Acessibilidade / Reportar erro

Carta do editor

CARTA DO EDITOR

O ano de 2011 teve início com duas notícias que comoveram um conjunto muito diverso de pessoas: o falecimento do filósofo Benedito nunes, em 27 de fevereiro, e o do zoólogo osvaldo rodrigues da Cunha, em 11 de março. no intervalo de treze dias, perdemos dois homens cujas obras são referências para seus respectivos campos de conhecimento. nunes era Professor Emérito da Universidade federal do Pará (UFPA), onde criou os cursos de teatro e de filosofia. foi autor de vasta produção intelectual, na qual se destacam trabalhos sobre o pensamento de outros filósofos, como Martin Heidegger, Paul ricoeur e Jean Paul sartre; sobre teoria literária e também sobre escritores, como Clarice Lispector, Mario faustino, João Cabral de Melo neto, Guimarães rosa e oswald de Andrade. Colaborou com a formação de muitos professores e pesquisadores espalhados em várias instituições brasileiras. Por sua vez, Cunha era Pesquisador Emérito do Museu Paraense Emílio Goeldi (MPEG), onde criou o setor de Herpetologia e organizou uma das principais coleções de répteis e anfíbios do país. seus escritos são considerados pioneiros para o estudo da herpetofauna amazônica e da história do MPEG. Graças à solidez de seu trabalho, atraiu jovens pesquisadores que, em certa medida, podem ser considerados os seguidores de um objetivo que Cunha perseguiu por décadas, e com sucesso: instalar capacidade de pesquisa em zoologia na região amazônica.

Nunes tinha um grande rol de amigos, fez de sua casa uma república sem fronteiras, destinada ao desenvolvimento do espírito e ao culto das melhores qualidades humanas. Aqueles que lhe eram próximos tiveram a chance de se beneficiar de sua generosidade. Cunha era mais reservado, tinha poucos amigos, mas uma família amorosa que o acolheu em seus últimos anos. Viveu com modéstia, embora cercado das coisas que lhe davam prazer: a música e o cinema. Assim como nunes, deixou uma excelente biblioteca. Ambos também tiveram algo mais em comum: o prazer pelo que faziam e a honestidade intelectual, perceptíveis em suas condutas profissionais e em cada linha do que escreveram. Essas qualidades impregnaram de verdade e sentido suas vidas e obras, e certamente os colocaram a salvo das armadilhas da arrogância e do exibicionismo. Autodidatas, buscaram por seus próprios meios e empenho o conhecimento e a excelência para suas obras intelectuais.

Perdemos, em tão pouco tempo, dois humanistas, no sentido que Antonio Cândido atribuiu ao termo 'humanização': qualidade cujos traços essenciais seriam "o exercício da reflexão, a aquisição do saber, a boa disposição para com o próximo, o afinamento das emoções, a capacidade de penetrar nos problemas da vida, o senso da beleza, a percepção da complexidade do mundo e dos seres, o cultivo do humor". nunes e Cunha se foram, não sem antes mostrar aos mais jovens, cada um a sua maneira, como é possível trilhar caminhos iluminados e férteis.

Neste número, na seção "Memória", o Boletim do Museu Paraense Emílio Goeldi. Ciências Humanas presta sua homenagem a osvaldo rodrigues da Cunha, por meio de três textos que destacam diferentes aspectos de sua obra. o primeiro, de minha autoria, descreve e faz breve análise da obra historiográfica do cientista, sobretudo dos trabalhos na área de história da ciência. o segundo, de teresa Cristina Avila-Pires (MPEG), pesquisadora que reconhece em Cunha o mestre inspirador, destaca sua obra herpetológica, incluindo as espécies descritas por ele. o terceiro, de Marinus steven Hoogmoed (MPEG), é um relato sobre o encontro de um herpetólogo europeu, especialista em fauna sul-americana, com o colega brasileiro.

Para Benedito nunes, estamos organizando um pequeno dossiê no próximo número da revista, com análises de sua obra, memórias pessoais e registros iconográficos.

Entre os onze artigos aqui divulgados, destaco os cinco que fazem parte do dossiê "Cultura Material", organizado por José neves Bittencourt e roberto stanchi, ambos da superintendência regional do instituto do Patrimônio Histórico e Artístico nacional (IPHAN) em Minas Gerais. o primeiro deles, de tania Andrade Lima (Universidade federal do rio de Janeiro – UFRJ), é um oportuno ensaio sobre diferentes concepções de cultura material presentes na teoria arqueológica. o segundo, de José neves Bittencourt, também apresenta reflexões teóricas sobre o tema, a partir de dois artefatos e do conceito de 'belo'. os outros três artigos, de Maria dulce Gaspar (UFRJ), Marcia Bezerra (UFPA) e rosana najjar (IPHAN), conduzem o leitor por estudos de caso e sinalizam para problemas teórico-interpretativos relacionados ao patrimônio arqueológico brasileiro.

Os outros seis artigos formam um conjunto rico e heterogêneo de informações. Walter neves e colaboradores (UniversidadedesãoPauloeMaxPlanckinstituteforEvolutionaryAnthropology)mantêm o foco na arqueologia, mas voltados para o problema da origem e dispersão dos povos tupiguarani na América do sul. Por meio de estudos craniométricos, corroboram a tese segundo a qual esses povos teriam surgido na Amazônia. Gustavo Caponi (Universidade federal de santa Catarina) dedicase à obra de felix de Azara (1742-1821), particularmente ao texto no qual o engenheiro espanhol critica a tese buffoniana de degeneração da fauna sul-americana, ao mesmo tempo em que constrói argumentos alternativos para a explicação racional da variação zoogeográfica, antecipando algumas ideias que seriam, posteriormente, desenvolvidas por Charles darwin. Por sua vez, Andréa Leme da silva (Universidade Estadual Paulista Júlio de Mesquita filho) registra as transformações na atividade pesqueira em uma região do rio negro, no estado do Amazonas, provocadas pelo turismo e pela pesca comercial. segundo a autora, ao contrário das intenções expressas em políticas públicas, essas atividades têm contribuído para o aumento de conflitos sociais no local, incluindo a disputa pelo acesso a recursos pesqueiros limitados. Luis fernando Cardoso e Cardoso e Jaime souza (UFPA) também estudam a atividade pesqueira na Amazônia, centrando sua pesquisa em uma comunidade próxima a Óbidos, no Pará. Analisam o trabalho infantil no local, demonstrando que as atividades desenvolvidas na pesca pelas crianças e pelos jovens dessa comunidadenão têm um caráter aviltante,ao contrário, funcionam como uma estratégia de socialização ede autorreprodução do grupo familiar. Maria Corette Pasa (Universidade federal de Mato Grosso) investigou o conhecimento etnobotânico em Cuiabá, Mato Grosso, registrando a forma e a finalidade do uso de 86 espécies de plantas medicinais. segundo a autora, é perceptível a preocupação dos moradores com a conservação e o manejo dessas espécies. Por fim, Antonio Maurício dias da Costa (UFPA) descreve uma festa de santo padroeiro em uma feira de bairro em Belém, Pará, observando como elementos externos ao ritual religioso, como a propaganda, as trocas econômicas e os usos políticos, atuam na transformação do sentido da devoção religiosa.

O número encerra com três resenhas, de autoria de José Luis de Andrade franco (Universidade de Brasília), Heloisa Gesteira (Museu de Astronomia e Ciências Afins), diogo Jorge de Melo e Luzia Gomes ferreira (UFPA), que dissertam sobre publicações das áreas de história e museologia.

Agradeço a todos os colaboradores, particularmente aos organizadores do dossiê temático "Cultura Material", pelas excelentes contribuições aqui divulgadas. À equipe editorial, dedico sempre o mérito pela qualidade da revista.

Boa leitura!

Nelson Sanjad

Editor Científico

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    01 Jun 2011
  • Data do Fascículo
    Abr 2011
MCTI/Museu Paraense Emílio Goeldi Coordenação de Pesquisa e Pós-Graduação, Av. Perimetral. 1901 - Terra Firme, 66077-830 - Belém - PA, Tel.: (55 91) 3075-6186 - Belém - PA - Brazil
E-mail: boletim.humanas@museu-goeldi.br