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Repensando a historicidade discursiva no exame das trajetórias políticas de dois líderes nacionalistas da Colômbia

Rethinking discursive historicity by the examination of the political trajectories of two nationalist leaders of Colombia

Resumos

O trabalho parte do exame de textos literários e biográficos que evocam aspectos das trajetórias do general Rafael Uribe Uribe (1859-1914) e do líder político Jorge Eliecer Gaitán (1898-1948). Gabriel García Márquez (1928-) se inspirou em Uribe para a criação do protagonista do romance "Cem Anos de Solidão". Márquez iniciou sua carreira de escritor em 1948, ano da morte de Gaitán. O assassinato desse líder resultou na chamada 'Violência', catalisada com a impossibilidade, no campo político colombiano, de transformação social de 'baixo para cima', proposta por Gaitán. É interessante considerar, na historicidade de mitos e práticas da cultura política colombiana, as circunstâncias singulares dos assassinatos desses dois líderes.

Trajetória política; Biografia; Memória social; Heróis nacionais; Discurso político; Análise de discurso


The article bears on the trajectories of General Rafael Uribe Uribe (1859-1914) and the political leader Jorge Eliecer Gaitán (1898-1948) by the examination of literary and biographic texts. Uribe inspired Gabriel García Márquez (1928-) in his creation of the protagonist of the novel "One Hundred Years of Solitude". Márquez's career as a writer began in 1948, when Gaitán died. The assassination of this leader resulted in the so-called 'Violence', catalyzed with the impossibility, within the Colombian political field, of the social transformation from the 'bottom up', proposed by Gaitán. It is interesting to examine in the historicity of myths and practices of Colombian political culture, the singular circumstances of the assassination of these two leaders.

Political trajectory; Biography; Social memory; National heroes; Political discourse; Discourse analysis


ARTIGOS

Priscila Faulhaber

Museu de Astronomia e Ciências Afins/Ministério da Ciência e Tecnologia. Rio de Janeiro, Rio de Janeiro, Brasil (priscila@mast.br)

RESUMO

O trabalho parte do exame de textos literários e biográficos que evocam aspectos das trajetórias do general Rafael Uribe Uribe (1859-1914) e do líder político Jorge Eliecer Gaitán (1898-1948). Gabriel García Márquez (1928-) se inspirou em Uribe para a criação do protagonista do romance "Cem Anos de Solidão". Márquez iniciou sua carreira de escritor em 1948, ano da morte de Gaitán. O assassinato desse líder resultou na chamada 'Violência', catalisada com a impossibilidade, no campo político colombiano, de transformação social de 'baixo para cima', proposta por Gaitán. É interessante considerar, na historicidade de mitos e práticas da cultura política colombiana, as circunstâncias singulares dos assassinatos desses dois líderes.

Palavras-chave: Trajetória política. Biografia. Memória social. Heróis nacionais. Discurso político. Análise de discurso.

ABSTRACT

The article bears on the trajectories of General Rafael Uribe Uribe (1859-1914) and the political leader Jorge Eliecer Gaitán (1898-1948) by the examination of literary and biographic texts. Uribe inspired Gabriel García Márquez (1928-) in his creation of the protagonist of the novel "One Hundred Years of Solitude". Márquez's career as a writer began in 1948, when Gaitán died. The assassination of this leader resulted in the so-called 'Violence', catalyzed with the impossibility, within the Colombian political field, of the social transformation from the 'bottom up', proposed by Gaitán. It is interesting to examine in the historicity of myths and practices of Colombian political culture, the singular circumstances of the assassination of these two leaders.

Keywords: Political trajectory. Biography. Social memory. National heroes. Political discourse. Discourse analysis.

INTRODUÇÃO

La historia se engalana con su nombre; El heroe se levanta ante los pueblos y Colombia llora la desaparición de Uribe (Jorge Gaitán, 1979).

Correlaciona-se no presente trabalho diferentes textos em que se apresenta o discurso social na Colômbia, a partir do exame do engajamento intelectual de pensadores e políticos. Documentos escritos da história diplomática reavivaram meu interesse pela história social da Colômbia, despertado muitos anos antes, na minha adolescência, quando li pela primeira vez "Cem Anos de Solidão" (1982b), de Gabriel García Márquez (1928-). Já naquele tempo esse livro levou-me a perguntar sobre as semelhanças do Brasil e da Colômbia. Antropólogos colombianos e americanistas com os quais interagi, em 1994, quando realizei pesquisas bibliográficas e documentais em Bogotá (março), França e Inglaterra (abril-julho), confirmaram a impressão inicial de que Rafael Uribe Uribe (1859-1914), Jorge Eliecer Gaitán (1898-1948) e García Márquez seriam paradigmáticos para a compreensão da cultura política na Colômbia. O corpus analítico do presente artigo fez valer a tentativa de compreensão histórica da cultura política desse país, tomada aqui como alteridade, uma vez que foi constituída durante um projeto de pesquisa financiado por um órgão de fomento à pesquisa científica no Brasil.

O escritor colombiano Gabriel García Márquez declaradamente se inspirou no general Uribe Uribe para criar a personagem do coronel Aureliano Buendía, que protagoniza o seu célebre romance "Cem Anos de Solidão". A leitura desse romance leva a cotejar a biografia do general Uribe com a do líder político engajado nas lutas socialistas, Jorge Gaitán, assassinado quando Márquez iniciava sua carreira de escritor, e também presente na sua obra. Embora não caiba nos limites deste artigo esmiuçar uma análise da biografia ou da narrativa de García Márquez, nota-se que ele constrói o texto literário a partir do exame histórico de figuras paradigmáticas da fragmentação do engajamento intelectual em um campo de luta pelo poder. A formulação ficcional circunscrita no gênero caracterizado como 'realismo mágico', no texto de Márquez, nutre-se da história e, sendo assim, está, de alguma forma, relacionada com uma prática discursiva voltada à construção de uma visão socializante da ideia de nacionalismo na Colômbia, de um ponto de vista investigativo, dada sua própria inserção social enquanto 'escritor engajado'.

A intenção do presente trabalho é mostrar, a partir da reflexão sobre alguns pontos marcantes das trajetórias do general Uribe Uribe e de Jorge Gaitán, como implicaram a sua heroificação pela biografia, como uma forma de mitificação de aspectos de seus discursos e de suas práticas políticas que expressavam uma perspectiva de mudança social na Colômbia. O fim dado a esses líderes, cujas trajetórias resultaram em assassinato, mostra o fracasso de suas intenções expressas, sendo, ao meu ver, a produção do mito do herói o outro lado das particularidades neste país do 'mito do Estado' (Cassirer, 1976), apresentado, no plano discursivo, com a construção dos limites da possibilidade de projetos de reforma social.

Examinando as biografias de Uribe Uribe e Gaitán como trajetórias sociais e históricas, vemos que ambos certamente construíram seu pensamento vinculados a interesses de grupos sociais e, como líderes políticos, transformaram seus discursos em obras impressas, imersos nos movimentos e na ação política. Não eram autores especializados em disciplinas científicas, mas produtores de discursos políticos engajados na construção da ideologia nacionalista na Colômbia. Por este comprometimento, foram vítimas da mais cruel forma de exclusão, ou seja, o assassinato. García Márquez, um escritor engajado na ideologia de construção nacional, transformou estas figuras em personagens da história de Macondo, que, por ser uma construção ficcional, extrapola os limites nacionais colombianos e permite que leitores de outras nacionalidades se identifiquem com seu texto, como se a sua narrativa pudesse dizer respeito a outras formações nacionais, como o Brasil.

Na pesquisa biográfica, as trajetórias sociais se situam em redes inter-relacionadas, em constelações, pensadas em termos de suas conexões no contexto mais vasto do devir histórico. Ainda que, qualquer que seja a sociedade, certa margem de liberdade se ofereça à decisão individual, "este contexto possui suas próprias leis, mais possantes que a vontade ou o projeto de um só indivíduo isolado no interior da sociedade" (Elias, 1991, p. 88). As tramas sociais configuram-se, assim, em campos de possibilidades históricas nos quais se norteiam os indivíduos na construção de suas condutas (Chartier, 1991, p. 18). A biografia produz deslocamentos de sentido constitutivos da memória social, referentes à exaltação do engajamento do biografado em termos de sua mitificação. A etnografia descreve a cultura de uma determinada etnia em sua singularidade. Tomam-se estes atores significativos para a crítica do discurso de construção nacional na Colômbia, considerando aqui, especificamente, o ideário da cidadania, entendida como um discurso de direitos civis e jurídicos. Focalizarei especificamente as aporias discursivas sobre cidadania no caso dos dois atores evidenciados, sendo que em Uribe Uribe cabe a crítica do indigenismo e em Gaitán, do populismo.

BIOGRAFIA E TRAJETÓRIA SOCIAL DE URIBE URIBE

A leitura da biografia de Rafael Uribe Uribe leva a indagações sobre aspectos da sua trajetória social no contexto histórico, relacionados com a interpretação de seu engajamento na construção nacional1 1 O conhecimento da existência deste controvertido general aconteceu como um dos desdobramentos de uma pesquisa antropológica sobre a fronteira Brasil-Colômbia, que partiu da tentativa de analisar depoimentos dos índios Miranha, os quais se deslocaram para o Brasil na época da economia da borracha, sobre sua exploração por caucheiros colombianos e peruanos (Faulhaber, 1987). Não cabe, no entanto, no escopo deste artigo, entrar em detalhes sobre a correlação entre os depoimentos dos índios Miranha, o etnocídio, a exploração da borracha e a história da fronteira Brasil-Colômbia, celebrizados por Sir Roger Casement, cônsul da Inglaterra no Peru, perante o Parlamento britânico em 1912 (Hardenburg, 1912), e recentemente estudados no lado colombiano por diversos autores (Taussig, 1987; Pineda, 1993). . Destaca-se aqui o seu pensamento indigenista, como ministro no governo do general Rafael Reyes (1904-1909). O movimento civilista e nacionalista liderado por Uribe Uribe fez com que os 'caucheiros' envolvidos na rede de exploração do trabalho de extração da borracha fossem submetidos a processo de 'traição à Pátria', tendo respondido a inquérito policial. O próprio presidente Reyes, vinculado à exploração conduzida por 'caucheiros', foi indiciado neste processo. Pouco depois, Uribe Uribe foi assassinado em circunstâncias pouco esclarecidas.

No tocante às formulações sobre índios e fronteiras nacionais, a figura de Uribe, que vejo como uma personagem heroificada em narrativas sobre os primeiros tempos do indigenismo nacionalista colombiano, tem semelhanças com o tenente-coronel Cândido Rondon (1865-1958), tratado como um marco da fundação do indigenismo de Estado no Brasil. Entre tais semelhanças, deve-se destacar o fato de que ambos viam os índios - etnocentricamente - como passíveis de servir aos 'interesses nacionais'. Na prática, a consecução de ações visando a assimilação de indígenas pretendia a sua utilização como mão-de-obra barata, servindo, ainda, como pretexto para a exploração econômica dos territórios indígenas.

Uribe Uribe nasceu na região provinciana e conservadora de Antióquia e morreu assassinado, poucos anos antes do celebrado centenário da Independência da Colômbia. Em sua genealogia, registra-se que descende, em linha direta, tanto materna quanto paterna, do basco Martín de Uribe Echavarría (1656-?). Construiu sua trajetória de caudilho a partir de uma formação letrada infundida por sua própria mãe, e pelos círculos intelectuais da província, engajados na representação política da economia cafeeira. Juan Lozano y Lozano configura Uribe, no prólogo de sua biografia exaustiva, como "herói nacional dos que nascem apenas uma vez a cada século" (Santa, 1962, p. 8). Sobrevivente da Guerra dos Mil Dias ou Três Anos (1899-1902), construiu nela uma reputação que passou a ser exercida na política interna e externa nacional, tendo atuado como diplomata do governo do general Reyes, quando se envolveu com assuntos indígenas. Constituiu uma rede Liberal e um Bloco Operário, provocando divergências entre seus correligionários no Partido Liberal (Bethell, 1989, p. 649). Com efusiva energia intelectual, publicou sobre café, incremento de pasto cultivado, banana, índios e fronteiras.

A identificação das diferentes posições ocupadas por Uribe Uribe, das sucessivas emboscadas e dos atentados - literalmente - com os quais se deparou em sua trajetória, implica a colocação em questão da "filosofia de identidade" que sustenta o "modelo da apresentação de si", tornado oficial nos registros biográficos (Bourdieu, 1998, p. 188).

A leitura de sua biografia encontra uma "série de posições sucessivamente ocupadas" no cenário político colombiano, "sujeito a incessantes transformações". Trata-se, assim, de focalizar aspectos do seu itinerário, ou seja, diferentes pontos da sua trajetória na "estrutura da rede" social. "Os acontecimentos biográficos se definem como colocações e deslocamentos" localizados e distribuídos "nos diferentes estados sucessivos da estrutura de distribuição das diferentes espécies de capital" simbólico e político (Bourdieu, 1998, p. 190).

No breviário biográfico sancionado como prólogo das "Obras Seletas" de Uribe Uribe (1979), Eastman, expoente do liberalismo e presidente da Câmara de Representantes da Colômbia em 1979, lembra que Uribe recebeu seu batismo de fogo na batalha de Los Llanos, em 31 de agosto de 1876, quando, com 17 anos, feriu gravemente seu joelho esquerdo. Identifico na exaltação deste episódio emblemático a edificação do herói enquanto mito político. A partir de então, Uribe teria atuado "como revolucionário integral, aproveitando as prisões como pausas e retomando o combate com homens e em lugares imprevistos" (Eastman, 1979a, p. 11).

Uribe estudou Direito, alcançado sucesso no meio universitário da capital colombiana. Retornando à terra natal, ensinou Direito Constitucional e Economia Política na Universidade de Antióquia. Renunciou ao cargo de procurador de Estado afirmando não tolerar a violação da lei. Em 1884, ano da eleição de Rafael Núñez como presidente da República, fundou o Jornal "El Trabajo", voltando-se às polêmicas ideológicas por meio da imprensa (Santa, 1962, p. 49), num ambiente que desembocou na revolução de 1885, considerada um trauma para o radicalismo. O sistema centralista do presidente Núñez logrou a unidade política nacional, forçando, no entanto, os cidadãos a pagarem o preço do despotismo, da arbitrariedade e da perseguição política. O conservadorismo do Partido Nacional feriu mortalmente as esperanças de liberdade traçadas na Constituição de 1863, cujos princípios só puderam ser retomados em 1910, já em um momento de ausência de perspectivas para uma construção nacional (Santa, 1962, p. 55).

Uribe Uribe, tributário da causa radical, aos 27 anos, já como coronel, fuzilou um soldado sob suas ordens que liderava um levante conservador. Preso durante dez meses em Medellín, enfrentou um processo judiciário, valendo-se de sua oratória para convencer os jurados a absolvê-lo, uma vez que matara o insurreto por motivo de infração à hierarquia, e a aceitarem a tese da legítima defesa. Conclamou-os a declará-lo inocente, convencendo-os de que ele seria mais útil como cidadão livre do que como galeota, fazendo valer sua crença nos valores nacionais: "Podéis devolver a mi mano la pluma puesta al servicio del progresso nacional o reemplazarla por el pico del presidiario" (Santa, 1962, p. 77).

Uribe assumiu desde a juventude posições ideológicas engajadas no debate entre liberalismo e clericalismo que antecedeu a Guerra dos Mil Dias. Apresentando-se com uma perspectiva humanitária e defensora do livre exame da consciência, em 1898, publicou uma carta aberta no jornal "El Autonomista", dirigida ao arcebispo de Bogotá, Bernardo Herrrera Restrepo. Solicitava-lhe apoio às reformas sociais e políticas reclamadas pelo liberalismo. Considerando superada a postura anticlerical dentro deste partido, reconhecia o contrapeso das forças do Partido Liberal e da Igreja.

Inicialmente, via a guerra como um caminho para obter as liberdades individuais a serem mantidas em tempos de paz. Após o triunfo da batalha de Peralonso, o prestígio de Uribe cresceu minuto a minuto. Inclusive nas fileiras inimigas temiam-no e admiravam-no. Os próprios soldados, que acreditavam que "a própria morte o respeitava, adoravam-no com devoção". Professou uma via messiânica, levantando as armas com discursos inflamados em campo de batalha. Encarnou a concepção do herói wagneriano, ungido pelo óleo de seu próprio sangue (Santa, 1962, p. 196).

Os liberais, transfigurados em revolucionários, cerraram fileiras contra os conservadores. Em 1899, Uribe, o mais prestigioso condutor da revolução, proclamou, em Pamplona, o sexagenário general Vargas Santos como presidente provisório da República e Supremo Diretor da Guerra, oferecendo-lhe obediência e submissão absoluta. A este general atribuíram, posteriormente, erros estratégicos que resultaram na derrota. Esta também se deu pelas rivalidades entre Benjamim Herrera e Uribe, que divergiram desde seu primeiro encontro. Habituados ambos a mandar, e não a obedecer, um não aceitava a sujeição ao outro. Oficiais invejosos fomentaram essas divergências (Santa, 1962, p. 201).

Uribe passou a defender a opção racional. Afirmou, com um olhar de sociólogo, no Discurso de Cúcuta, de 1900, que lutava para voltar ao trabalho para que "o seu fruto o arrebatassem os ladrões", "com o imposto excessivo, ou com as artes do ágio do papel moeda" (Urueta, 1904, p. 57). Visualizava que a Guerra dos Mil Dias, para as elites colombianas, se afigurava, antes de tudo, como um negócio lucrativo.

O fracasso da aventura revolucionária se configurou, por ausência de definição de um plano estratégico pelo generalíssimo Vargas Santos, a partir da derrota do Combate de Palonegro, em maio de 1900. A revolução foi reduzida a um exército de desvalidos. Persuadido da esterilidade de prosseguir em tais condições, Uribe Uribe assinou, a seguir, um manifesto dirigido ao primeiro e ao quarto exércitos, afirmando que abandonaria o campo de batalha, em retirada pacífica, "em busca de melhor teatro para continuar a contenda". Dirigiu-se para a costa atlântica, seguido por duzentos homens. O generalíssimo Vargas Santos aproveitou sua saída para declará-lo "desertor do exército". Afirmou-se que Uribe saía em fuga para o exterior com dinheiro tomado, ilicitamente, da revolução (Santa, 1962, p. 135).

O golpe de Estado proclamado em 31 de julho de 1900 representou a derrota do heroísmo nacionalista, substituído, com a queda de Núñez, pelo governo dos "conservadores históricos", engrossado por liberais recalcitrantes. A postura de Uribe, de "busca de um melhor teatro", configurou-se não tanto como uma deserção, como apontado, mas como uma tentativa de trilhar a via da participação política. O fim da guerra, todavia, foi postergado em benefício dos interesses dos que, negociando com a guerra, dela se utilizavam para enriquecer com a especulação (Santa, 1962, p. 241).

Na chegada de Uribe à costa atlântica, os liberais mostraram-se inicialmente pouco propensos a engrossar as fileiras do exército revolucionário, circulando a versão de que quem ali estava não era Uribe Uribe, mas um aventureiro que tomava seu nome. O biógrafo defende, no entanto, a ideia de que não se tratava de um impostor, mas de um "líder libertário só e derrotado" (Santa, 1962, p. 243). Continuaram as contendas. Uribe rivalizou e aliou-se a Herrera. Multiplicava-se, aparecendo em lugares onde nunca esteve. Um episódio em Lorica resultou paradigmático do papel do mito na heroificação: sitiado pelos quatro pontos cardeais por tropas inimigas, aparentemente nenhuma saída restava a Uribe enquanto organizava a evacuação de seus homens. Às dez da noite, sem que os inimigos o notassem, deslizou sigilosamente e silenciosamente entre as sombras, por uma vereda só conhecida por ele, seguido por seus soldados. Esta operação levou as tropas inimigas a se enfrentarem mutuamente, acreditando cada uma combater contra os exércitos de Uribe. Em Caracoli, a muitos quilômetros de distância, são e salvo, Uribe obteve munição, porém ainda insuficiente. Após este feito, a caminho de Rioacha, Uribe recebeu uma carta de Vargas Santos propondo reconciliação, que foi mantida por um breve período, pois, logo a seguir, Vargas Santos voltou a persegui-lo. Uribe viajou, então, para os Estados Unidos, em fevereiro de 1901, para buscar ajuda, a ele negada. Pronunciou-se contra a influência americana na questão do Panamá.

Uribe formalizou sua primeira tentativa de negociação de paz com o governo colombiano solicitando em troca o restabelecimento da ordem pública, a libertação dos presos políticos, o indulto e a liberdade de imprensa. O presidente Marroquín, de Bogotá, alimentado pela indústria da guerra, recusou peremptoriamente a negociação. Persuadia a Uribe a ideia de que "com a derrota, o vencedor colocaria o pé sobre o dragão morto, e os revolucionários seriam tratados como escravos" (Santa, 1962). Em 1º de agosto de 1902, publicou em Curacao uma "Declaração", na qual reivindicava que os liberais fossem tratados como cidadãos, propondo o caminho da representação nacional (Urueta, 1904, p. 345).

A 'paz com garantias', no entanto, só se conquistou na terceira tentativa, quando se firmou o convênio de 24 de outubro de 1902, subscrito por Uribe, guiado pela convicção das perspectivas de uma paz duradoura. Ao voltar a Bogotá, a partir de 1902, trocou a espada pela caneta. Até sua morte, sua atuação foi pautada em termos da defesa do ideal da construção da normalidade institucional. Desempenhou vários papéis, como parlamentar e diplomata, como investigador e conferencista, como professor e jornalista.

Em 1903, com apoio e estímulo americano, o Panamá se separou da Colômbia. Uribe protestou na Praça Bolívar, diante da multidão, contra a presença da armada e dos canhões americanos na costa panamenha. Considerava a 'independência' panamenha como perda de território colombiano. Os americanos, personificados pelo presidente Theodor Roosevelt, viram a questão do istmo como conquista. Nas palavras do presidente americano, "I took Panama"(Tascón, 1953, p. 219).

Uribe atuou como ideólogo da renovação do cenário político no Estado nacional nascente na Colômbia. Em sua célebre conferência de 1907, no Teatro Nacional de Bogotá, a qual versou sobre o "Socialismo de Estado", propôs uma reforma de "cima para baixo".

O prefaciador de suas obras completas lembrou que, no contexto do fascismo, as reformas implantadas de um ângulo distorcido serviram exatamente a objetivos contrários do proposto em termos de um discurso democrático (Eastman, 1979a, p. 14). Nos embates colombianos, no entanto, a organização de uma República democrática passava pela ideia da defesa das liberdades dos cidadãos e da implantação de uma ordem social inspirada no modelo do liberalismo clássico. Uribe Uribe autoproclamou-se "socialista de Estado", expressando uma crítica interna àquele modelo dentro de um partido em crise, crise esta que atravessara sucessivas guerras civis. O projeto de um Estado unitário, inspirado na utopia federalista, no entanto, lhe custou caro. As bases para a implantação de uma República federativa estavam minadas pelas disputas entre oligarquias representantes de interesses regionais (Eastman, 1979a, p. 14).

Participou, a partir de 1905, do Ministério Plenipotenciário do governo Reyes, do Partido Conservador, aderindo a suas palavras conciliadoras e a seu programa de tolerância, paz e trabalho. Uribe atuou nesta época como diplomata junto aos governos do Chile, da Argentina e do Brasil, seguindo a mesma postura internacionalista adotada quanto à questão do Panamá, aplicando seu conhecimento das fronteiras que percorrera como homem de armas (Santa, 1962).

Por seu apoio a Reyes e por sua participação em seu governo, os correligionários de Uribe o acusaram de oportunismo (Bethell, 1989, p. 649). Muitas acusações levantaram-se contra o fato de ter colaborado com o governo Reyes quando retornou à Câmara de Representantes, em 1909, e, posteriormente, em 1911, ano em que fundou o Diário "El Liberal", eleito para o Senado pelos Departamentos de Antióquia e Caldas. No dia 7 de agosto de 1914, sessenta e oito dias antes da morte de Uribe, o conservador José Vicente Concha ascendeu ao poder (Eastman, 1979a, p. 16).

Seria simplismo reiterar a oposição entre liberais e conservadores, uma vez que se indicaram pontos em comum nas práticas de membros de cada um destes partidos, como a busca do eleitorado rural como base política e a coordenação da atividade política por um grupo urbano profissional (Abel, 1987, p. 16). Como eram provenientes da mesma elite que controlava a política, cada uma das duas vertentes poderia representar simultaneamente os proprietários de terra, comerciantes e profissionais liberais. Foi registrada tanto a defesa do livre comércio por conservadores quanto do protecionismo seletivo por liberais, observando-se que o principal foco das lealdades políticas e filiações partidárias era o grupo de família, fazendo-se, assim, prevalecer a ética clientelística no sentido da manutenção do patrimônio.

A Igreja, valendo-se de sua imagem de instituição firmemente enraizada no passado da Colômbia (Abel, 1987, p. 29), apresentou-se, entre 1890 e 1915, como força progressista e unificadora, pois promoveria a autoidentificação das tradições locais, ao mesmo tempo em que mantinha um compromisso tático com a elite liberal em termos de uma política de boa convivência entre os mais exaltados. Essa aliança entre o Estado e a Igreja contribuiu para a manutenção de um domínio conservador (Abel, 1987, p. 59), que oscilou entre uma atitude paternalista e uma estrita posição de lei e ordem.

Os liberais e os conservadores representavam posições complementares, ainda que contraditórias, no jogo político de preservação do poder nas mãos das elites. A título comparativo, cabe lembrar a alusão bíblica do romance de Machado de Assis sobre os dois irmãos Esaú e Jacó, brigando no ventre materno, referente a embates engendrados no surgimento da República no Brasil, posterior ao da Colômbia.

No plano colombiano, traçou-se um paralelo entre Uribe Uribe e Benjamin Herrera, outro expoente do liberalismo colombiano, que se destacou mais como soldado, embora também tenha construído uma carreira política em tempos de paz, e incentivado, ao fim de sua vida (antes de sua morte, em 1924), a criação da Universidade Livre. Apesar de ter sido rival de Uribe, muitos o viram como seu "camarada nas grandes contendas", pois ambos reviveram o lema bolivariano da "pátria acima dos partidos" - famosa frase de Herrera ao capitular, após quebrar a própria espada sobre os joelhos. Por este lema, precisaram depor os orgulhos cultivados por muitos, inclusive no interior das próprias fileiras liberais (Eastman, 1979a, p. 12).

As rivalidades inerentes às carreiras políticas individuais de Uribe e Herrera dentro do Partido Liberal geraram tensões apontadas como um dos motivos do atentado que resultou na morte de Uribe Uribe (Bethell, 1989, p. 649). Outras fontes indicam que as campanhas de calúnia e difamação visavam atingir sua imagem enquanto símbolo da expectativa de consolidação da paz republicana, em um movimento de renovação dentro do Partido Liberal. Na investigação sobre sua morte, realizada mediante processo no qual depuseram pessoas de diversos níveis sociais e culturais, não se inferiram provas de que os assassinos houvessem cumprido ordens de algum mandante específico. Segundo consta, os artesãos Leovigildo Galarza e Jesús Carvajal, que o assassinaram ao meio dia de 15 de outubro de 1914, agiram conforme seus próprios impulsos, em um plano urdido depois de uma noite de jogo e bebedeira (Santa, 1962). Agiram por sugestão do ambiente cultivado pelos oradores e articulistas hostis a Uribe Uribe, que lograram suscitar contra ele o ódio dentro das fileiras populares do próprio liberalismo bogotano, às quais teriam pertencido Galarza e Carvajal (Eastman, 1979a, p. 8). Como em outros assassinatos políticos, produziu-se no processo a ocultação dos mandantes.

Outra interpretação de sua morte evocou a acusação de cumplicidade dos jesuítas no assassinato, uma vez que os mesmos influíam deliberadamente no processo político, pendendo a balança para o conservadorismo (Abel, 1987, p. 35). Outra interpretação ainda leva a refletir sobre os embates fronteiriços, relacionados com os índios e os mitos nacionais.

O GENERAL URIBE URIBE: ENTRE A DIPLOMACIA, A CONSTRUÇÃO NACIONAL E O INDIGENISMO

O general Uribe Uribe (1979) relacionava a história econômica colombiana com os problemas sociais. Considerado, nos dias de hoje, uma vertente progressista do pensamento liberal, propunha meios pacíficos para lidar com os índios face à visão de conservadores e liberais, segundo a qual os 'selvagens' representariam uma ameaça. No entanto, apesar de seu discurso político progressista, as alianças entre conservadores e liberais não foram impedidas de contribuir para a perpetuação de interesses patrimonialistas.

A defesa dos aborígenes no discurso e nas práticas da vertente liberal civilista representada por Uribe Uribe estava associada à ideia de construção nacional na Colômbia. Em seu livro "Por La America del Sur" (Uribe Uribe, 1907a), tratou de ampla variedade de temas, entre os quais, antropologia e fronteira. Em sua memória sobre a "redução dos selvagens", assinada em fevereiro de 1907, no Rio de Janeiro, Uribe Uribe (1979, p. 309) observou que apenas uma reduzida parte central da Colômbia estaria ocupada pela população cristã, estando em poder do 'selvagem' toda a circunferência, assim como também as regiões mais férteis. Pregou uma solução pacífica no sentido da proteção daqueles que viviam na fronteira e de "procurar ensinar os índios a cumprir deveres patrióticos" (Uribe Uribe, 1979, p. 310), e impedir que "se lhes assassine, explore, corrompa e escravize por estrangeiros desalmados". Defendeu a ideia de que a formação da nacionalidade justificaria a necessidade e conveniência da 'redução', que significaria a conquista de territórios e braços úteis.

Evidencia-se aqui o paralelo entre as figuras de Uribe Uribe e do tenente coronel Cândido Mariano da Silva Rondon (1865-1958), pois ambas se constroem a partir de narrativas de fundação de Estados nacionais, as quais tiveram como outra face uma dissociação entre as estratégias de legitimação do Estado, através da incorporação da mão-de-obra e dos territórios indígenas, ao mesmo tempo em que se apresentava um discurso que destacava a positividade do reconhecimento dos direitos dos cidadãos indígenas2 2 O paralelo entre Rondon e Uribe Uribe tem uma significação especial para os índios que foram deslocados através da fronteira Brasil-Colômbia, e reterritorializados no Brasil nas primeiras décadas do século XX, época que corresponde à fundação e implantação do Serviço de Proteção aos Índios (SPI) (Faulhaber, 1996). . A construção da imagem de Uribe como herói militar que formulou sua carreira política como artífice da paz se distingue, no entanto, da figura de um Rondon telegrafista, participando da ideologia de construção nacional com um discurso de pacificação, domesticação e civilização dos índios.

Em sua formulação de um discurso indigenista, Uribe Uribe tomou como exemplo o Putumayo (Uribe Uribe, 1979, p. 310). Como os colombianos não tinham definido nenhuma política de ocupação para a área, os peruanos aproveitaram o trabalho dos índios no caucho para a conquista do território. No entanto, considerava que a casa Arana (Peruvian Amazon Rubber Company), companhia peruana com sede na Inglaterra que explorava comercialmente a goma elástica amazônica, enganava os índios, habituando-os ao álcool, fazendo-os matarem-se entre si, reduzindo-os à escravidão, "arrebatando a estes filhos da Colômbia para mandar-lhes a Iquitos e outras colônias usurpadas", onde eram vendidos. Para Uribe, o governo colombiano deveria definir uma política de redução e colonização do Caquetá para que os índios continuassem trabalhando ali na extração do caucho. Esta política iria representar, segundo ele, a conquista de 2/3 do território nacional, que não poderia ser povoado sem tomar conhecimento dos "bárbaros" (sic), assim como a aquisição de 300.000 braços para as indústrias extrativas, pastoris e de transportes, braços estes que seriam também os mais próprios para a defesa das fronteiras (Uribe Uribe, 1979, p. 330). Os habitantes nacionais deveriam ser conduzidos, concomitantemente, para povoar as regiões mais desertas ou aquelas nas quais se poderia ir aproveitando o conhecimento dos índios. A importação de colonos estrangeiros não era descartada, embora fosse colocada em segundo plano.

Na leitura deste discurso de intervenção do Estado sobre a colonização, observe-se a inversão estabelecida face ao discurso colonial: embora visto como 'homem selvagem' (a própria expressão indica um oxímoro), o índio é mostrado como 'bárbaro' e deixa de ser considerado como contrário à civilização à medida em que for transformado em trabalhador nativo, útil à construção nacional, tanto como força de trabalho quanto por seu conhecimento de territórios desconhecidos pelos atores nacionais, tornando-se, assim, aos olhos de Uribe, passíveis de nacionalização.

A posição de Uribe Uribe sobre os indígenas foi ambígua e contraditória. Interessava-lhe vincular os índios à produção nacional. Caso não fosse possível realizar tal vinculação por meios pacíficos, seria cabível, no seu entender, o uso da força. A 'redução dos selvagens' deveria ser alcançada mediante um procedimento compulsivo que Uribe Uribe denominou "máquina para reduzir indígena", máquina esta composta por três mecanismos: a colonização militar, o corpo de intérpretes e a persuasão missionária (Uribe Uribe, 1955, p. 161).

Diferentemente de Rondon, a atuação de Uribe Uribe não se traduziu em uma política indigenista de Estado, entre outras razões, porque compartilhava a concepção predominante entre as elites colombianas, segundo a qual os indígenas não tinham um papel significativo na formação da nação por seu caráter "infrapatria" e porque não teriam logrado "transpor a idade da pedra" (Uribe Uribe, 1907b, p. 18).

No Brasil, de modo diferente, a política indigenista consubstanciou-se por meio da criação do Serviço de Proteção aos Índios e Localização de Trabalhadores Nacionais. No discurso indigenista formulado com a fundação desta instituição no Brasil, a categoria 'índio' foi concebida como uma transição para a categoria 'trabalhador nacional' (Lima, 1995, p. 220).

No Brasil, a sujeição dos índios foi produzida em um processo de integração à instituição política, representada como nacional, através de dispositivos de poder que transformaram as formas de organização anteriormente existentes com o objetivo de 'assimilar', quando possível, a mão-de-obra indígena. Caso a apropriação de suas terras e de sua força de trabalho não resultasse em assimilação, tratava-se de considerar os índios e suas terras como 'integrados'. Ainda que tal discurso sobre a 'integração' fosse, de fato, uma forma de justificar a subordinação dos índios por parte de representantes da sociedade nacional, sendo a sua estigmatização como "cidadãos de segunda classe" (Cardoso de Oliveira, 1978) uma forma de forçar que consentissem a exploração de sua força de trabalho e de suas terras. Isto implicou a territorialização de agentes da sociedade nacional com a interveniência dos poderes de Estado (Oliveira, 1998). Esta política tinha por objetivo substituir a "tutela orfanológica" dos índios - condicionada pelo regime escravista - pela tutela indigenista dos "cidadãos nacionais", mantida por um serviço instituído pelo Estado que servia para deslegitimar a territorialidade indígena (Faulhaber, 2003). No caso brasileiro, os índios tiveram uma significação especial para a salvaguarda do território nacional, sendo incorporados às forças armadas como "guardas de fronteira" (Zárate, 2008, p. 272). Os índios que vivem em área de fronteira no Brasil até os dias de hoje apresentam-se como conhecedores das linhas de fronteira (Faulhaber, 1991).

Como diplomata, Uribe Uribe tomou partido contra os caucheiros colombianos que agiam como intermediários dos interesses da Casa Arana. Os intermediários colombianos trabalhavam para a Casa Arana e agiram em proveito dos interesses peruanos. Uribe Uribe participou de um movimento civilista que resultou na instauração do processo criminal contra os envolvidos com um 'sindicato do crime', que 'traficaram' (comercializaram clandestinamente) parte do território colombiano. Neste processo, desvendou-se uma teia de cumplicidades entre caucheiros colombianos que agiam como intermediários da Casa Arana. Como o General Reyes construíra sua trajetória a partir da exploração caucheira (Reyes, 1986), quando se tornou presidente, ascendeu ao poder uma rede de relações também ligada ao caucho. Esta rede se estendia a ministros de Estado, acusados, juntamente com Reyes, de "Traição à Pátria".

Em um artigo sobre as vítimas da Casa Arana, Uribe Uribe (1907b, p. 41-53) indicou que a ação de estabelecimentos comerciais como a Casa Arana tomava por regra os atos de etnocídio, genocídio e ultraje aos valores nacionais, chegando o assassínio deliberado a atingir indivíduos, famílias e grupos sociais que viessem a representar empecilhos à consecução de seus interesses. Uribe Uribe (1907b, p. 52) registrou a morte por envenenamento do colombiano Benjamin Larrañaga, que tinha favorecido a entrada de peruanos no Putumayo. Contrário aos procedimentos de seu sócio J. C. Arana, foi substituído por Juan Batista Vega, que também traiu os interesses de seu país. Com a colaboração deste sócio colombiano, a casa Arana atingiu seus objetivos de dominar o território e os negócios. Esta empresa se supriu de fundos no Caquetá para estabelecer uma sucursal em Manaus, a qual o próprio Arana gerenciou, substituído posteriormente pelo brasileiro J. G. de Araújo. Tratava-se de estender seu comércio a outros afluentes do Amazonas, e tentar vender em Nova York os seus pretendidos direitos, com o objetivo de acobertar qualquer contingência sobre a 'soberania' (sic) dos territórios litigiosos.

Questões estratégicas vinham sendo consideradas pelos órgãos consulares de muitos países da América e Europa3 3 Public Record Office, Londres, Inglaterra (doravante PRO). Correspondence respecting the affaires of South and Central America, 1906-1920 (FO -420:237-257). . Em 1906, as relações diplomáticas entre Reyes e os Estados Unidos eram comentadas nos documentos consulares ingleses, tendo sido observado que seria importante para Washington que Reyes mantivesse controle sobre o país4 4 A Colômbia estaria reivindicando aos Estados Unidos uma indenização política pela perda do Panamá. PRO. Carta do vice-cônsul Dickson ao Chanceler Eduard Grey, 6 jun. e 25 jul. 1906. , citando-se atitudes personalistas de Reyes e o impacto da crise política sobre a estabilidade do ministro Calderón, elogiado pelo vice-cônsul inglês. Estava no poder o Partido Conservador, clerical, com oposição do Partido Liberal. Segundo opinião do diplomata inglês, o clamor, contudo, saía da esfera das disputas partidárias e os sentimentos hostis se dirigiam diretamente contra Reyes. Levantou-se a possibilidade que Reyes levasse o cônsul britânico a suspeitar que o seu sucessor suspenderia a concessão à Casa Cano5 5 PRO. Carta do vice-cônsul Dickson ao Chanceler Eduard Grey, nov. 1906. .

Os peruanos consideravam que a atuação da Casa Arana justificava o reconhecimento do território como peruano, ao passo que os colombianos se aproveitavam da polêmica em torno da violência e do extermínio dos índios para contestar a autoridade dos peruanos sobre a região, que era matéria de litígio entre os dois países. A imprensa peruana veiculou informações oficiosas sobre o triunfo do Barão de Rio Branco em conseguir que a Colômbia abandonasse a teoria dos limites coloniais, e de que o general Uribe Uribe teria dado uma indispensável contribuição para que a Colômbia renunciasse6 6 Arquivo Histórico do Itamaraty, Rio de Janeiro, Brasil (doravante AHI). "El Comércio", Lima, 10 out. 1906, MDBLP - O. . Os comerciantes peruanos negociavam com um sindicato americano em Nova York, por intermédio de Abel Alarco, ex-cônsul peruano na Amazônia e chefe da Casa Arana em Manaus, por 500 dólares, a venda de terras no Igaraparaná, em Chorrera, em Caraparaná e à margem do Putumayo7 7 AHI. Telegrama remetido pelo Ministro da Colômbia ao general Uribe Uribe sobre um telegrama enviado pelo governador do estado do Amazonas, Manaus, 27 maio 1907. . Os meios diplomáticos brasileiros consideraram suspeita a participação do sindicato americano nas negociatas de Arana Hermano & Comp. Extrapolavam-se, assim, os conflitos fronteiriços, uma vez que os mesmos faziam parte das tramas e das transações de agentes das metrópoles, como encenado pelo jovem Brecht na peça "Na selva das cidades", conforme lembrado por Taussig (1987). Ainda que a busca de ajuda externa nos Estados Unidos se registrasse dentro do espírito de solidariedade entre as nações americanas, em várias outras situações. O próprio Uribe Uribe buscara em 1901 ajuda financeira em Nova York. Mas, no caso do Putumayo, as negociatas eram mal vistas pelos representantes diplomáticos. Rio Branco8 8 AHI. NTE, 27 maio 1907 (282/3/17). considerou "comprometedora e perigosa" a vizinhança de colônias estabelecidas onde era conhecida a existência de um sindicato estrangeiro.

Na correlação entre as diferentes posições ocupadas pelo protagonista, trata-se de distinguir as concepções militar e diplomática, sendo que, no pensamento e nas práticas indigenistas, verifica-se uma imbricação destes diferentes campos. Uribe Uribe participou na controvérsia sobre a fronteira da Colômbia com o Peru e o Brasil, com um discurso 'civilista', destacando os ideais nacionais colombianos diante dos Estados nacionais fronteiriços, ao passo que se registravam acusações entre colombianos, brasileiros e peruanos a respeito da escravidão e comercialização clandestina de índios escravizados. Atuando como representante do Estado colombiano, fazia valer suas próprias convicções. Na leitura destes registros, depreende-se que o assassinato de Uribe Uribe ocorreu na suíte dos episódios relacionados com o processo criminal que envolveu a acusação de eminentes personalidades colombianas de 'traição à pátria'.

O discurso contra a escravidão indígena aparece associado à preocupação de 'colonização das fronteiras' e de demarcação de territórios considerados não suficientemente estruturados. Nestes embates, se evidenciou uma rede de envolvimentos que perpassava a estrutura social tanto dos caucheiros exploradores dos índios quanto de ministros de Estado e do próprio presidente, que atuavam como intermediários de interesses econômicos contrários aos interesses nacionais colombianos. A argumentação sobre a defesa da soberania de tal ou qual país construiu-se dentro de uma trama social que produziu o ocultamento dos mecanismos de dominação colocados em prática por uma rede de poder, a qual atravessava as fronteiras nacionais9 9 Para uma discussão sobre a teoria da soberania, consultar Foucault (1999). . Traçam-se paralelos com os atuais processos de globalização.

Há muitas páginas ainda a escrever sobre os métodos com os quais foram silenciados aqueles que se pronunciaram contra a violência. Estes pronunciamentos se registravam no debate pelos princípios nacionais, debate no qual se incluiu a defesa da dignidade de índios, caucheiros e colonos pobres, transfigurada em mito político. Uma vez que os índios eram considerados como destituídos de humanidade, a evocação de sua dignidade humana era um procedimento de mitificação erigido em termos da consecução de interesses nacionalistas. As denúncias dos crimes contra a humanidade, enquanto ritos de poder, implicam a heroificação dos autores de tais denúncias. Produzem, no entanto, lacunas na história das vítimas, entre as quais se incluem amplos setores sociais, como os povos indígenas, cabendo reconhecer sua especificidade étnica.

BIOGRAFIA, NARRATIVA LITERÁRIA E MEMÓRIA SOCIAL NO CONTEXTO DA INTERPRETAÇÃO HISTÓRICA

A abordagem histórica toma como seus, na biografia, questionamentos e técnicas da narrativa literária (Levi, 1998, p. 168). As mesmas incertezas do caráter fragmentário dos personagens dramáticos, tal como foram reveladas pela teoria da narrativa literária, conferidas à interpretação na narrativa histórica, mostram aspectos contraditórios da construção social.

A construção da personagem do coronel Aureliano Buendía, por García Márquez, foi reconhecidamente influenciada por Uribe Uribe (Márquez, 1982a, p. 11). A própria trajetória do escritor alterou-se durante a eclosão da chamada 'Violência', a partir dos episódios que sucederam o assassinato do líder liberal e populista Jorge Gaitán, em 1948, no centro de Bogotá. Com o 'Bogotazo', a eclosão de sublevações populares contra o controle do poder presidencial por uma minoria deixou em ruínas as cidades e os povoados economicamente importantes da Colômbia.

Fechadas as universidades de todos os grandes centros, Márquez decidiu transferir sua matrícula de estudante de Direito para Cartagena. Por essas circunstâncias, reeditou sua estreia como jornalista e cronista social na área costeira, entre Cartagena, Sucre, Aracataca (sua cidade natal) e Barranquilla, em um retorno à "província" (Gilard, 1981, p. 5-10). Ali, dada a estrutura feudal das plantations agropecuárias, também não se estava a salvo da 'Violência'. Mas o escritor encontrava uma aproximação com as fontes culturais particulares, locais, não metropolitanas.

Foi quando Márquez, em fevereiro de 1951, publicou no Jornal "El Heraldo", de Barranquilla, uma crônica sobre um forasteiro que chegou a um pequeno povoado, e ali passou a viver sendo venerado como um verdadeiro general Rafael Uribe Uribe. A partir dos fatos históricos que marcaram a cultura política colombiana, Márquez redigiu seu "Oitavo Relato do Viajante Imaginário" (Márquez, 1981, p. 117). Um século após o nascimento do general Uribe Uribe, Márquez formulou, a partir desse registro, a estrutura genealógica de seu romance "Cem Anos de Solidão" (1982), tomando como fonte de inspiração a forma de sua avó contar estórias (Márquez, 1982b, p. 33). Nesse romance, o horror da morte e da violência coexiste com uma circularidade concebida a partir das diferentes formas do tempo da vida: o tempo dos animais, das pedras e das plantas. Mas o tempo é irreversível, o terror e a morte não se redimem. O motivo do tronco que brota de um cadáver, cuja seiva frutifica a árvore sagrada, fornecendo alimento aos vivos, parece se nutrir dos mitos indígenas - apesar de García Márquez, talvez por sua formação costeira, não ter delineado no coronel Buendía a faceta do indigenista e nem a do teórico da fronteira amazônica.

Márquez, ao meu ver, reconfigura na personagem do coronel Aureliano Buendía o herói fundador dos mitos nativistas, que reflete não somente a caricatura de um caudilho, pois compõe traços extensíveis a outros líderes políticos da América do Sul, inclusive posteriores a Uribe Uribe. Como Gaitán, em cujo breviário biográfico também apresentado por Eastman (1979b, p. 10), como introdução de suas "Obras Seletas", é lembrado seu "rosto de cacique pré-colombiano".

Ao contrário de Uribe, que propôs uma reforma de cima para baixo, Gaitán enraizou suas bases políticas no ressentimento popular e se engajou na defesa da ideia de uma "revolução" 'de baixo para cima' (Eastman, 1979b, p. 15). Formado em Direito Penal, Gaitán desenvolveu sua oratória na universidade, no parlamento e nas praças públicas, onde lançou a semente do inconformismo, engajando-se na esquerdização do Partido Liberal como caminho para a transformação do Estado em instrumento de justiça social. De acordo com Garcia (1955, p. 18), a morte de Gaitán provocou "o sismo de um povo comovido pelo assassinato de sua própria voz, de sua imagem, de seu anelo justiceiro, de seu meio".

A biografia de Gaitán é analisada por Braun (1987, p. 13) como uma forma de "desconfiar dos modelos conforme os quais os estudiosos de diversas convicções políticas deduzem as causas da tradição e do atraso da América Latina". Para Braun, historiador nascido em Bogotá, e que ali vivia com seus pais alemães, ainda criança, no dia da morte de Gaitán, a reflexão sobre a trama romanesca da narrativa biográfica leva a caminhos que a censura dos esquemas lógicos não permite pensar. Braun evita as dicotomias tradicionais e os esquemas pré-concebidos no sentido da "decadência inevitável", do "estancamento contínuo", da "projeção da história para um futuro socialista", para indagar sobre o conflito e a mudança social no âmbito da cultura política e seus reflexos no comportamento de personagens públicas na Colômbia, na tentativa de entender os próprios atores e as alternativas frequentemente incertas que se colocam diante deles (Braun, 1987, p. 18). Para analisar a figura de Gaitán como um catalisador das massas (Canetti, 1995), Braun enfoca o mito da separação entre vida privada e vida pública na sociedade contemporânea (Sennett, 1999, p. 18).

Os discursos de Gaitán sobre os massacres das bananeiras (Gaitán, 1928) também foram celebrizados por García Márquez em "Cem Anos de Solidão", na sua indignação contra o político que "em três artigos de oitenta palavras declarava os grevistas uma quadrilha de malfeitores e facultava ao exército para matá-los à bala" (Márquez, 1982b, p. 256). Esses discursos fundaram a sua transformação em figura-chave da queda da República Conservadora. Braun vê a introdução de uma política de massas mais complexa do que o populismo, uma vez que representava o lado privado como o ponto focal da vida pública. Nascido de uma família de classe média baixa com aspirações burguesas, Gaitán recrutava seus seguidores entre artesãos, carpinteiros, barbeiros, choferes e prostitutas, que se identificavam com seu estilo subjetivo e intimista. Ente liminar do limbo para as posições de mando e poder, arcou, em seus discursos, a diferença entre "país político" e "país nacional" (Braun, 1987, p. 65).

Em sua trajetória política, Gaitán assumiu diferentes facetas, sendo visto, como um poliedro, ora como fascista, socialista, ressentido, excluído, arrivista, combativo, teórico, equilibrador, classista, esquerdista, direitista, hierárquico, estadista, ambíguo, íntimo, corporal, gaitanista, orador, propagandista, defensor dos 'descamisados', 'convivialista', responsável ou perigoso. Ou tudo isto de uma só vez. Seu assassinato, às 13h05 do dia 9 de abril, produziu a explosão da turba encolerizada. À noite, apagadas as luzes, as ruas foram iluminadas pelo clarão dos incêndios.

Os líderes inicialmente dirigiram-se ao Palácio para exigir justiça. Porém, diante da constatação de que o movimento se apresentava como incontrolável, e que a via pacífica naquele momento era impossível, retrocederam. Desistiram de esperar da multidão uma coerência que era temida pelos conservadores, mas que, de fato, não existia. Os conservadores, dentro do Palácio, temiam a adesão do exército aos insurgentes. Porém, depois que o capitão Mário Serpa, comandante do primeiro tanque, caiu ferido - não se sabe se a bala veio dos manifestantes ou da Guarda presidencial - os tanques começaram a atirar contra a multidão, sem conseguir, no entanto, contê-la. Os novos líderes, que emergiram da "juventude gaitanista", aspiravam representar parte da grande coalizão urbana que ele considerava ter sido excluída da tomada de posições políticas e econômicas (Braun, 1987, p. 320).

Na tarde de 9 de abril, inverteram-se as hierarquias tradicionais da vida pública. A multidão mobilizava-se para saquear, destruir os edifícios, não para matar pessoas específicas. Atacava os pilares da ordem social, como as igrejas. Ao investir contra os prédios públicos, respondia ao impacto direto que a política exercia sobre suas vidas pessoais. Buscava os alvos mais visíveis que simbolizavam a ordem social, mantendo, no entanto, intocados muitos bancos e mansões de senhores de terras, industriais, dirigentes financeiros, inclusive o Jockey Club e o Teatro Colón, símbolos dos encontros culturais da 'alta sociedade' de Bogotá. Voltou-se contra os ícones do poder político, não contra os indivíduos do cume da hierarquia (Braun, 1987, p. 312).

O governo decidiu organizar um funeral público como antídoto à exaltação do caudilho subversivo. O enterro em uma tumba anônima o heroificaria, transformando-o em mártir. Descartou-se a hipótese de enterrá-lo na praça Bolívar, ao lado da estátua do Libertador, na Calle (Rua) Real, local do assassinato de Uribe Uribe, diante de cuja tumba Gaitán discursara num tributo ao chefe liberal. A praça poderia virar palco para a continuidade de um levante (Braun, 1987, p. 343). A cerimônia, ao fim, foi realizada no Parque Nacional, a algumas quadras da casa de Gaitán.

A própria viúva estava convicta de que as altas esferas do governo conservador, possivelmente com a cumplicidade dos chefes liberais, haviam planejado o assassinato. A investigação, contudo, do assassinato de Gaitán durou 25 anos (1948-1973) e, apesar dos trinta e nove volumes de depoimentos, não estabeleceu plenamente qualquer motivo convincente para o crime. A versão mais generalizada é a de que Juan Joa Sierra, um vagabundo comum, agiu por vingança pessoal.

Braun defende a tese de que o 'Bogotazo' partiu em dois a história da nação: liberais e conservadores passaram a idealizar um passado no qual se respeitavam as hierarquias sociais e políticas, cujo povo ocupava um lugar submisso. O presente naquele momento histórico passou a representar um mundo caótico, emergente do vácuo das tradições e dos hábitos civis, perdidos na irrupção dos desejos das massas revoltosas, do povo a que Gaitán se dirigia diretamente e a que convidava a intervir na política. Falava com suas próprias palavras, provinha de suas filas. Gaitán personificava a queda da esfera pública. Representava uma conjunção do 'país político' e do 'país nacional' na emergência de uma só nação, definida cada vez mais pelas necessidades privadas dos cidadãos. Com a eclosão da 'Violência', não havia mais um povo a comandar (Braun, 1987, p. 385). Até hoje, muitos se lembram de Gaitán e se perguntam por que não encontraram os responsáveis por sua morte. Para o homem comum, na perspectiva da Colômbia contemporânea, sua imagem está mais viva do que a de Uribe.

CONSIDERAÇÕES FINAIS

As narrativas biográficas e os textos doutrinários exprimem a consagração do discurso político. Aparecem como solidificação do mito como experiência do homem, no aprimoramento da "arte de exprimir, e isto significa organizar os instintos mais profundamente enraizados, e suas esperanças e temores" (Cassirer, 1976, p. 64). A narrativa literária reconfigura a história por meio de imagens, que são fonte de reflexão para o conhecimento histórico e antropológico.

No mecanismo de "ilusão biográfica" explicitado por Bourdieu (1998), o ator social age em uma pluralidade de campos, simultaneamente. Uribe Uribe é um exemplo da tensão entre o protagonista e o contexto, enquanto personificação complexa e contraditória do engajamento na construção do socialismo de Estado, quando as instituições centralizadoras são forjadas como outra face dos vínculos patrimonialistas. Nesse embate, fragmenta-se a biografia individual, traduzida pela "constante variação dos tempos, pelo recurso a incessantes retornos e pelo caráter contraditório, paradoxal, dos pensamentos e da linguagem" (Levi, 1998, p. 170). O protagonista é reconstruído dentro de diferentes referenciais, dependendo do ponto de vista. Em uma perspectiva dialógica, opera-se uma troca de pontos de vista, na qual o escritor/observador García Márquez, ao configurar a personagem do coronel Buendía, ou ao se referir ao discurso de Gaitán sobre o "massacre das bananeiras", fornece pistas para a interpretação do inconsciente histórico na Colômbia.

Na busca de desvendar os motivos da morte de Uribe em 1914, as razões diversas se esvaem, na identificação dos interesses em jogo, dentro de uma tessitura social. Seu assassinato aparece como um rito político no qual os mais distintos atores se afiguram como suspeitos de um ato de supressão do pai fundador (Freud, 1965).

A trajetória de Uribe Uribe aparece relacionada com as diversas facetas do desmantelamento da ideia de cidadania na Colômbia. A falta de identidade define um campo identitário no qual seu itinerário consiste em um "caso extremo" (Levi, 1998, p. 180). Através deste se lança luz sobre as margens do campo social relacionado com o mito do Estado nacional e com o discurso sobre a soberania nacional na Colômbia. Ou seja, o campo social da emergência de redes de relações, alinhamentos e fissuras sociais, constitutivo do contexto histórico da reflexão.

A morte de Gaitán, outro caso extremo de heroificação, implicou a explosão de impulsos que levaram as massas de Bogotá a desafiarem o contrato social que torna possível a manutenção da vida pública. Quando a multidão amotinada substituiu o líder, o mito político transfigurou-se em uma inversão da imagem do herói nacional. Isso ocorreu em um clima não mais de teatro épico, mas de melodrama policial, em um contexto mundial, de predomínio do âmbito privado e de perda de referenciais, no qual as leis de mercado determinam inclusive a ausência de solução dos conflitos, e a continuidade da situação de guerra é motivada por imperativos econômicos.

Enquanto Uribe, engajado na ideologia da construção da cidadania na Colômbia, expressava posições socializantes, Gaitán lutava por um Estado socialista baseado na justiça social, a qual não teve lugar na Colômbia do século XX, atravessada pelo terror. A diferença é que o pensamento social de Uribe representava um projeto nacionalista de Estado, e Gaitán a crescente significação da viva privada, conforme indicado por Braun (1987, p. 18), levando adiante colocações de Canetti (1995) e Sennett (1999). Nesses exemplos, mais do que a intencionalidade dos agentes em interação, as conexões entre as ações e seus mitos mostram-se relevantes para a compreensão histórica.

Os líderes políticos não são tipos ideais. Enquanto homens públicos não assumem, necessariamente, valores éticos professados enquanto próprios aos princípios universais de dignidade humana. Uribe Uribe teorizou sobre a causa indígena, mas confundiu os interesses dos índios com os dos colonos. Defendia ideias socialistas, mas estava associado a setores do liberalismo e mesmo do conservadorismo político. Gaitán defendia o socialismo de baixo para cima, ou seja, popular, mas tornou-se um político comparável a líderes populistas de seu tempo, como o estadista brasileiro Getúlio Vargas ou o líder argentino Juan Domingo Perón. Heroificados pelas massas, Uribe e Gaitán foram temidos por seus rivais e, talvez por isso mesmo, foram assassinados. García Márquez é um escritor engajado que pode ser situado à 'esquerda' política, mas é considerado um campeão na venda de livros para o grande público. Sua produção foi laureada com o prêmio Nobel, uma distinção concedida a autores e cientistas no cume da elite da humanidade, cujos valores não necessariamente coincidem com os ideais populares. Transpôs para o texto literário narrativas cujo estatuto histórico é suscetível de análise crítica do discurso.

AGRADECIMENTO

Esse artigo resulta de projeto de pesquisa financiado pelo Conselho Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico (CNPq).

Recebido: 27/03/2010

Aprovado: 24/11/2010

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  • Repensando a historicidade discursiva no exame das trajetórias políticas de dois líderes nacionalistas da Colômbia

    Rethinking discursive historicity by the examination of the political trajectories of two nationalist leaders of Colombia
  • 1
    O conhecimento da existência deste controvertido general aconteceu como um dos desdobramentos de uma pesquisa antropológica sobre a fronteira Brasil-Colômbia, que partiu da tentativa de analisar depoimentos dos índios Miranha, os quais se deslocaram para o Brasil na época da economia da borracha, sobre sua exploração por caucheiros colombianos e peruanos (Faulhaber, 1987). Não cabe, no entanto, no escopo deste artigo, entrar em detalhes sobre a correlação entre os depoimentos dos índios Miranha, o etnocídio, a exploração da borracha e a história da fronteira Brasil-Colômbia, celebrizados por Sir Roger Casement, cônsul da Inglaterra no Peru, perante o Parlamento britânico em 1912 (Hardenburg, 1912), e recentemente estudados no lado colombiano por diversos autores (Taussig, 1987; Pineda, 1993).
  • 2
    O paralelo entre Rondon e Uribe Uribe tem uma significação especial para os índios que foram deslocados através da fronteira Brasil-Colômbia, e reterritorializados no Brasil nas primeiras décadas do século XX, época que corresponde à fundação e implantação do Serviço de Proteção aos Índios (SPI) (Faulhaber, 1996).
  • 3
    Public Record Office, Londres, Inglaterra (doravante PRO). Correspondence respecting the affaires of South and Central America, 1906-1920 (FO -420:237-257).
  • 4
    A Colômbia estaria reivindicando aos Estados Unidos uma indenização política pela perda do Panamá. PRO. Carta do vice-cônsul Dickson ao Chanceler Eduard Grey, 6 jun. e 25 jul. 1906.
  • 5
    PRO. Carta do vice-cônsul Dickson ao Chanceler Eduard Grey, nov. 1906.
  • 6
    Arquivo Histórico do Itamaraty, Rio de Janeiro, Brasil (doravante AHI). "El Comércio", Lima, 10 out. 1906, MDBLP - O.
  • 7
    AHI. Telegrama remetido pelo Ministro da Colômbia ao general Uribe Uribe sobre um telegrama enviado pelo governador do estado do Amazonas, Manaus, 27 maio 1907.
  • 8
    AHI. NTE, 27 maio 1907 (282/3/17).
  • 9
    Para uma discussão sobre a teoria da soberania, consultar Foucault (1999).
  • Datas de Publicação

    • Publicação nesta coleção
      20 Jan 2011
    • Data do Fascículo
      Dez 2010

    Histórico

    • Recebido
      27 Mar 2010
    • Aceito
      24 Nov 2010
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