Cambridgeshire/Cambridge University Press.) e para a conformação de um “território” (cf. Gallois, 2004Gallois, D. T. (2004). Terras ocupadas? Territórios? Territorialidades? In F. P. Ricardo (Org.), Terras indígenas e unidades de conservação da natureza: o desafio das sobreposições (pp. 37-41). Instituto Socioambiental.)2 2 Esta autora busca dissociar os conceitos de terra e território. Para ela, “‘Terra indígena’ diz respeito ao processo político-jurídico conduzido sob a égide do Estado, enquanto . . . . ‘território’ remete à construção e à vivência, culturalmente variável, da relação entre uma sociedade específica e sua base territorial” (Gallois, 2004, p. 5). que está em processo constante de mutação. O que se propõe aqui é que, assim como apontado por Calávia-Saez entre os Yaminawa, seja possível pensar no território Kalapalo como algo que é criado e recriado constantemente, a partir das relações sociais estabelecidas (Calavia-Sáez, 2015Calavia-Sáez, O. (2015). O território, visto por outros olhos. Revista de Antropologia, 58(1), 257-284. https://doi.org/10.11606/2179-0892.ra.2015.102108
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, p. 272), nesse caso, tendo as estradas e os caminhos fluviais um papel central. Todavia, as conexões estabelecidas com os não indígenas, ao mesmo tempo em que são desejadas, são também temidas, já que estes seres se mostram, em grande parte do tempo, egoístas, gananciosos e potencialmente causadores de adoecimento e morte. A solução que parece ter sido encontrada pelos Kalapalo, nesse sentido, é o exercício de noções muito particulares de autonomia, protagonismo e autodeterminação3 3 Três termos previstos na Política Nacional de Gestão Territorial e Ambiental de Terras Indígenas (PNGATI), que será discutida adiante. Sobre a PNGATI, ver Bavaresco e Menezes (2014); Iubel (2015); Souza et al. (2017), dentre outros. que apontam para tentativas de criar e controlar o que pode ser considerado uma ‘boa distância’ em relação aos brancos e seus espaços. Penso que essa ideia de ‘boa distância’, emprestada de Lévi-Strauss (2006)Lévi-Strauss, C. (2006). A origem dos modos à mesa (Mitológicas 3). Cosac Naify., possibilita uma melhor compreensão desse movimento de aproximação e de desejo pelo mundo dos brancos e suas coisas e relações, mas que vem acompanhado de um medo e uma marcação da diferenciação e do afastamento: afinal, os Kalapalo sempre reforçam que “a aldeia é diferente da cidade”. Meu argumento é de que a estrada lhes permite estabelecer de forma mais autônoma os graus de distância/aproximação com os brancos e as cidades, ainda que esse processo tenha também consequências muitas vezes inesperadas e indesejadas.

Para desenvolver essa discussão, será feita, inicialmente, uma apresentação dos Kalapalo e de Aiha e da importância dos caminhos e do caminhar no contexto alto-xinguano. Na sequência, traço um breve histórico do processo de abertura da estrada, apontando para as formas como essa discussão atravessa e é atravessada por um modo particular do ‘fazer política’ no Alto Xingu, com suas éticas e estéticas próprias apontando, ao mesmo tempo, para a coletividade do ‘sistema xinguano’, mas também para a diversidade e as disputas internas a esse sistema. Discuto, ainda, o papel atual dos caminhos e da internet nas maneiras como os Kalapalo se relacionam com o mundo não indígena, finalizando com uma breve discussão acerca da temática do território nessa região etnográfica e apontando para seu aspecto transformativo e agregador.

UM TERRITÓRIO RECORTADO: SOBRE CAMINHOS E CAMINHARES

Os Kalapalo são um dos cinco povos falantes da língua Karib do Alto Xingu (junto com os Kuikuro, Matipu, Nahukwa e Naruvotu). Os Kalapalo somam pouco mais de 900 pessoas, distribuídas entre doze aldeias, espalhadas na porção sul do TIX. Essa região, também conhecida como Alto Xingu, compreende um complexo sociocultural pluriétnico composto por onze povos falantes de três dos principais agrupamentos linguísticos sul-americanos (arawak, karib e tupi), além de uma língua considerada isolada (o trumai). A despeito das particularidades inerentes a cada um dos grupos, esses povos compartilham de uma intensa rede de circulação de objetos, casamentos e um conjunto de rituais regionais, compondo um sistema multiétnico. Além do Alto Xingu, o TIX é composto por outras três regiões: o Baixo, o Médio e o Leste Xingu, onde habitam outros seis povos de diferentes matrizes linguísticas e culturais.

Diversos estudos já apontaram que as estradas e caminhos sempre tiveram um papel central para os povos indígenas ameríndios, servindo como meios de interligação e manutenção de intensas redes de troca e circulação de bens, pessoas, rituais4 4 Ver, dentre outros, Alexiades (2009); Erickson (2009); Hornborg e Hill (2011); Santos-Granero (1991); Virtanen (2016). . No Alto Xingu, a situação não é muito diferente. Meu argumento é de que a abertura de caminhos é uma das formas ‘tradicionais’ dos alto-xinguanos (e dos Kalapalo, de forma mais específica) lidarem com a relação com os ‘outros’ e tanto os esforços para abertura da estrada quanto a criação do ponto de internet em Aiha podem ser pensados como parte dessa ética.

Apesar da sedentarização que compôs o processo de xinguanização dos povos da região, os caminhos ocupam um papel central na conformação política e territorial da região. Olhando a topografia local, pode-se facilmente observar a presença de uma série de caminhos que partem das aldeias, cortando as matas e os campos em seu entorno, levando aos principais pontos de pesca, às roças, aos portos, às demais aldeias da região e, atualmente, também às cidades. Esse modelo de ocupação do espaço não é recente, como mostram as pesquisas arqueológicas realizadas por Heckenberger (2005Heckenberger, M. (2005). The ecology of power: culture, place, and personhood in the Southern Amazon, A.D. 1000-2000. Routledge.; e também Heckenberger et al., 2003Heckenberger, M. J., Kuikuro, A., Kuikuro, U. T., Russell, J. C., Schmidt, M., Fausto, C., & Franchetto, B. F. (2003). Amazonia 1492: pristine forest or cultural parkland? Science, 301(5640), 1710-1714. https://doi.org/10.1126/science.1086112
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). Segundo esse autor, por volta do século XV, a região do Alto Xingu era densamente povoada e estava distribuída em diversas aldeias que chegavam a um tamanho dez vezes superior ao tamanho das aldeias atuais. Conforme Heckenberger,

. . . as aldeias se articulam com a paisagem local e com outras aldeias similares, de um modo bastante padronizado . . . . Distanciam-se umas das outras segundo um padrão mais ou menos regular de espaçamento . . . . e estão interconectadas por um complexo sistema de caminhos, pontes, portos e acampamentos, que também formam uma rede integrada nos territórios das outras aldeia

(Heckenberger, 2001Heckenberger, M. (2001). Estrutura, história e transformação: a cultura xinguana na longue durée. In B. Franchetto & M. Heckenberger (Orgs.), Os povos do Alto Xingu: história e cultura (pp. 21-62). Editora UFRJ., p. 32).

Assim como os grandes complexos de aldeias, os caminhos que as conectavam também eram bastante imponentes, e foram descritos por Heckenberger (2005, p. 118)Heckenberger, M. (2005). The ecology of power: culture, place, and personhood in the Southern Amazon, A.D. 1000-2000. Routledge. como “curbed highways of at least ten meters wide”.

As aldeias alto-xinguanas são circulares, formadas por um pátio circundado por um conjunto de casas. Próximo ao centro do pátio encontra-se a ‘casa dos homens’ (kuakutu), espaço onde são guardados os conjuntos de flautas interditas às mulheres, assim como alguns outros apetrechos rituais. Nessas aldeias, há uma grande preocupação com a estética e a manutenção dos espaços coletivos, como o pátio, a casa dos homens e os caminhos principais que dão acesso à aldeia. Assim, para além do espaço formado pelo pátio, as casas e seus arredores imediatos, as aldeias alto-xinguanas são também compostas por caminhos que ligam esse ‘centro’ a uma ‘periferia’, composta pelos roçados, regiões de coleta de frutas, pesca etc. Adicionalmente, o Alto Xingu apresenta uma distribuição espacial mais complexa. Por se tratar de uma ‘cultura regional’, os povos ali residentes possuem uma socialidade e um ethos que “tanto promove quanto se funda na interação intra e interaldeias, na hospitalidade e na adaptação” (Heckenberger, 2001Heckenberger, M. (2001). Estrutura, história e transformação: a cultura xinguana na longue durée. In B. Franchetto & M. Heckenberger (Orgs.), Os povos do Alto Xingu: história e cultura (pp. 21-62). Editora UFRJ., p. 35). Em termos práticos, a interação sempre foi possível – e desejável – exatamente pela existência de estradas e caminhos (sejam terrestres ou aquáticos); as narrativas contam de longas viagens que incluíam trechos de caminhada, além de outros trechos percorridos em canoas, seguindo o curso dos rios e lagos da região. Nesse sentido, tanto os caminhos quanto o próprio ato de caminhar ativam memórias e conexões que contribuem para a conformação de um território que engloba espaços, trajetos e relações, envolvendo uma miríade de seres, humanos e não humanos, mais ou menos próximos e passíveis, em alguns casos, de se tornar ‘amigos’5 5 Trata-se de um tipo de relação bastante comum entre os alto-xinguanos e envolve pessoas do mesmo sexo que trocam coisas entre si, em relações bastante duradouras. Como mostrou Souza (1995), a amizade xinguana conjuga aspectos tanto de afinidade quanto de consanguinidade. .

Essa descrição levanta elementos importantes para pensarmos acerca da noção de território no Alto Xingu. Como diversos trabalhos vêm apontando (Calavia-Sáez, 2015Calavia-Sáez, O. (2015). O território, visto por outros olhos. Revista de Antropologia, 58(1), 257-284. https://doi.org/10.11606/2179-0892.ra.2015.102108
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; Gallois, 2004Gallois, D. T. (2004). Terras ocupadas? Territórios? Territorialidades? In F. P. Ricardo (Org.), Terras indígenas e unidades de conservação da natureza: o desafio das sobreposições (pp. 37-41). Instituto Socioambiental.; Souza et al., 2017Souza, M. C., Barbi, R. C. S., Fernandes, J., Lima, D., Molina, L., Oliveira, E., . . . Soares-Pinto, N. (2017). T/terras indígenas e territórios conceituais: incursões etnográficas e controvérsias públicas. O Laboratório de Antropologias da T/terra.; Vieira et al., 2015Vieira, J., Amoroso, M., & Viegas, S. (2015). Dossiê: transformações das territorialidades ameríndias nas terras baixas (Brasil). Revista de Antropologia, 58(1), 9-29. https://doi.org/10.11606/2179-0892.ra.2015.102098
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), a concepção de território para os povos ameríndios se distancia muito da concepção jurídico-legal dos territórios demarcados por fronteiras, transpostos sobre mapas estáticos. No caso dos Kalapalo, parece fazer mais sentido pensar o território como algo mais próximo da definição de Bonnemaison (1993, p. 211)Bonnemaison, J. (1993). Around territories. L’Espace Géographique, 1(1), 205-220. https://doi.org/10.3406/spgeo.1993.3203
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, para quem

. . . territoriality can thus be much better defined as the social and cultural relations that a group maintains with the web of places and itineraries that make up its territory than as a reference to the usual concepts of biological appropriation and boundary.

Partindo dessa definição, os territórios deixam de ser entendidos como espaços delimitados e passam a ser compreendidos como um complexo de caminhos que conectam pontos, aproximando-se de uma ideia de rede, ou do que Albert (2007, p. 684)Albert, B. (2007). Ethnogeography and resource use among the Yanomami: toward a model of “reticular space”. Current Anthropology, 48(4), 584-592. https://doi.org/10.1086/519914
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chama de “espaço reticular”.

Um exemplo interessante para pensarmos a relação dos alto-xinguanos com os caminhos e o próprio caminhar é apresentado por Guerreiro (n.d.)Guerreiro, A. (n.d.). Images of movement: land, kinship, and history in the Upper Xingu [Manuscrito submetido]., tratando de um processo de documentação de um dos territórios antigos ocupados pelos Kalpalo antes da criação do Parque Indígena do Xingu (PIX). Segundo o autor,

the [kalapalo] filmmakers intentionally recorded several minutes of pure walking, as an explicit attempt to capture ‘how they move through the land’, always walking in line, following an elder leader: “That’s how we go from one place to another”, one of the film-makers told me. Rather than representing the land statically on a map and time through stories, they tried to actually recreate the movements that characterize it

(Guerreiro, n.d.Guerreiro, A. (n.d.). Images of movement: land, kinship, and history in the Upper Xingu [Manuscrito submetido].).

Os caminhos, assim, serviam – e seguem servindo – para ampliar e consolidar relações com outros, mais ou menos próximos, em um movimento sempre mediado pela aquisição e circulação de bens. Diversas narrativas dos Kalapalo mostram como os caminhos permitiram aos Kalapalo, por exemplo, adquirir bens culturais essenciais que eram de propriedade de hiperseres (itseke), como a água, ou ainda objetos considerados valiosos, como o cinto/colar de caramujo uguka (produzido a partir de placas redondas do caramujo inhuMegalobulimus sp.)6 6 Os colares de caramujo uguka e inhu aketühügü (feito a partir de placas retangulares do mesmo caramujo utilizado na produção do uguka) representam as especialidades produtivas dos Kalapalo dentro do sistema alto-xinguano. Da mesma forma, outros povos são considerados donos (e, idealmente, produtores) de outros bens, como as cerâmicas wauja, os arcos pretos kamayurá, os colares de caramujo com pintas pretas (oĩke) matipu e o sal vegetal aweti. . Os ancestrais dos Kalapalo

. . . sempre mantiveram intensas relações com povos vizinhos, mas também com seres Outros, fossem eles itseke ou brancos . . . ., alguns deles mais perigosos e outros mais dispostos a estabelecer relações cordiais e pacíficas. Pela experiência cotidiana dos Kalapalo, a relação com os brancos aproxima-se mais daquela estabelecida com os seres predadores do que aquela mantida com seres cujo comportamento se parece mais com o comportamento considerado ideal de kuge

(Novo, 2018Novo, M. P. (2018). Esse é o meu patikula: uma etnografia do dinheiro e outras coisas entre os Kalapalo de Aiha [Tese de doutorado, Universidade Federal de São Carlos]., p. 81).

Se as relações são mediadas pelo tipo de troca que se estabelece, o ‘termômetro’ é, quase sempre, calibrado em função da efetividade das ‘redes de circulação de dádivas’ estabelecidas. Se essas assumem uma configuração mais permanente e amistosa, cria-se o que os alto-xinguanos chamam de ‘amizade’, ou seja, relações marcadas pela troca de ‘presentes’ ao longo do tempo. Quanto mais prolongada a relação, mais bem avaliada ela é, possibilitando a criação de laços afetivos mais perenes.

A criação e a manutenção desse tipo de relação é um dos motivos que levam os Kalapalo a buscar as cidades, somado à necessidade de acesso aos benefícios sociais e previdenciários e ao comércio local. Além disso, as cidades também possibilitam às pessoas (especialmente jovens) que estudem e aprendam português (a despeito da existência de uma escola na aldeia). Estudar na cidade e aprender português são consideradas aquisições fundamentais para uma experiência positiva com os não indígenas, tanto nas cidades quanto nos espaços das aldeias. Adquirir essas habilidades lhes permite, por exemplo, poder negociar o valor dos produtos nas lojas, ou mesmo conseguir empréstimos, presentes ou ‘ajudas’ com os amigos não indígenas, fazendo com que os alto-xinguanos ampliem suas redes e seu prestígio, tanto nas aldeias, quanto no ‘sistema alto-xinguano’, de uma forma mais geral.

Mas a aproximação com as cidades, apesar de bastante desejada, é também temida. As cidades são percebidas tanto como espaços de abundância, onde se tem tudo o que se quiser, quando quiser, quanto como um espaço de pobreza, sofrimento e de perigos constantes; e disso decorre a necessidade de manutenção de uma ‘boa distância’ que permita, ao mesmo tempo, acessar as benesses desse mundo, mas também se proteger de seus perigos. É bastante comum ouvir avaliações que dizem que, na cidade, “quando está com fome é só ir ao mercado e pegar. Na aldeia, às vezes, não tem peixe. Aí, ainda tem que buscar, fazer. É difícil”. Ao mesmo tempo, a percepção que as pessoas que moram na aldeia têm dos indígenas que estão na cidade é de que sua vida seja sempre muito difícil, longe dos parentes e quase sempre com recursos insuficientes para se manter, já que “na cidade tem que pagar por tudo, até pela água”, obrigando-os a ficar “pedindo trocadinho”. E quanto maior o tempo de permanência na cidade, maiores as dificuldades e maiores as dívidas contraídas (tanto com instituições bancárias, quanto com donos de pousadas, mercados, oficinas mecânicas, ou ainda, com conhecidos e amigos) que impedem tanto a permanência nas cidades, quanto a concretização de desejos por objetos específicos7 7 A criação de cursos a distância nos últimos anos, especialmente de nível técnico e superior, vem facilitando o acesso dos jovens à educação e reduzindo seus esforços cotidianos para manutenção nas cidades. Alguns desses cursos modulares podem ser realizados dentro mesmo do TIX, sem que precisem se deslocar às cidades. .

Partindo dessas discussões, pode-se perceber a complexidade e a dubiedade das relações dos Kalapalo com os brancos e com as cidades. Se, por um lado, as cidades e os objetos são desejados, por outro, há um sentimento permanente de temor/receio em relação aos brancos e seu mundo. E essa ambiguidade esteve presente em todo o processo de negociação para abertura da estrada de Aiha, como apresento a seguir.

ENFRENTANDO AS ‘DIFICULDADES’8 8 Os termos ‘dificuldades’ e ‘necessidades’ se encontram destacados pois podem ser compreendidos como categorias nativas, ainda que utilizadas em português pelos próprios indígenas. E SUPERANDO AS ‘NECESSIDADES’: BREVE HISTÓRICO DA ESTRADA DE AIHA

As primeiras intenções de abertura da estrada por parte dos moradores de Aiha apareceram em conversas esporádicas no centro da aldeia9 9 As aldeias alto-xinguanas são circulares e, assim como as aldeias jê, possuem um espaço no centro, frequentado exclusivamente pelos homens. No Alto Xingu, esse é o principal espaço de tomada de decisões coletivas nas aldeias. e, aos poucos, foram ganhando corpo. Ainda em 2014, foram feitas algumas tentativas de articulação com os fazendeiros do entorno do TIX e com os governos municipais da região, visando conseguir o apoio considerado necessário pelas lideranças de Aiha, para a abertura da estrada. Os Kalapalo solicitavam das autoridades maquinário, material e pessoal, especialmente para a construção das pontes necessárias para atravessar os córregos que cortam o trajeto previsto para a estrada. Paralelamente, começaram a ser feitas conversas informais com representantes de outras aldeias que também poderiam se beneficiar dessa estrada, a fim de aumentar o apoio e, consequentemente, a pressão para que a estrada passasse a existir. No início de 2015, com o auxílio de um pequeno aparelho de geolocalização por satélite, foram organizadas as primeiras expedições de moradores da aldeia para abrir as ‘picadas’ (pequenas passagens, abertas em meio à mata, onde se pode circular apenas a pé), que, futuramente, seriam a estrada. Mas, foi somente em meados de 2018, após uma série de discussões e reuniões envolvendo todos os povos do TIX, que a estrada foi, finalmente, oficializada e concluída.

Desde a criação do então PIX, em 1961, a relação entre os povos ali residentes é marcada pela pacificidade, o que não impede, todavia, que haja grandes divergências, especialmente no que diz respeito à gestão política, econômica e ambiental do território. Essas divergências ficaram ainda mais evidentes nos últimos anos, após a promulgação da Política Nacional de Gestão Territorial e Ambiental de Terras Indígenas (PNGATI)10 10 Ver Decreto n. 7.747, de 5 de junho de 2012. , criada com o objetivo de “garantir e promover a proteção, a recuperação, a conservação e o uso sustentável dos recursos naturais das terras e territórios indígenas . . . ., respeitando [a] autonomia sociocultural [desses povos]” (Decreto n. 7.747, de 5 de junho de 2012Decreto n. 7.747. (2012, jun. 5). Institui a política nacional de gestão territorial e ambiental de terras indígenas – PNGATI, e dá outras providências. Diário Oficial da União. https://www.planalto.gov.br/ccivil_03/_ato2011-2014/2012/decreto/d7747.htm
https://www.planalto.gov.br/ccivil_03/_a...
). Para a efetivação desses objetivos, o texto previa a utilização de duas ferramentas, o etnomapeamento e o etnozoneamento. Estas, por sua vez, forneceriam as bases para a consolidação dos chamados Planos de Gestão Territorial e Ambiental de Terras Indígenas (PGTA). Construídos com base em noções de ‘autonomia’, ‘protagonismo’ e ‘autodeterminação’11 11 Termos que podem ser considerados ‘categorias nativas’ da política indigenista brasileira. Não saberia precisar a origem desses termos, mas ao menos a ideia de autodeterminação parece ter origem no texto da United Nations Declaration on the Rights of Indigenous Peoples (United Nations, 2007). , esses planos foram pensados como “instrumentos de diálogo intercultural e de planejamento para a gestão territorial e ambiental das terras indígenas brasileiras, elaborados pelos povos indígenas com apoio e em diálogo com outros parceiros e o governo” (Bavaresco & Menezes, 2014Bavaresco, A., & Menezes, M. (2014). Entendendo a PNGATI: política nacional de gestão territorial e ambiental indígenas. Ministério da Justiça., pp. 25-26).

No TIX, desde a implementação da PNGATI, a principal organização não governamental indígena representativa dos povos ali residentes, a Associação Terra Indígena do Xingu (ATIX), em parceria com a organização não governamental (ONG) indigenista Instituto Socioambiental (ISA), conduziu uma série de reuniões e oficinas envolvendo representantes dos 16 povos ali residentes, visando formar lideranças capacitadas a atuar nos moldes propostos pela política. Conforme detalhado no Plano de Gestão do TIX (ATIX, 2015Associação Terra Indígena Xingu (ATIX). (2015). Plano de gestão do Território Indígena do Xingu. Associação Terra Indígena Xingu/Instituto de Pesquisa Etnoambiental do Xingu/Instituto Socioambiental/FUNAI., p. 10), as discussões levadas a cabo nesse processo se iniciaram ainda em 2009, quando a Fundação Nacional do Índio (FUNAI) consultou os povos indígenas a respeito da PNGATI. Nos anos seguintes, entre 2010 e 2012, foram feitos diagnósticos, visando levantar os principais problemas enfrentados pelos povos que habitam o TIX. A partir desses diagnósticos, foram definidos sete temas prioritários de discussão e atuação: ‘cultura’, ‘território’, ‘alternativas econômicas’, ‘soberania alimentar’, ‘educação’, ‘saúde’ e ‘infraestrutura interna’. As reuniões realizadas nos anos seguintes estiveram focadas na definição de propostas para enfrentar os problemas identificados e, finalmente, em 2015, foi aprovado o Plano de Gestão do TIX, em uma assembleia geral convocada pela ATIX. As informações contidas neste documento devem, idealmente, servir como guias para decisões futuras, envolvendo cada um desses temas que incidam direta ou indiretamente sobre os povos que residem no território. Participaram dessas discussões as lideranças principais de cada uma das aldeias, além de jovens com alguma escolaridade, que falam e escrevem em português – atuando, inclusive, como tradutores das lideranças durante as reuniões – e estão mais familiarizados com o ‘mundo dos brancos’ e suas burocracias.

Como parte desse mesmo processo, os representantes dos povos abrangidos pelo território definiram uma estrutura decisória, chamada por eles de ‘governança’, e que não se confunde, portanto, com a governança proposta pela PNGATI, apesar de claramente se inspirar nela. Segundo a concepção dos povos xinguanos, essa estrutura de governança “mistura um pouco da nossa [leia-se, dos indígenas xinguanos] cultura com um pouco do que aprendemos com os brancos” (ATIX, 2015Associação Terra Indígena Xingu (ATIX). (2015). Plano de gestão do Território Indígena do Xingu. Associação Terra Indígena Xingu/Instituto de Pesquisa Etnoambiental do Xingu/Instituto Socioambiental/FUNAI., p. 12) e se divide em três níveis: por povo, por região (Alto, Médio, Baixo e Leste Xingu) e geral (unindo todas as etnias residentes no TIX), conforme a abrangência do tema a ser discutido. No nível mais local da governança, cada povo possui autonomia para decidir como devem funcionar suas reuniões e decisões. Entre os Kalapalo ocorreram ao menos duas reuniões, entre os anos de 2016 e 2017, com participação de representantes de (quase) todas as aldeias que se identificam, em algum nível, como ‘kalapalo’12 12 Essa identidade não é rígida e está sujeita a negociações e disputas, em muitos momentos. Um dos componentes que alimentam as disputas são as ‘misturas’, fruto de casamentos interétnicos e que geram filhos que podem reivindicar ambas ‘identidades’, conforme discutido por Mehinaku (2010). . O acordo firmado por eles é de que as decisões devem ser sempre consensuais, sem que haja qualquer votação. Esse tipo de decisão reflete diretamente o ethos político alto-xinguano, marcado pela ideia de não agressividade e de autocontenção13 13 Esse ethos já foi discutido por diversos autores. Dentre eles, ver Basso (1973); Franchetto & Heckenberger (2001); Gregor (1982); Castro (1977). . Isso não significa, entretanto, que não existam opiniões contrárias e discordâncias em relação aos temas debatidos, apenas que tais discordâncias não devam ser expressas de maneira enfática nos debates públicos e coletivos e, mais ainda, nos momentos em que são feitos os encaminhamentos das reuniões, com as decisões finais.

A abertura de estradas dentro dos limites do TIX é um dos temas controversos e que afetam direta ou indiretamente todos os moradores do território. Para além das discussões e mobilizações realizadas informalmente pelos moradores e lideranças de Aiha, em termos formais, a discussão para abertura da estrada se iniciou em uma reunião local, com participação de representantes das distintas aldeias kalapalo. Naquele momento, foi consensual a proposta de apoio à abertura de uma estrada em Aiha e, então, a discussão seguiu para os demais níveis da governança. As estradas foram parte da pauta que compôs a reunião geral realizada em março de 2017, da qual participaram representantes de 14 dos 16 povos que habitam o TIX. Além do pedido de abertura da estrada de Aiha, a lista anexa à ata da reunião (Governança Geral do TIX, 2017Governança Geral do TIX. (2017). Memória de reunião realizada na CTL Leonardo, dias 27 a 29 de março de 2017. Canarana.) contabilizava outros 26 diferentes pedidos por estradas. As demandas abrangiam todas as quatro regiões do TIX (Alto, Médio, Baixo e Leste Xingu) e incluíam estradas ligando distintas aldeias, estradas ligando aldeias aos limites do território e estradas ligando aldeias a outras estradas já existentes. Cada um dos pedidos foi detalhado por ao menos um participante da reunião, e ocorreram rodadas gerais de discussão, mas também regionalizadas, separando representantes das quatro regiões. Do total de pedidos feitos, apenas seis traçados foram aprovados ao final dessa reunião: três no Baixo Xingu, dois no Médio e apenas um – o de Aiha – no Alto Xingu.

No geral, as falas dos representantes que apoiavam ao menos alguma das estradas demandadas se baseavam nas ‘necessidades’ e ‘dificuldades’ enfrentadas pelas distintas aldeias. Os argumentos, conforme explicitados na ata da referida reunião, incluíam a maior facilidade para construção de postos de saúde e escolas nas aldeias; a possibilidade de remoção mais eficaz de pacientes em estado grave para os hospitais da região; a facilidade de deslocamento para festas multicomunitárias; além do acesso facilitado às cidades e aos benefícios previdenciários. Todavia, a grande quantidade de pedidos de abertura de estradas surpreendeu a todos os participantes e gerou algumas avaliações negativas, fazendo com que parte dos solicitantes, inclusive, desistissem de suas ideias originais. As preocupações diziam respeito principalmente ao medo do avanço do uso de álcool e outras drogas, especialmente pelos jovens; ao medo de invasões indevidas ao território por madeireiros, fazendeiros, pescadores ou pessoas não autorizadas; e ao aumento do consumo de comidas industrializadas, bem como ao consequente aumento de doenças antes inexistentes, como diabetes e hipertensão.

Durante as rodadas de discussão, foi solicitado que os representantes de cada uma das regiões do TIX apontassem quais estradas deveriam ser priorizadas. Assim, após um dia todo de reunião, com falas de diversas lideranças apontando vantagens e desvantagens da abertura das estradas, ressaltando as ‘necessidades’ e ‘dificuldades’ de suas próprias aldeias, mas sem que houvesse qualquer votação ao final, foram definidos quais os trajetos que seriam aprovados. A decisão de autorização de apenas seis dos traçados não agradou a todos os participantes, ainda que tenha sido ‘consensual’, ou seja, que não tenha havido nenhuma votação a esse respeito. Tal descontentamento se confirma pelos novos pedidos de abertura de estradas (re)apresentados nas reuniões de governança subsequentes.

Em Aiha, esse movimento de buscar uma aproximação com as cidades por meio da abertura de uma estrada foi acompanhado também por mobilizações de jovens lideranças da aldeia para a criação de um ponto de acesso à internet na escola da aldeia. Implementado pela SEDUC-MT, o referido ponto passou a funcionar em meados de 2018 (quase que simultaneamente à abertura da estrada), na sede da escola, permitindo aos moradores dali se conectar com a rede mundial de computadores, utilizando seus próprios telefones celulares, completamente difundidos pela aldeia. Atualmente, além do ponto de acesso da escola, há dois pontos de acesso particulares em diferentes casas da aldeia, além de outras duas casas que possuem extensões do ponto de internet da escola.

Em cada um desses pontos, a conexão é feita com senhas, que são compartilhadas com todos aqueles que solicitam. No caso da internet particular, o valor da assinatura mensal é compartilhado por diversas pessoas, que usufruem do acesso. Pelos aparelhos celulares, novas conexões são criadas e relações fortalecidas, seja pela participação nas redes sociais, pela possibilidade de compartilhamento de vídeos e fotos de forma mais eficaz e com maior alcance, pela possibilidade de reforçar articulações políticas com outras aldeias, povos ou mesmo com brancos considerados ‘amigos’ ou ‘autoridades’, ou pela simples possibilidade de ampliação de vocabulário e de conhecimentos relacionados ao ‘mundo dos brancos’.

A maior parte dos aparelhos celulares é de propriedade de homens, sendo poucas as mulheres que possuem um aparelho próprio. As poucas que possuem aparelhos utilizam principalmente ferramentas de conversa como o WhatsApp, em que é possível enviar mensagens de áudio (já que muitas delas não sabem ler ou escrever) para manter contato com parentes de outras aldeias ou que residam nas cidades, ou, ainda, com amigos não indígenas (como é o meu caso).

Entre os homens que, em geral, falam português e leem melhor do que as mulheres, além de aplicativos de conversas, há um uso mais difundido de outras redes sociais, como o Facebook e o Instagram. Assim como entre as mulheres, o principal uso da internet é para estabelecer conexões com pessoas de outras aldeias ou indígenas residentes nas cidades. Mas, diferentemente das mulheres, os homens, especialmente jovens solteiros, utilizam essas redes como forma de conhecer pessoas e criar suas próprias relações com indígenas e não indígenas previamente desconhecidos. É pela internet que se iniciam namoros entre jovens de aldeias distintas e que circulam informações sobre a situação de saúde de doentes e sobre eventuais mortes. É também pela internet que se divulgam festas e eventos realizados dentro do TIX, além de haver uma certa ‘ostentação’, com o compartilhamento de fotos de roupas, tênis, uniformes de futebol e chuteiras, recém-adquiridos.

As fotos compartilhadas podem ou não ser acompanhadas de legendas, e suscitam comentários de outros indígenas (e, às vezes, não indígenas), parabenizando, celebrando, fazendo algum comentário jocoso (em geral, na própria língua da pessoa que postou a foto) ou com mensagens de tristeza e indignação, a depender do conteúdo compartilhado. É por meio das redes sociais que se criam redes de circulação e venda de artesanato e por onde se compartilham novas composições musicais, fotografias e filmes dos artistas indígenas. É também pela internet que se mantém a comunicação com as equipes gestoras das políticas de saúde e educação, e por onde são compartilhados os relatórios de acompanhamento, para fins de controle e atualização dos cadastros das políticas de transferência de renda. Finalmente, é pela internet que se buscam informações sobre temas diversos, que vão da política indigenista às tabelas dos campeonatos de futebol, e por onde se realizam cursos modulares a distância, de formação profissional.

Tudo isso junto compõe um movimento de busca ativa pelo ‘mundo dos brancos’, que é parte de um processo mais complexo e com mais nuances do que pode parecer a princípio, se considerarmos que acontece concomitantemente às discussões sobre a abertura de uma rodovia federal14 14 Para facilitar a leitura, são diferenciadas textualmente as ‘estradas’ – caminhos que ligam as aldeias aos mais diversos locais, dentro do TIX, independentemente de seu tamanho – das ‘rodovias’, assim identificadas as estradas abertas por órgãos oficiais, fora ou dentro do TIX, como é o caso da BR-80 (atual MT-322), que, em 1971, atravessou o norte do TIX, desmembrando dali o território dos Mẽbêngôkre-Kayapó, área que, posteriormente, viria a ser demarcada como TI Capoto/Jarina (Lea, 1997). , a BR-242, à qual os povos xinguanos (inclusive os Kalapalo) são contrários. Esse projeto vem gerando grandes descontentamentos entre os moradores do TIX, pois o traçado previsto passa a pouco mais de 10 km de distância do limite sul do território e da Terra Indígena (TI) Pequizal do Naruvotu, anexa ao TIX. A oposição dos xinguanos a essa rodovia tem como fundamento os potenciais impactos negativos que a obra e a posterior ampliação da circulação de veículos promoverão nos rios e nas matas, além de impactos indiretos esperados sobre a qualidade de vida nas aldeias, com o surgimento de eventuais “fazendas, vilas, bares, aumentando casos de alcoolismo, consumo de drogas e prostituição e a intensificação do tráfego de veículos e aumento de atropelamentos de animais e pessoas” (Governança Geral do TIX, 2019Governança Geral do TIX. (2019, mar. 15). Carta aos órgãos lincenciadores da BR-242, FICO, Ministério da Infraestrutura, IPHAN, Ministério Público Federal e Sociedade Brasileira.).

Alguns meses depois da reunião geral de governança citada anteriormente, quando foram aprovados os traçados das estradas, em julho de 2017, foi convocada uma reunião geral extraordinária especificamente para debater o tema da abertura da rodovia BR-242. Nessa reunião, as lideranças presentes elaboraram uma carta, repudiando a abertura da rodovia sem a devida consulta prévia e por meio de um processo que desconsidera o protocolo de consulta dos povos do TIX (ATIX, 2016Associação Terra Indígena Xingu (ATIX). (2016). Protocolo de consulta dos povos do Território Indígena do Xingu. Associação Terra Indígena Xingu/Instituto Socioambiental/Rede de Cooperação Amazônica.). Na mesma carta, solicitaram que o trajeto previsto fosse alterado, aproveitando um traçado já existente, que conecta os municípios de Querência e Canarana, de forma a aumentar a distância entre a rodovia e o limite do TIX e da TI Pequizal no Narovutu15 15 A mesma carta sofreu algumas alterações ao longo do tempo, com uma última versão encaminhada aos gestores em março de 2019, versão essa utilizada como referência ao longo do presente texto. .

Por um lado, a abertura da estrada de Aiha aponta para um desejo de aproximação das cidades e do ‘mundo dos brancos’. Mas, a oposição à rodovia parece apontar exatamente no sentido oposto, em uma tentativa de afastamento e distanciamento dos potenciais perigos apresentados por uma possível aproximação extrema desse mundo, cheio de perigos e seduções. Uma contradição apenas aparente e que expõe as tentativas locais de controlar as formas como a relação com os brancos devem ser estabelecidas (o que chamei de ‘boa distância’). Esses ‘limites’ da aproximação também aparecem em discussões mais recentes – e, portanto, que já são efeitos da abertura das estradas – sobre a presença de atividades ilegais de exploração de madeira no TIX, ou ainda sobre o turismo. Se a presença de atividades ilegais gerou discussões acaloradas na reunião geral de governança realizada em novembro de 2022, havendo forte pressão para que os envolvidos deixassem de realizar tais atividades, o turismo é um ponto sobre o qual não parece haver consenso. Que tipo de turismo pode ou não ser feito? Quem controla a entrada e a saída de turistas? Como deve ser a gestão dos recursos provenientes do turismo? Qual a escala do turismo? Todas essas são questões que têm surgido e não têm ainda uma resposta clara, ficando a cargo de cada comunidade tomar as decisões que lhe parecem fazer mais sentido16 16 Quanto a isso, cabe apenas um comentário mais pontual a respeito de um projeto de criação de uma aldeia turística nas margens do lago Tahununu, considerado ‘território sagrado’ dos Kuikuro e Kalapalo. Trata-se de uma região em que houve densa ocupação por parte desses povos, mas que foi desocupada no momento da criação do Parque. Esse projeto de turismo, proposto por uma família kuikuro, foi fortemente rechaçado por parte de lideranças kalapalo e kuikuro e, ao menos por enquanto, encontra-se parado. O turismo em si não parece ser um problema, mas, quando assume proporções consideradas ‘descontroladas’, torna-se um potencial problema e, por isso, as reações negativas. .

É nesse contexto que tanto a estrada quanto a internet surgem como possibilidades para que se crie um trânsito, de certa forma controlado, para mundos outros e mundos de outros. São caminhos que permitem às pessoas experimentar distintos modos de ser, seja por meio do tipo de roupa usada, seja por meio da língua falada/escrita, dos nomes pessoais utilizados. E, com isso, os corpos também se transformam, se magnificam, acrescentando a si as novas relações criadas e experimentadas. Conforme aponta Horta (2018, p. 96)Horta, A. (2018). Relações indígenas na cidade de Canarana (MT) [Tese de doutorado, Universidade Federal do Rio de Janeiro].:

. . . o que leva o indígena à cidade não é uma falta, que se suprida dentro mesmo da aldeia, resolverá a questão e o manterá no lugar. Não. O indígena vai à cidade fazer algo, produzir uma transformação em si e no mundo: este é seu desejo e ele conecta uma pluralidade de elementos e perspectivas que não se ordenam como meios e fins, termos e funções, mas que se engancham uns nos outros e provocam, na complexidade dessas relações de alteridade sem poréns [sic], um movimento produtivo – uma máquina desejante.

A estrada e a internet também dão aos Kalapalo de Aiha uma dimensão de autonomia: não dependem mais de outros para intermediar as relações estabelecidas com os brancos, ou vigiar seus carros e caminhões que, antes, permaneciam estacionados nos portos próximos às estradas de outras aldeias. E, considerando que todos os espaços têm donos – humanos ou não –, a estrada também lhes permite circular cada vez menos e por menos tempo, já que o trajeto é mais curto – por espaços de ‘outros’ para chegarem à cidade, ficando menos expostos aos olhares e à inveja – ambos potenciais fontes de adoecimento e até mesmo de morte. Em contrapartida, a estrada aumentou a circulação de ‘outros’ (indígenas de outras aldeias da região, pescadores, motoristas que fazem frete de produtos e pessoas, turistas etc.) o espaço de Aiha.

E, ao mesmo tempo em que possibilita – e, de uma certa maneira, estimula – visitas mais frequentes à cidade, a estrada também permite aos Kalapalo que permaneçam por menor tempo nas cidades. A permanência prolongada (com pernoites) sempre foi vista por eles como um grande problema, tanto no que diz respeito aos gastos gerados, quanto ao distanciamento prolongado dos afazeres da aldeia. E a dificuldade de locomoção até Canarana, associada ao alto custo da viagem, muitas vezes tinha como resultado a necessidade de permanência por diversos dias na cidade. Com o acesso facilitado ao município de Querência, as incursões podem ser mais curtas e pontuais, ainda que sejam mais frequentes. Do ponto de vista dos Kalapalo, essa mudança é significativa, na medida em que, ao menos em teoria, afasta menos as pessoas de suas responsabilidades familiares e coletivas na aldeia, dando-lhes alguma percepção de controle acerca da forma como a relação com o outro – nesse caso, os brancos – é estabelecida.

Essa ideia de controle – e a dificuldade em mantê-lo a todo tempo – ficou explícita durante a pandemia que assolou o mundo em 2020. Com medo do que estava por vir, tendo ainda uma memória muito próxima de outras epidemias que mataram tantos dos seus, os Kalapalo decidiram, assim que surgiram os primeiros casos no Brasil, ‘se fechar’ em suas aldeias, evitando ao máximo o contato com pessoas vindas das cidades. Nesse momento, a estrada se mostrou um empecilho. Assim que a decisão de se fecharem foi tomada, os Kalapalo de Aiha se prontificaram a restringir o tráfego da estrada, usando um grande tronco de madeira. Todavia, alguns dias depois, viram a necessidade de reforçar a barreira, construindo um portão de madeira fechado com um cadeado que precisou ser trocado algumas vezes, após ser quebrado por pessoas que permaneciam transitando entre as cidades e as aldeias, sem as devidas autorizações17 17 As equipes de saúde, por exemplo, estariam autorizadas a circular pela estrada para acessar as aldeias dentro do TIX. A relação dos Kalapalo com a estrada e as cidades durante a pandemia de Covid-19 mostrou-se bastante complexa e merece ser discutida em outro momento. .

A rejeição pela abertura da rodovia federal próxima ao limite de seu território se fundamenta nessa mesma percepção sobre o controle acerca da forma como a relação com o ‘outro’ se estabelece – ou deve ser estabelecida. Ainda que o desejo pelo mundo dos brancos esteja explícito e ganhe fôlego na aldeia, de alguma forma, os Kalapalo percebem que isso tem sido feito segundo suas próprias condições, seus próprios caminhos. A partir do momento em que uma rodovia corta seus territórios (ainda que fora dos limites do TIX), ver-se-iam vítimas de um tipo de relação forçada e potencialmente perigosa, incluindo uma série de pessoas e situações desconhecidas e indesejadas.

TERRITÓRIOS EXPANDIDOS

O PIX foi a primeira reserva indígena criada no Brasil, em 1961. Desde sua criação, o território demarcado já sofreu alterações, que incluíram o desmembramento da região, que viria a se tornar a Terra Indígena Capoto/Jarina, com a criação da rodovia BR-80 (atual MT-322), em 1971. Alguns anos depois, em 1978, o Decreto Federal n. 82.263Decreto n. 82.263. (1978, set. 13). Dá nova denominação aos atuais Parque Nacionais do Xingu e de Tumucumaque. Diário Oficial da União. https://www2.camara.leg.br/legin/fed/decret/1970-1979/decreto-82263-13-setembro-1978-431352-publicacaooriginal-1-pe.html
https://www2.camara.leg.br/legin/fed/dec...
alterou o nome do Parque Nacional do Xingu para Parque Indígena do Xingu. Nos últimos dez anos, com as discussões sobre a gestão do território propiciadas pela PNGATI, os xinguanos passaram a utilizar o termo ‘território indígena’, em vez de continuar utilizando ‘parque’ (nominação oficial da terra demarcada). Nesse caso, a ideia de um território amplia a dimensão espacial da terra demarcada, à medida que agrega ao Parque do Xingu outras três terras demarcadas adjacentes: Wawi, Batovi e Pequizal do Naruvôtu.

Essa concepção ampliada de território também pode ser percebida nos processos de abertura de estradas dentro do TIX, conforme apontei ao longo do texto. Mas não se trata de uma expansão territorial visando à incorporação de novos espaços ao território demarcado. Essa ampliação está relacionada, ao contrário, a uma ideia de trânsito, de circulação – pela cidade ou por outros territórios com outros donos – e, nesse sentido, vinculada à criação e ao estabelecimento de relações interpessoais. Essa circulação, por sua vez, reforça a impossibilidade de uma distinção rígida entre ‘índios aldeados’ e ‘índios citadinos’, como pretende a política indigenista brasileira atual. Ainda que estejam frequentemente em trânsito pelas cidades, os Kalapalo afirmam sempre seu desejo e a importância de retornar à aldeia, aos parentes e às tarefas de roçado. Mesmo aqueles que saem para estudar reforçam que “é preciso pensar na comunidade”, indicando seu desejo de retornar à aldeia após a conclusão dos estudos. Assim, portanto, as tentativas de aproximação com os não indígenas não representam um processo de se tornar outro ou incorporar outros, mas exatamente de permitir a experimentação, temporária, de outros modos de viver e se relacionar, expandindo repertórios e (re)criando relações.

Considerando o aqui exposto, pode-se perceber, então, que as aproximações dos Kalapalo em relação às cidades e ao ‘mundo dos brancos’ não devem ser tratadas apenas como uma “ruptura com a ‘visão de mundo tradicional’” dos índios (Miller, 2005Miller, J. (2005). Antes os brancos já existiam: uma análise crítica do modelo do contato de Terence Turner para os Kayapó. Estudios Latinoamericanos, 25, 173-204. https://doi.org/10.36447/Estudios2005.v25.art7
https://doi.org/10.36447/Estudios2005.v2...
, p. 190), criando tanto continuidades quanto descontinuidades ao longo desse processo. Se a abertura de caminhos é uma das formas ‘tradicionais’ de os Kalapalo lidarem com a relação com os ‘outros’ (dos mais próximos, como as aldeias alto-xinguanas vizinhas, aos mais distantes, como os itseke e, atualmente, os não indígenas), as cidades e os brancos parecem criar novos desafios e efeitos, nem sempre esperados ou mesmo bem avaliados. As possibilidades de relações efetivas com a alteridade constituem processos experimentais que podem passar por revisitações e reformulações, a depender das reações apresentadas pelos seres ‘outros’, diante das situações que envolvem as pessoas de verdade (kuge hekugu). Nesse sentido, as reações dos brancos, por vezes, os aproximam dos itseke, os hiperseres, com sua inventividade e ‘capacidade transformativa’, mas, por vezes, também podem aproximá-los do comportamento ideal de kuge, gente. A consequência dessa ambiguidade parece ser, conforme discutido ao longo do texto, a criação, por parte dos Kalapalo, da ideia de uma ‘boa distância’, sendo possível, ao mesmo tempo, experimentar os desejos suscitados e criar barreiras que impeçam uma aproximação considerada excessiva.

  • 1
    Programa de transferência condicionada de renda, criado em 2003, destinado a famílias que possuam renda mensal per capita de até R$ 200 (cotação vigente em novembro de 2021). O programa foi revogado pela Medida Provisória n. 1.061, de 9 de agosto de 2021Medida Provisória n. 1.061 (2021, ago. 9). Institui o Programa Auxílio Brasil e o Programa Alimenta Brasil, e dá outras providências. Diário Oficial da União. https://www.in.gov.br/en/web/dou/-/medida-provisoria-n-1.061-de-9-de-agosto-de-2021-337251007
    https://www.in.gov.br/en/web/dou/-/medid...
    , que criou o Auxílio Brasil.
  • 2
    Esta autora busca dissociar os conceitos de terra e território. Para ela, “‘Terra indígena’ diz respeito ao processo político-jurídico conduzido sob a égide do Estado, enquanto . . . . ‘território’ remete à construção e à vivência, culturalmente variável, da relação entre uma sociedade específica e sua base territorial” (Gallois, 2004Gallois, D. T. (2004). Terras ocupadas? Territórios? Territorialidades? In F. P. Ricardo (Org.), Terras indígenas e unidades de conservação da natureza: o desafio das sobreposições (pp. 37-41). Instituto Socioambiental., p. 5).
  • 3
    Três termos previstos na Política Nacional de Gestão Territorial e Ambiental de Terras Indígenas (PNGATI), que será discutida adiante. Sobre a PNGATI, ver Bavaresco e Menezes (2014)Bavaresco, A., & Menezes, M. (2014). Entendendo a PNGATI: política nacional de gestão territorial e ambiental indígenas. Ministério da Justiça.; Iubel (2015)Iubel, A. (2015). Transformações políticas e indígenas: movimento e prefeitura no Alto Rio Negro [Tese de doutorado, Universidade Federal de São Carlos].; Souza et al. (2017)Souza, M. C., Barbi, R. C. S., Fernandes, J., Lima, D., Molina, L., Oliveira, E., . . . Soares-Pinto, N. (2017). T/terras indígenas e territórios conceituais: incursões etnográficas e controvérsias públicas. O Laboratório de Antropologias da T/terra., dentre outros.
  • 4
    Ver, dentre outros, Alexiades (2009)Alexiades, M. N. (Org.). (2009). Mobility and migration in indigenous Amazonia: contemporary ethnoecological perspectives. Berghahn Books.; Erickson (2009)Erickson, C. (2009). Landscapes of movement. In J. E. Snead, C. L. Erickson & A. Darling (Orgs.), Landscapes of movement (pp. 204-231). University of Pennsylvania Press.; Hornborg e Hill (2011)Hornborg, A., & Hill, J. (Orgs.). (2011). Ethnicity in ancient Amazonia. University Press of Colorado.; Santos-Granero (1991)Santos-Granero, F. (1991). Redes de intercambio y comercio indigena antes y despues de la conquista. In F. Santos-Granero (Org.), Etnohistoria de la Alta Amazonia (pp. 5-32). Abya-Yala.; Virtanen (2016)Virtanen, P. K. (2016). Redes terrestres na região do Rio Purus que conectam e desconectam os povos Aruak. In G. Mendes & M. Aparício (Orgs.), Redes Arawa: ensaios de etnología no Meio Purus (pp. 41-61). EDUA..
  • 5
    Trata-se de um tipo de relação bastante comum entre os alto-xinguanos e envolve pessoas do mesmo sexo que trocam coisas entre si, em relações bastante duradouras. Como mostrou Souza (1995)Souza, M. C. (1995). Da complexidade ao elementar: para uma reconsideração do parentesco xinguano. In E. B. V. Castro (Ed.), Antropologia do parentesco: estudos ameríndios (pp. 121–206). Editora UFRJ., a amizade xinguana conjuga aspectos tanto de afinidade quanto de consanguinidade.
  • 6
    Os colares de caramujo uguka e inhu aketühügü (feito a partir de placas retangulares do mesmo caramujo utilizado na produção do uguka) representam as especialidades produtivas dos Kalapalo dentro do sistema alto-xinguano. Da mesma forma, outros povos são considerados donos (e, idealmente, produtores) de outros bens, como as cerâmicas wauja, os arcos pretos kamayurá, os colares de caramujo com pintas pretas (oĩke) matipu e o sal vegetal aweti.
  • 7
    A criação de cursos a distância nos últimos anos, especialmente de nível técnico e superior, vem facilitando o acesso dos jovens à educação e reduzindo seus esforços cotidianos para manutenção nas cidades. Alguns desses cursos modulares podem ser realizados dentro mesmo do TIX, sem que precisem se deslocar às cidades.
  • 8
    Os termos ‘dificuldades’ e ‘necessidades’ se encontram destacados pois podem ser compreendidos como categorias nativas, ainda que utilizadas em português pelos próprios indígenas.
  • 9
    As aldeias alto-xinguanas são circulares e, assim como as aldeias jê, possuem um espaço no centro, frequentado exclusivamente pelos homens. No Alto Xingu, esse é o principal espaço de tomada de decisões coletivas nas aldeias.
  • 10
    Ver Decreto n. 7.747, de 5 de junho de 2012.
  • 11
    Termos que podem ser considerados ‘categorias nativas’ da política indigenista brasileira. Não saberia precisar a origem desses termos, mas ao menos a ideia de autodeterminação parece ter origem no texto da United Nations Declaration on the Rights of Indigenous Peoples (United Nations, 2007United Nations. (2007). United Nations declaration on the rights of indigenous peoples. United Nations.).
  • 12
    Essa identidade não é rígida e está sujeita a negociações e disputas, em muitos momentos. Um dos componentes que alimentam as disputas são as ‘misturas’, fruto de casamentos interétnicos e que geram filhos que podem reivindicar ambas ‘identidades’, conforme discutido por Mehinaku (2010)Mehinaku, M. (2010). Tetsualü: pluralismo de línguas e pessoas na Alto Xingu [Dissertação de mestrado, Universidade Federal do Rio de Janeiro]..
  • 13
    Esse ethos já foi discutido por diversos autores. Dentre eles, ver Basso (1973)Basso, E. B. (1973). The Kalapalo indians of Central Brazil. Holt/Rinehart/Winston.; Franchetto & Heckenberger (2001)Franchetto, B., & Heckenberger, M. (Orgs.). (2001). Os povos do Alto Xingu: história e cultura. Editora UFRJ.; Gregor (1982)Gregor, T. (1982). Mehináku: o drama da vida diária em uma aldeia do Alto Xingu. Companhia Editora Nacional.; Castro (1977)Castro, E. B. V. (1977). Indivíduo e sociedade no Alto Xingu: os Yawalapiti [Dissertação de mestrado, Universidade Federal do Rio de Janeiro]..
  • 14
    Para facilitar a leitura, são diferenciadas textualmente as ‘estradas’ – caminhos que ligam as aldeias aos mais diversos locais, dentro do TIX, independentemente de seu tamanho – das ‘rodovias’, assim identificadas as estradas abertas por órgãos oficiais, fora ou dentro do TIX, como é o caso da BR-80 (atual MT-322), que, em 1971, atravessou o norte do TIX, desmembrando dali o território dos Mẽbêngôkre-Kayapó, área que, posteriormente, viria a ser demarcada como TI Capoto/Jarina (Lea, 1997Lea, V. (1997). Parque Indígena do Xingu: laudo antropológico. Universidade Estadual de Campinas.).
  • 15
    A mesma carta sofreu algumas alterações ao longo do tempo, com uma última versão encaminhada aos gestores em março de 2019, versão essa utilizada como referência ao longo do presente texto.
  • 16
    Quanto a isso, cabe apenas um comentário mais pontual a respeito de um projeto de criação de uma aldeia turística nas margens do lago Tahununu, considerado ‘território sagrado’ dos Kuikuro e Kalapalo. Trata-se de uma região em que houve densa ocupação por parte desses povos, mas que foi desocupada no momento da criação do Parque. Esse projeto de turismo, proposto por uma família kuikuro, foi fortemente rechaçado por parte de lideranças kalapalo e kuikuro e, ao menos por enquanto, encontra-se parado. O turismo em si não parece ser um problema, mas, quando assume proporções consideradas ‘descontroladas’, torna-se um potencial problema e, por isso, as reações negativas.
  • 17
    As equipes de saúde, por exemplo, estariam autorizadas a circular pela estrada para acessar as aldeias dentro do TIX. A relação dos Kalapalo com a estrada e as cidades durante a pandemia de Covid-19 mostrou-se bastante complexa e merece ser discutida em outro momento.

AGRADECIMENTOS

Este artigo foi parcialmente escrito durante estágio de pesquisa realizado na Universidade de Oxford. Agradeço à professora Elizabeth Ewart, pela colaboração e supervisão da pesquisa durante esse período. Também agradeço à professora Artionka Capiberibe, pela leitura e comentários a uma versão preliminar desse texto. Essa pesquisa foi realizada com financiamento da Fundação de Amparo à Pesquisa do Estado de São Paulo (FAPESP) (processos n. 2012/20200-1; 2018/07747-8; 2019/06327-8).

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Editado por

Responsabilidade editorial: Claudia Leonor López-Garcés

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    19 Maio 2023
  • Data do Fascículo
    2023

Histórico

  • Recebido
    10 Mar 2022
  • Aceito
    20 Jan 2023
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