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O eclipse do olhar e a invisibilidade arqueológica

Enlightenment and invisibility in archaeology

Resumos

A arqueologia como ciência é fruto da mudança de consciência que o homem passa a ter com o advento da modernidade. Contudo, ao contrário das Ciências Sociais, sua cientificidade não está na formação da modernidade, mas é dela uma conseqüência. Por outro lado, se entendida a modernidade como clímax do Iluminismo, a pós-modernidade poderá ser encarada como o surgimento de uma realidade onde a luz encontra-se ocultada pela matéria. Realidade na qual a teoria é a base do saber virtual em ciência. A arqueologia, como a física quântica e a psicanálise, enfim, é uma das ciências que apreende a luz oculta dessa nova realidade, a luz ocultada pela história. Qual a conseqüência disto?

Iluminismo; Modernismo; História da Ciência; Arqueologia


Archeology as a science is the product of the conscience change in mankind caused by the advent of modernity. However, contrary to other Social Sciences, its status as a scientific does not lie in the formation of the modernity, but is its consequence. On the other hand, if we understand modernity as the climax of Enlightenment, pos-modernity can be understood as the rise of a reality light which is hidden by materiality. Such reality has theory as the basis of science virtual knowledge. Archaeology, like quantum physics and psychoanalysis, is one of the sciences that grasp the hidden light of this new reality. The light concealed by History. What's its consequence?

Enlightenment; Modernism; Science's History; Archeaology


ARTIGOS

O eclipse do olhar e a invisibilidade arqueológica

Enlightenment and invisibility in archaeology

Marcos Pereira Magalhães

Museu Paraense Emílio Goeldi. Coordenação de Ciências Humanas/Arqueologia. Pesquisador. Belém, Pará, Brasil (mpm@museugoeldi.br)

RESUMO

A arqueologia como ciência é fruto da mudança de consciência que o homem passa a ter com o advento da modernidade. Contudo, ao contrário das Ciências Sociais, sua cientificidade não está na formação da modernidade, mas é dela uma conseqüência. Por outro lado, se entendida a modernidade como clímax do Iluminismo, a pós-modernidade poderá ser encarada como o surgimento de uma realidade onde a luz encontra-se ocultada pela matéria. Realidade na qual a teoria é a base do saber virtual em ciência. A arqueologia, como a física quântica e a psicanálise, enfim, é uma das ciências que apreende a luz oculta dessa nova realidade, a luz ocultada pela história. Qual a conseqüência disto?

Palavras-chave: Iluminismo. Modernismo. História da Ciência. Arqueologia.

ABSTRACT

Archeology as a science is the product of the conscience change in mankind caused by the advent of modernity. However, contrary to other Social Sciences, its status as a scientific does not lie in the formation of the modernity, but is its consequence. On the other hand, if we understand modernity as the climax of Enlightenment, pos-modernity can be understood as the rise of a reality light which is hidden by materiality. Such reality has theory as the basis of science virtual knowledge. Archaeology, like quantum physics and psychoanalysis, is one of the sciences that grasp the hidden light of this new reality. The light concealed by History. What's its consequence?

Keywords: Enlightenment. Modernism. Science's History. Archeaology.

INTRODUÇÃO

A evolução do pensamento arqueológico vem, regularmente, sendo narrada através dos progressos acumulados ao longo da história do conhecimento, especialmente no desenvolvimento das técnicas, que teria concedido à arqueologia seu caráter disciplinar e epistemológico moderno. Assim, tem-se, quase por regra, que a arqueologia resultou do produto da curiosidade mística do homem antigo, da ascensão do nacionalismo no mundo ocidental e do aproveitamento dos avanços teóricos e metodológicos de outras disciplinas, mas, principalmente, do sucessivo progresso nas técnicas de pesquisa (de campo e laboratório), efetuado por antiquários e colecionadores, fossem particulares ou patrocinados por governos, museus e universidades (SALMON, 1988; TRIGGER, 2004).

Entretanto, desde que pesquisas recentes tornam cada vez mais claro que o desenvolvimento técnico não implica, necessariamente, em mudanças na organização social e na mentalidade humana1 1 Em Carajás, por exemplo, onde foram efetuadas pesquisas em sítios de caçadores-coletores, a cerâmica foi introduzida ou conquistada sem que ocorresse, durante dezenas de séculos, qualquer alteração na organização social e nos modos e meios de subsistência e de exploração econômica (MAGALHÃES, 2005). , a explicação para o surgimento da arqueologia como disciplina científica passa ser outra. Se, por outro lado, também forem consideradas as observações de Mithen (2002), de que a evolução do conhecimento efetua-se pela conexão modular de experiências específicas representando etapas com níveis característicos e, ainda, que cada etapa exige a reorganização de um conjunto particular de conexões modulares provenientes de experiências previamente adquiridas, então, pode-se esperar que, na verdade, ocorreu uma mudança na própria mentalidade para que as técnicas e a percepção dos objetos na natureza convergissem para a produção de um conhecimento que transformasse os antiquários em cientistas.

Para compreender esses argumentos sem tropeços, precisa-se fazer um breve deslocamento da visão, desfocando-a da arqueologia e direcionando-a para a história da ciência. Esse deslocamento obriga o relato de uma história de 400 anos de ciência, na qual a arqueologia apresenta apenas 25% de participação. Ou seja, a Arqueologia só se consolida na condição de disciplina científica na primeira metade do século XX, período em que as ciências, de um modo geral, passaram por profundas mudanças, que fazem com que elas abandonem, definitivamente, preceitos formalizados na ciência clássica, para fundar uma outra ciência situada além da modernidade.

A ciência clássica fundamentava-se no mecanicismo e no positivismo. Esse fundamento garantia à ciência a certeza, como afirmou Pierre Simon Laplace no início do século XIX, de que bastava dispor-se de um conjunto de leis científicas para predizer tudo o que aconteceria no universo. Essas leis só precisariam obter a informação do estado completo do universo em qualquer dado momento. Isto é, com o conhecimento da condição inicial seria possível calcular o estado completo do universo em qualquer momento, tanto no futuro quanto no passado. Laplace pressupunha, inclusive, que existiriam leis governando o comportamento humano e a história.

A doutrina do determinismo científico, apesar da resistência de muitos, continuou sendo o pressuposto padrão da ciência até os primeiros anos do século XX. Entretanto, entre os anos de 1910 e 1920, a relatividade geral e, principalmente, a incerteza quântica colocaram o determinismo em cheque, mudando completamente os rumos da ciência. Os novos rumos da ciência foram consolidados posteriormente, na década de 1940, quando diferentes modelos de universo foram propostos pelas diferentes soluções encontradas para as equações de Albert Einstein, em especial a elaborada pela matemática de Kurt Gödel, em 1949. Com ela, Gödel provou que era impossível demonstrar todas as asserções verdadeiras, mesmo só tentando demonstrá-las através da aparentemente indubitável aritmética. Assim, o princípio da incerteza da chamada mecânica quântica e o teorema da incompletude de Gödel marcam o limite da capacidade da ciência para conhecer o passado e prever o futuro. Ou seja, o conhecimento da condição inicial não garante a previsão dos acontecimentos no Universo, independente de qual seja.

Ora, foi justamente no meio desse turbilhão transformador que a arqueologia aparece como ciência, deixando para trás o seu passado político (ao serviço do nacionalismo) e comercial (ao serviço de colecionadores e museus). Porém, as ciências que surgirão no bojo das transformações ocorridas nas bases do conhecimento, curiosamente, terão como objeto o diretamente inobservável. Isto é, aquilo que não pode ser visto nem por olhos desarmados e nem mesmo por instrumentos, mas apenas indiretamente pressuposto. Assim, surge, na Astronomia, a Cosmologia, de objetos tão grandes e distantes cujas imagens presentes são meros reflexos de um passado, às vezes, quase imensurável; na Física, a Mecânica Quântica, de objetos infinitamente pequenos e imperceptíveis. É inaugurado um novo campo de saber com a Psicanálise, que perscrutará o não menos inconcebível inconsciente. Nas Ciências Sociais consolida-se, finalmente, a Arqueologia, que desvendará os escombros da história escondidos sob o solo, em boa parte, sem qualquer referência documental e, às vezes, sem lembrança, memória e até mesmo, sem nenhuma pré-suposta remota existência.

Pois bem, a Arqueologia na condição de ciência é fruto de sua época, quando finalmente técnicas, métodos e saberes encontram um campo suficientemente amadurecido para que as conexões mentais reorganizem as informações dispersas então existentes, num conhecimento capaz de ir além dos monumentos e dos tesouros materiais visíveis e resgatáveis. Ela é fruto da mesma época em que o Iluminismo chega ao seu clímax, quando a sua ciência clássica (e sua variável moderna) perde a capacidade de previsão e não mais consegue perscrutar os objetos do novo mundo contemporâneo, todos invisíveis (LANDA, 1988). E aí que a ciência clássica, positivista e determinista e, então, modernizada encontra o seu ocaso no eclipse do olhar. E é neste momento que a Arqueologia surge para revelar o que não existia na história.

AS SEMENTES DA CIÊNCIA

Alguns pesquisadores, como Binford (1988), por exemplo, ainda que haja a grande divergência de opiniões, acham que a Arqueologia não é propriamente ciência. Porém, naquilo que se refere à ciência natural, todo conhecimento é para o homem e é, antes de mais nada, antropológico. Enfim, para alguns, a arqueologia é uma Ciência Social, porém, sem independência, capacidade de previsão e vinculada à antropologia ou à história. Às vezes é vista como disciplina independente, mas com vínculos tão estreitos com a história (HODDER, 1988), que seu nascimento só foi possível pela precedência desta última. O interessante nessas opiniões é a existência de um problema maior, cuja questão fundamental não é abordada. Na superfície dessa visão, o problema da posição da Arqueologia junto à ciência - assim como de todas as outras disciplinas - está na ausência do entendimento da natureza da ciência. Afinal, se a arqueologia é ou não ciência, o que é, por sua vez, ciência?

A questão colocada acima pode suscitar diferentes respostas. Mas se considerado o estreito vínculo da ciência com a idéia que se tem de natureza, por um lado, e as mudanças de percepção da natureza que o homem tem ao longo da história, por outro, ver-se-á que ela não só é fruto dessas mudanças, como amadurece conforme a percepção do próprio mundo é transformada (LENOBLE, 1990). Assim, entre aqueles que são contra ou a favor de uma arqueologia positivista, isto é, a busca a previsibilidade dos acontecimentos apoiados em leis fundamentais, é unânime que a excelência da ciência é o da ciência natural super especializada, fundamentada na universalização de leis invariáveis. Entretanto, esta idéia de ciência é o resultado da percepção do homem em determinada época da história. A discussão sobre a cientificidade da Arqueologia, independente da sua singularidade no campo do conhecimento, por conta disso, não pode ter por base uma suposta imutabilidade da idéia de ciência, tal como se ela fosse um dogma ou a coisa mais estabelecida e acabada do mundo do conhecimento. Por outro lado, a partir do momento que se compreende que a idéia de ciência é mutável, a questão da arqueologia ser ou não uma ciência padrão, é completamente desprovida de sentido. Afinal, não existe um padrão para a ciência.

A História pode fazer frente à poderosa aparência de imutabilidade da ciência, pois ela é capaz de mostrar que os preceitos e os conceitos diferem não só em qualidade e quantidade, como também se baseiam na variabilidade do pensamento humano, seja no tempo ou no espaço. Mas para aceitar essa capacidade, a História também passou por muitos percalços, inventando até um historicismo que em casos extremos a afastou das suas finalidades identificadoras. Hoje, há historiadores afirmando, inclusive, o fim da história, incapazes que são de perceber que a história de qualquer coisa é a história dessa coisa no tempo. Portanto, que a mudança de conteúdo da história é a própria mudança do sentido do tempo.

O caso é que o preceito positivista, ainda defendido como um dogma perfeito da ciência, já não tem força suficiente para sustentar seus alicerces em acelerado apodrecimento. Entretanto, há quem resista atrapalhando aqueles que propõem novos preceitos e retardando a discussão de um ponto ainda mais fundamental para a valoração do conhecimento científico: a finalidade ética de seus produtos (THOMAS, 2004). Mas discutir isto exigiria muitas páginas, já que, de antemão, há uma melancólica confusão que se faz da ética com a moral. Aqui o espaço de discussão é outro, porém, é bastante óbvio que a ciência moderna tem fracassado em termos éticos, haja vista as suas máquinas de guerra, seus vínculos estreitos com o poder explorador do estado tirânico e do grande capital, que tentam controlar ou neutralizar, constantemente, a busca do bem-estar e 'progresso' humano.

Relações essenciais entre a ciência e a religião, ciência e a arte e até mesmo entre ciência e filosofia deixaram de ter qualquer importância. Contudo, por mais surpreendente que pareça, a ciência moderna não é a ciência hoje e, muito menos, a Ciência. Este é apenas um dos estágios por ela alcançado ao longo do percurso feito desde o Renascimento até a atualidade e cuja evolução é imprevisível. Neste último estágio, o domínio do conhecimento produzido é o da percepção mental na qual a teoria predomina sobre a experiência na compreensão da percepção científica da natureza. Por isto mesmo, não se deve esperar que ao fim se encontrem propostas para o retorno inquestionável do poder de predição que a ciência clássica gozava no passado, mas, que a nova ciência já é real, tem quase cem anos de nascimento e sua maior qualidade na arqueologia é uma insuspeita capacidade de antecipação.

Na sua primeira infância, no seu surgimento, a ciência possuía uma outra face, bem diferente do que hoje apresenta. Como foi essa face? Comumente diz-se que a ciência clássica surge com Galileu Galilei e se desenvolve até Isaac Newton. Esse desenvolvimento foi o refinamento cada vez maior da ciência, eliminando dela qualquer carne e substância que não fosse a razão em nome da precisão. A ponto de Friedrich Hegel dizer textualmente que a razão é ciência e a ciência a única realidade do Espírito (KOJÈVE, 1972).

Porém, a ciência que manipulou os corpos e renunciou a habitá-los, hoje se encontra tão próxima da 'humanização' quanto a robótica. Mas nos primórdios era diferente, pois a ciência estava muito próxima da mudança da forma de pensar proposta por Merleau-Ponty (1971), segundo a qual se é o mundo que pensa e está no âmago da carne; ou, mais ainda, da opinião de Paul Cézanne, ao afirmar que "Eu sou a consciência da paisagem que pensa em Mim" (apud MERLEAU-PONTY, 1966). Hoje, como na sua primeira infância, naquilo tão eficientemente realizado pela ciência clássica e assumido pela moderna - a separação entre espírito e corpo - observa-se que não se pode mais fazer idéia de um espírito que não esteja de par com um corpo.

O Espírito só pode estabelecer-se no solo fértil de um corpo. Ao negar isto, a ciência clássica, apesar de feita pela razão, acabou por se tornar acéfala, em razão de ela desconhecer o Eu, que na suposição e na ficção geral ainda representa o que há de mais conhecido, embora seja, na realidade, um estado de coisas extremamente complicado e cheio de obscuridades imperscrutáveis para a mentalidade moderna. Para a ciência clássica, porém, corpo era corpo e nada mais. Descartes já dizia, que o

eu, isto é, a alma pela qual sou o que sou, é inteiramente distinta do corpo, é até mais fácil de conhecer que ele, e, mesmo se o corpo não existisse, ela não deixaria de ser tudo o que é

(DESCARTES, 1989, p. 46).

Essa herança recebida pela ciência moderna habituou o homem a dizer: 'isto é o mundo e isto sou eu'. Mas, na verdade, o mundo e o Eu são um só e as obscuridades do mundo e da imaginação são projeções dos fragmentos do corpo e da alma.

A fragmentação entre Eu e corpo, alma e ego produz a obscuridade da psique, que nada mais é do que a sombra da phisis (natureza) humana reclamando seu lugar. Por mais que o homem moderno combata sua natureza e a negue, afirmando que ela nada significa para a inteligência formada pela cultura, ela persiste e permanece viva e real como sempre, pois sem ela seria impossível a existência. O atual homem civilizado age de modo adequado no seu espaço delimitado, mas, no caso de um dilema insolúvel, ele é capaz de ultrapassar os limites de sua civilização e trazer à tona a sua phisis. Aí ele tem idéias súbitas e atua de acordo com inspirações momentâneas, que não se relaciona com a razão; então já não é ele quem pensa, mas algo que pensa com ele. Situações estas que põe em cheque os métodos clássicos positivistas.

Contudo, na sua fase heróica, pré-clássica, no Renascimento, a ciência teve seus primeiros preceitos formulados por artistas. Foi Leonardo da Vinci, em busca de uma melhor compreensão das cores, o primeiro a descrever os valores da ciência. Este artista, enquanto viveu, entre os anos de 1452 e 1519, entretanto, não separou o espírito do corpo.

Ora, a ciência é filha do olhar, posto que nasce da valorização do olho como principal órgão dos sentidos para a observação. Mas, no seu início, o olho era uma janela na qual a luz podia entrar e sair. Para da Vinci (1987), o espírito do pintor deve fazer-se semelhante a um espelho que adota a cor do que olha e se enche de tantas imagens quantas coisas tiverem diante de si, ou seja, a sua capacidade de olhar e perceber não é para esvaziar o espírito, mas ao contrário, para preenchê-lo. Como que admirado, da Vinci perguntou: "quem acreditaria que um espaço tão reduzido seria capaz de absorver as imagens do Universo?".

Da Vinci trabalhou na busca das leis da luz, dos olhos e das cores, com o objetivo de participar de suas causas. Esta ciência ainda está fortemente amarrada aos preceitos alquimistas. Paracelso (1973, p. 63) afirmava que "a filosofia ensina como o Sol e a Lua aparecem e estão no firmamento, um sendo a imagem especular do outro". Assim como um homem poderia ver-se exatamente refletido num espelho, o médico também deveria ter exato conhecimento do homem para nele ver o espelho dos quatro elementos.

Na natureza, para os renascentistas, as partes estavam vinculadas pela alma do mundo, pelo espírito do mundo e regidos pelo amor. A magia era a arte dos vínculos e do amor e a natureza, por ser o vínculo universal, era maga. Segundo seus pensadores, o amor é mago porque todo poder da magia reside nele e a sua obra é feitiço e encantamento pelo olhar. O Renascimento divinizou a natureza: para a ciência renascentista, ela é mágica e autônoma, em nada dependente de Deus e possui os segredos da sua ordem, da sua vida, da sua alma; em moral, ela retém em si mesma o amor, a admiração, a confiança, a adoração, enfim, que outrora visava ignorá-la.

Vê-se logo que a ciência renascentista, cheia de magia por vínculos naturais, não poderia agradar ao poder oficial constituído, que se fez justamente pela ausência de um discurso natural. O poder era sobrenatural, não admitia vínculos, era hierarquizado, eterno e intransferível.

No Renascimento, de fato, a ciência, a arte e a magia não eram coisas separadas, faziam parte do mesmo discurso. Visavam ao mesmo objetivo: tornar a natureza mais clara e mais substanciosa. Havia uma identidade entre 'visível' e 'vidente', este último, aquele que via. A postulação de que o sujeito que olha não seja, ele próprio, estranho ao mundo olhado, cria a imagem de um mundo feito de coexistências, simultaneidades, parentescos, implicações mútuas, afinidades, imbricações, entrelaçamentos, correspondências; em suma, um contexto de reversibilidade, de vida. Neste mundo, a espessura da carne não deve ser temida como um obstáculo que separa o Eu do outro, mas acolhida como um meio de comunicação. Olhar que faz um apelo à função da sensibilidade de todos os homens, dos quais os artistas eram os mais bem equipados.

Os homens do Renascimento amaram apaixonadamente a natureza, sentiram-na na qualidade de poetas, mas não a conheceram porque, entregues à sensação e à admiração, não se resignaram a pensá-la. Toda a representação da natureza, ainda quando tentam, apesar de tudo, racionalizá-la, organiza-se em redor da doutrina da Alma do Mundo; é o mana dos tempos primitivos melanésios, a força imprevisível com a qual é possível entrar em comunhão mística, mas também a negação da lei regular e, logo, da ciência. Mas essa negação é relativa, pois que há uma intuição (portanto, uma idéia não racional) de que existe uma lei na irregularidade das leis da natureza e, logo, a possibilidade de uma outra ciência. Campanella (1620) chegou a dizer que a Terra vive porque manifesta um ritmo como todos os seres vivos, que são as leis naturais, como as que trazem as tempestades de chuvas e trovoadas no verão.

Para Jung (1987), a arte constitui, em supremo grau, uma realidade impessoal e até mesmo inumana ou sobre-humana, pois como artista ele é sua obra, e não um ser humano, é, no mais alto sentido, 'homem', e homem coletivo, portador e plasmador da alma inconsciente e ativa da humanidade. Todas as épocas, apesar de suas diversidades externas, possuem uma relação interna. Assim, já no Renascimento, a arte tornou-se um fator de incubação criativa e só revelou seu sentido quando foi considerada projeção daquilo que era imanente à psique coletiva, razão pela qual a arte esteve à frente da ciência, a ponto de, em certos aspectos, absorvê-la, ou seja, no Renascimento, a ciência era a própria arte.

Não havia no Renascimento uma unidade original na essência da arte e da ciência, que justificasse, necessariamente, uma absorção recíproca, isto é, a redução de uma à outra. O que havia, na verdade, era que o estado da unidade estava apenas num estágio de indiferença, na qual a ciência ainda não era reconhecida. Para que possa haver a unidade, é indispensável que as partes sejam reconhecidas no encontro da convergência, e que só será alcançado a partir do Iluminismo e, para tanto, foi preciso mudar a sensibilidade.

A arte só pode formular imagens de espaços vividos, nunca algum espaço absoluto ou qualquer tipo de conceituação abstrata como a matemática. A arte representa a expressão direta e interativa dos valores que se originam no próprio viver (não é a toa que a partir das diferentes vivências, existam tantos estilos diferentes). O próprio Leonardo da Vinci já dizia que a cor do iluminado participa da cor do iluminante.

A gestação da ciência clássica deve-se mais precisamente à pintura. Alguns teóricos da pintura (ZUCCARO, 1607), na época, chegaram a confundir a pintura com a arte e a ciência. A pintura, por deter o privilégio do olhar, com artifícios singulares e operações artificiosas, retrata e imita a natureza e, com artifício humano, constrói em forma, espécie e acidente a força de suas cores (ZUCCARO, 1607). A arte da pintura (ou ciência) não tirava seus princípios, nem tinha qualquer necessidade de recorrer às ciências matemáticas, mas sim à natureza (MIRANDOLA, 1955).

O modelo da ciência e da arte renascentista, portanto, é a natureza. Para imitá-la será necessário um olhar capaz de conhecê-la. Representar um objeto implica primeiro saber o que ele é, conhecer a sua estrutura íntima. Se este objeto é um céu noturno, é necessário pesquisar o que são os astros e o que é o céu; se é um corpo humano, conhecer sua anatomia, por isso os artistas renascentistas, bem antes dos médicos, praticaram a dissecação de cadáveres.

O conhecimento da matéria e da forma está na base da estética renascentista e a arte passa a ser um processo de conhecimento, cuja finalidade não é tanto o conhecimento do objeto estudado, mas o conhecimento do intelecto humano, da faculdade de conhecer. "A forma é representação dos fenômenos e fenômeno em si mesmo, é fenômeno absoluto, chave para entender o mundo dos fenômenos" (ARGAN, s/d, p. 76). Se os objetos naturais existem no espaço, é preciso da mesma forma organizar racionalmente a representação da natureza, tal como a história organiza o conhecimento da humanidade e, como o mundo é natureza e humanidade, perspectiva e história integram-se e formam juntas uma concepção unitária e mágica do mundo.

A facilidade da arte renascentista - principalmente, até o início do período da iluminação - de perscrutar a natureza, devia-se ao fato de que a ciência aristotélica estava presa aos dogmas doutrinais e subordinada à teologia. O humanismo encontrou na arte, então, um campo livre para explorar o conhecimento da natureza sem o confronto com princípios sagrados. A ciência da arte pôde se expandir e explorar outros campos do conhecimento sem provocar a Igreja, guardiã dos dogmas da fé. Entretanto, assim que as novas regras foram estabelecidas, nas quais a Igreja deixava claro uma permissão para a exploração da matéria, o humanismo foi o primeiro a virar as costas para a arte e, principalmente, para tudo que tivesse qualquer vinculo mágico.

A relação entre arte e ciência na Renascença é, portanto, bem diferente da situação moderna. As primeiras grandes descobertas científicas do quatrocento devem-se à arte e foi um artista, da Vinci, ao ter a primeira idéia de aplicação matemática à natureza, quem abriu caminho para uma ciência capaz de estabelecer leis. Da Vinci encontra-se na fonte da futura ciência clássica, sobretudo daquela que nascerá a partir de Galileu, momento em que, ao lançar as bases de uma ciência autônoma e decisiva na futura cisão entre os campos artísticos e científicos, ciência e arte vão enveredar por duas vias divergentes: a ciência encaminhar-se-á para o racionalismo do espírito e o mecanicismo da natureza; ao passo que a arte continuará no seu animismo constitucional.

Hoje, a simbologia artística ultrapassa a consciência contemporânea, a qual a razão não é capaz de apreender, visto que esta prescinde apenas da compreensão do atual. É preciso, então, que a razão seja preparada para poder atingir aquilo que ainda não pode entender. A arte não é apenas um produto ou um derivado, mas uma reorganização criativa justamente daquelas condições as quais uma razão causal quer derivá-la, pois a arte não se baseia em condições prévias externas. Por outro lado, a arte é uma ação transformadora, visto que o artista não se limita à natureza da matéria-prima manipulada por ele. A arte cria um mundo que não havia antes na natureza e, portanto, é atividade que antecipa o tempo.

O Renascimento é uma das raras épocas do pensamento em que a arte e a ciência deram exatamente a mesma representação órfica da natureza. Contudo, para o humanismo clássico o grande problema não é da ordem do natural, mas da ordem do humano. Conseqüentemente, havia uma oposição entre a tradição humanista (clássica) e a naturista cósmica, que Descartes (1989), por exemplo, empenhar-se-á em esclarecer:

... nada há que afaste mais o espírito fraco do caminho reto da virtude do que imaginar que a alma dos animais seja da mesma natureza da nossa, e que, por conseguinte, nada temos a temer nem a esperar depois desta vida, como ocorre com as formigas...

(DESCARTES, 1989, p. 78).

Separando a alma do corpo e retirando da natureza qualquer espiritualidade, o humanismo clássico projeta para o infinito o seu ideal de sobre-natureza, tornando o homem tão somente social, moral e até mesmo religioso, mas em nada cósmico.

Por outro lado, o desenvolvimento dos séculos XV e XVI, preparatório para o nascimento da ciência clássica, foi quase exclusivamente literário e artístico. Apesar de inúmeros trabalhos matemáticos (Tartaglia, Cardano, Viète) terem se aplicado na simplificação dos sinais algébricos e na unificação da noção de número, a ciência encontra-se em plena letargia. De fato foram artistas como da Vinci que tiveram a idéia de que, conjugando a experiência com a matemática, poderiam penetrar nos segredos da natureza (MEZAN, 1988).

Pode-se dizer, assim, que o Renascimento mais prepara do que inaugura a ciência clássica. Será no Iluminismo, no início do século XVII, que se situará o verdadeiro começo da ciência racional e também o ocaso da ciência da natureza. Se antes disso os saberes estavam bem de acordo com o espírito da época, na qual a arte supriu toda vontade, por outro lado havia uma dualidade no meio desses saberes, onde fermentava um pensamento contrário, que mais tarde contaminaria tudo: o pensamento racional.

Antes do século XVII, os físicos contentavam-se em repetir Aristóteles e nunca pensavam em olhar para a natureza e, mesmo quando a olhavam, nada viam além daquilo que a razão podia dizer. A Idade da Luz trouxe o prazer de ver e a ciência surge da satisfação de olhar. Mas o prazer que revela os segredos das trevas também trouxe para os homens da época mil temores na apreciação do desconhecido. Para a Igreja, 'sacralizadora' do pensamento dominante, o medo foi justamente de ter seus dogmas revelados.

O reflexo das primeiras luzes sobre as trevas administradas pela Igreja gerou inicialmente, uma forte reação por parte dela, que temia ter seus processos inconscientes questionados. Uma vez que ela era o Poder, esforçou-se em distinguir 'ciência da natureza' e 'ciência natural', esforços esses que causaram grandes apreensões. Impressionado com a punição dada a Galileu, Descartes (1989, p. 53) apressa-se em deixar para a Igreja o julgamento de sua obra, antes mesmo de lançá-la. Para tanto, escreveu o 'Discurso do Método', que veio à público em 1637 sem o seu nome, cujo objetivo era testar o terreno. Na quinta parte do Discurso escreveu ele:

Gostaria muito de prosseguir e de mostrar aqui toda a cadeia das outras verdades que deduzi destas primeiras (da metafísica ele passa para a física). Mas como para isso necessitaria falar de muitas questão (a questão do movimento da Terra, entre outras) que estão em controvérsia entre os doutos, com quem não desejo me indispor, creio que seria melhor disso me abster, e dizer somente, em geral, quais são elas, a fim de deixar que os sábios (isto é, as autoridades eclesiásticas) julguem se seria útil que delas o público fosse informado com mais pormenores.

Descartes prefere não arriscar e espera que a Igreja defina-se. Mas para a Igreja a natureza era simultaneamente inimiga da graça e serva cômoda das nossas necessidades temporais. A Igreja começa, então, a matar o espírito, pois em vez de combater de fato o desrespeito explícito à sua autoridade, ela o encoraja através do incentivo às ciências exatas. Isto acontece porque a perspectiva cristã considerava o mundo um campo aberto para a atividade humana, favorecida por um Deus infinitamente removido deste mundo. Entretanto, esta visão de mundo que desbancou progressivamente a autoridade da ciência helenística, abre as portas para uma outra ciência, da qual Descartes, com o sinal verde e aliviado, torna-se um dos ideólogos.

A concepção cristã de que o mundo era apenas um artefato material de Deus, permitiu investigações cada vez mais objetivas desse artefato. O efeito histórico da evidência disso vê-se no campo da cartografia do quatrocento ao século seguinte. Os antigos ideais de Ptolomeu, intocáveis durante séculos, foram sendo desafiados cada vez mais radicalmente por cruzados, exploradores e viajantes casuais (LENOBLE, 1990). Foi a própria visão cristã de então que permitiu o desafio à sabedoria científica dos antigos através de pesquisas não-tradicionais sobre a natureza, que não encontravam provas objetivas da existência de vida espiritual.

Se o mundo é completamente suscetível à pesquisa racional, então a existência de espíritos tem que ser negada. Esta foi a idéia acordada entre a Igreja e a ciência: à ciência a Matéria, à Igreja o Espírito. Aborto da ciência da natureza, ascensão da ciência natural.

Giordano Bruno (1907, p. 123) foi uma das mais importantes vítimas da Igreja. Afinal, ele afirmou que

a luz estava mais presente, clara e exposta para nossa inteligência do que a luz do Sol exposta aos olhos exteriores, pois a luz do dia sai e se põe e nem sempre que a ele nos dirigimos está presente, enquanto a outra está tão presente para nós quanto nós a nós mesmos, tão presente, que seria nossa própria mente.

Além disso, dizia que a natureza dá a si mesmo um espelho: as artes. Para ele a reflexão do olhar é o espelho; a da alma, a natureza; e a da natureza, as artes. Bruno apresenta uma doutrina da infinidade do mundo, entendendo sustentar através dela que o mundo é o todo, que se basta a si mesmo e encerra o próprio Deus na sua riqueza imanente.

A Igreja não podia tolerar semelhante visão e aproveitou a ocasião para selar o contrato, na qual ficava explícito aquilo que ela proibia e permitia. A perseguição e a execução do panteísta místico Bruno era prova disso. Ele insistiu hereticamente que a vida espiritual existia em toda a natureza e derivava sua força de suas múltiplas fontes. Porém, o que ele defendia não era apenas opinião sua e sim do espírito mutante renascentista, que visava o retorno à natureza e que foi o motor inicial da ciência. Mas na discussão básica, porém, quase muda, sobre o espírito na natureza prevaleceu o espírito sobrenatural. E a natureza ficou órfã.

Descartes esforçou-se intelectualmente, para mostrar que corpo, sensibilidade, alma e razão eram coisas diferentes e que os animais não possuíam alma e, justamente por isso, estavam absolutamente desprovidos de razão. Sintonizado com o discurso cristão, Descartes negou à natureza qualquer espírito, comparando-a a uma máquina precisa, mas escrava do corpo e irracional.

A ASCENSÃO DA LUZ

A arte renascentista - cujas práticas estavam inconscientemente fundidas às práticas científicas, constituindo momentos de um mesmo processo e até se confundindo sob o mesmo sujeito Humanista - encontra, a partir de Galileu, o seu limite. Os grandes princípios da teoria da arte do quatrocento, erguidos tendo por base a pesquisa científica com o fim de fundamentar a prática artística, tornam-se inadequados à futura ciência, aquela mesma que nasce no âmago da luz.

Com Galileu e as discussões com seus adversários aristotélicos, anuncia-se a mutação que sobrevirá ao tratamento do olhar e da ciência. O conflito entre o que é visto a olho nu e o que é mostrado pelo telescópio leva os aristotélicos, apostando no primeiro, a afirmar a inadequação do perspicillum para o conhecimento astronômico e a negar qualquer verdade aos resultados obtidos por Galileu. Resultados perigosos para os antigos postulados teológicos-metafísicos e epistemológicos: a perfeição esférica dos céus é destruída pela observação de crateras lunares e fases de Vênus; a distinção entre cores reais e aparentes ou entre essenciais e acidentais torna-se defasada com a mecânica celeste e a nova teoria da luz por ela exigida, na qual não há lugar para o translúcido aristotélico.

A partir de Galileu, terá início um lento, gradual e constante processo de cisão entre arte, ciência e magia. Isto é, da idéia de concepção de vínculos naturais, principalmente desde a vitória da ciência racional sobre a ciência mágica (a alquimia). Assim, o Iluminismo deixa escapar a mais alta manifestação de uma humanidade para a qual religião, arte e filosofia formavam uma unidade indivisível. Essa unidade foi a aventura incomparável que o Renascimento tentou experimentar através da alquimia, mas que, por não entendê-la, não soube fazer vir à superfície da alma do homem a verdade tão profunda que seu corpo ocultava, pois a própria alquimia era um produto medieval, da ausência de luz, onde o que se revelava deveria permanecer secreto, oculto, longe de qualquer esclarecimento.

O pensamento iluminista, ao contrário, tudo queria revelar, abraçando a idéia do progresso e buscando ativamente a ruptura com a história e a tradição escolástica. Esse pensamento visou ao desenvolvimento de uma ciência objetiva, à moralidade das leis universais e à arte autônoma nos termos da própria lógica interna destas. O domínio científico da natureza prometia a liberdade da escassez da necessidade e da arbitrariedade das calamidades naturais. O desenvolvimento de formas racionais de organização social e de modos racionais de pensamento prometia a libertação das irracionalidades do mito, da religião, superstição, liberação do uso arbitrário do poder, bem como do lado sombrio da própria natureza humana. Por outro lado, as descobertas científicas e a busca da excelência individual em nome do progresso humano levaram os iluministas a acolherem o turbilhão da mudança e verem a transitoriedade, o fugidio e o fragmentário como condição necessária por meio do qual o projeto modernizador poderia ser realizado.

A vitória obtida sobre a alquimia, por sua vez, não foi um mero efeito da acumulação do conhecimento científico racional-objetivo proveniente do olhar iluminista. Pelo contrário, a própria alquimia não se esforçou em revelar as suas verdades ocultas, pois entre os alquimistas imperava a cegueira medieval. Foi a entropia desta vitória que deformou a experiência como um todo, pois o olhar produziu instrumentos de ciência a partir de então, cada vez mais eficiente para a quantificação, mas que se mostraram cada vez mais inúteis no reino das qualidades. O qualitativo foi reduzido ao subjetivo; o subjetivo abandonado como irreal; o invisível e imensurável descartados como inexistentes. Este foi o resultado da profunda mudança ocorrida no conceito de natureza e, quando Galileu apontou o telescópio para o céu, a própria natureza do Universo se alterou (MEZAN, 1988).

Em relação ao objeto da ciência alquímica, a psique revelou-se mais forte do que a substância química. Somente a exatidão moderna da inteligência observadora indicou a balança (invenção alquímica) como chave para desvendar as combinações químicas. Ora, o problema dos alquimistas era que eles não sabiam o que estavam dizendo. Quando falavam da pedra filosofal ou da grande obra, na verdade, falavam dos complexos da psique. Só alguns séculos depois o homem saberia disso, pois os alquimistas por mais que procurassem a estrutura oculta da matéria, acabaram encontrando a estrutura psíquica da alma, ainda que mal pudessem estar conscientes do alcance desta descoberta (HUTIN, s/d).

Assumir uma magia tão submersa na sombra não era aconselhável aos iluministas, que optaram por romper com ela, em nome de uma razão superior desprovida de qualquer sensação, mas repleta de imagens de visão. Esta ruptura, porém, trará graves prejuízos mais tarde, quando, então, a ciência materialista recusar qualquer realidade à alma, ao divino e ao mágico. A partir do momento em que os saberes seguiram rumos separados, as formas espirituais tornaram-se unilaterais e, entretanto, nenhuma razão histórica parece justificar suficientemente bem essa unilateralidade.

Apesar do seu nascimento ser, de certo modo, rebelde, a ciência clássica iluminista constituir-se-á e mais tarde, na modernidade, far-se-á do mesmo poder que aparentemente questionava e rejeitava no Renascimento. A ciência clássica, é verdade, opôs-se à Escolástica, mas quando conseguiu derrotá-la ocupou os seus mesmos postos e serviu aos mesmos senhores de então. Para isso, desenvolveu uma personalidade com rompantes faustianos, que a deixava ao lado daqueles os quais, inicialmente, lhe negaram o batismo. Foi também no Iluminismo que a ciência movimentou-se em direção ao espaço que, desde o Renascimento, era geralmente ocupado pela arte: o dos subsídios e mecenas; ou seja, a ciência, paulatinamente, vai sendo subsidiada pelo Estado e pela burguesia que cresceu junto com ela.

A absorção pelo poder das idéias e práticas científicas foi possível porque os homens que as fizeram estavam em perfeito acordo com a ideologia dominante. O geocentrismo, por exemplo, não foi uma imposição bíblica; era produto de uma consagração racional bem anterior à difusão dos livros santos. O que a Bíblia fez foi dar um sentido sagrado e místico ao Sistema Geocêntrico e isto transparece a constante sintonia entre o pensamento laico e o ideário de sua época; e as resistências comuns em aceitar novos conceitos. Quando Galileu questionou o geocentrismo defendendo o Sistema Heliocêntrico de Nicolau Copérnico, a crise provocada não foi pelos poderes questionados, mas sim pela resistência à mudança, sendo apenas uma reação pela manutenção do status quo.

Não é por coincidência, ou pura ironia, que a Igreja Católica recentemente perdoou Galileu. Isto pode parecer apenas um reconhecimento tardio de que a Igreja nunca foi contra as suas práticas científicas. Porém, essa atitude assume hoje outra feição: a tentativa desesperada da Igreja em reafirmar o antigo contrato, que separava os campos da fé e dos saberes. Atualmente, a Igreja percebe que começa a perder espaço para a ciência, a qual não exclui de suas investigações nem os temas sagrados. Entretanto, vez ou outra a Igreja agita-se através de cruzadas fundamentalistas tentando fazer permanecer o ponto de vista de que ciência e religião operam em domínios igualmente legítimos, contudo, independentes. Esta reivindicação separatista ainda encontra respaldo no discurso da ciência moderna, que renunciou às inferências e pronunciamentos morais sobre as condições do mundo físico, em nome de uma pseudoneutralidade científica.

Longe de se fechar à ciência iluminista, a religião consente em tentar com esta a aventura de uma revolução física; a graça debruça-se sobre a natureza para que ela sirva de Salvação. Por isto que Francis Bacon e Descartes concederam-se, através do próprio Deus, credenciais para a conquista do mundo, de modo que edificar uma ciência verdadeira era trabalhar pela causa de Deus. Assim, a visão mecanicista da natureza faz-se passar por uma aliada da teologia. E enquanto Galileu era condenado, os jesuítas ensinavam o Sistema Heliocêntrico na China (JUNG, 1987). Afinal, Galileu aperfeiçoou o telescópio, o olho, a própria luz e esta não podia ser racionalmente negada, pois todos, então, podiam enxerga-lá.

A natureza é reduzida a uma peça de engenharia mecânica, em que o espírito suscita um entusiasmo intelectual, sem qualquer dos vôos do artista. Da mesma forma distingue a sua causa da metafísica: a ciência separada da arte e do mágico. Com isto o homem comportar-se-á para a natureza como um engenheiro que já não tem de gerir nela qualquer valor. O projeto iluminista, entretanto, considerava axiomática a existência de uma única resposta possível a qualquer pergunta. Seguia-se, assim, que o mundo poderia ser controlado e organizado de modo racional se ao menos se pudesse apreendê-lo e representá-lo de maneira correta, mas isso presumia a existência de um único modo correto de representação que, caso pudesse ser descoberto, forneceria os meios para os fins iluministas (HARVEY, 1993).

Os pensadores iluministas também investiram maciçamente no domínio do futuro, por meio de poderes de previsão científica, engenharia social, planejamento racional e institucionalização de sistemas racionais de regulação e controle social. Eles se apropriaram, com sucesso, das concepções renascentistas de espaço e tempo, levando-as ao seu limite, na busca da construção de uma sociedade nova, mais democrática, saudável e afluente. A diferença era que o espaço e o tempo tinham de ser organizados não para refletir a alma do mundo ou a glória de Deus, mas para celebrar e facilitar a libertação do 'Homem' como indivíduo livre e ativo, dotado de consciência e vontade. Na visão iluminista da forma como o mundo deveria ser organizado, mapas e cronômetros precisos constituíram instrumentos essenciais, pois, afinal, o mundo era uma grande máquina. Enfim, o mecanicismo triunfara.

No século XVII, a ciência já rompeu todo vínculo com a arte. E apesar de Newton ainda preservar certo espírito renascentista, desenvolvendo pesquisas alquimistas e afirmando que Deus está presente em toda parte na natureza e pode agir sobre ela à sua maneira ou que o espaço era o sensorium Dei, o seu Principia mathematica philosophiae naturalis é o caminho inverso. Se por um lado, esse caminho nada mais foi do que a contrapartida fria, objetiva e puramente racional das suas buscas herméticas, por outro, foi o caminho que acabou se tornando a via principal e sem volta (THUILLIER, 1998). Em grande parte, porque Voltaire, voluntariamente, se apreçou a exaltar a mecânica celeste racional de Newton, atribuindo às suas obras esotéricas um caráter menor e equivocado, fruto da curiosidade de um sábio entediado.

O fato é que apesar de alguma resistência ao mecanicismo, ele seguiu explicando o mundo, mesmo quando se tentava o contrário. O mais significativo é notar, sociologicamente falando, a falta de mudança de pensamento ou social, é homogênea e sincrônica. As mudanças acontecem com força irrefreável, entretanto, enquanto alguns avançam, outros resistem. Em princípio, aqueles que resistem são mais numerosos, porém, a relação se inverte e o que era novidade acaba por se tornar regra. É impressionante notar que essa heterogeneidade pode ser partilhada pelo próprio agente da transformação: a ciência clássica é Newton, mas Newton tentou fazer um replay da ciência renascentista.

Immanuel Kant foi o último grande filósofo a construir um sistema fundamentado na unidade da ciência clássica, que se rompe definitivamente na modernidade, com as invenções e descobertas feitas desde o próprio século XVIII. Entretanto, a ciência moderna tem em Charles Darwin seu grande demiurgo. Afinal, quando Darwin finalmente apresenta 'A Origem das Espécies', ele acaba com a harmonia mantida entre a ciência e a igreja, desde o triunfo do mecanicismo. A teoria da seleção natural é a primeira obra de desconstrução feita pela ciência. Mais do que o sistema heliocêntrico de Nicolau Copérnico no século XVI, que expulsou o planeta do centro do Universo, a teoria da seleção natural do século XIX tira do homem a supremacia que ele se outorgava sobre os outros animais e lança um impacto profundo sobre os dogmas da Igreja, que, a partir deste momento, passa a desconfiar de tudo que vem da ciência. Mas, paralelamente, a ciência sentiu-se capacitada e autorizada para compreender o mundo e alterá-lo conforme os seus preceitos inquestionáveis e, inclusive, focar seu olhar sobre o próprio homem, a fim de mensurá-lo e enquadrá-lo. Inicialmente, numa relação narcisística, ele olha para a sua própria imagem tentando se reconhecer e nada vê além de um bom selvagem e pensamentos que o fazem existir. Posteriormente, vê-se como um verdadeiro objeto científico, que pode ser medido, catalogado e classificado.

A conseqüência disso foi que o projeto iluminista voltou-se contra si mesmo e transformou a busca da emancipação humana num sistema de opressão universal em nome dessa mesma libertação. Foi essa a tragédia iluminista: por trás da sua racionalidade, estava a lógica da dominação e da opressão. A ânsia por dominar a natureza, aprisionando-a em pesos e medidas, envolvia o domínio de seres humanos, o que no final só poderia levar à autodominação (BERNSTEIN, 1985). E assim fizeram Adolf Hitler, Joseph Stálin e, tardiamente, os regimes militares latinos americanos e os tiranos africanos, árabes e asiáticos.

DAS CIÊNCIAS HUMANAS

A influência do Iluminismo sobre o humanismo vai culminar, no século XIX, com a crítica romântica que resultará no surgimento das Ciências Sociais modernas. Mas é ainda no século anterior, com o Barão de Montesquieu e a afirmação da necessidade de uma lei derivada da natureza das coisas, que a concepção da sociedade é considerada natural. Porém, foram os economistas, primeiramente, que viram a necessidade das leis sociais, comparando-as às leis físicas. As leis civis seriam inadequadas ao estudo da sociedade, portanto, somente através da natureza, que é indiferente aos esforços dos homens, poderse-ia considerar os fatos do convívio humano segundo a perspectiva da ciência positivista. Auguste Comte, aceitando as idéias dos economistas, reafirmará que as leis sociais são naturais, atribuindo à sociedade a mesma realidade que a de um organismo vivo, ainda que defendesse o caráter específico do ser social, produto dos relacionamentos humanos. Mas o positivismo acabou impregnando as Ciências Sociais em gestação de um empirismo restritivo que, na realidade, as nivelava às ciências naturais.

O romantismo foi uma reação, ainda no século XVIII, de resistência à racionalidade cada vez maior apresentada pelo pensamento científico, inclusive social. Para os positivistas, os objetivos dos estudos sociais deveriam ser a explicação, a previsão e o domínio cada vez maior dos acontecimentos, através do emprego de escalas numéricas, técnicas de estatísticas, correlação entre variáveis e a construção de modelos matemáticos. Ao longo do século XVIII, o sentido que orientava o espírito de seus pensadores era francamente otimista, pois acreditava-se na derrota e no extermínio da sombra que teria obscurecido, até então, 'a marcha da humanidade'. Porém, em alguns segmentos da intelligentsia européia, eram percebidas inquietações sobre o novo rumo do pensamento e da ação coletivos.

As denúncias dos 'males da civilização' começaram a ser veiculadas quase ao mesmo tempo em que se compunham os hinos à sua vitória (DUARTE, 1986). Esse tom de denúncia não podia deixar de se nutrir imaginariamente da representação de um passado perdido, dada a ênfase muito radical no futuro que caracterizava a nova ordem. O progresso, o avanço de todas as formas e comportamentos era ameaçador, uma vez que implicava o desaparecimento dos antigos mores, a perda de qualidades sensíveis a que muitos se sentiam profundamente apegados. Esse tom já se encontra presente em movimentos artísticos como a novela sentimental inglesa e o Sturm und Drang alemão do século XVIII, assim como, bem antes, em boa parte da obra de Jean Jacques Rousseau, um notório iluminista. No entanto, mais peremptoriamente, é inseparável dessa reação o movimento de revalorização da natureza e do mundo rural, num momento em que o artifício industrial e o modo de vida urbano envolviam cada vez mais rapidamente as populações européias.

Ao lado desse processo de reação sentimental, diga-se assim, surgem logo os sinais de uma reação intelectual, com implicações políticas. Em muitos casos, ela será conhecida justamente como uma reação, ou seja, como resistência ativa às mudanças trazidas pela Revolução Francesa e seus corolários às sociedades européias. É no mundo da cultura germânica que se articula mais claramente esse movimento. As filosofias de Johann Gottfried von Herder, Johann Gottlieb Fichte ou Hegel testemunham de diferentes maneiras essa atenção crítica ao horizonte do iluminismo e da disposição em oferecer alternativas ao modo excessivamente linear ou materialista de conceber a história dos filósofos anglo-franceses (ou do Aufklärung kantiano).

De um modo geral, o ponto mais evidente de todas essas resistências e reações é o seu caráter reflexivo, dependente da dinâmica de afirmação do universalismo. Herder (1997) é bastante claro a esse respeito ao nomear seu grande tratado sobre a história da humanidade como uma 'outra história', em referência e oposição direta à Voltaire. 'A doutrina das cores', de Goethe (1993), foi concebida termo a termo como uma refutação da ótica de Newton. A revalorização da obra de William Shakespeare empreendida pelos jovens dramaturgos alemães visava a esconjurar a racionalização e a convenção do classicismo francês. Do mesmo modo, a redescoberta do estilo gótico permitia ironizar a contínua manipulação das fontes clássicas empreendida desde o Renascimento como recurso de racionalização das formas e dos volumes plásticos.

A fórmula típica da ideologia universalista oitocentista, da cosmologia de Newton, também pressupunha elementos isolados (os corpos celestes), articulados em sistemas graças à ação de certas forças naturais. A denúncia da perda implicada por essa fragmentação do mundo, e ênfase na segmentação dos elementos constitutivos de todos os entes é a fórmula básica do romantismo. Perda, sobretudo, do sentido específico que a co-presença dos elementos na totalidade acarretaria. A totalidade perdida (e a ser recuperada) podia - e pode - ser encontrada em muitos níveis. Um dos primeiros níveis, historicamente recuperado, cheio de implicações para a constituição mais tarde da antropologia, é o da totalidade cultural. Aí estava um dos focos mais ativos da ideologia da nação moderna, assim como da noção contemporânea, antropológica, de culturas específicas. Já nesta época, a oposição explícita faziase contra o ideal da justaposição indistinta - indiferenciada ou igualitária - dos cidadãos, membros de uma humanidade abstrata.

O romantismo, desde suas primeiras manifestações, expressou as marcas do dilema imposto pelo fato de ser englobado pelo universalismo: tratava-se de denunciar os excessos do materialismo, as ilusões de uma objetividade ingênua; mas restabelecia os privilégios incontestados da religião ou retornava a um perdido passado místico. O valor da constituição do saber científico, leigo e sistemático, foi mantido e toda a tradição de diálogo com os pesquisadores, as técnicas e as problemáticas universalistas constituiram-se e mantiveram-se serpenteando pelas especialidades, universidades, laboratórios, técnicas e ênfases doutrinárias. Além disso, essa 'ciência romântica' (a Naturphilosophie alemã) influenciou, por sua vez, as orientações mais universalistas de modo extremamente vívido, de tal sorte que a evolução de todas as ciências - e não apenas das humanas - ao longo do século XIX foi um resultado complexo dessa interação (GUSDORF, 1985).

A sociologia durkheimiana, comumente associada ao universalismo em função do peso do positivismo na definição do fato social e das tarefas da pesquisa sociológica nascente, é, no entanto, filha direta de muitos dos postulados básicos do romantismo. Émile Durkheim expôs-se diretamente ao pensamento de Wilhelm Wundt, por ele buscado em Leipzig. Outras influências reconhecidas foram igualmente importantes, sobretudo a que lhe aportou Claude Bernard em sua invenção do organismo como 'meio interno', tão fundamental para as Ciências Biológicas como para as Humanas.

Durkheim retém, enfim, a disposição universalista, mas propõe que se compreenda o caráter sui generis da vida social, com propriedades emergentes que a distinguem da natureza geral e da natureza psicológica individual humana. Totalidade de novo estatuto, a vida social deve ser compreendida como tendo regras especiais de funcionamento, que articulam a morfologia social com sua fisiologia, representações e valores compartilhados.

Na pesquisa antropológica do século XX, inserem-se nesse contexto Franz Boa e Bronislaw Malinowski. Com efeito, credita-se ao primeiro a invenção explícita da idéia da pluralidade de culturas como objeto da análise comparada na antropologia; ao segundo atribui-se a invenção do trabalho de campo antropológico como pedra de toque da metodologia dessa disciplina. O conceito boasiano de culturas é claramente herdeiro da noção de totalidade/unidade cultural prevalecente no romantismo desde Herder, aplicado ao conjunto ampliado das experiências humanas e não apenas aos fatos de civilização (DUARTE, 1995). A luta de Boas contra os reducionismos fisicalistas e racialistas que caracterizavam a academia ocidental de finais do século XIX pode ser também vista como afirmação da qualificação superior do espírito, como fundamento dos fenômenos culturais.

Apesar da reação romântica e da influência dessa reação na formação das ciências sociais, o espírito da época garantiu a permanência nelas das idéias positivistas. Mas se a Sociologia e a Antropologia encontram um campo aberto pelo olhar voltado para o homem e suas estruturas sociais, que, através de métodos empíricos podiam ser mensurados, catalogados, classificados e ordenados, segundo uma ordem evolutiva universal, a arqueologia como ciência em potencial encontra aí um grande obstáculo. Afinal, ainda que os objetos materiais - a cultura material em si - possam ser obviamente observados, a cultura não material, ou seja, as idéia e os sentidos atributos desses objetos, não o podem. Daí que a Arqueologia, especialmente aquela desprovida de complementos documentais, só poderia ser um conjunto de técnicas auxiliares da ciência humana devidamente aparelhada pela eficiência do olhar: da história e da antropologia funcional.

No século XIX, nem a invenção de novas técnicas para datação ou a curiosidade sobre o paleolítico incentivada pela publicação de "A Origem das Espécies", mas com fins nacionalistas, tornam os antiquários cientistas de fato. A Arqueologia não era uma disciplina reconhecida como tal, porque a introdução de novas técnicas e de justificativas teóricas importadas da biologia, da geologia e até da política, não eram suficientes para darem existência científica a um conjunto de práticas dispersas e exercidas por estudiosos de diferentes áreas do conhecimento. Não havia arqueólogo, mas paleontólogos, geólogos, historiadores, colecionadores, aventureiros, políticos e engenheiros. A conexão entre as técnicas, as teorias e os objetivos disciplinares não foram estabelecidos antes do século XX. Até lá, a Arqueologia não podia ser compreendida em toda a sua potência, porque seus objetos só eram considerados quando materialmente percebidos pelo olhar. Enfim, a Arqueologia no século XIX não compunha um corpo disciplinar porque, antologicamente falando, ela não existia.

Ainda que o positivismo mantenha postos importantes no pensamento das ciências humanas, o fato do romantismo estar na origem das ciências sociais garante a elas o seu caráter moderno. As Ciências Humanas são, em essência, filhas da ciência moderna. A ciência moderna, por sua vez, será uma radicalização do Iluminismo, que fragmentará a luz em suas várias faixas visíveis de cores, deixando a sua unidade em segundo plano. Além de deixar sem a garantia de domínio sobre a totalidade de tonalidades, a fragmentação chega, inclusive, às faixas invisíveis da luz. E é aí que o Iluminismo começa a conhecer o seu ocaso.

Assim, a unidade da ciência fraturada na modernidade, pelos princípios iluministas radicalizados, implicará em uma vertiginosa difusão das especialidades com o surgimento de inúmeros campos de conhecimentos novos. Termina a época do sábio universal, o século dos enciclopedistas e começa o mundo dos especialistas. É um tempo de fé 'cega' no progresso e para conquistá-lo a ciência e a técnica encontram-se no posto de comando, assegurando o triunfo da razão.

Hoje, a crítica à multiplicação dos 'ismos' e seu conseqüente hermetismo por um lado, demonstra a ignorância sobre a época que vive a natureza, necessariamente, fragmentada do sujeito da modernidade. Mas uma das maiores angústias do conhecimento moderno é provocada exatamente pela perda da unidade da cultura, desde a separação entre os campos da ciência, da arte e da magia.

A ciência clássica é certa de suas verdades, mas faz surgir, mesmo através daqueles que nela se baseiam, como Kant com seu criticismo, a crise na ordem das certezas. Esta é a marca da passagem da Era das Luzes para a era da suspeita. É nesta que tem a sua hora a física da relatividade geral e da mecânica quântica, mais o pensamento de Karl Marx, de Sören Aaybye Kierkegaard, de Friedrich Wilhelm Nietzsche, de Sigmund Freud, de Max Weber, de Martin Heidegger, de Jean-Paul Sartre... Aí se vê o selo da contemporaneidade: um olhar que já não absolutiza o cogito, porque o situa no interior de uma existência finita e vulnerável, interrogante, mas inquieta.

O ECLIPSE DO OLHAR

A ciência moderna vivenciará uma outra realidade, longe da Era das Luzes, mas produto do ápice dela. Ou seja, o século XX é o clímax da Luz. Testemunhou-se um bombardeio incessante de efeitos luminosos, coloridos e formais. O mundo luminoso se cegou com a sua própria luz e tornou-se completamente abstrato. Desde então os iluminados saturaram a ciência com seu excesso de luz! E assim a ciência moderna já não pôde mais ver. Isto foi anunciado ainda em seus primórdios, quando, presa às idéias iluministas, a ciência tornou-se conivente com a cegueira e deixou o mal triunfar justamente naqueles que tinham por certo que estavam na luz. Assim, pensando que eram iluminantes, ao invés de iluminarem como pretendiam, fizeram justamente o contrário: o excesso de informação levou à desinformação, à efemeridade, à uma temporalidade na estrutura dos sistemas de valores públicos e pessoais que forneceu um contexto para a quebra do consenso e para a diversificação de valores numa sociedade em vias de fragmentação. Com isto, em vez deles distribuírem luz, distribuíram trevas. Isto ficou absolutamente 'claro' e 'trágico' com a cruzada social e genética que alguns antropólogos, sociólogos, políticos (nazistas, socialistas, democratas e republicanos), capitalistas, médicos e biólogos executaram, através da eugenia e em nome do aperfeiçoamento da raça humana, resultante na eliminação em massa - segundo procedimentos industriais - daqueles considerados inferiores, durante a II Guerra Mundial, em pleno século XX.

Porém, a modernidade nada mais foi do que uma radicalização do movimento de renovação que as sociedades ocidentais exigiam desde o Renascimento e que a sociedade industrial concretizou. De certa forma, o moderno é uma qualidade em si mesmo, e não algo contrastante com o passado. O moderno não seria um movimento meramente atual, mas ondas sucessivas de vanguardas provenientes do passado que possuem as suas qualidades singulares. Assim, cada onda em si é ela mesma, modernidade, sendo moderna em sua própria época. Na modernidade característica da Idade Moderna, entretanto, as vanguardas sobrevivem não apenas por meio da negação, da redefinição, da subversão e da desfamiliarização, mas também porque prosperaram sobre a morte de tudo a que se refere, especialmente na arte.

A hostilidade em relação a outros sistemas de valores tende a redefinir o comportamento humano dentro de um sistema alternativo. O ativista moderno tem de aniquilar o gosto dos outros para justificar o meio em que vive e a vanguarda prospera em tal aniquilação. É o crepúsculo dos deuses de Nietzsche transportado contra todas as formas tradicionais de pensamento e comportamento. A modernidade não apenas envolve uma implacável ruptura com todas e quaisquer condições históricas precedentes, como também é caracterizada por um interminável processo de rupturas e fragmentações internas inerentes. Quando um movimento que se denomina vanguarda não tem nada para aniquilar ou é tão sutil que se torna difícil de perceber, então, pode-se dizer que, na verdade, a modernidade está morrendo, se auto-consumindo. Basta ficar um pouco mais alerta que se ouvirá, tal como James Joyce, a ruína de todo espaço, de vidro quebrado e de paredes que caem, e o tempo, uma lívida flama final. Esta é a característica fatalista do modernismo que se desfará por completo no pós-moderno.

As artes e termos militares, como o próprio termo vanguarda, denotam não apenas o comportamento guerreiro do modernismo como também uma necessidade inconsciente de auto-sacrifício. Além disso, a linguagem militar do modernismo - também usada na ciência - revela a aliança tácita existente entre ela e o aparelho repressivo da polícia, da política e do poder. O homem, com seu impulso inato de ter o poder em todo ato, não torna importante a justiça, mas sim a satisfação da sua cobiça. E a modernidade, herdeira dessa fiança, deixou o homem completamente fora da sombra, porém, como efeito colateral, hoje é sua própria sombra que assombra.

Enfim, apesar de todos os progressos científicos, a vida não melhorou intrinsecamente - a cupidez e o desejo humano de poder superaram o humanismo fragmentário do modernismo; e a arte e a literatura tomaram um curso inevitável de colisão com os cientistas e suas obras, até que, por fim, arte e ciência, lado a lado, no apagar do modernismo, estivessem devidamente enquadradas pelo artificial, pelo vulgar e pelo consumo (KARL, 1985).

Em resumo, a modernidade é a afirmação de valores antagonistas: a artificialidade aparente contra o realismo necessário. A aparente artificialidade, por sua vez, quando está no mundo, já é a própria realidade, ou seja, não é o novo, mas a consciência de que o novo já apareceu. Neste choque entre o artifício e o real, nada é realmente verdadeiro, nem realmente falso. Há penas simulacros.

Nessa modernidade, a ciência esforçou-se para se separar do cartesianismo, mas acabou se deslocando para posições contrárias, onde chegou apenas para regressar, ou então para parar antes das conseqüências últimas de sua rejeição original. Isto aconteceu porque ao negar as ciências antigas e os sistemas clássicos, a ciência moderna compreendeu que caso negasse o cartesianismo de fato, acabaria por afirmar as sensações e as forças emocionais, ou como é chamado, o irracionalismo. Isto está em evidente conflito com o paradigma perfeitamente ordenado e racional sobre o qual a ciência moderna foi lançada.

Conclui-se disso tudo que a emergência de uma outra sensibilidade e idéia de natureza não está relacionada, diretamente, nem aos aspectos iluministas do modernismo, nem a qualquer ordem social mundial isolada. Resultou deles, de um conjunto de fatores, mas não o é em particular, pois, afinal, o iluminismo queria ver. Entretanto, o que emergirá do seu seio será justamente o invisível e imensurável e as conexões que se estabelecerão para que a nova natureza passe a ser percebida não serão da ordem das imagens.

Em fins do século XIX e início do XX, enquanto as ciências clássicas tentavam frear suas vanguardas e, conseqüentemente, controlar sua modernidade, outras menos populares e ainda em nascimento avançam sobre assuntos desconhecidos, que já não eram sobre Deus, mas sobre o inconsciente, sobre o imensamente grande, sobre o imensamente pequeno. Sobre objetos que não podiam ser visualizados nem com instrumentos ópticos de última geração.

As discussões sobre o inconsciente desequilibraram todas as identificações, substituindo todas as crenças por um espaço infinito no tempo, no qual sonhos, complexos e loucuras compõem um lugar de linguagens intertextuais e mágicas. Entretanto, se o despontar da psicanálise com o seu objeto imaterial para muitos não pode ser considerada uma ciência, é no próprio meio de uma das ciências fundamentais do conhecimento humano que se confirmará essa mudança radical. Ou seja, na física, com a relatividade cósmica e a incerteza quântica.

Até Einstein, acreditava-se que a mecânica de Newton descrevia a realidade com rigorosa exatidão. A ciência de então tinha por corolário a descrição ou explicação objetiva dos fenômenos. A teoria da relatividade recolocou precisamente esta idéia em questão, ou seja, segundo Einstein, para elaborar a teoria, os cientistas não registram passivamente os dados sensoriais, e sim constroem uma moldura teórica com o auxílio de princípios e conceitos por eles mesmos escolhidos. É recorrendo aos seus próprios meios e às suas próprias experiências pessoais que os homens tentam forjar ferramentas intelectuais mais ou menos adequadas à realidade. Assim, a gênese das teorias científicas não dependeria apenas da lógica e da epistemologia, mas também da psicologia, da sociologia e da antropologia cultural (THUILLER, 1998).

Ainda que essa subjetividade passe a ser reconhecida na construção do conhecimento, ela não é completamente verdadeira ou praticada. Em primeiro lugar, porque ainda existem bolsões de resistência positivista. Em segundo, no caso brasileiro em particular, por considerarem-se cientistas de um país periférico, de auto-estima terceiro-mundista, regularmente tem-se a imaginação previamente moldurada pela hegemonia científica dos países centrais.

Entretanto, as especulações da teoria da relatividade estavam muito longe de se basearem na pura e simples objetividade. Para fundar a relatividade geral, Einstein partiu de vários pressupostos que não eram de modo algum evidentes. E além de serem inacessíveis aos sentidos e ao bom senso, pareciam bizarros. Mas estavam lá: o Universo curvo e em expansão, a velocidade limite e constante da luz, a unificação entre o tempo a o espaço.

Ainda mais radical que a teoria da relatividade foi o desenvolvimento da física quântica. Nela foi demolida por completo a noção clássica de uma descrição determinista da natureza e, consequentemente, Laplace foi definitivamente enterrado. No mundo do muito pequeno, o observador tem papel importante na determinação da natureza física do que está sendo observado. Mais ainda, os resultados da experimentação só podem ser dados probabilisticamente. A certeza é substituída pela incerteza, o determinismo, pelas probabilidades, os processos contínuos, pelos saltos quânticos. Além disso, o princípio da incerteza não depende da maneira pela qual se observa a partícula. Na verdade, tal como foi colocada por Heisenberg, essa incerteza é uma propriedade fundamental, inescapável do mundo. Com isto, não se pode mais predizer os eventos futuros com exatidão e nem mesmo o estado atual do universo pode ser medido com precisão (HAWKING, 2005; MLODINOW, 2005).

O interessante é que antes da relatividade e da incerteza quântica, o determinismo já havia sido limitado pela própria física clássica, através da 'dependência hipersensível das condições iniciais'. Este conceito, posteriormente confirmado e popularizado com a teoria do caos, foi, no início, formulado por Jacques S. Hadamard, Pierre Duhem e Henri Poincaré. Estes mostraram que a longo prazo, os eventos se tornavam impreditíveis (RUELLE, 1993). No entanto, com o sucesso e os desafios das questões quânticas, esse conceito precisou de algumas décadas para ser redescoberto e tratado experimentalmente.

Paralelamente, na arte que se torna cada vez mais abstrata, a necessidade de destruição de todas as imagens reconhecíveis faz Guillaume Apollinaire, por exemplo, abandonar a história, a tradição e a autoridade, quer institucional quer paternal. Ele ainda dizia que dada a separação entre a arte e a natureza, o artista torna-se supremo, a nova divindade. Assim, senhor do mundo, o artista, mais do que nunca, proporciona a existência do que antes não havia na natureza. O próprio Picasso dizia que a pintura devia assumir o lugar da natureza.

O dadaísmo surge em virtude da capacidade de destruição modernista. Breton (1985), através do Surrealismo, visava minar a confiança nas instituições sociais e proporcionar um campo irracional, a fim de apressar a extinção de tais instituições e da sociedade que as mantinha. O Dadá era muito mais poderoso, muito mais destrutivo e perigoso, não querendo apenas a destruição das instituições e da natureza e sim a destruição do próprio Eu.

Após a destruição de tudo, o que viria? Quanto a isto, os modernistas não faziam a menor idéia, agora só restava a incerteza. Assim, tornam-se sujeitos do inconsciente coletivo, no qual ninguém vai para onde quer, mas para onde é levado. Por todos esses motivos, na inevitabilidade da corrente cultural que o inconsciente coletivo faz funcionar além de qualquer cálculo humano, Ezra Pound sepulta as vanguardas, quando em nome da negação moderna, se alia à política espúria dos fascistas. Em seguida, pouco depois do enterro do vanguardismo, o inconsciente coletivo faz funcionar o popular, a massificação, que na música alcança o grau mais elevado de divulgação, em detrimento de toda e qualquer manifestação erudita. Enfim, o homem mergulha no mundo inconsciente da invisibilidade material e aflora na superfície como um corpo fragmentado quase ao infinito pelas manifestações individualistas condicionadas pelo coletivo.

O modo de expressão dessa realidade apaga as fronteiras entre o racional e o irracional, o lógico e o ilógico, o intuitivo e o mecânico e, fundamentalmente, entre o visível e o invisível. É a emanação de um estado de espírito ao mesmo tempo coletivo e singular. Nessa realidade, a imaginação já não se limita às formas exteriores, e da mistura das notas, cores e sensações, ela também se torna imanente e perpetuamente presente. Deste modo, tanto o passado quanto o futuro podem ser realizados no presente, quando transformados em imagens virtuais. Então, a única participação no tempo é na memória da qual surgiu-se. As imagens formadas não são mais provenientes das paisagens externas e, conseqüentemente, o olhar deixa de ser o meio mais adequado de apreensão da realidade.

Bachelard (1967, p. 38) dizia que

uma ciência que aceita as imagens é vítima das metáforas. O espírito científico deve lutar incessantemente contra as imagens, contra as metáfora.

Esta observação de Bachelard marcava uma ruptura com a ciência positivista, na qual a imaginação, plena e rigorosamente desenvolvida, conduz à geometrização e ao formalismo. Bachelard (1948, p. 157-164) insistia que

a mão criadora, autônoma e por isso feliz, sonhando seus próprios sonhos e escapando à tirania da visão, enfrenta os desafios concretos do mundo concreto, levada pela vontade de poder, pelo poder da vontade...Expressa devaneios da força material, movida pelas duas grandes funções psíquicas: a vontade e a imaginação.

Bachelard marca o início da compreensão do esgotamento da visão e começo do entendimento no qual, é justamente na visão onde habita as ilusões e os simulacros. Não em um sentido puramente negativista, porém em uma alusão à potencialidade da imaginação e principalmente do pensamento, capazes de formar imagens e formas que ultrapassam a realidade, produzindo realidade. É uma faculdade pró-humanidade.

Quando o olhar não é mais capaz de perscrutar a realidade, a mente de quem pensa o mundo responde por uma sensibilidade tal como o corpo o sente. Neste ponto, não há mais divisão entre iluminantes e iluminados, entre passado e futuro. O próprio presente se torna indeterminado, ou melhor, determinado pela ação porvir. A partir deste momento, qualquer corpo de sensibilidade pode ser o eu ou o outro. Pois quando todos são sujeitos da sensibilidade, não há mais sujeitos ou objetos isolados. Para finalizar, não há tempo que se explique fora do espaço, já que o único espaço experimentável é o tempo que o corpo vivencia em seu presente particular.

PENETRAÇÕES EXPLÍCITAS

A idéia de que a arqueologia foi o resultado do aperfeiçoamento constante nas técnicas de pesquisa voltadas para o estudo de objetos materiais de valor para antiquários, museus e políticas nacionalistas é uma simplificação da complexidade dos acontecimentos que promoveram mudanças na mentalidade e no modo de encarar a natureza. Acontecimentos esses que ocorreram desde o século XIX, mas que se acentuaram profundamente no XX a ponto de mudar completamente as características fundamentais do Universo.

O despontar de uma mentalidade capaz de mudar o modo como se compreende a natureza não é, simplesmente, o resultado do acúmulo secular de conhecimentos diversos. Fundamentalmente, uma nova mentalidade desponta porque esses conhecimentos chegam a um nível em que suas diferenças encontram pontos comuns de conexão, constituindo um outro conjunto de conhecimento, que reestrutura profundamente as perspectivas anteriores. Portanto, foi preciso esperar que todos os avanços técnicos promovidos por antiquários, geólogos, antropólogos, geógrafos, pré-historiadores, paleontólogos etc., encontrassem a mentalidade histórica adequada, para que as conexões entre diferentes módulos técnicos, práticos, teóricos e de pensamento convergissem para uma mesma ontologia disciplinar. Fato que só ocorreu na primeira metade do século XX, mas que só recentemente vem sendo reconhecido, posto que em ambientes pouco flexíveis, como nas universidades, muitos ainda atrelam a arqueologia à antropologia ou à pré-história.

Ainda que seja possível dizer, sem sobressaltos, que a arqueologia é uma ciência social, ela não se consolida como disciplina científica junto com a antropologia ou com qualquer outra contemporânea. Como essas, ela é muito mais um poema do que um matema, mas a imaginação arqueológica (TILLEY, 1999) nada tem relacionado com o imaginário antropológico. A imaginação antropológica e suas contemporâneas foram forjadas no âmbito da mentalidade modernista, ainda demasiadamente dependente da luz visível, principalmente daquela que permite enxergar o outro do outro. Já a arqueologia, muito pelo contrário, consolidar-se-á como uma ciência do invisível, tal como a psicanálise, a cosmologia e a física quântica e, como essas últimas, é uma ciência pós-modernista.

Essas considerações vão além do que pensa Julian Thomas, o qual considerava que a prática arqueológica emergiu no período moderno estando, portanto, conectada profundamente com os modos de pensamento, formas de organização e práticas sociais que são distintamente modernas (THOMAS, J., 2004). Muito pelo contrário, tenta-se mostrar que a arqueologia não é da essência da modernidade, mas as pessoas que a imaginam é que estão demasiadamente ofuscadas pelo excesso de luz irradiada da modernidade. Então, tem-se um conflito entre a natureza de algo e a imagem dada a este. Fato estabelecido porque a imaginação gerada não é a semelhança do objeto como ele é, mas a semelhança do imaginário que o sujeito tem de si mesmo.

Mesmo considerando que o objeto de estudo da arqueologia é, principalmente (mas não só), a cultura material, bastante concreta em si, ela não se apresenta de modo imediato à sensibilidade, pois regularmente está camuflada pelo "desvio para o vermelho" que desvirtua os acontecimentos passados hoje, tal como acontece aos astros muito distantes do sistema cosmológico. Ainda que parte do objeto seja aparentemente visível, seus significantes, sentido e realidade histórica intrínseca são completamente impermeáveis ao olhar. Esta é a característica que lhe garante a invisibilidade. Por outro lado, a realidade de todo acontecimento arqueológico está sempre no passado e este não pode ser vivenciado, sentido ou simplesmente contemplado de corpo presente por nenhum sujeito do presente, porque é o passado que chega até o sujeito e não o inverso. E quando chega, chega destorcido pelo tempo, pois o tempo já não é mais o que um dia foi. E se é, ele é o que está sendo na posição espacial ocupada pelo observador.

Não se pode compreender o presente conhecendo o passado já que, na realidade, entende-se o passado com as imagens virtuais produzidas pelo conhecimento presente. Entretanto, qual é o conhecimento presente? É aquele que resulta da reorganização de todo conhecimento passado, pois a cada vez que soma-se qualquer entendimento ao conhecimento, o presente, inevitavelmente, acaba por ser estruturalmente alterado. Ou seja, compreende-se o passado porque o presente é conhecido e altera-se o presente, porque conheceu-se o passado.

Se a arqueologia é da ordem das ciências do invisível, então partilhará com elas a incapacidade de previsão. Não obstante, deve-se esclarecer que essa imprevisibilidade nas ciências do invisível não é da ordem das experiências. Essas podem até ser feitas com precisão, porém, para regularmente confirmar a imprevisibilidade dos resultados. Na arqueologia, como ciência social, a questão se apresenta de modo particular, já que nela não há experimentação. O problema está na questão do tempo. Os objetos da arqueologia, por serem provenientes do passado, só podem ser compreendidos e ter seus sentidos originais revelados segundo a sensibilidade e a capacidade intelectiva do observador no presente. Assim, o arqueólogo é incapaz de 'resgatar' o tempo passado, porque tudo que se pode observar dele (assim como prever para o futuro) são impressões constituídas no momento da observação do sujeito no presente.

Consequentemente, a idéia de origem desloca-se do sentido de originário, manifestação primeira, para o sentido de originalidade, novo, peculiar ou singular (MAGALHÃES, 1993). Isto está de acordo com a idéia inaugurada pelas ciências pós-modernistas na primeira metade do século XX, de que o conhecimento das causas iniciais é insuficiente para prever o desenrolar dos eventos em qualquer de suas fases. Como se sabe, a premissa de que o conhecimento das causas iniciais era o passaporte para a previsão de todas as outras fases era o fundamento epistemológico das ciências clássicas e modernas. Mas na natureza consagrada após a emergência das ciências pós-modernistas, a imprevisibilidade ocorre posto que, entre uma fase e outra, o evento pode ser alterado por diferentes momentos da observação.

Entretanto, o arqueólogo pode escapar desta armadilha se compreender a natureza do tempo arqueológico (MAGALHÃES, 1993). Um dos problemas que impediram o nascimento da arqueologia científica ainda no século XIX foi o fato de o tempo histórico ser compreendido como uma sucessão linear, segundo uma ordem progressiva e universal. Esse tempo não era novidade no mundo ocidental, embora tenha se consagrado definitivamente com o evolucionismo darwinista. Há estudos que mostram o seu surgimento junto com o cristianismo, opondo-se ao tempo pagão, que era essencialmente circular. Muitos pensadores posteriores sugeriram outros modos operantes para o tempo circular, como Nietzsche, Giambattista Vico, Oswald Spengler e Arnold Toymbee, por exemplo. Porém, esses modos operantes não suplantaram a força do tempo linear nas idéias dominantes e alguns, como o eterno retorno da diferença, ainda permanecem desconhecidos (ou inconscientes) para a maioria dos pensadores, mesmo quando eles não suportam o peso da infinitude linear.

Entretanto, a própria modernidade fragmentou o tempo linear, que explodiu numa série quase infinita de histórias paralelas. A Antropologia, ao rever a questão da linearidade do tempo cria, através do estruturalismo, o relativismo cultural. Já a história, influenciada por esta, elimina o acontecimento com a dilatação do presente, o qual já não é mais pensado como antecipação do futuro, mas sim como campo de uma possível reciclagem do passado (DOSSE, 1999). Neste tempo, o futuro é amarrado a um equilíbrio presente chamado a repetir-se indefinidamente. Assim, na modernidade, há a multiplicação de tempos paralelos, todos em presente perpétuo.

A tentativa da antropologia e da história em se adaptar à nova natureza que se formatava no século XX revelou-se inconsistente, porque elas esqueceram ou ignoraram a revolução maior submersa no universo relativístico: a revolução quântica. No universo quântico o tempo é pontual e linear e saltos entre linhas de tempos diferentes é mais regra do que exceção. Como a arqueologia não é uma ciência que precisou adaptar-se à nova natureza, já que é fruto do seu despontar, seu tempo pode ser entendido diferentemente do tempo circular dos antigos, do linear clássico e do presente perpétuo modernista. Ou seja, o tempo não deixa de ser uma sucessão, mas uma sucessão de diferenças paralelas, no qual o presente nunca permanece. Ou então, o presente permanece, mas sempre se modificando juntamente com outros presentes possíveis. Conseqüentemente, tanto o futuro quanto o passado são tão variáveis quanto o presente. Assim, há o eterno retorno da diferença, que ocorre tanto no tempo quanto no espaço. Porém, por ser tão pontual quanto linear, isto é, tanto particular quanto universal, há vórtices temporais compondo corpos coletivos da mesma natureza (com características particulares universais), mas que apresentam pontos de conexão entre si (MAGALHÃES, 2005).

Se for assim, então por que apesar de toda a heterogeneidade existente nas idéias e práticas arqueológicas, predomina no Brasil, quase um século depois, o discurso positivista do resgate do passado para se conhecer o presente? Pela mesma razão porque, apesar de toda incrível produção tecnológica de ordem prática e utilitária, a física quântica ainda permanece sendo um mistério para as mentes condicionadas pela luz. Não se pode esquecer que as mudanças nunca são homogêneas e nem sincronicamente absolutas. Entretanto, a mudança no modo como a natureza passa a se percebida, não sendo mais pelo olhar, obriga a pensá-la para além do senso comum. A necessidade de manutenção de seu antigo status, posto permanecerem presos às impressionantes imagens do mundo luminoso, faz os iluminantes classificarem, como mera subjetividade ou irracionalidade, toda imaginação que vai além da objetividade familiar e controlável do mundo visível.

O importante, porém, é que a realidade, independente de qualquer vontade, só pode ser apreendida quando penetra-se seu âmago através das suas formas aparentes (as que os olhos vêem). Caso contrário, indaga-se por que apesar de todo discurso favorável ao resgate do passado e da compreensão do presente pelo entendimento daquele, nenhum arqueólogo com esse discurso foi capaz de transformar a realidade? Esperar-se-ía que o resultado efetivo desse entendimento fosse este. Afinal, se uma ciência não é capaz de interferir na realidade então, para o quê ela serve? Para quê serve a apreensão do mundo se a ciência, em vez de ser crítica (a negação da negação, ou seja, do erro), for meramente contemplativa? Obviamente, é de se esperar que qualquer ciência, inclusive as sociais, seja capaz de interferir no mundo e não apenas explicá-lo. Na América do Sul e no Brasil, arqueólogos como Funari (1999), Fournierin (1999), Eremides de Oliveira (2005), entre outros, propõem uma arqueologia interventora. Ainda que algumas propostas sejam discutíveis e, no mais das vezes, independente da operacionalidade das mesmas, não conseguem sacudir a indiferença da sociedade de arqueólogos, isso mostra o quanto essa questão é atual e ainda mau compreendida. Porém, a tarefa de explicação do mundo é função suficiente apenas para a mitologia. Ciência não é para criar mitos sobre a criação do Universo, mas sim para produzir artefatos que interfiram nele. E não é justamente isto o que acontece?

Na própria ciência humana há exemplos de tentativas de interferência sobre a realidade, como as propostas do marxismo e das teorias econômicas em geral. Essas tentativas de interferência, entretanto, fracassaram. Fato estabelecido porque estavam relacionadas às premissas da ciência moderna, demasiadamente impregnada pelos preceitos clássicos, que se baseavam na previsibilidade proporcionada pelo entendimento certeiro da realidade. Como o controle da natureza social não garante a ordem e muito menos a previsibilidade, as interferências geraram mais desconstrução do que construção, mais entropia do que ordem. As teorias sociais e econômicas elaboradas pela ciência modernista foram incapazes de refazer o mundo sobre o entulho das torres lançadas ao chão, porque desconheciam que a interferência sobre a realidade só é possível através da antecipação e não da previsão.

A incapacidade de boa parte da arqueologia feita no Brasil em perceber que o tempo não é resgatável; seu conformismo com um mero entendimento da realidade (que não é possível porque ela tenta fazer isto através da explicação do passado em si); e a ausência de uma preocupação com o curso da história vivida; devem-se à incompreensão de que essa arqueologia tem a natureza do seu próprio objeto. Aliás, é bastante provável que menos de 10% dos arqueólogos, que intitulam suas pesquisas com a palavra resgate, em algum lugar da oração, têm noção exata do que estão dizendo. Por outro lado, a noção exata não basta. É preciso entender também, que a natureza desse objeto só permite interferência na realidade, através da antecipação de eventos futuros, que já estavam no passado e também no presente. Portanto, não é nem pelo simples entendimento do passado e nem por qualquer capacidade de previsão do futuro. Nada que esteja aquém ou além do observador presente pode ser inferido.

O entendimento incorreto da natureza gera toda sorte de desvio do pensamento. Na história da literatura brasileira, por exemplo, os seus primórdios estavam severamente atrelados aos ditames da literatura européia. O que era nativo era completamente desprovido de valor literário ou artístico, de modo que escritor decente era aquele que se despia de qualquer originalidade e se esforçava para repetir os padrões artísticos europeus. Consequentemente, os escritores estavam regularmente atrasados em termos de tendência artística, porque estavam sempre à reboque das tendências internacionais e suas demandas. Durante uns dois séculos, os acadêmicos ignoraram a discussão sobre a sua incapacidade para valorizar a arte nativa, porém gastaram rios de saliva discutindo as razões do atraso da literatura brasileira frente aos ditames da moda literária e artística européia.

Na arqueologia brasileira atual, infelizmente, o nível das discussões parece estar no mesmo patamar da dos acadêmicos da literatura brasileira do século XVIII. Entretanto, enquanto a Arqueologia científica no Brasil dava seus primeiros passos, ainda nas décadas de 1940 e 1950, paralelamente à própria formação da disciplina no resto do mundo, certos cientistas sociais e outros representantes do panorama científico dos países hegemônicos geravam aberrações acadêmicas que acabaram justificando o holocausto. A Arqueologia, como disciplina científica, não foi fruto de homens brilhantes e nem do avanço do capitalismo. Suas técnicas, métodos e teorias estavam surgindo em diferentes regiões e sociedades do mundo.

No Brasil, nas décadas de 1950 e 1960, por exemplo, métodos estratigráficos, originários da paleontologia e geologia, mas atribuídos a especialistas americanos, e métodos europeus de escavações detalhadamente controladas, atribuídas a especialistas franceses, foram fundidos na década de 1970, paralelamente à arqueologia feita no resto do mundo. Se aí não ocorreu qualquer originalidade, pelo menos se acompanhou a tendência de consolidação do método arqueológico. Porém, o costume de se guiar pelo Norte da hegemonia científica dos países ricos, próprio de mentalidades com baixa auto-estima intelectual, tem ignorado, sistematicamente, qualquer avanço original, especialmente teórico, que a arqueologia feita no Brasil possa ter proporcionado. O que é um desperdício.

Na década de 1950, por exemplo, quando Betty Meggers treina arqueólogos brasileiros para que esses possam efetivar suas pesquisas, a fundamentação teórica introduzida, o neo-evolucionismo, o que, além de ser fruto do século XIX, já era questionada por muitos outros arqueólogos (TRIGGER, 2004). Mais que isto. Lévi-Strauss, crítico ferrenho do neoevolucionismo e cientista modernista, já havia lecionado na Universidade de São Paulo entre os anos de 1934 a 1937 e passou quatro anos lecionando nos Estados Unidos nos anos de 1950 a 1954. Portanto, os princípios do estruturalismo já exerciam forte influência entre os antropólogos brasileiros, quando Meggers chegou com o seu neo-evolucionismo pré-modernista. O estruturalismo virou 'moda' intelectual nos anos 1960 e 1970, entretanto, não entre os arqueólogos. Anos depois chega ao Brasil Anna Roosevelt, em fins da década de 1980 e início da seguinte. Fazendo uma crítica ferrenha às falhas derivadas da ausência da necessidade de se usar dados arqueológicos para estudar aspecto não-materiais de sistemas culturais, observadas nas pesquisas de Meggers, ela tenta restaurar o neo-evolucionismo na teoria arqueológica amazônica,

Apesar do sucesso inicial, Roosevelt não obteve a confirmação das suas proposições teóricas. Por outro lado, desde a última década do século passado, arqueólogos se voltaram para o estruturalismo, especialmente na sua vertente histórica. Mas justamente agora, que o relativismo cultural tem esbarrado em seus limites e encontrado forte reação filosófica (DOSSE, 1999), surgem trabalhos na arqueologia, geralmente relacionados ao regional. Trabalhos que já surgem sujeitos a uma saraivada de críticas, justamente pela ausência de uma perspectiva de acontecimento universal. Por conta dessa insatisfação, que poderia ser uma motivação para uma discussão mais profunda sobre a teoria arqueológica na Amazônia, é com espanto que ouço arqueólogos pregando o retorno às idéias de Meggers.

O problema dos arqueólogos, portanto, é, antes de mais nada, saber o que hoje se pode entender por ciência e qual a particularidade do seu objeto frente à idéia que essa ciência tem da própria natureza. A questão é saber o que vem a ser qualquer dessas coisas: ciência e natureza. A arqueologia é Arqueologia quando a sua ciência, que trata de artefatos materiais e não materiais deslocados no tempo, não diferencia mais entre si natureza, homem e cultura; quando reconhece que seu objeto distorcido pela temporalidade pode ser revelado no espaço ocupado pelo observador; quando reconhece que o único tempo sensível é o tempo presente do observador. Sobretudo, quando reconhece que a arqueologia é ciência, mas não é a Ciência Moderna.

A arqueologia é a ciência de penetração que explora a aparência explícita e superficial da história. Portanto, é pós-modernista.

A Arqueologia pode retirar o homem moderno da letargia histórica que o enquadra, na qual a adaptação ao hábito do choque que o normaliza está definida no caminho percorrido pela razão técnica, funcional e pragmática das ciências voltadas à autopreservação. A arqueologia pode romper este bloqueio fazendo vir à superfície, a potência virtual proveniente das culturas humanas esquecidas pela história, mas ainda manifestas no lugar próprio de suas expressões originais.

O arqueólogo pode ir além do interesse de saber de onde as coisas surgem a fim de saber onde elas estão e para onde estão convergindo. Para tanto, ele precisa se tornar hábil em capturar do passado algo ainda manifesto no presente e capaz de interferir positivamente no futuro, não num sentido meramente instrumental, mas no sentido significante que o passado-presente pode ter para nós amanhã.

Neste ponto ele não prevê, antecipa. Nessa arqueologia, a intuição com sua disposição para a absorção do inconsciente que habita, quer os indivíduos, quer as sociedades, pode produzir um conhecimento 'antecipativo' através da investigação de durações contínuas. A arqueologia pode desmascarar o efeito saturado do sujeito que ao ver-se, se confunde com a imagem daquilo que gostaria de ver. O efeito próprio dessa confusão de imagens é trocar a imagem do ser das coisas pela imagem do desejo.

A temporalidade arqueológica revela que sempre encontra-se nas linhas do passado um devir que se extinguiu, mas que constitui o seu próprio sentido. A arqueologia, ao mergulhar no passado, viaja pelo interior da história, alterando e diferenciando o seu mundo, tornando-o estranho para si mesmo. Assim, neste sentimento de estranheza, de 'alheamento', distância e duração, seu mundo não se estreita, alarga-se; não se bloqueia, mas experimenta a vertigem da desestruturação que impõe à história as alterações do tempo.

A arqueologia guarda um vínculo umbilical com o tempo e tem, portanto, muito a aprender com ele, desde que renuncie a 'instrumentalizá-lo', a tomá-lo como mera condição do contato com memórias esquecidas ou como reconstituição de uma outra - externa - realidade. Ela deve procurar, no tempo, os objetivos menos nítidos de um acontecimento que se projeta no passado e no futuro, que lhe permite não só encontrar-se no sentido próprio dele bem como transformar o presente e a sua realidade.

Assumir a natureza invisível dos objetos arqueológicos é reconhecer um tempo presente cuja atividade confere ao saber arqueológico a capacidade de antecipar o futuro. Esta é a diferença em relação àqueles que, no fim das contas, buscam algum meio de previsão. O que está sendo colocado é a possibilidade da antecipação do que está por vir. E a novidade é esta: visto que só o tempo presente pode ser vivenciado e é nele que se encontra o ponto de intercessão do o passado e do futuro, então tudo que é possível projetar para depois é porque já pode ser vivenciado agora.

CONCLUSÃO

A Arqueologia não é fruto das causas que fizeram surgir as ciências naturais, a história e as ciências sociais. A Arqueologia tem as suas próprias causas e estas não são iluministas. Portanto, a positividade da arqueologia, se ela quiser cumprir algum papel histórico para a ciência, é despojar-se de todo e qualquer vínculo cumulativo, insensível e obstruído com o mundo, relacionado à percepção das ciências baseadas na observação visual da natureza.

Todo pensamento, sentido ou percepção é uma imagem psíquica, e o mundo em si existe o tanto quanto se pode produzir uma composição psíquica dele. Uma realidade arqueológica sem uma força inconsciente, sem uma revelação psíquica é inútil, pois não carrega sentido e não pode transformar a realidade. Toda ciência deve ser capaz de transformar a realidade, portanto, o pensamento arqueológico deve produzir uma noção conseqüente com força suficiente para transformar o real.

Até mesmo a matéria é uma hipótese, pois quando se diz 'matéria' realmente se cria um símbolo de algo desconhecido. Na verdade, o princípio científico e filosófico da unicidade do ser, da vida e do cosmos, é indivisível em 'mental' e 'corporal', 'espiritual' e 'material' e em 'natureza' e 'cultura'. A única realidade é a que está aqui e agora; verdades passadas nunca escreverão este texto, ou o lerão, ou pensarão nesses conceitos; nem existem verdades futuras - elas ainda estão em gestação e escreverão e lerão textos distintos e terão outra compreensão de mundo e pensamentos, talvez, mais intricados, mas certamente diferentes. Portanto, a arqueologia que conceitua o passado com mera referência no presente, acaba por correr o risco de criar símbolos já conhecidos, mas inúteis, uma vez que eles estão vazios dos conteúdos psíquicos e sensíveis do mesmo passado nomeado por ela.

A solução desse problema aparece quando se busca as forças e expressões psíquicas do passado investigado, fazendo ressurgir uma aura até então ausente de cor e vibração no tempo, mas ainda ativa no presente, pois preservou no tempo e no espaço, a capacidade de atravessar o presente. Desse modo, não é qualquer acontecimento arqueológico que fornece conteúdo psíquico e sensível atuante. Distinguir entre as manifestações arqueológicas, aquelas cujas expressões guardam uma força inconsciente ainda adequada pois ainda são ativas às sociedades contemporâneas deve ser a tarefa do arqueólogo.

A Arqueologia, das ciências, é aquela que responde às necessidades interiores da história. Ela é meio-irmã da psicanálise, pois é filha da mesma mãe. A arqueologia não é uma disciplina qualquer, ela possui uma especificidade muito particular, exclusiva dela. No máximo pode ser comparada à psicanálise, mas enquanto esta trata das pulsões íntimas individuais, a arqueologia trata das pulsões sócio-culturais no interior da história. A motivação da arqueologia é o movimento de interiorização na história, implícito na vontade humana de saber além do visível.

O espetáculo arqueológico não é o que se desenrola à frente das vistas do arqueólogo, mas é aquele que se oferece ao recolhimento de algo que brota de dentro da história e não se deixa aprisionar pelo passado e nem pode ser congelado por uma geometria temporal que se repete eternamente ou se alonga até o infinito.

Hoje, não é só a história que se encontra subtraída à visibilidade, mas a própria visibilidade como expressão da ciência. O que faz a arqueologia avançar não é a evidência intelectual das interpretações propostas pelo passado, mas um movimento ao interior desse mesmo passado, que além de não se deixar descrever em termos de atos de visão, faz com que aquele que o investiga absorva um sentido até então julgado inexistente em si mesmo.

O impulso ao interior e ao ex-secreto acaba levando a mentalidade a uma busca de comunhão com a natureza. Esta busca se desespera na medida em que se constata que a natureza se reduz no urbano e no social à natureza não tão evidente das bactérias, dos vírus e do próprio homem. Mas esta busca da natureza traz o retorno da diferença, onde ela nunca permanece a mesma, mas sempre é aquela que apreendemos. Porque, a natureza é o reduto onde a vida habita e se manifesta amorosamente.

A Arqueologia, no momento em que sente o mundo, a ecologia e o indivíduo como uma só expressão, torna-se subjetiva e política. Contudo, é preciso que a arqueologia sinta o indivíduo sincronicamente ligado ao social, ao cultural e à natureza, a um universo que responde por ele e por muitos. Um universo que não é nem único e nem infinito, mas particular e paralelo a muitos outros com os quais pode deter pontos de conexão. O que vai além dessa perspectiva, visto que também é preciso que o arqueólogo compreenda esta propriedade imanente aos seus objetos de estudo. Só assim ter-se-á a recuperação da aura da História. O objetivo final do conhecimento arqueológico, enfim, não é a simples recuperação de técnicas e práticas passadas, mas a lapidação da alma coletiva do Homem contemporâneo. E o objetivo maior da ciência é buscar com eficiência a capacidade de fazer vir a ser com beleza, aquilo que nem mesmo era natureza.

Recebido: 13/04/2006

Aprovado: 07/08/2006

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  • 1
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  • Datas de Publicação

    • Publicação nesta coleção
      01 Abr 2011
    • Data do Fascículo
      Dez 2006

    Histórico

    • Aceito
      07 Ago 2006
    • Recebido
      13 Abr 2006
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