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Estudos comparativos sobre Apurinã baseados em documentos antigos

Apurinã comparative studies based on old documents

Resumos

O presente trabalho é resultado de uma pesquisa comparativa dos dados da língua Apurinã (Aruák), falada pelo povo Apurinã no sudeste do estado do Amazonas, e com base em dados dessa mesma língua registrados em documentos antigos. A ideia é que, após a etapa de reconstrução interna dessa língua, poderemos reconstruir formas lexicais antigas e depois compará-las a formas cognatas presentes em línguas próximas de Apurinã, neste caso, Piro e Iñapari. Tivemos como principais objetivos: (i) contribuir para a descrição da língua, especialmente em relação ao desenvolvimento dos principais traços ‘dialetais’; e (ii) contribuir para estudos histórico-comparativos aruák, que partem de uma abordagem bottom-up. A aplicabilidade do método histórico-comparativo, principalmente, reconstrução interna, permite determinar a presença de formas lexicais em documentos antigos, os quais corresponderiam a variantes distintas presentes nas variedades atuais do Apurinã moderno. A determinação da presença de tais variações nos permitirá identificar formas mais antigas entre as variantes que existem atualmente na língua. A partir desse conhecimento, poderemos construir hipóteses sobre o desenvolvimento dessa variedade lexical e postular qual entre elas é a mais antiga. Os resultados, portanto, contribuem para o conhecimento do passado da língua e do povo Apurinã e para estudos histórico-comparativos da família aruák.

Apurinã; Aruák; Dialetos; Reconstrução interna


The present work is the result of comparative linguistic research on data from the Apurinã language (Arawak) as currently spoken by the Apurinã people in the south-eastern part of the state of Amazonas, and on Apurinã language data registered in old documents. After internal reconstruction of the language, we reconstruct ancient lexical forms and compare them to cognate forms in languages closely related to Apurinã, Piro and Iñapari. We have as main objectives (i) to contribute to the description of the language, especially regarding the development of major dialectic aspects, and (ii) to contribute to historical-comparative studies of Arawak using a ‘bottom-up’ approach. The application of the historical-comparative method, mainly internal reconstruction, allows us to determine which lexical forms in ancient documents could correspond to different variants in modern Apurinã. This helps us to identify older forms among the variants that presently exist in the language. From this knowledge, we build hypotheses regarding the development of this lexical variety and postulate which among them is the most ancient. The results contribute to the knowledge of the past of the Apurinã language and people and to historical-comparative studies of the Arawak family.

Apurinã; Arawak; Dialects; Internal reconstruction


INTRODUÇÃO

Estudos comparativos realizados por Facundes (2000FACUNDES, Sidi. The language of the Apurinã people of Brazil (Maipure/Arawak). 2000. Tese (Doutorado em Linguística) – State University of New York, Buffalo, 2000., 2002FACUNDES, Sidi. Historical linguistics and its contribution to improving the knowledge of Arawak. In: HILL, Jonathan D.; GRANERO, Fernando (Orgs.). Comparative Arawakan histories. Illinois: University of Illinois Press, 2002. p. 74-96.) e Facundes e Brandão (2011)FACUNDES, Sidi; BRANDÃO, Ana Paula B. Comparative Arawak linguistics: notes on reconstruction, diffusion and Amazonian pre-history. In: HORNBORG, Alf; HILL, Jonathan D. (Orgs). Ethnicity in ancient Amazonia: reconstructing past identities from archaeology, linguistics, and ethnohistory. Boulder: University of Colorado Press, 2011. p. 197-210. constataram que há uma proximidade entre as línguas Apurinã, Piro e Iñapari. Tal conclusão foi fundamentada por meio de uma comparação entre formas lexicais nessas três línguas, seguida pelas etapas de identificação de cognatos e de reconstrução das protoformas, que corresponderiam a um estágio anterior à separação destas línguas em relação à sua língua-mãe – possivelmente proto-Apurinã-Piro-Iñapari. A partir dessa comparação, os autores sugeriram algumas inferências sobre a protocultura e pré-história dos povos falantes dessas línguas. No presente trabalho, analisamos dados antigos, coletados para a língua Apurinã pelos primeiros viajantes que tiveram contato com aquele povo nos séculos passados, com dois objetivos principais: (i) contribuir para a descrição da língua, especialmente em relação ao desenvolvimento dos seus principais traços dialetais, comparando quais entre as variantes do Apurinã aparecem nos registros antigos da língua; e (ii) contribuir para estudos histórico-comparativos aruák, que partem de uma abordagem bottom-up (da base para o topo), tal como exemplificado em Facundes e Brandão (2011)FACUNDES, Sidi; BRANDÃO, Ana Paula B. Comparative Arawak linguistics: notes on reconstruction, diffusion and Amazonian pre-history. In: HORNBORG, Alf; HILL, Jonathan D. (Orgs). Ethnicity in ancient Amazonia: reconstructing past identities from archaeology, linguistics, and ethnohistory. Boulder: University of Colorado Press, 2011. p. 197-210., onde se busca inicialmente reconstruir os menores subagrupamentos de línguas com menor profundidade temporal, isto é, aqueles cujas línguas divergiram-se mais recentemente como línguas distintas, para depois tentar reconstruir os subgrupos com maior profundidade temporal (os de divergência mais antiga).

O Apurinã é uma etnia indígena e uma língua minoritária falada no sudeste do estado do Amazonas. Nossa investigação foi feita a partir dos dados encontrados em documentos antigos sobre Apurinã, utilizando-se, para isso, de métodos histórico-comparativos e, principalmente, de reconstrução interna. Os resultados da análise permitem determinar a presença de formas lexicais em documentos antigos, as quais correspondem a variantes distintas presentes nas variedades atuais do Apurinã moderno, variações que ocorrem nos níveis fonológico e lexical. A determinação da presença ou não de variações em estágios antigos da língua Apurinã, e de quais variações específicas são elas, nos permitirá tanto identificar algumas das formas mais antigas entre as variantes atualmente existentes, como também construir hipóteses sobre o desenvolvimento delas. Os resultados, portanto, contribuem para o conhecimento do passado da língua e do povo Apurinã e para estudos histórico-comparativos da família aruák.

ESTADO ATUAL DOS ESTUDOS SOBRE APURINÃ E A FAMÍLIA ARUÁK

O presente trabalho faz parte de um quadro recente de pesquisas, em que o avanço nas descrições de línguas da família aruák tem viabilizado algo que não era possível há alguns anos: a) comparação entre dados confiáveis de línguas distintas; b) identificação mais confiável de cognatos entre elas; c) reconstrução de formas ancestrais dessas línguas; d) verificação de subagrupamentos linguísticos; e) reconstrução (por meio de inferências) de conceitos sobre a protocultura e pré-história desses povos minoritários. Formas antigas, faladas no passado, que conceituavam elementos da fauna e da flora, da geografia e de costumes etc. podem ser reconstruídas e, a partir delas, pode-se fazer inferências acerca dos antepassados de um povo. Os motivos que impulsionaram esta pesquisa advêm da necessidade de verificar – e, quando for o caso, de reconstruir – os subagrupamentos aruák até então postulados; no nosso caso, do ramo Apurinã-Piro-Iñapari (Figura 1). Alguns estudos anteriores, como os de Matteson (1972)MATTESON, E. Proto Arawakan. In: MATTESON, Esther; WHEELER, Alva; JACKSON, Frances L.; WALTZ, Nathan E.; CHRISTIAN, Diana R. (Orgs.). Comparative studies in amerindian Languages. Haya: Mouton, 1972. p. 160-242., apresentam problemas no uso do método histórico-comparativo; outros não levaram em consideração descrições mais recentes (por exemplo, Payne, 1991PAYNE, David L. Classification of Maipuran (Arawakan) languages based on shared lexical retentions. In: DERBYSHIRE, Desmond C.; PULLUM, Geoffrey K. (Orgs.). Handbook of Amazonian Languages. Berlim: Mouton de Gruyter, 1991. v. 3, p. 355-499.; Aikhenvald, 1999AIKHENVALD, Alexandra Y. The Arawak language family. In: DIXON, R. M. W.; AIKHENVALD, Alexandra Y. (Orgs.). The Amazonian languages. Cambridge: Cambridge University Press, 1999. p. 65-106.; Ramirez, 2001RAMIREZ, Henri. Línguas Arawak da Amazônia setentrional. Manaus: Editora da Universidade do Amazonas, 2001.) e fizeram uma abordagem top down, tentando reconstruir as formas do Proto-Aruák, sem reconstruir as famílias intermediárias.

Figura 1
Localização aproximada das línguas da família aruák. Fonte: Facundes e Brandão (2011).

O trabalho preliminar publicado em Facundes (2002)FACUNDES, Sidi. Historical linguistics and its contribution to improving the knowledge of Arawak. In: HILL, Jonathan D.; GRANERO, Fernando (Orgs.). Comparative Arawakan histories. Illinois: University of Illinois Press, 2002. p. 74-96. segue uma abordagem de bottom-up, ou seja, em que são propostos inicialmente os subagrupamentos menores, antes de se postular todo o grupo maior e mais antigo, isto é, o proto-aruák, a partir da comparação entre tais subagrupamentos. O subgrupo aruák chamado Proto-Apurinã-Piro-Iñapari, no contexto no qual esta pesquisa se encaixa, é uma hipótese ainda sob investigação, sugerida por retenções lexicais, tais como aquelas apresentadas em Brandão e Facundes (2007)BRANDÃO, Ana Paula; FACUNDES, Sidi. Estudos comparativos do léxico da fauna e flora Aruák. Boletim do Museu Paraense Emílio Goeldi. Ciências Humanas, v. 2, n. 2, p. 109-131, maio-ago. 2007.1 1 A lista utilizada em Brandão e Facundes (2007) baseia-se na apresentada em Payne (1991), na reconstrução da fonologia segmental em proto-aruák. Ela constitui o conjunto de cognatos entre línguas aruák mais confiável. Em Brandão e Facundes (2007), essa lista foi atualizada com dados oriundos de pesquisas mais recentes em algumas das línguas comparadas. , cujos números são reproduzidos na Tabela 1. Nessa tabela, os números em realce sugerem maior proximidade de Apurinã, Piro e Iñapari entre si do que entre qualquer dessas três línguas e outras línguas da família aruák.

Tabela 1
Números de retenções lexicais compartilhadas entre línguas aruák.

Facundes (2002)FACUNDES, Sidi. Historical linguistics and its contribution to improving the knowledge of Arawak. In: HILL, Jonathan D.; GRANERO, Fernando (Orgs.). Comparative Arawakan histories. Illinois: University of Illinois Press, 2002. p. 74-96., Brandão e Facundes (2007)BRANDÃO, Ana Paula; FACUNDES, Sidi. Estudos comparativos do léxico da fauna e flora Aruák. Boletim do Museu Paraense Emílio Goeldi. Ciências Humanas, v. 2, n. 2, p. 109-131, maio-ago. 2007. e Facundes e Brandão (2011)FACUNDES, Sidi; BRANDÃO, Ana Paula B. Comparative Arawak linguistics: notes on reconstruction, diffusion and Amazonian pre-history. In: HORNBORG, Alf; HILL, Jonathan D. (Orgs). Ethnicity in ancient Amazonia: reconstructing past identities from archaeology, linguistics, and ethnohistory. Boulder: University of Colorado Press, 2011. p. 197-210. utilizaram o método histórico-comparativo. Como nosso foco aqui são as variedades do Apurinã apenas, levando em consideração dados de Piro e Iñapari somente para estabelecer qual entre duas ou mais formas variantes é a mais antiga em Apurinã, utilizamo-nos principalmente do método de reconstrução interna. Levamos em consideração também os conhecimentos revelados a partir de estudos sobre mudanças linguísticas envolvendo algumas formas lexicais alterando-se para formas gramaticais, outras formas gramaticais adquirindo outras funções gramaticais e, por fim, formas discursivas adquirindo um status gramatical; ou seja, processos que tendem a envolver mudanças semânticas (semantic bleaching) e reduções fonológicas, típicas de estudos sobre mudanças gramaticais (Campbell, 1999CAMPBELL, Lyle. Historical linguistics: an introduction. Cambridge: The MIT Press, 1999.).

O método de reconstrução interna consiste simplesmente em analisar os padrões de variação em uma única língua em busca de traços de propriedades pertencentes à pré-história dessa língua. Por exemplo, a análise das variações alomórficas ou morfofonológicas na língua pode indicar quais entre as variantes seriam as formas mais antigas e possivelmente intermediárias entre o Apurinã contemporâneo e um estágio anterior da língua, posterior à possível cisão do Apurinã de Piro e Iñapari. O método de reconstrução interna é menos confiável do que o método comparativo (Ringe, 2003RINGE, Don. Internal reconstructions. In: JOSEPH, Brian D.; JANDA, Richard D. (Orgs.). Handbook of historical linguistics. Malden: Blackwell, 2003. p. 244-261.), mas pode ser informativo, quando usado em combinação com o último (Campbell, 1999CAMPBELL, Lyle. Historical linguistics: an introduction. Cambridge: The MIT Press, 1999.).

A relevância da metodologia de estudos sobre mudanças linguísticas, tanto no âmbito da literatura em linguística histórica em geral, como da literatura sobre gramaticalização, manifesta-se quando comparamos o Apurinã em diferentes épocas e identificamos mudanças que ocorreram entre uma época e outra que conduziram à forma contemporânea da língua. Por exemplo, a simples presença de segmentos fonológicos em uma forma antiga, que estão ausentes na forma atual equivalente na língua, pode indicar um processo de atrição fonológica recente; a partir disso, podemos inferir que a forma mais antiga é aquela que conservou tais segmentos fonológicos e, portanto, seria a forma a ser comparada com cognatos em outras línguas aruák.

Já as inferências sobre a pré-história e a protocultura, quando feitas, apoiam-se nos métodos da linguística histórica (Campbell, 1999CAMPBELL, Lyle. Historical linguistics: an introduction. Cambridge: The MIT Press, 1999., entre outros), que se baseiam em uma seleção de conceitos linguísticos reconstruídos para fazer as inferências sobre a pré-história e a protocultura de um povo. A ideia é que formas linguísticas que são de relevância histórica podem informar sobre a pré-história de um povo, sua cultura e sociedade.

Outra questão importante a ser examinada está relacionada aos fatores que produziram a diversidade atual da língua Apurinã, ou seja, suas distintas variedades (ou dialetos). Facundes (2000)FACUNDES, Sidi. The language of the Apurinã people of Brazil (Maipure/Arawak). 2000. Tese (Doutorado em Linguística) – State University of New York, Buffalo, 2000., Brandão (2006)BRANDÃO, Ana Paula. Dicionário da fauna e flora apurinã. 2006. Monografia (Graduação em Letras - Língua Portuguesa) – Universidade Federal do Pará, Belém, 2006. e Barreto (2007)BARRETO, Érica Lúcia. Variação em Apurinã: aspectos linguísticos e fatores condicionantes. 2007. Dissertação (Mestrado em Letras - Linguística) – Universidade Federal do Pará, Belém, 2007. já haviam demonstrado a existência de diferentes variedades dessa língua, em alguns casos distribuídas em espaços geográficos distintos. Os resultados da pesquisa mostram-se relevantes para a identificação de possíveis fontes e períodos históricos de alguns traços da fonologia segmental que distinguem variedades da língua contemporânea.

Durante a pesquisa retratada neste trabalho, uma base eletrônica de dados linguísticos comparativos aruák, resultante de estudos anteriores, foi atualizada e expandida, para incluir os dados da língua Apurinã atestados nos documentos antigos de Koch-Grünberg (1919)KOCH-GRÜNBERG, Theodor. Ein Beitrag zur Sprache der Ipuriná-Indianer. Journal de la Société des Americanistes, n. 11, p. 57-96, 1919., Nimuendajú (1955a)NIMUENDAJÚ, Curt. Vocabulários Makuší, Wapičána, Ipurinã’ e Kapišanã’. Journal de la Société des Américanistes, v. 44, p. 179-197, 1955a. e de Polak (1894)POLAK, Jacob E. R. A grammar and a vocabulary of the Ipuriná language. London: Kegan Paul, Trench, Trübner Co., 1894. (Vocabulary Publication Fund, n. 1). Disponível em: <https://archive.org/details/grammarandvocabu00pola>. Acesso em: 24 mar. 2015.
https://archive.org/details/grammarandvo...
.

Em seguida, tais dados foram comparados aos previamente presentes na base eletrônica. Durante esse processo, cada informação foi também verificada junto a um falante nativo da língua. A hipótese preliminar é a de que dados de registros antigos da língua podem revelar informações sobre um passado mais remoto, e que, ao compararmos os antigos aos atuais, é possível identificar processos históricos de mudanças na língua que ocorreram entre as datas das primeiras documentações da língua (século XIX) e a língua contemporânea. Após a conclusão dessa pesquisa, baseada em documentos antigos, uma nova pesquisa foi iniciada, com o objetivo de identificar nos relatos tradicionais Apurinã termos ausentes da fala cotidiana. A ideia seria a de que, talvez, lá se encontrassem formas arcaicas e, entre elas, novos cognatos aruák. Embora essa nova pesquisa ainda esteja em andamento, e por isso não foi tratada aqui, alguns resultados preliminares mostram-se promissores.

A ênfase dada à reconstrução interna do Apurinã deve-se ao fato de que, para entender o passado remoto de uma língua, é importante, antes, compreender o seu sistema linguístico vigente e o seu passado recente. Os elementos investigados foram segmentos da fonologia Apurinã e itens lexicais que variavam de forma consistente nos diferentes registros documentais da língua. Quando essas variações ou alternâncias eram consistentes entre os registros comparados, as correspondências fonológicas podiam indicar processos de mudanças pelas quais a língua passou entre o período do contato e o período atual. Por exemplo, a correspondência entre ‘ia’ e ‘e’ diante de /k/ em palavras como kiama e kema, termo usado para designar ‘anta’, sugere que um processo fonológico de monotongação pode ter ocorrido na língua. Esse processo ainda tem um reflexo fonético nas variedades contemporâneas da língua, já que atualmente /k/ aparece pós-palatalizado diante de [ε], que é uma variante de /e/. Isso apresenta certos problemas para a seleção da forma básica desse fonema, e sua discussão vai além do escopo deste trabalho2 2 Para discussão detalhada sobre este assunto, ver Facundes (2000). . Aqui, o relevante é que os dados nos documentos antigos sugerem que a fonte dessa palatalização é a vogal cheia /i/, no ambiente /k__a/. Portanto, dispor dessas informações mais antigas sobre Apurinã torna os dados dessa língua mais informativos quando comparados aos das outras línguas da mesma família (Piro e Iñapari). Confirmado isso, a forma a ser comparada com outras línguas aruák seria *kiama, e não kema. Procedendo dessa maneira, é possível contribuir para progressos importantes na área de estudos das línguas aruák.

Após a análise dos dados nos registros antigos, percebeu-se que ao menos 891 amostras das formas faladas no Apurinã contemporâneo são comparáveis às formas atestadas nos registros antigos. Além da comparação entre os dados antigos e os do Apurinã atual, armazenados no banco de dados eletrônico, os antigos foram novamente verificados por um falante nativo Apurinã; dessa forma, minimizaram-se problemas de ausências de formas equivalentes, motivadas pela indisponibilidade de informações. O programa Fieldworks Language Explorer (FLEx) foi usado na compilação eletrônica do banco de dados3 3 O FLEx é produzido pela International Society of Linguistics (outrora, Summer Institute of Linguistics). .

Partindo das distinções entre as variações atestadas no Apurinã contemporâneo (Barreto, 2007BARRETO, Érica Lúcia. Variação em Apurinã: aspectos linguísticos e fatores condicionantes. 2007. Dissertação (Mestrado em Letras - Linguística) – Universidade Federal do Pará, Belém, 2007.), restringimo-nos aos dois tipos mais comuns de variação encontrados na língua: fonológica e lexical. Como exemplo do primeiro tipo de variação, temos as formas para ‘café’, kapẽe e kỹpatykyã, de um total de 108 instâncias de variações lexicais descritas em Barreto (2007)BARRETO, Érica Lúcia. Variação em Apurinã: aspectos linguísticos e fatores condicionantes. 2007. Dissertação (Mestrado em Letras - Linguística) – Universidade Federal do Pará, Belém, 2007.. Como exemplo de variação fonológica, temos as formas para ‘água’, ĩpurãa, ĩparãa e ãparãa, de um total de 191 instâncias de variações fonológicas descritas em Barreto (2007)BARRETO, Érica Lúcia. Variação em Apurinã: aspectos linguísticos e fatores condicionantes. 2007. Dissertação (Mestrado em Letras - Linguística) – Universidade Federal do Pará, Belém, 2007.. Esses dois tipos de variações são os principais componentes linguísticos que distinguem as diferentes variedades do Apurinã atual. As Tabelas 2 e 3 são uma reprodução parcial dos dados descritos em Barreto (2007)BARRETO, Érica Lúcia. Variação em Apurinã: aspectos linguísticos e fatores condicionantes. 2007. Dissertação (Mestrado em Letras - Linguística) – Universidade Federal do Pará, Belém, 2007..

Tabela 2
Amostra parcial de variações fonológicas (Barreto, 2007).

Tabela 3
Amostra parcial de variações lexicais (Barreto, 2007)4 4 “Agaú”, normalmente pronunciado “agaum”, é um termo regional de origem Apurinã usado na região de Lábrea (Amazonas) e que se refere a um tipo de árvore. .

É importante notar que Barreto (2007)BARRETO, Érica Lúcia. Variação em Apurinã: aspectos linguísticos e fatores condicionantes. 2007. Dissertação (Mestrado em Letras - Linguística) – Universidade Federal do Pará, Belém, 2007. fez uso de uma amostra de dados de Apurinã baseada em duas listas de palavras, uma contendo entre 300 e 400 palavras, outra contendo aproximadamente 700 palavras. Portanto, é logicamente possível que o número de variações possa aumentar se mais dados forem levados em consideração. Contudo, outros trabalhos sobre o léxico da língua feitos pelos autores indicam que é improvável que esse aumento seja significativo. Outras variações, além daquelas tratadas em Barreto (2007)BARRETO, Érica Lúcia. Variação em Apurinã: aspectos linguísticos e fatores condicionantes. 2007. Dissertação (Mestrado em Letras - Linguística) – Universidade Federal do Pará, Belém, 2007. e discutidas aqui, estão relacionadas às mudanças mais recentes na língua e resultam do processo de obsolescência linguística diante da substituição do Apurinã pelo português.

RESULTADOS E ANÁLISE

Os grupos de variantes analisados aqui estão entre as principais formas linguísticas que distinguem as diversas variedades atuais do Apurinã. A análise, portanto, não é exaustiva em relação ao total de variantes linguísticas existentes no Apurinã atual. As limitações impostas incluem, de um lado, a disponibilidade de formas equivalentes nos documentos antigos; de outro, incluem apenas os parâmetros de variação que são mais informativos, ou seja, aqueles mais claramente reconhecíveis como marcadores das diferentes variedades da língua atual, conforme demonstrado pela regularidade de uso e saliência formal daquilo que distingue uma forma de outra.

VARIAÇÃO FONOLÓGICA

Iniciando pelas variações fonológicas, o primeiro parâmetro a ser considerado é a variação entre /e/ e /ɨ/. Essa variação é potencialmente informativa, pois é a mais frequente atestada no Apurinã atual; Barreto (2007)BARRETO, Érica Lúcia. Variação em Apurinã: aspectos linguísticos e fatores condicionantes. 2007. Dissertação (Mestrado em Letras - Linguística) – Universidade Federal do Pará, Belém, 2007. identificou 37 instâncias dessa variação nos seus dados, das quais as seis iniciais são reproduzidas na Tabela 4.

Tabela 4
Amostra de variações entre /e/ e /ɨ/ (Barreto, 2007).

Na Tabela 5, listamos as correspondências entre os dados dos documentos antigos e os equivalentes do Apurinã atual. Nos documentos antigos, a variação entre /e/ e /ɨ/ também é a variação fonológica mais frequente. Entretanto, nem sempre é possível encontrar tal variação em formas correspondentes nos três documentos; isso se deve às quantidades distintas de dados disponíveis em cada documento, fazendo com que nem sempre as mesmas palavras que ocorrem em um documento ocorram em outro. Apesar disso, quando os dados presentes em cada documento são comparados individualmente aos do Apurinã atual, a predominância da variação entre /e/ e /ɨ/ é clara, e é mais ou menos unidirecional. Ou seja, há muitos casos de formas com o /ɨ/ no Apurinã atual que correspondem a /e/ nos documentos antigos, mas há também muitas formas em que o /e/ nos dados antigos não corresponde a /ɨ/ no Apurinã atual. Por exemplo, enquanto nɨ- ‘1SG’ no Apurinã atual correponde a ne- nos documentos antigos, -pe ‘pó, massa’ tem a mesma forma, tanto nos documentos antigos quanto nos dados do Apurinã atual. Além disso, /ɨ/ também aparece nos documentos antigos, por exemplo, nas vogais finais em ne-potólikị ‘meu joelho’, em Koch-Grünberg, e em kįwį5 5 No documento de Nimuendajú (1955a), não são descritas as propriedades fonéticas dos símbolos utilizados na ortografia para Apurinã. No entanto, a descrição feita para os símbolos em outro artigo do mesmo autor (Nimuendajú, 1955b), na mesma publicação, indica que o símbolo [į] aproxima-se da vogal alta central não arredondada [ɨ]. ‘cabeça’, em Nimuendajú, e a vogal inicial em ŷwa ‘3M.SG’, em Polak, cada um representado por uma ortografia distinta. Ainda que haja algumas imprecisões nas transcrições nas fontes antigas, a distinção entre /ɨ/ e outras vogais é feita corretamente em outros casos, o que sugere que a variação entre /ɨ/ e /e/ está relacionada a uma mudança fonológica real em Apurinã, e não a simples erros de transcrições.

Tabela 5
Amostra de variações envolvendo /ɨ/ e /e/.

O segundo parâmetro de variação fonológica a ser considerado não segue um padrão fonológico em si, pois são apenas formas cujas diferenças envolvem outro segmento fonológico na língua. O primeiro item dessa variação é a palavra para ‘água, chuva’. Há três formas distintas facilmente reconhecíveis pelos falantes da língua: 1 - /ãparã/, 2 - /ĩparã/ e 3 - /ĩpurã/, cada uma associada a grupos de falantes ou comunidades distintas. Aparecem nos documentos antigos apenas uma forma mais semelhante a 2, em Polak: Imbarán, e duas formas mais semelhantes a 3, em Koch-Grünberg: impurãna, e em Nimuendajú: įborã.

O segundo e o terceiro itens variam em termos da posição da vogal nasal. A palavra para ‘mata, floresta, selva’ pode ser 1 - /ĩthupa/ e 2 - /ithũpa/. Ignorando outros detalhes fonéticos e diferenças na transcrição, a forma 2 é atestada em dois documentos, Koch-Grünberg e Nimuendajú: itõpa, e uma forma mais próxima a 1 (por causa da vogal nasal) aparece no terceiro documento: Nimuendajú: intŷbakŷ. O mesmo acontece com a palavra para ‘urucum’: 1 - /apɨ̃kɨrɨ/, 2 - /ãpɨkɨrɨ/. Uma forma mais próxima a 1 aparece em Koch-Grünberg: apénki̥ri̥, e uma forma mais próxima a 2 aparece em Nimuendajú: ape̜ṅkirí.

O quarto item é a palavra para ‘mutum’: 1 - /irãka/ e 2 - /irẽka/. Apenas duas formas mais próximas a 1 aparecem nos documentos: Koch-Grünberg: iraňká6 6 O símbolo [ň] assemelha-se ao ‘ng’ do alemão presente em Engel (Koch-Grünberg, 1919). , Nimuendajú: iraṅga.

O quinto parâmetro são os itens caraterizáveis pela presença do fone [kᴶ], o qual é um alofone da consoante velar /k/ diante de [ɛ] no Apurinã atual. A Tabela 6 ilustra essa correspondência. A presença desse alofone não varia, em geral, entre diferentes falantes e comunidades, mas ele foi incluído aqui diante da possibilidade de os dados antigos revelarem informações sobre a sua origem, os quais mostram as seguintes correspondências a [kᴶɛ]: kiã, kyã, kié, kie, kia e ke. Exceto por um dado em Polak, há consistência na presença de uma vogal alta, e a segunda vogal é sempre uma variante de /a/ ou /e/.

Tabela 6
Correspondências envolvendo [kᴶɛ].

O último parâmetro fonológico a ser considerado é uma das marcas fonológicas mais importantes na distinção entre as diferentes variedades do Apurinã atual, e que consiste na presença ou na ausência da consoante fricativa glotal, /h/, no início de algumas palavras. Barreto (2007)BARRETO, Érica Lúcia. Variação em Apurinã: aspectos linguísticos e fatores condicionantes. 2007. Dissertação (Mestrado em Letras - Linguística) – Universidade Federal do Pará, Belém, 2007. identificou 11 palavras cujas formas variam dependendo se /h/ ocorre ou não (Tabela 7). Essa lista, porém, não é exaustiva, incluindo apenas as palavras que até então tinham sido identificadas.

Tabela 7
Presença da consoante /h/.

O fonema /h/ ocorre apenas no início de palavras, exceto se precedido pela forma clítica nu = ‘1SG’ (Facundes, 2000FACUNDES, Sidi. The language of the Apurinã people of Brazil (Maipure/Arawak). 2000. Tese (Doutorado em Linguística) – State University of New York, Buffalo, 2000.). Isso permite distinguir entre duas variedades, uma que contém /h/ no início de algumas palavras, outra que não o contém. Entre as comunidades de fala que contêm /h/, há, ainda, alguma diferença em termos de quais palavras o contêm, como mostra a Tabela 8.

Tabela 8
Situação no Apurinã moderno.

Ao examinarmos os dados nos documentos antigos (Tabela 9), percebemos duas questões: a primeira é que o /h/ já existia no Apurinã antigo; a segunda é que, provavelmente, ao menos as duas primeiras variedades descritas na Tabela 8 existiam na época em que tais dados foram registrados. As informações de Polak representam a variedade em que /h/ ocorre com mais frequência, inclusive na palavra Apurinã para o numeral ‘um’. Os dados nas demais fontes são insuficientes para se chegar a uma conclusão, mas sugerem que a variedade lá documentada é uma em que /h/ não ocorre, nem mesmo no termo Apurinã para o numeral ‘um’.

Tabela 9
Alternâncias em /h/.

Na Tabela 10, resumimos os resultados até aqui obtidos: o primeiro parâmetro mostra que em algumas palavras do Apurinã atual, o fonema /ɨ/ corresponde a /e/ nas mesmas palavras presentes nos documentos antigos, e permanecem /ɨ/ em outras palavras. A partir disso, chegamos a duas conclusões: (i) a alternância entre /e/ e /ɨ/ era um parâmetro fonológico que distinguia variedades já no Apurinã antigo; (ii) /e/, ou outra vogal foneticamente aproximada, é umas das fontes de alguns dos /ɨ/ do Apurinã atual. O segundo parâmetro mostra que apenas a forma /irãka/ é atestada nos documentos antigos, sugerindo ser essa a forma mais antiga, e que a forma /irẽka/ seria uma inovação. O terceiro parâmetro, por outro lado, mostra que ambas as formas /ĩcupa/ ou /icũpa/ eram marcas de distintas variedades da língua já no Apurinã antigo, análogo ao que o quarto parâmetro indica em relação a /apɨ̃kɨrɨ/ e /ãpɨkɨrɨ/. O quinto parâmetro, que não é uma marca de distinção entre variedades, mas sim um caso geral de alofonia na língua, sugere que a velar palatalizada [kᴶ], que ocorre sempre diante de [ɛ] no apurinã atual, teve origem na vogal /i/, ocorrendo após /k/ e antes de /a/ ou /e/, possivelmente em ditongos.

Tabela 10
Resumo das variações fonológicas.

Finalmente, o sexto parâmetro indica que /h/ já existia em ao menos uma variedade do Apurinã antigo, já operando, portanto, como distinção fonológica entre variedades. O caso de /h/ é particularmente importante, dado o seu status em outras línguas aruák. Como mostram os dados abaixo, /h/ é reconstruível para o estágio que precede o surgimento de Apurinã, Piro e Iñapari como línguas distintas, mas foi perdido na maior parte das palavras em Apurinã, em alguns casos dando origem à natalidade espontânea da vogal seguinte (Facundes e Brandão, 2005FACUNDES, Sidi; BRANDÃO, Ana Paula. Hipóteses sobre o desenvolvimento de natalidade espontânea em uma língua aruák. Estudos Lingüísticos, v. 34, p. 762-767, 2005.). Os dados da reconstrução interna de Apurinã reforçam a ideia de que /h/ é resultado de retenção, e não de inovação na língua.

Apurinã: ãpɨkɨrɨ ‘urucum’

Piro: hapixrï ‘urucum’

Iñapari: hapísíri ‘urucum’

VARIAÇÃO LEXICAL

Diferentemente da variação fonológica, a variação lexical envolve palavras cujas formas são completamente distintas umas das outras em termos fonológicos, portanto lexicalmente diferentes. Em contraste com a variação fonológica, na variação lexical o falante não pode inferir a forma de uma variante a partir da forma fonológica da variante correspondente. Os casos de variação lexical tratados aqui, na Tabela 11, resumem-se aos dez mais robustos até então encontrados, de um total de 108 casos listados em Barreto (2007)BARRETO, Érica Lúcia. Variação em Apurinã: aspectos linguísticos e fatores condicionantes. 2007. Dissertação (Mestrado em Letras - Linguística) – Universidade Federal do Pará, Belém, 2007.. Cada um desses foi atestado em pelo menos duas comunidades distintas e, portanto, não são idiossincrasias de um falante ou de outro.

Tabela 11
Comparação entre variações lexicais no Apurinã atual e no antigo.

Na Tabela 11, a coluna Português lista a glosa das variantes atualmente atestadas. As formas de tais variantes são listadas na coluna Apurinã atual; na coluna Comunidades e em suas subcolunas, ‘x’ indica em quais entre as comunidades estudadas tais variantes são usadas; finalmente, na coluna Apurinã antigo, a forma atestada nos documentos antigos é listada. As formas do Apurinã atual que apresentam correspondentes no Apurinã antigo estão grifadas. A forma 1, mapa ‘abelha’, deve estar morfologicamente relacionada à forma variante amapyte, porém os morfemas envolvidos já não são transparentes sincronicamente. Em 2, a forma compartilhada é kywy-xike ‘cabeça-cabelo’; em 3, é kypety-na ‘cutia’, em que -na é um nome classificatório associado a formas lineares e alongadas; em 4, é tũti ‘nambu’. Em 5, ambas as formas ĩketa e ĩkãnu ‘noite’ são compartilhadas, portanto eram usadas já no Apurinã antigo. Em 6, a forma é kĩkuã ‘papagaio’; em 7, é irary ‘queixada’; wainhamary ‘sucuriju’ em 9; kỹãte ‘sucurijú’ em 9; e kunãa ‘timbó (cipó)’ em 10.

Portanto, entre os dez grupos de variantes analisados, em apenas um caso, item 5 (‘noite’ ĩketa e ĩkãnu), mais de uma variante foi atestada nos documentos antigos. Nos demais casos, apenas uma variante foi atestada em tais documentos. A partir disso, chegamos a duas possíveis informações sobre o passado da língua. Em primeiro lugar, considerando a possibilidade de os dados nesses documentos serem ao menos minimamente representativos das variedades existentes no passado, é possível que as variantes neles atestadas sejam as formas mais antigas na língua. A melhor maneira de verificar essa hipótese seria por meio da identificação de cognatos em outras línguas aruák. Além disso, posto que apenas uma variante para cada um dos nove grupos (de um total de dez) é atestada nos documentos antigos, é plausível supor que, ao menos lexicalmente, havia menos diversidade variacional no passado de Apurinã. Isso significa que a língua teria se diversificado mais no período posterior àquele cujos dados ocorrem nos registros antigos, sugerindo ainda que a diversificação da língua aumentou no período em que o contato com a sociedade envolvente tornou-se mais permanente.

Em relação à origem dessas variações lexicais, os dados e informações são insuficientes para uma análise conclusiva. Entretanto, eles admitem ao menos duas hipóteses: a primeira seria a de que o surgimento da variação lexical teria resultado de desenvolvimento interno na língua, associado à confusão na nomeação de elementos da fauna e combinado com as constantes migrações dos Apurinã que interrompiam os contatos entre os grupos da mesma etnia (as explicações dadas por Brandão (2006)BRANDÃO, Ana Paula. Dicionário da fauna e flora apurinã. 2006. Monografia (Graduação em Letras - Língua Portuguesa) – Universidade Federal do Pará, Belém, 2006. para aparentes sinonímias no Apurinã atual podem ser interpretadas como evidências disso); a segunda hipótese seria de que a diversidade resultaria de empréstimos resultantes do contato com outras línguas durante as constantes migrações Apurinã.

É fato que, em Apurinã, certos nomes de elementos da fauna e da flora assumem formas lexicalmente distintas em diferentes variedades da língua (Brandão, 2006BRANDÃO, Ana Paula. Dicionário da fauna e flora apurinã. 2006. Monografia (Graduação em Letras - Língua Portuguesa) – Universidade Federal do Pará, Belém, 2006.; Barreto, 2007BARRETO, Érica Lúcia. Variação em Apurinã: aspectos linguísticos e fatores condicionantes. 2007. Dissertação (Mestrado em Letras - Linguística) – Universidade Federal do Pará, Belém, 2007.). Nos dados evidenciados na Tabela 11, vemos que sete dos dez itens investigados referem-se a elementos da fauna. Sabemos que, em se tratando de tais conceitos, é comum haver confusão entre nomes genéricos e nomes específicos de cada espécie, ou mesmo entre nomes de animais distintos, mas que apresentam similaridades físicas (e.g., tipos de papagaios, cobras, cutias etc.). Ainda que essa pudesse ser uma explicação natural para tais variações, ela é, todavia, descartada pela consistência no uso de formas distintas por diferentes falantes, além do reconhecimento de mais de uma variante por aqueles que têm contato com falantes de outras variedades. Podemos afirmar, contudo, que, mesmo sendo improvável que essa confusão no uso de nomes genéricos e específicos explique a variação entre nomes de elementos da fauna no Apurinã atual, ela pode ter sido um fator que operou no passado, tendo contribuído para a diversidade lexical atual. Ou seja, esse fator teria operado entre o período recente e o documentado nos registros antigos. Uma evidência em favor dessa hipótese seria o fato de isso ainda ocorrer em outros domínios semânticos do Apurinã atual. Brandão (2006)BRANDÃO, Ana Paula. Dicionário da fauna e flora apurinã. 2006. Monografia (Graduação em Letras - Língua Portuguesa) – Universidade Federal do Pará, Belém, 2006. cita, por exemplo, os termos apakatyry ‘cacau de terra firme’ e kanaka ‘cacau da várzea’, os quais aparentam ter o mesmo significado, ‘cacau’, mas que, de fato, nomeiam tipos distintos da planta. Uma análise mais recente aprofundada de cada grupo de variantes seria necessária para determinar a viabilidade dessa hipótese7 7 Em uma pesquisa que aprofunda os trabalhos de Brandão (2006) e Barreto (2007), Lima (2013) demonstra que há um conjunto de fatores sociolinguísticos, semântico-pragmáticos e taxonômicos que motivam ao menos parte da variação lexical em Apurinã. .

Em relação à segunda hipótese, sobre empréstimos, temos como evidência o fato de que, em geral, apenas uma forma em cada grupo de variantes usadas é indubitavelmente cognata com outras línguas aruák. Exemplos disso seriam os termos para ‘paca’ (Apurinã: kajatɨ, Piro: kajatɨ, Iñapari: ajátʃi) e ‘queixada’ (Apurinã: irarɨ, Piro: hijalɯ, Iñapari: hirári). Tais exemplos, contudo, apenas indicam que essas são as formas mais antigas, e não comprovam que as demais formas variantes tenham sido emprestadas de outras línguas. Seria necessário atestar, por exemplo, casos de formas que não ocorrem em outras línguas aruák, mas que ocorrem em línguas não aruák. Além disso, cabe lembrar que os exemplos de termos em Apurinã identificados como empréstimos de outras línguas indígenas em Facundes e Brandão (2011)FACUNDES, Sidi; BRANDÃO, Ana Paula B. Comparative Arawak linguistics: notes on reconstruction, diffusion and Amazonian pre-history. In: HORNBORG, Alf; HILL, Jonathan D. (Orgs). Ethnicity in ancient Amazonia: reconstructing past identities from archaeology, linguistics, and ethnohistory. Boulder: University of Colorado Press, 2011. p. 197-210. não apresentam formas variantes.

As duas hipóteses levantadas aqui são plausíveis, mas necessitam de verificação. Naturalmente, é também possível que os dois fatores, confusão na nomenclatura de fauna e flora durante migrações, e empréstimos em contato com outros grupos, tenham contribuído com diferentes itens ao que hoje constitui essa variedade lexical.

CONCLUSÃO

Estudos comparativos realizados por Facundes (2002)FACUNDES, Sidi. Historical linguistics and its contribution to improving the knowledge of Arawak. In: HILL, Jonathan D.; GRANERO, Fernando (Orgs.). Comparative Arawakan histories. Illinois: University of Illinois Press, 2002. p. 74-96., Brandão e Facundes (2007)BRANDÃO, Ana Paula; FACUNDES, Sidi. Estudos comparativos do léxico da fauna e flora Aruák. Boletim do Museu Paraense Emílio Goeldi. Ciências Humanas, v. 2, n. 2, p. 109-131, maio-ago. 2007. e Facundes e Brandão (2011)FACUNDES, Sidi; BRANDÃO, Ana Paula B. Comparative Arawak linguistics: notes on reconstruction, diffusion and Amazonian pre-history. In: HORNBORG, Alf; HILL, Jonathan D. (Orgs). Ethnicity in ancient Amazonia: reconstructing past identities from archaeology, linguistics, and ethnohistory. Boulder: University of Colorado Press, 2011. p. 197-210. constataram que há uma proximidade entre as línguas Apurinã, Piro e Iñapari. Esses autores chegaram a essa conclusão por meio de uma comparação de formas lexicais nessas três línguas, da identificação de cognatos e da reconstrução de protoformas lexicais faladas em um estágio anterior à separação destas da então língua-mãe – o Proto-Apurinã-Piro-Iñapari. Isso também permitiu algumas inferências sobre a protocultura e pré-história dos povos falantes dessas línguas. A presente pesquisa levou adiante essa investigação por meio da inclusão de dados antigos, coletados para Apurinã pelos primeiros viajantes que tiveram contato com esse povo nos séculos passados. Os resultados da análise dos dados coletados permitiram determinar que algumas variantes fonológicas já ocorriam no passado, quais variantes seriam mais antigas, qual a possível origem da velar palatizada e o fato de a maior parte das variantes lexicais parecer ser resultado de desenvolvimentos recentes na língua, seja por mudanças internas ou por contato com outras línguas.

Tais resultados são importantes para um melhor entendimento do passado Apurinã e da relevância desse conhecimento para os estudos histórico-comparativos aruák, e apontam para questões importantes, as quais devem ser avaliadas em outras pesquisas. Confirmando o aumento da variação após o contato de Apurinã com a língua portuguesa, poderíamos sugerir um possível aumento dos movimentos migratórios dos Apurinã, levando, por um lado, ao distanciamento e à interrupção na interação entre comunidades outrora em contato permanente, e também a um possível aumento do contato, pacífico ou não, com outras etnias, falantes de outras línguas, cujas identidades estariam ainda por ser determinadas por meio de um estudo histórico-comparativo mais amplo.

REFERÊNCIAS

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  • BARRETO, Érica Lúcia. Variação em Apurinã: aspectos linguísticos e fatores condicionantes. 2007. Dissertação (Mestrado em Letras - Linguística) – Universidade Federal do Pará, Belém, 2007.
  • BRANDÃO, Ana Paula. Dicionário da fauna e flora apurinã 2006. Monografia (Graduação em Letras - Língua Portuguesa) – Universidade Federal do Pará, Belém, 2006.
  • BRANDÃO, Ana Paula; FACUNDES, Sidi. Estudos comparativos do léxico da fauna e flora Aruák. Boletim do Museu Paraense Emílio Goeldi Ciências Humanas, v. 2, n. 2, p. 109-131, maio-ago. 2007.
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  • FACUNDES, Sidi; BRANDÃO, Ana Paula B. Comparative Arawak linguistics: notes on reconstruction, diffusion and Amazonian pre-history. In: HORNBORG, Alf; HILL, Jonathan D. (Orgs). Ethnicity in ancient Amazonia: reconstructing past identities from archaeology, linguistics, and ethnohistory. Boulder: University of Colorado Press, 2011. p. 197-210.
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  • RINGE, Don. Internal reconstructions. In: JOSEPH, Brian D.; JANDA, Richard D. (Orgs.). Handbook of historical linguistics Malden: Blackwell, 2003. p. 244-261.
  • 1
    A lista utilizada em Brandão e Facundes (2007) baseia-se na apresentada em Payne (1991), na reconstrução da fonologia segmental em proto-aruák. Ela constitui o conjunto de cognatos entre línguas aruák mais confiável. Em Brandão e Facundes (2007), essa lista foi atualizada com dados oriundos de pesquisas mais recentes em algumas das línguas comparadas.
  • 2
    Para discussão detalhada sobre este assunto, ver Facundes (2000).
  • 3
    O FLEx é produzido pela International Society of Linguistics (outrora, Summer Institute of Linguistics).
  • 4
    “Agaú”, normalmente pronunciado “agaum”, é um termo regional de origem Apurinã usado na região de Lábrea (Amazonas) e que se refere a um tipo de árvore.
  • 5
    No documento de Nimuendajú (1955a), não são descritas as propriedades fonéticas dos símbolos utilizados na ortografia para Apurinã. No entanto, a descrição feita para os símbolos em outro artigo do mesmo autor (Nimuendajú, 1955b), na mesma publicação, indica que o símbolo [į] aproxima-se da vogal alta central não arredondada [ɨ].
  • 6
    O símbolo [ň] assemelha-se ao ‘ng’ do alemão presente em Engel (Koch-Grünberg, 1919).
  • 7
    Em uma pesquisa que aprofunda os trabalhos de Brandão (2006) e Barreto (2007), Lima (2013) demonstra que há um conjunto de fatores sociolinguísticos, semântico-pragmáticos e taxonômicos que motivam ao menos parte da variação lexical em Apurinã.
  • ABREVIATURAS

    1SG primeira pessoa do singular
    2 PL segunda pessoa
    3M.SG terceira pessoa do singular masculino
    F feminino
    M masculino
    PL plural
    SG singular

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    Jan-Apr 2015

Histórico

  • Recebido
    30 Jun 2012
  • Aceito
    17 Mar 2015
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