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A sintaxe dos corpos compósitos: agência e transformação na iconografia das tangas cerâmicas marajoara

The syntax of composite bodies: agency and transformation in the iconography of Marajoara ceramic tangas

Resumo

Este artigo explora certos aspectos estilísticos e iconográficos das tangas cerâmicas marajoara, adentrando na seara da corporalidade, especialmente nas noções de composição, transformação e fabricação corporal. O recorte da categoria ‘tanga’ visa a destrinchar alguns dos aspectos relativos ao regime de figuração marajoara, sobretudo no que diz respeito às formas de materialização de princípios cosmológicos relacionados à fabricação, à composição e à transformabilidade dos corpos. Neste sentido, a iconografia destes objetos mostra corpos compósitos elaborados por meio da integração de uma miríade de seres e de suas partes anatômicas, assim como pelo uso de recursos gráficos que, possivelmente, indicam transformações corpóreas. Essa sintaxe dos corpos compósitos, desse modo, pode ser um ponto crucial para se pensar o papel das tangas e, com isso, sugere-se que elas fabricavam corpos e pessoas multicompostos.

Palavras-chave
Materialidade; Corporalidade; Regimes de figuração; Fase Marajoara; Iconografia

Abstract

This article explores certain stylistic and iconographic aspects of Marajoara ceramic ‘tangas’ (pubic covers), within the subject of corporeality, and especially notions of body composition, fabrication and transformation. The focus on the ‘tanga’ category aims to untangle some of the aspects related to Marajoara figurative regime, especially with regard to the forms of materialization of cosmological principles, related to fabrication, composition and transformability of bodies. In this sense, the iconography of these objects shows composite bodies elaborated through the integration of a myriad of beings and their anatomical parts, as well as the use of graphic resources that possibly indicate corporeal transformations. This syntax of composite bodies, therefore, can be a crucial point to understand the role of tangas, and a basis to suggest that tangas actually fabricated multicomposite bodies and people.

Keywords
Materiality; Corporeality; Figurative regimes; Marajoara Phase; Iconography

INTRODUÇÃO

A natureza complexa do sistema representacional marajoara tem sido destacada por uma série de estudos feitos nas últimas duas décadas (Barreto, 2009Barreto, C. (2009). Meios místicos de reprodução social: arte e estilo na cerâmica funerária da Amazônia antiga (Tese de doutorado). Universidade de São Paulo, São Paulo, SP, Brasil.; Nobre, 2017Nobre, E. (2017). Objetos e imagens no Marajó antigo: agência e transformação na iconografia das tangas cerâmicas (Dissertação de mestrado). Museu de Arqueologia e Etnologia, Universidade de São Paulo, São Paulo.; Schaan, 1997Schaan, D. P. (1997). A linguagem iconográfica da cerâmica marajoara: um estudo da arte pré-histórica da Ilha de Marajó, Brasil (400-1300 AD). Porto Alegre: Edipuc.). Esses estudos têm demonstrado que a iconografia dessa cerâmica é caracterizada, sobretudo, por figuras icônicas e estilizadas de humanos e animais, compondo, assim, imagens estruturadas pelo encaixe múltiplo desses seres, de modo que os isolar torna-se um trabalho complicado (Nobre, 2017Nobre, E. (2017). Objetos e imagens no Marajó antigo: agência e transformação na iconografia das tangas cerâmicas (Dissertação de mestrado). Museu de Arqueologia e Etnologia, Universidade de São Paulo, São Paulo.).

Embora a complexidade desse sistema representacional seja reconhecida desde os estudos de Netto (1885)Netto, L. (1885). Investigações sobre a archeologia brazileira (Vol. 6). Archivos do Museu Nacional do Rio de Janeiro, Rio de Janeiro., Torres (1940)Torres, H. A. (1940). Arte indígena da Amazônia. Rio de Janeiro: Publicação do Serviço do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional. e Palmatary (1950)Palmatary, H. C. (1950). The pottery of Marajó Island, Brazil. Transactions of the American Philosophical Society, 39(3), 261-470., com exceção dos estudos de Barreto (2009)Barreto, C. (2009). Meios místicos de reprodução social: arte e estilo na cerâmica funerária da Amazônia antiga (Tese de doutorado). Universidade de São Paulo, São Paulo, SP, Brasil. e Nobre (2017)Nobre, E. (2017). Objetos e imagens no Marajó antigo: agência e transformação na iconografia das tangas cerâmicas (Dissertação de mestrado). Museu de Arqueologia e Etnologia, Universidade de São Paulo, São Paulo., outros trabalhos dedicaram pouca atenção à sintaxe das imagens compostas nas cerâmicas, sendo que pouco se sabe sobre a maneira como as figuras são articuladas para compor novos corpos. Conforme Nobre (2017)Nobre, E. (2017). Objetos e imagens no Marajó antigo: agência e transformação na iconografia das tangas cerâmicas (Dissertação de mestrado). Museu de Arqueologia e Etnologia, Universidade de São Paulo, São Paulo. destaca, os esforços são para identificar certos tipos de ‘temas’ classificados como antropomorfos, zoomorfos e, em alguns casos, geométricos, a exemplo de Roosevelt (1991)Roosevelt, A. C. (1991). Moundbuilders of the Amazon: geophysical archaeology on Marajo Island, Brazil. San Diego: Academic Press. e Schaan (2004)Schaan, D. P. (2004). The Camutins chiefdom: rise and development of social complexity on Marajó Island, Brazilian Amazon (Tese de doutorado). Universidade de Pittsburgh, Pittsburgh..

Como resultado disso, as imagens muitas vezes foram ‘desmembradas’ ou segmentadas (Roosevelt, 1991Roosevelt, A. C. (1991). Moundbuilders of the Amazon: geophysical archaeology on Marajo Island, Brazil. San Diego: Academic Press.). Assim, por exemplo, uma urna funerária com características antropomorfas, apesar de ser composta também por figuras zoomorfas, não era descrita como uma imagem antropozoomorfa, mas apenas como antropomorfa, como visto em Roosevelt (1991)Roosevelt, A. C. (1991). Moundbuilders of the Amazon: geophysical archaeology on Marajo Island, Brazil. San Diego: Academic Press.. Outras vezes, só se considerava uma parte da imagem, visando a descrever e isolar certas composições gráficas e padrões que eram interpretados como figuras serpentilíneas (Schaan, 2004Schaan, D. P. (2004). The Camutins chiefdom: rise and development of social complexity on Marajó Island, Brazilian Amazon (Tese de doutorado). Universidade de Pittsburgh, Pittsburgh.). Desse modo, a classificação do ‘tema’ era feita com base na figura que mais se destacava no conjunto, a exemplo de Roosevelt (1991)Roosevelt, A. C. (1991). Moundbuilders of the Amazon: geophysical archaeology on Marajo Island, Brazil. San Diego: Academic Press., com o objetivo de quantificar a sua frequência (Nobre, 2017Nobre, E. (2017). Objetos e imagens no Marajó antigo: agência e transformação na iconografia das tangas cerâmicas (Dissertação de mestrado). Museu de Arqueologia e Etnologia, Universidade de São Paulo, São Paulo.).

Por trás disso, havia a intenção de correlacionar certos tipos de composições gráficas ao incremento de poder de grupos sociais que se desenvolveram nas estruturas dos cacicados (Roosevelt, 1987Roosevelt, A. C. (1987). Chiefdoms in the Amazon and Orinoco. In R. D. Drennan & C. Uribe (Eds.), Chiefdoms in the Americas (pp. 153-184). Lanham: University Press of America., 1988, 1991; Schaan, 1997Schaan, D. P. (1997). A linguagem iconográfica da cerâmica marajoara: um estudo da arte pré-histórica da Ilha de Marajó, Brasil (400-1300 AD). Porto Alegre: Edipuc., 2004). Aqui, o estilo e a iconografia eram compreendidos como um tipo de estratégia de legitimação de poder pelas elites. Ou seja, a arte foi correlacionada a mudanças nas estruturas sociais, na qual um estilo caracterizado ora por seres antropomorfos, ora por seres serpentilíneos foi usado em justificativas ideológicas para legitimar tanto o aumento do controle da mão de obra humana quanto o acesso diferenciado aos recursos.

Roosevelt (1987Roosevelt, A. C. (1987). Chiefdoms in the Amazon and Orinoco. In R. D. Drennan & C. Uribe (Eds.), Chiefdoms in the Americas (pp. 153-184). Lanham: University Press of America., 1988Roosevelt, A. C. (1988). Interpreting certain female images in prehistoric art. In V. E. Miller (Ed.), The role of gender in Precolumbian art and architecture (pp. 1-34). Harvard: University Press., 1991Roosevelt, A. C. (1991). Moundbuilders of the Amazon: geophysical archaeology on Marajo Island, Brazil. San Diego: Academic Press., 1992)Roosevelt, A. C. (1992). Arqueologia amazônica. In M. Carneiro da Cunha (Org.), História dos índios no Brasil (pp. 53-86). São Paulo: Companhia das Letras., em seu modelo de cacicado para a fase Marajoara, sugeriu que a introdução de uma economia agrícola levou a grandes mudanças, o que se refletiu também na iconografia das cerâmicas. As figuras animais, predominantes na arte pré-colonial das sociedades amazônicas mais antigas, teriam sido substituídas paulatinamente por figuras antropomorfas, à medida que essas sociedades foram se tornando cada vez mais complexas. Com isso em vista, a presença de urnas funerárias antropomorfas em contextos funerários estaria relacionada a cultos mortuários de veneração às elites ancestrais (Roosevelt, 1991Roosevelt, A. C. (1991). Moundbuilders of the Amazon: geophysical archaeology on Marajo Island, Brazil. San Diego: Academic Press., p. 81, 1992Roosevelt, A. C. (1992). Arqueologia amazônica. In M. Carneiro da Cunha (Org.), História dos índios no Brasil (pp. 53-86). São Paulo: Companhia das Letras., p. 80). Na iconografia dessas cerâmicas, as figuras humanas seriam predominantes em relação às figuras de animais, sendo que essas últimas se resumiriam a acessórios decorativos daquelas. Desse modo, as figuras humanas seriam as principais e as maiores, enquanto as imagens de animais se resumiriam a detalhes ou pequenas efígies, ocorrendo somente como pequenos detalhes ou apliques e apêndices, como se veem nas urnas funerárias. O pano de fundo desta argumentação era que sociedades mais complexas teriam surgido na Amazônia com o advento da agricultura, atividade essa que mudaria o foco das relações com a natureza, privilegiando as atividades humanas na produção de alimentos, em detrimento da caça e da relação com os animais (Roosevelt, 1991Roosevelt, A. C. (1991). Moundbuilders of the Amazon: geophysical archaeology on Marajo Island, Brazil. San Diego: Academic Press., 1992)Roosevelt, A. C. (1992). Arqueologia amazônica. In M. Carneiro da Cunha (Org.), História dos índios no Brasil (pp. 53-86). São Paulo: Companhia das Letras..

Posteriormente, Schaan (2003Schaan, D. P. (2003). A ceramista, seu pote e sua tanga: identidade e papéis sociais em um Cacicado Marajoara. Revista de Arqueologia, 16(1), 31-45. doi: https://doi.org/10.24885/sab.v16i1.177
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, 2004Schaan, D. P. (2004). The Camutins chiefdom: rise and development of social complexity on Marajó Island, Brazilian Amazon (Tese de doutorado). Universidade de Pittsburgh, Pittsburgh., 2009)Schaan, D. P. (2009). Cultura Marajoara. Rio de Janeiro: Senac Nacional. propôs um modelo no qual a iconografia possuía um papel crítico para explicar o desenvolvimento sociocultural durante a fase Marajoara. A ideia era que barragens e lagos artificiais teriam sido construídos por grupos familiares perto das áreas de concentração dos recursos aquáticos no fim da estação chuvosa, visando a melhorar a pesca e aumentando, assim, a oferta de recursos. Os excedentes gerados teriam propulsionado a elaboração de mecanismos para seu controle, originando a estratificação social. Na iconografia das cerâmicas, haveria predominância de figuras serpentilíneas, além de seres aquáticos. As imagens serpentilíneas seriam figuradas de modo icônico ou estilizado (Schaan, 2004Schaan, D. P. (2004). The Camutins chiefdom: rise and development of social complexity on Marajó Island, Brazilian Amazon (Tese de doutorado). Universidade de Pittsburgh, Pittsburgh.), sob o aspecto de padrões repetitivos que aludiriam a cobras ou a desenhos vistos em sua pele, como observado em uma miríade de objetos, a exemplo das tangas cerâmicas (Schaan, 2001Schaan, D. P. (2001). Into the labyrinths of Marajoara pottery: status and cultural identity in an Amazonian complex society. In C. McEwan, C. Barreto & E. Neves (Orgs.), The unknown Amazon: nature in culture in ancient Brazil (pp. 108-133). Londres: British Museum Press.). Esses padrões rememorariam conceitos cosmológicos a respeito do mito da cobra, que seriam utilizados para justificar o acesso diferenciado aos recursos e à hierarquia social (Schaan, 2004Schaan, D. P. (2004). The Camutins chiefdom: rise and development of social complexity on Marajó Island, Brazilian Amazon (Tese de doutorado). Universidade de Pittsburgh, Pittsburgh., pp. 360-361).

Essa discussão impactou diretamente a forma como a iconografia foi tratada nos estudos a respeito das sociedades pré-coloniais da Amazônia, principalmente naquelas que mostravam evidências de complexidade social, como as relacionadas às fases Marajoara e Santarém. Nessas sociedades, a iconografia foi correlacionada a mudanças nas estruturas sociais e a um processo de transformação de uma sociedade igualitária em uma sociedade hierárquica.

Recentemente, uma mudança de enfoque sobre os regimes de materialidade da Amazônia antiga tem procurado dialogar com uma “. . . discussão mais ampla que chama a atenção para a possibilidade de ‘olhar’ mais abertamente para as sociedades pretéritas” (Nobre, 2017Nobre, E. (2017). Objetos e imagens no Marajó antigo: agência e transformação na iconografia das tangas cerâmicas (Dissertação de mestrado). Museu de Arqueologia e Etnologia, Universidade de São Paulo, São Paulo., p. 35). Autores como Neves (1999-2000Neves, E. G. (1999-2000). O velho e novo na Arqueologia. Revista USP, (44), 86-111. doi: https://doi.org/10.11606/issn.2316-9036.v0i44p86-111
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, 2008)Neves, E. G. (2008). Ecology, ceramic chronology and distribution, long-term history, and political change in the Amazonian floodplain. In H. Silverman & W. Isbell (Ed.), Handbook of South American Archaeology (pp. 359-379). Nova York: Springer. admitem a possibilidade de maior diversidade social anteriormente à conquista, com a existência de uma gama de formações sociais, e que a correlação de certos aspectos do registro arqueológico como uma checklist pode ser demasiadamente dura, mascarando, assim, as dinâmicas sociais da Amazônia antiga.

Concomitantemente, a Antropologia chama a atenção para o papel da Arqueologia na atualidade, quando os povos nativos necessitam cada vez mais usar sua ligação histórica com o passado para assegurar seu futuro (Viveiros de Castro, 2002Viveiros de Castro, E. (2002). A inconstância da alma selvagem, e outros ensaios de antropologia. São Paulo: Cosac & Naify., p. 343). Viveiros de Castro (2002)Viveiros de Castro, E. (2002). A inconstância da alma selvagem, e outros ensaios de antropologia. São Paulo: Cosac & Naify., por exemplo, alerta para a inconveniência de uma ‘perversão arqueológica’, quando um padrão pré-colonial definido por agricultura intensiva e centralização política é utilizado para avaliar culturas indígenas contemporâneas, sugerindo, inversamente, que as bases culturais e as expressões sociopolíticas do passado pré-colonial amazônico sejam repensadas à luz de um horizonte ainda atual (Viveiros de Castro, 2002Viveiros de Castro, E. (2002). A inconstância da alma selvagem, e outros ensaios de antropologia. São Paulo: Cosac & Naify.).

É nesse cenário que pesquisas recentes com as cerâmicas da Amazônia antiga afirmam o caráter informativo das iconografias no que diz respeito às cosmovisões das populações pré-coloniais (Barreto, 2009Barreto, C. (2009). Meios místicos de reprodução social: arte e estilo na cerâmica funerária da Amazônia antiga (Tese de doutorado). Universidade de São Paulo, São Paulo, SP, Brasil.; Gomes, 2014Gomes, D. M. C. (2014). Imágenes de las sociedades contra el Estado en la Amazonia antigua. In M. Campagno (Ed.), Pierre Clastres y las sociedades antiguas (pp. 81-98). Buenos Aires: Miño y Dávila., 2016Gomes, D. M. C. (2016). O lugar dos grafismos e das representações na arte pré-colonial amazônica. Mana, 22(3), 671-703. doi: https://doi.org/10.1590/1678-49442016v22n3p671
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; Nobre, 2017Nobre, E. (2017). Objetos e imagens no Marajó antigo: agência e transformação na iconografia das tangas cerâmicas (Dissertação de mestrado). Museu de Arqueologia e Etnologia, Universidade de São Paulo, São Paulo.; Oliveira, 2016Oliveira, E. (2016). Potes que encantam: estilo e agência na cerâmica polícroma da Amazônia central (Dissertação de mestrado). Museu de Arqueologia e Etnologia, Universidade de São Paulo, São Paulo.). Tais pesquisas têm sido inspiradas pela Etnologia ameríndia e pela Antropologia da Arte, disciplinas que assumem que, no mundo ameríndio amazônico, existe uma estética norteada pela ontologia da predação e com enfoque na corporalidade (Lagrou, 2007Lagrou, E. (2007). A fluidez da forma: arte, alteridade e agência em uma sociedade amazônica (Kaxinawa, Acre). Rio de Janeiro: Topbooks., 2011, 2013; Severi, 2013Severi, C. (2013). O espaço quimérico: percepção e projeção nos atos do olhar. In C. Severi & E. Lagrou (Orgs.), Quimeras em diálogo: grafismo e figuração na arte indígena (pp. 25-66). Rio de Janeiro: 7Letras.; Taylor & Viveiros de Castro, 2006Taylor, A. C., & Viveiros de Castro, E. (2006). Un corps fait de regards. In B. Stéphane, Qu’est-ce qu’un corps ? (pp. 148-199). Paris: Musée du Quai Branly-Flammarion.). Nesta estética pan-amazônica, a transformação dos corpos é materializada na instabilidade e fluidez das formas (Fausto, 2013Fausto, C. (2013). A máscara do animista: quimeras e bonecas russas na América indígena. In C. Severi & E. Lagrou (Orgs.), Quimeras em diálogo: grafismo e figuração na arte indígena (pp. 305-331). Rio de Janeiro: 7Letras.; Lagrou, 2007Lagrou, E. (2007). A fluidez da forma: arte, alteridade e agência em uma sociedade amazônica (Kaxinawa, Acre). Rio de Janeiro: Topbooks., 2013Lagrou, E. (2013). Podem os grafismos ameríndios ser considerados quimeras abstratas? Uma reflexão sobre uma arte perspectivista. In C. Severi & E. Lagrou (Orgs.), Quimeras em diálogo: grafismo e figuração na arte indígena (pp. 67-109). Rio de Janeiro: 7Letras.).

Esses estudos têm sido também enriquecidos pela discussão que reconhece que, nas ontologias amazônicas, a pessoa é concebida como uma amálgama de seres e de suas partes corporais, ou seja, como entidade compósita, e que a incorporação e a canibalização do outro são aspectos fundamentais para a construção dos corpos (Santos-Granero, 2012Santos-Granero, F. (2012). Introducción. In F. Santos-Granero (Org.), La vida oculta de las cosas: teorías indígenas de la materialidad y la personeidad (pp. 13-43). Quito: Abya-Yala.). Santos-Granero (2012, p. 31)Santos-Granero, F. (2012). Introducción. In F. Santos-Granero (Org.), La vida oculta de las cosas: teorías indígenas de la materialidad y la personeidad (pp. 13-43). Quito: Abya-Yala. reconhece que a pessoa ameríndia pode ser entendida como “uma pessoa fractal, na medida em que implica em relações de incorporação do outro na constituição do ‘eu’ em diferentes escalas que são sempre similares umas às outras”. Ao mesmo tempo, reconhece-se que, nas terras baixas sul-americanas, a produção estética resulta da introdução de elementos do mundo externo, lugar de onde se originam os nomes dos grafismos e os mitos sobre seu aprendizado e os ornamentos e atavios corporais, assim como suas técnicas de fabricação (Lagrou, 2007Lagrou, E. (2007). A fluidez da forma: arte, alteridade e agência em uma sociedade amazônica (Kaxinawa, Acre). Rio de Janeiro: Topbooks., 2012; Miller, 2012Miller, J. (2012). Las cosas como personas: adornos corporales y alteridad entre los Mamaindê (Nambicuara). In F. Santos-Granero (Org.), La vida oculta de las cosas: teorías indigenas de la materialidad y la personeidad (pp. 91-117). Quito: Abya-Yala.; Van Velthem, 2009Van Velthem, L. H. (2009). Mulheres de cera, argila e arumã: princípios criativos e fabricação material entre os Wayana. Mana, 15(1), 213-236. doi: https://doi.org/10.1590/S0104-93132009000100008
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).

No que diz respeito à produção artística ameríndia, a canibalização do outro produz também objetos e imagens integrados por diversos seres e suas partes corporais (Lagrou, 2013Lagrou, E. (2013). Podem os grafismos ameríndios ser considerados quimeras abstratas? Uma reflexão sobre uma arte perspectivista. In C. Severi & E. Lagrou (Orgs.), Quimeras em diálogo: grafismo e figuração na arte indígena (pp. 67-109). Rio de Janeiro: 7Letras.; Santos-Granero, 2012Santos-Granero, F. (2012). Introducción. In F. Santos-Granero (Org.), La vida oculta de las cosas: teorías indígenas de la materialidad y la personeidad (pp. 13-43). Quito: Abya-Yala.; Severi, 2013Severi, C., & Lagrou, E. (Orgs.). (2013). Quimeras em diálogo: grafismo e figuração na arte indígena. Rio de Janeiro: 7Letras.). Fausto (2013)Fausto, C. (2013). A máscara do animista: quimeras e bonecas russas na América indígena. In C. Severi & E. Lagrou (Orgs.), Quimeras em diálogo: grafismo e figuração na arte indígena (pp. 305-331). Rio de Janeiro: 7Letras. argumenta que, nas iconografias e nos objetos rituais ameríndios, os seres extraordinários múltiplos, capazes de transformação e com formas ambivalentes, são indicados pela multiplicação de referentes e pela amálgama de formas humanas e animais. Vale de igual modo lembrar que as abordagens focadas especificamente nas imagens ameríndias têm-se preocupado também com aspectos como a corporalidade e o caráter transformativo dos corpos e a conexão dessas imagens com as visões de mundo ameríndias. Essas abordagens têm, assim, buscado compreender os processos de percepção e as técnicas de materialização das imagens no mundo ameríndio perspectivista (Lagrou, 2007Lagrou, E. (2007). A fluidez da forma: arte, alteridade e agência em uma sociedade amazônica (Kaxinawa, Acre). Rio de Janeiro: Topbooks.; Severi & Lagrou, 2013Lagrou, E. (2013). Podem os grafismos ameríndios ser considerados quimeras abstratas? Uma reflexão sobre uma arte perspectivista. In C. Severi & E. Lagrou (Orgs.), Quimeras em diálogo: grafismo e figuração na arte indígena (pp. 67-109). Rio de Janeiro: 7Letras.). Especificamente nesse caso, tais discussões buscam vislumbrar a relação entre as diversas partes das imagens compósitas, assim como com a cadeia de operações cognitivas relacionadas à percepção daquelas, ao modo tanto das imagens quiméricas (Severi, 2007Severi, C. (2007). Le principe de la chimère: une anthropologie de la mémoire. Paris: Éditions Rue d’Ulm; Musée du Quai Branly., 2013Severi, C. (2013). O espaço quimérico: percepção e projeção nos atos do olhar. In C. Severi & E. Lagrou (Orgs.), Quimeras em diálogo: grafismo e figuração na arte indígena (pp. 25-66). Rio de Janeiro: 7Letras.) quanto das quimeras abstratas ameríndias (Lagrou, 2013Lagrou, E. (2013). Podem os grafismos ameríndios ser considerados quimeras abstratas? Uma reflexão sobre uma arte perspectivista. In C. Severi & E. Lagrou (Orgs.), Quimeras em diálogo: grafismo e figuração na arte indígena (pp. 67-109). Rio de Janeiro: 7Letras.).

No que diz respeito às expressões estéticas da Amazônia antiga, a bricolagem de seres e de suas partes origina imagens e objetos compósitos. Nesse caso, as imagens resultantes dessa bricolagem abrangem figuras antropozoormorfas com traços anatômicos referentes a animais, a exemplo das serpentes que figuram os membros articulados em certas urnas funerárias marajoara (Barreto, 2014Barreto, C. (2014). Modos de figurar o corpo na Amazônia précolonial. In S. Rostain (Ed.), Antes de Orellana: Actas del 3er Encuentro Internacional de Arqueología Amazónica (Vol. 1, pp. 123-132). Quito: Instituto Francés de Estudios Andinos.; Roosevelt, 1991Roosevelt, A. C. (1991). Moundbuilders of the Amazon: geophysical archaeology on Marajo Island, Brazil. San Diego: Academic Press.; Schaan, 1997Schaan, D. P. (1997). A linguagem iconográfica da cerâmica marajoara: um estudo da arte pré-histórica da Ilha de Marajó, Brasil (400-1300 AD). Porto Alegre: Edipuc.) e como visto também na iconografia da cerâmica Polícroma (Oliveira, 2016Oliveira, E. (2016). Potes que encantam: estilo e agência na cerâmica polícroma da Amazônia central (Dissertação de mestrado). Museu de Arqueologia e Etnologia, Universidade de São Paulo, São Paulo.).

As novas abordagens para os regimes de materialidade da Amazônia antiga têm sido enriquecidas também pelas discussões sobre agência dos objetos de Gell (1992Gell, A. (1992). The technology of enchantment and the enchantment of technology. In J. Coote & A. Shelton (Eds.), Anthropology, art and aesthetics (pp. 40-63). Oxford: Clarendon Press., 1998)Gell, A. (1998). Art and agency: an anthropological theory. Oxford: Clarendon Press., no âmbito da Antropologia da Arte. Essas discussões teóricas propõem que os objetos devem ser entendidos como índices em uma cadeia de relações sociais a partir do lugar que ocupam, como agentes ou pacientes (Gell, 1998Gell, A. (1998). Art and agency: an anthropological theory. Oxford: Clarendon Press.). Ao mesmo tempo, reconhece-se que determinados objetos possuem certo tipo de excelência que leva ao encantamento e à sedução, pois são produtos de técnicas denominadas de ‘tecnologias de encantamento’ (Gell, 1992Gell, A. (1992). The technology of enchantment and the enchantment of technology. In J. Coote & A. Shelton (Eds.), Anthropology, art and aesthetics (pp. 40-63). Oxford: Clarendon Press.). Neste sentido, a arte é compreendida enquanto um sistema técnico que produz consequências sociais decorrentes de sua produção1 1 É importante destacar que autores como Layton (2003) e Morphy (2011) criticam a proposta de Gell (1992), seja por conta da ideia que faz do termo ‘sentido’ e do uso confuso que faz dos conceitos de signo e índice de Peirce, chamando indiscriminadamente todos os objetos de índices que estão inseridos em uma rede de ação, já que não admite que haja aspectos culturais guiando a sua percepção, como se não existissem determinantes que requeressem uma percepção contextualizada desses objetos; seja, ainda, por conta da crítica controversa que faz ao uso da análise formal, sendo que ele mesmo faz uso disfarçado dela sob o termo de análise estilística. Desconsiderados seus problemas, conforme Lagrou (2007) pontua, essa proposta é muito útil, já que os objetos podem ser entendidos nas suas relações com os seres humanos, em que, aliados a seus diversos usos, ensinam sobre as relações humanas e a projeção de sua sociabilidade sobre o mundo ao redor. .

Estas abordagens vindas da Etnologia e da Antropologia da Arte trazem importantes implicações para o estudo dos objetos provenientes da Amazônia antiga, pois, além de identificar seus componentes, possibilitam refletir sobre suas formas específicas de agentividade.

AS TANGAS CERÂMICAS MARAJOARA

As tangas de cerâmica da fase Marajoara, da ilha de Marajó, são, sem dúvida, alguns dos objetos mais emblemáticos da Arqueologia brasileira e, principalmente, da Arqueologia amazônica. Desde a década de 1870, quando os montículos artificiais, ou tesos, assim como a cerâmica marajoara, ganharam notoriedade, diversos pesquisadores focaram-se em seu estudo, a exemplo de Hart (1876)Hartt, C. F. (1876). Notas sobre algumas tangas de barro cozido dos antigos indígenas da Ilha de Marajó. Archivos do Museu Nacional do Rio de Janeiro, Rio de Janeiro., Netto (1885)Netto, L. (1885). Investigações sobre a archeologia brazileira (Vol. 6). Archivos do Museu Nacional do Rio de Janeiro, Rio de Janeiro., Mordini (1929)Mordini, A. (1929). I ‘couvre sexe’ precolombiani in argilla dell’isola de Marajó. Archivio per l’Antropologia e l’Etnologia, Firenze., Meggers e Evans (1957)Meggers, B. J., & Evans, C. (1957). Archaeological investigations at the mouth of the Amazon (No. 167). Washington: Government Publishing Office, Smithsonian Institution, Bureau of American Ethnology., Schaan (1997Schaan, D. P. (1997). A linguagem iconográfica da cerâmica marajoara: um estudo da arte pré-histórica da Ilha de Marajó, Brasil (400-1300 AD). Porto Alegre: Edipuc., 2001Schaan, D. P. (2001). Into the labyrinths of Marajoara pottery: status and cultural identity in an Amazonian complex society. In C. McEwan, C. Barreto & E. Neves (Orgs.), The unknown Amazon: nature in culture in ancient Brazil (pp. 108-133). Londres: British Museum Press., 2003Schaan, D. P. (2003). A ceramista, seu pote e sua tanga: identidade e papéis sociais em um Cacicado Marajoara. Revista de Arqueologia, 16(1), 31-45. doi: https://doi.org/10.24885/sab.v16i1.177
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, 2004)Schaan, D. P. (2004). The Camutins chiefdom: rise and development of social complexity on Marajó Island, Brazilian Amazon (Tese de doutorado). Universidade de Pittsburgh, Pittsburgh., Barreto (2004)Barreto, C. (2004). Simbolismo sexual na antiga Amazônia: revisitando urnas, estatuetas e tangas marajoara. In Antes: histórias da pré-história [Catálogo de exposição]. Rio de Janeiro: Centro Cultural Banco do Brasil., Prous e Lima (2011)Prous, A., & Lima, A. P. (2011). De cobras e lagartos: as tangas marajoaras. Revista do Museu Arqueologia e Etnologia, (21), 231-263. doi: https://doi.org/10.11606/issn.2448-1750.revmae.2011.89975
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, Prous (2013)Prous, A. (2013). Tangas of the Marajó (Brazil): ornamental pubic covers, their typology and meaning. Antiquity, 87(337), 815-828. doi: https://doi.org/10.1017/S0003598X00049486
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e Nobre (2017Nobre, E. (2017). Objetos e imagens no Marajó antigo: agência e transformação na iconografia das tangas cerâmicas (Dissertação de mestrado). Museu de Arqueologia e Etnologia, Universidade de São Paulo, São Paulo., 2019)Nobre, E. (2019). As folhas de videiras das Evas da Ilha de Marajó e a (des)construção de narrativas arqueológicas. Revista Arqueologia Pública, 13(1), 155-179. doi: https://doi.org/10.20396/rap.v13i1.8654806
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. Conforme Nobre (2017)Nobre, E. (2017). Objetos e imagens no Marajó antigo: agência e transformação na iconografia das tangas cerâmicas (Dissertação de mestrado). Museu de Arqueologia e Etnologia, Universidade de São Paulo, São Paulo. destaca, tais estudos têm sido norteados pelas perguntas ‘para que eram usadas?’ e ‘qual era o significado dos seus grafismos?’.

Estas tangas foram fabricadas com uma argila bastante fina (Nobre, 2017Nobre, E. (2017). Objetos e imagens no Marajó antigo: agência e transformação na iconografia das tangas cerâmicas (Dissertação de mestrado). Museu de Arqueologia e Etnologia, Universidade de São Paulo, São Paulo.), o que as torna bastante peculiares, já que os povos indígenas atuais fabricam suas tangas e coberturas pubianas, assim como outras vestimentas, com tecidos ou fibras vegetais. Em relação ao tratamento de sua superfície, há dois tipos de tangas: um tipo é trabalhado com grafismos pintados em vermelho, laranja, preto ou marrom sobre um engobo branco, creme ou alaranjado, e outro tipo apenas engobado de vermelho, alaranjado, preto ou marrom. Este último pode apresentar também um duplo engobo com uma camada de tinta preta sobre o vermelho (Nobre, 2017Nobre, E. (2017). Objetos e imagens no Marajó antigo: agência e transformação na iconografia das tangas cerâmicas (Dissertação de mestrado). Museu de Arqueologia e Etnologia, Universidade de São Paulo, São Paulo.). Seu formato é triangular convexo, possuindo orifícios em suas extremidades para fixar os cordões que as prendiam ao corpo. A variação de seu tamanho e curvatura tem sido correlacionada às características anatômicas e à idade das pessoas que as usavam (Barreto, 2004Barreto, C. (2004). Simbolismo sexual na antiga Amazônia: revisitando urnas, estatuetas e tangas marajoara. In Antes: histórias da pré-história [Catálogo de exposição]. Rio de Janeiro: Centro Cultural Banco do Brasil.; Meggers & Evans, 1957Meggers, B. J., & Evans, C. (1957). Archaeological investigations at the mouth of the Amazon (No. 167). Washington: Government Publishing Office, Smithsonian Institution, Bureau of American Ethnology.; Palmatary, 1950Palmatary, H. C. (1950). The pottery of Marajó Island, Brazil. Transactions of the American Philosophical Society, 39(3), 261-470.; Schaan, 2003Schaan, D. P. (2003). A ceramista, seu pote e sua tanga: identidade e papéis sociais em um Cacicado Marajoara. Revista de Arqueologia, 16(1), 31-45. doi: https://doi.org/10.24885/sab.v16i1.177
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, 2004)Schaan, D. P. (2004). The Camutins chiefdom: rise and development of social complexity on Marajó Island, Brazilian Amazon (Tese de doutorado). Universidade de Pittsburgh, Pittsburgh.. Sem considerar ainda a diversidade de seus campos gráficos, percebem-se três aspectos referentes à variabilidade das tangas que dizem respeito à variação na morfologia e nas dimensões, nas cores e nas formas de trabalhar as suas superfícies com as cores, seja em tangas com grafismos, seja naquelas monocromáticas (Nobre, 2017Nobre, E. (2017). Objetos e imagens no Marajó antigo: agência e transformação na iconografia das tangas cerâmicas (Dissertação de mestrado). Museu de Arqueologia e Etnologia, Universidade de São Paulo, São Paulo.), como é possível observar na Figura 1. É importante notar que, em relação à variabilidade das tangas com grafismos, conforme observado por Prous e Lima (2011)Prous, A., & Lima, A. P. (2011). De cobras e lagartos: as tangas marajoaras. Revista do Museu Arqueologia e Etnologia, (21), 231-263. doi: https://doi.org/10.11606/issn.2448-1750.revmae.2011.89975
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, as diferentes morfologias se relacionam a estruturas distintas, nas quais as larguras dos campos gráficos variam de acordo com os formatos das tangas. Além disso, embora muitos temas iconográficos variem de acordo com estas distintas morfologias (Prous, 2013Prous, A. (2013). Tangas of the Marajó (Brazil): ornamental pubic covers, their typology and meaning. Antiquity, 87(337), 815-828. doi: https://doi.org/10.1017/S0003598X00049486
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; Prous & Lima, 2011Prous, A., & Lima, A. P. (2011). De cobras e lagartos: as tangas marajoaras. Revista do Museu Arqueologia e Etnologia, (21), 231-263. doi: https://doi.org/10.11606/issn.2448-1750.revmae.2011.89975
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), outros repetem-se independentemente dos formatos das tangas, conforme observado por Nobre (2017)Nobre, E. (2017). Objetos e imagens no Marajó antigo: agência e transformação na iconografia das tangas cerâmicas (Dissertação de mestrado). Museu de Arqueologia e Etnologia, Universidade de São Paulo, São Paulo.2 2 Observem-se, por exemplo, as tangas dos grupos 3, 5, 6 e 7 da classificação de Nobre (2017), nas quais é possível perceber peças que compartilham do mesmo tema iconográfico independentemente das morfologias nas quais ocorrem. .

Figura 1
Aspectos relacionados à variabilidade das tangas em relação a morfologia, dimensões, cores e forma de tratar a sua superfície, isto é, com grafismos ou apenas engobo: B-O) variabilidade de tamanhos, cores e formas de trabalhar a superfície das tangas, seja com grafismos, seja apenas engobo. Fontes: acervos do Museu de Arqueologia e Etnologia da Universidade de São Paulo, São Paulo (B, C, D, F, H, I, J, L, M), do Museu do Estado de Pernambuco, Recife (E, G), do Museu Paraense Emílio Goeldi, Belém (O), e do Museu Nacional, Rio de Janeiro (N).

Seus contextos de descarte estão bem registrados na literatura sobre a Arqueologia de Marajó, que indicam diferentes ocorrências de tangas em sepultamentos e em arranjos funerários (Hartt, 1885Hartt, C. F. (1885). Contribuições para a ethnologia do Valle do Amazonas (Vol. 6). Archivos do Museu Nacional do Rio de Janeiro, Rio de Janeiro.; Palmatary, 1950Palmatary, H. C. (1950). The pottery of Marajó Island, Brazil. Transactions of the American Philosophical Society, 39(3), 261-470.; Meggers & Evans, 1957Meggers, B. J., & Evans, C. (1957). Archaeological investigations at the mouth of the Amazon (No. 167). Washington: Government Publishing Office, Smithsonian Institution, Bureau of American Ethnology.; Schaan, 2004Schaan, D. P. (2004). The Camutins chiefdom: rise and development of social complexity on Marajó Island, Brazilian Amazon (Tese de doutorado). Universidade de Pittsburgh, Pittsburgh.). Nobre (2017Nobre, E. (2017). Objetos e imagens no Marajó antigo: agência e transformação na iconografia das tangas cerâmicas (Dissertação de mestrado). Museu de Arqueologia e Etnologia, Universidade de São Paulo, São Paulo., 2019)Nobre, E. (2019). As folhas de videiras das Evas da Ilha de Marajó e a (des)construção de narrativas arqueológicas. Revista Arqueologia Pública, 13(1), 155-179. doi: https://doi.org/10.20396/rap.v13i1.8654806
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sistematizou os contextos de deposição das tangas disponíveis na literatura, a fim de perceber padrões de descarte, evidenciando, assim, que elas podem estar dentro de urnas com um ou mais indivíduos, com casos de mais de uma tanga por urna, mas também podem estar associadas a sepultamentos no solo sem urnas ou, ainda, dentro de pratos e tigelas ao redor das urnas. Além disso, a análise destes contextos mostra que as tangas estão inseridas em um cenário mais amplo de objetos relacionados à fabricação e à composição do corpo e à noção de pessoa. Associada às tangas há uma diversidade de materiais, como pelotas de pigmentos, pequenos recipientes para tintas, alargadores de orelha, labretes, contas de colar e pingentes de cerâmica e de pedras verdes (Nobre, 2017Nobre, E. (2017). Objetos e imagens no Marajó antigo: agência e transformação na iconografia das tangas cerâmicas (Dissertação de mestrado). Museu de Arqueologia e Etnologia, Universidade de São Paulo, São Paulo.).

Em relação ao uso desses objetos, Prous e Lima (2011)Prous, A., & Lima, A. P. (2011). De cobras e lagartos: as tangas marajoaras. Revista do Museu Arqueologia e Etnologia, (21), 231-263. doi: https://doi.org/10.11606/issn.2448-1750.revmae.2011.89975
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defendem que as tintas empregadas em sua ornamentação seriam demasiadamente frágeis, o que inviabilizaria seu uso em atividades sujeitas ao escorrimento de suor ou mesmo realizadas em ambientes externos, sobretudo durante o período das chuvas3 3 É importante destacar que as análises dos padrões de desgastes, principalmente de seus orifícios, têm verificado a presença de canaletas ocasionadas pelo atrito do cordão de amarração junto à sua superfície externa, o que sugere que tais peças eram usadas com alguma frequência (Meggers & Evans, 1957; Nobre, 2017; Prous & Lima, 2011; Schaan, 1997). . Isso porque alguns desenhos apresentariam marcas de desbotamento das tintas, ocasionadas por respingos de água. Entretanto, a resistência das tintas empregadas na confecção dos grafismos pode variar, pois, ao mesmo tempo em que algumas peças apresentam pintura mais resistente, outras possuem pintura frágil. Contudo, até o momento não foram realizadas análises visando a compreender os processos tecnológicos envolvidos na fixação destas tintas. Nobre (2017)Nobre, E. (2017). Objetos e imagens no Marajó antigo: agência e transformação na iconografia das tangas cerâmicas (Dissertação de mestrado). Museu de Arqueologia e Etnologia, Universidade de São Paulo, São Paulo., por exemplo, percebeu que a maior parte das tangas do grupo 2 de sua classificação apresentava perda de policromia integral ou parcial. Nesse caso específico, as peças ornadas com grafismos vermelhos apresentam intensa perda de policroma ou desbotamento de suas áreas gráficas, mantendo somente suas linhas estruturais. Isso é bastante interessante, uma vez que as tangas deste grupo apresentam a mesma morfologia e, aparentemente, são procedentes da mesma região. Assim, esta variação poderia estar relacionada a diferenças regionais e mesmo cronológicas.

Além disso, a fragilidade das tintas das tangas não impediria necessariamente seu uso, sendo que a perda dos grafismos poderia ser entendida como parte do processo de vida destes objetos, como visto entre diversos grupos amazônicos (Lagrou, 2007Lagrou, E. (2007). A fluidez da forma: arte, alteridade e agência em uma sociedade amazônica (Kaxinawa, Acre). Rio de Janeiro: Topbooks.; Santos-Granero, 2012Santos-Granero, F. (2012). Introducción. In F. Santos-Granero (Org.), La vida oculta de las cosas: teorías indígenas de la materialidad y la personeidad (pp. 13-43). Quito: Abya-Yala.; Van Velthem, 2003Van Velthem, L. H. (2003). O Belo é a fera: a estética da produção e da predação entre os Wayana. Lisboa: Museu Nacional de Etnologia.). Há vários exemplos de objetos pintados com grafismos que são usados em atividades que os sujeitam à perda de sua pintura nas terras baixas sul-americanas, a exemplo dos povos xinguanos que usam torradores e pás de beiju e grandes panelas de cerâmica decoradas (Barcelos Neto, 1999, 2005-2006; Coelho, 1995Coelho, V. P. (1995). Figuras zoomorfas na arte Waurá: anotações para o estudo de uma estética indígena. Revista do Museu de Arqueologia e Etnologia, (5), 267-281. doi: https://doi.org/10.11606/issn.2448-1750.revmae.1995.109241
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). No caso das grandes panelas, utilizadas para cozinhar certos alimentos e ornadas com grafismos pretos ou pretos e vermelhos em sua lateral e fundo externo (Barcelos Neto, 1999Barcelos Neto, A. (1999). Arte, estética e cosmologia entre os índios Waurá da Amazônia Meridional (Dissertação de mestrado). Universidade Federal de Santa Catarina, Florianópolis, Santa Catarina, Brasil., 2005-2006Barcelos Neto, A. (2005-2006). A cerâmica wauja: etnoclassificação, matérias-primas e processos técnicos. Revista do Museu de Arqueologia e Etnologia, (15-16), 357-370. doi: https://doi.org/10.11606/issn.2448-1750.revmae.2006.89727
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), seus grafismos são paulatinamente perdidos devido ao contato com o fogo.

O uso das tangas exclusivamente por mulheres é sugerido por diversos autores (Barreto, 2004Barreto, C. (2004). Simbolismo sexual na antiga Amazônia: revisitando urnas, estatuetas e tangas marajoara. In Antes: histórias da pré-história [Catálogo de exposição]. Rio de Janeiro: Centro Cultural Banco do Brasil.; Hartt, 1876Hartt, C. F. (1876). Notas sobre algumas tangas de barro cozido dos antigos indígenas da Ilha de Marajó. Archivos do Museu Nacional do Rio de Janeiro, Rio de Janeiro.; Meggers & Evans, 1957Meggers, B. J., & Evans, C. (1957). Archaeological investigations at the mouth of the Amazon (No. 167). Washington: Government Publishing Office, Smithsonian Institution, Bureau of American Ethnology.; Schaan, 2003Schaan, D. P. (2003). A ceramista, seu pote e sua tanga: identidade e papéis sociais em um Cacicado Marajoara. Revista de Arqueologia, 16(1), 31-45. doi: https://doi.org/10.24885/sab.v16i1.177
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; Mordini, 1929Mordini, A. (1929). I ‘couvre sexe’ precolombiani in argilla dell’isola de Marajó. Archivio per l’Antropologia e l’Etnologia, Firenze.; Netto, 1885Netto, L. (1885). Investigações sobre a archeologia brazileira (Vol. 6). Archivos do Museu Nacional do Rio de Janeiro, Rio de Janeiro.; Palmatary, 1950Palmatary, H. C. (1950). The pottery of Marajó Island, Brazil. Transactions of the American Philosophical Society, 39(3), 261-470.; Prous & Lima, 2011Prous, A., & Lima, A. P. (2011). De cobras e lagartos: as tangas marajoaras. Revista do Museu Arqueologia e Etnologia, (21), 231-263. doi: https://doi.org/10.11606/issn.2448-1750.revmae.2011.89975
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). Vale acentuar, no entanto, que recentemente tem sido questionada a ideia de que essas peças eram destinadas unicamente a mulheres, assim como a concepção de que, quando encontradas associadas a sepultamentos, poderiam ser empregadas como uma espécie de índice para a identificação de sepultamentos femininos. Isso porque as poucas análises dos remanentes ósseos encontrados junto com as tangas mostram resultados bastante ambíguos e os poucos dados contextuais existentes relacionam a esses objetos indivíduos tanto do sexo masculino quanto do feminino (Nobre, 2019Nobre, E. (2019). As folhas de videiras das Evas da Ilha de Marajó e a (des)construção de narrativas arqueológicas. Revista Arqueologia Pública, 13(1), 155-179. doi: https://doi.org/10.20396/rap.v13i1.8654806
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).

Dentro da discussão que debate o caráter feminino das tangas, Schaan (2003Schaan, D. P. (2003). A ceramista, seu pote e sua tanga: identidade e papéis sociais em um Cacicado Marajoara. Revista de Arqueologia, 16(1), 31-45. doi: https://doi.org/10.24885/sab.v16i1.177
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, 2004)Schaan, D. P. (2004). The Camutins chiefdom: rise and development of social complexity on Marajó Island, Brazilian Amazon (Tese de doutorado). Universidade de Pittsburgh, Pittsburgh. defende que estes objetos seriam destinados às mulheres da elite e as diferenças observadas em relação à sua decoração seriam relativas a diferenças de idade entre estas mulheres (Schaan, 2003Schaan, D. P. (2003). A ceramista, seu pote e sua tanga: identidade e papéis sociais em um Cacicado Marajoara. Revista de Arqueologia, 16(1), 31-45. doi: https://doi.org/10.24885/sab.v16i1.177
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, 2004Schaan, D. P. (2004). The Camutins chiefdom: rise and development of social complexity on Marajó Island, Brazilian Amazon (Tese de doutorado). Universidade de Pittsburgh, Pittsburgh.). As tangas apenas engobadas, isto é, aquelas monocromáticas, seriam maiores do que aquelas com grafismos, sendo também mais frequentes em sepultamentos no interior de grandes urnas funerárias ricamente ornamentadas, o que seria um indicativo de que pertenciam a mulheres mais velhas. Já aquelas com grafismos teriam sido usadas por jovens mulheres sem um status social estabelecido, pois seriam menores. Assim, identidades individuais e sociais estariam representadas na iconografia das tangas, sendo que seus campos gráficos informariam sobre gênero, idade e papel da mulher (Schaan, 2003Schaan, D. P. (2003). A ceramista, seu pote e sua tanga: identidade e papéis sociais em um Cacicado Marajoara. Revista de Arqueologia, 16(1), 31-45. doi: https://doi.org/10.24885/sab.v16i1.177
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, 2004).

Para Schaan (2003, p. 37)Schaan, D. P. (2003). A ceramista, seu pote e sua tanga: identidade e papéis sociais em um Cacicado Marajoara. Revista de Arqueologia, 16(1), 31-45. doi: https://doi.org/10.24885/sab.v16i1.177
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, o campo gráfico que aqui chamaremos de banda 2 veicularia padrões gráficos interpretados como ‘pele da serpente’, pois estariam presentes no corpo das serpentes mais figurativas, e seriam também pintados em estatuetas, urnas funerárias e outros objetos. A interpretação destes padrões como ‘pele da serpente’, no entanto, não é unanimidade, a exemplo de Prous e Lima (2011, p. 259)Prous, A., & Lima, A. P. (2011). De cobras e lagartos: as tangas marajoaras. Revista do Museu Arqueologia e Etnologia, (21), 231-263. doi: https://doi.org/10.11606/issn.2448-1750.revmae.2011.89975
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. A própria autora (Schaan, 2009Schaan, D. P. (2009). Cultura Marajoara. Rio de Janeiro: Senac Nacional.), posteriormente, registrou figuras aludindo a jacarés e escorpiões neste campo gráfico. Vale lembrar também que Hartt (1876)Hartt, C. F. (1876). Notas sobre algumas tangas de barro cozido dos antigos indígenas da Ilha de Marajó. Archivos do Museu Nacional do Rio de Janeiro, Rio de Janeiro., ainda no fim do século XIX, indicou que os grafismos de certos campos das tangas figurariam uma face humana, e que, recentemente, Prous e Lima (2011)Prous, A., & Lima, A. P. (2011). De cobras e lagartos: as tangas marajoaras. Revista do Museu Arqueologia e Etnologia, (21), 231-263. doi: https://doi.org/10.11606/issn.2448-1750.revmae.2011.89975
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sugeriram figurações de faces humanas ou animais no campo gráfico que aqui chamaremos de painel gráfico.

Dentro dos estudos sobre a iconografia da cerâmica marajoara, mesmo os autores preocupados em isolar temas antropomorfos ou zoomorfos admitem que as imagens e os corpos presentes nesta iconografia são multicompostos. Sendo assim, parece que tais corpos e imagens expressam muito mais uma concepção de corporalidade pautada no caráter transformativo dos corpos. Assim, o que se pretende é refletir sobre as tangas não enquanto itens relacionados às elites, mas sim como objetos de composição, transformação e fabricação corporal, e cujos grafismos materializam princípios cosmológicos relacionados à corporalidade. Deste modo, não se trata somente de isolar figuras antropomorfas ou zoomorfas, mas também de entender a sintaxe destas imagens, bem como suas formas de agentividade.

O MATERIAL ANALISADO

A partir desse ponto, iremos analisar as imagens vistas nos campos gráficos das tangas cerâmicas, buscando compreender suas tecnologias de encantamento e capacidade de abdução, como proposto por Gell (1992Gell, A. (1992). The technology of enchantment and the enchantment of technology. In J. Coote & A. Shelton (Eds.), Anthropology, art and aesthetics (pp. 40-63). Oxford: Clarendon Press., 1998)Gell, A. (1998). Art and agency: an anthropological theory. Oxford: Clarendon Press., e identificar seus componentes gráficos. Assim, essa análise visa a: (1) identificar as regras de composição das imagens e seus componentes gráficos; (2) examinar os aspectos envolvidos em sua agentividade; e (3) indicar os efeitos sensoriais e estéticos das imagens.

O universo de análise dessa pesquisa abarcou um total de 210 exemplares de tangas em diferentes estados de conservação e integridade, sendo que, dessas, 153 pertencem a oito coleções diferentes. Tais coleções encontram-se, atualmente, sob a guarda de quatro instituições: o Museu de Arqueologia e Etnologia, em São Paulo (coleções 006, Plínio Airosa e do antigo Instituto Cultural Banco Santos), o Museu Paraense Emílio Goeldi, em Belém (coleções Tombada, Governo do Estado do Pará e Dita Acatauassu), o Museu do Estado de Pernambuco, em Recife (coleção Carlos Estevão de Oliveira), e o Museu Nacional, no Rio de Janeiro (coleção Amazônica).

Além das tangas analisadas nas instituições mencionadas, foram incorporadas, na análise proposta, 57 peças provenientes de diversos museus, instituições e coleções particulares, cujas imagens foram publicadas em livros, catálogos e dissertações.

A ANÁLISE DOS ASPECTOS GRÁFICOS E ESTRUTURAIS DAS TANGAS

As análises iconográficas de materiais que vêm sendo estudados por muito tempo, a exemplo do que se pode perceber na Arqueologia andina, demonstram que os distintos campos gráficos de imagens estão estruturalmente relacionados. Por exemplo, o estudo da linguagem iconográfica da cerâmica Moche, na costa norte-peruana, identifica uma divisão dos objetos em campos gráficos ou áreas específicas que reflete uma estruturação vertical do cosmo (Golte, 2009Golte, J. (2009). Moche, cosmología y sociedad: una interpretación iconográfica. Cusco: Instituto de Estudios Peruanos.).

Neste artigo, por uma necessidade metodológica, as tangas serão analisadas a partir de seus campos gráficos, a fim de mapear suas características estruturais e variáveis, de modo a verificar as particularidades de cada um dos seus campos. Embora as imagens compostas nas tangas sejam seccionadas em campos decorativos (Meggers & Evans, 1957Meggers, B. J., & Evans, C. (1957). Archaeological investigations at the mouth of the Amazon (No. 167). Washington: Government Publishing Office, Smithsonian Institution, Bureau of American Ethnology.; Schaan, 2001Schaan, D. P. (2001). Into the labyrinths of Marajoara pottery: status and cultural identity in an Amazonian complex society. In C. McEwan, C. Barreto & E. Neves (Orgs.), The unknown Amazon: nature in culture in ancient Brazil (pp. 108-133). Londres: British Museum Press., Prous & Lima, 2011Prous, A., & Lima, A. P. (2011). De cobras e lagartos: as tangas marajoaras. Revista do Museu Arqueologia e Etnologia, (21), 231-263. doi: https://doi.org/10.11606/issn.2448-1750.revmae.2011.89975
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), as relações entre os distintos campos devem ser consideradas, compreendendo cada campo como uma parte específica de uma única imagem (Nobre, 2017Nobre, E. (2017). Objetos e imagens no Marajó antigo: agência e transformação na iconografia das tangas cerâmicas (Dissertação de mestrado). Museu de Arqueologia e Etnologia, Universidade de São Paulo, São Paulo.).

Campo gráfico, aqui, é entendido como a região na qual se aplica um motivo gráfico (Barreto et al., 2016Barreto, C., Lima, H. P., & Betancourt, C. J. (Eds.). (2016). Cerâmicas arqueológicas da Amazônia: rumo a uma nova síntese. Belém: IPHAN.; Scatamacchia et al., 1991Scatamacchia, M. C. M., Gaggiano, M. A., & Jacobus, A. (1991). Aproveitamento científico de coleções museológicas: propostas para classificação de vasilhas da tradição Tupiguarani. Clio, (4), 89-94.; Shepard, 1965Shepard, A. O. (1965). Ceramics for the archaeologist (No. 609). Washington: Carnegie Institution of Washington.), delimitada por linhas ou faixas. Motivo gráfico é compreendido enquanto um arranjo específico de elementos gráficos, cuja conjunção e ordenamento configuram um padrão gráfico (Barreto et al., 2016Barreto, C., Lima, H. P., & Betancourt, C. J. (Eds.). (2016). Cerâmicas arqueológicas da Amazônia: rumo a uma nova síntese. Belém: IPHAN.).

A abordagem desenvolvida por Shepard (1965)Shepard, A. O. (1965). Ceramics for the archaeologist (No. 609). Washington: Carnegie Institution of Washington., para analisar e descrever os grafismos das cerâmicas arqueológicas, contempla características como sua adaptação à forma do suporte, método de composição, tipos de elementos e motivos gráficos, além de aspectos como simetria, espelhamento e rotação, entre outros. Tais atributos são úteis em análises que objetivam descrever estilos e microestilos, mas podem também ser empregados em análises voltadas aos aspectos simbólicos e agentivos dos grafismos, conforme demonstrado por Nobre (2017)Nobre, E. (2017). Objetos e imagens no Marajó antigo: agência e transformação na iconografia das tangas cerâmicas (Dissertação de mestrado). Museu de Arqueologia e Etnologia, Universidade de São Paulo, São Paulo..

Atenta-se aqui tanto aos aspectos formais quanto aos aspectos agentivos dos grafismos. Por essa razão, ao mesmo tempo em que emprega alguns atributos de análise da abordagem de Shepard (1965)Shepard, A. O. (1965). Ceramics for the archaeologist (No. 609). Washington: Carnegie Institution of Washington., a proposta de Gell (1998)Gell, A. (1998). Art and agency: an anthropological theory. Oxford: Clarendon Press., comentada mais à frente, também é útil para entender as características envolvidas em sua agentividade. Com isso em vista, elencamos alguns pontos úteis para a análise relativos à proposta de Shepard (1965)Shepard, A. O. (1965). Ceramics for the archaeologist (No. 609). Washington: Carnegie Institution of Washington..

Nessa abordagem, a identificação das delimitações e das divisões estruturais primárias do campo gráfico é um aspecto crucial para a verificação dos métodos de composição. Para analisar as tangas, este aspecto é bastante útil, já que são compostas por campos gráficos separados, o que permite vislumbrar suas características e recorrências estruturais.

A análise da simetria e dos movimentos simétricos é um procedimento estreitamente relacionado ao estudo da estrutura dos grafismos. A sua classificação é feita com base em três classes de simetrias. A simetria bilateral ou reflexiva caracteriza-se pela reflexão ou espelhamento; já a rotacional é caracterizada por um deslocamento ou giro em um ângulo específico; enfim, a simetria radial engloba reflexão e rotação (Shepard, 1965Shepard, A. O. (1965). Ceramics for the archaeologist (No. 609). Washington: Carnegie Institution of Washington.).

Além disso, certos padrões gráficos vistos nas tangas correspondem ao tipo denominado por Shepard (1965)Shepard, A. O. (1965). Ceramics for the archaeologist (No. 609). Washington: Carnegie Institution of Washington. como ‘padrão de banda’. Estes padrões são compostos por meio da repetição, em uma linha reta, de único movimento, como translação ou rotação, por exemplo, ou por meio da combinação de vários movimentos.

Analogamente, Gell (1998)Gell, A. (1998). Art and agency: an anthropological theory. Oxford: Clarendon Press. identificou certos movimentos pelos quais os grafismos são repetidos. Aqui, diferentemente, os movimentos simétricos são usados a fim de compreender a formação de determinados tipos de padrões e seus efeitos visuais. Esta abordagem tende a vislumbrar a fonte de animação dos grafismos na cadência gerada pela reflexão, translação, rotação e reflexão deslizante. Estes movimentos estariam relacionados à formação de certos tipos de padrões que agem como armadilhas ao atraírem e prenderem o olhar e a mente do espectador em seus emaranhados gráficos, capturando-o em suas ‘tramas’, como um labirinto (Gell, 1998Gell, A. (1998). Art and agency: an anthropological theory. Oxford: Clarendon Press., pp. 79-80).

A seguir, apresentaremos algumas características estruturais das imagens figuradas nas tangas para, depois, adentrarmos em suas características iconográficas mais gerais.

AS ESTRUTURAS GRÁFICAS

Apesar de as tangas com grafismos serem frequentemente caracterizadas por três campos gráficos na literatura especializada, a exemplo de Meggers e Evans (1957)Meggers, B. J., & Evans, C. (1957). Archaeological investigations at the mouth of the Amazon (No. 167). Washington: Government Publishing Office, Smithsonian Institution, Bureau of American Ethnology. e Schaan (2001)Schaan, D. P. (2001). Into the labyrinths of Marajoara pottery: status and cultural identity in an Amazonian complex society. In C. McEwan, C. Barreto & E. Neves (Orgs.), The unknown Amazon: nature in culture in ancient Brazil (pp. 108-133). Londres: British Museum Press., a análise de suas divisões estruturais mostrou uma tendência um pouco mais diversa. Entre as 210 tangas analisadas, percebeu-se variação de dois a quatro campos gráficos, com predominância da divisão em quatro partes e algumas recorrências isoladas de peças com mais de quatro campos gráficos (Nobre, 2017Nobre, E. (2017). Objetos e imagens no Marajó antigo: agência e transformação na iconografia das tangas cerâmicas (Dissertação de mestrado). Museu de Arqueologia e Etnologia, Universidade de São Paulo, São Paulo.).

A superfície externa das tangas é dividida por linhas contínuas estruturais, delimitando, assim, os diferentes campos gráficos. Como demonstrado por Nobre (2017)Nobre, E. (2017). Objetos e imagens no Marajó antigo: agência e transformação na iconografia das tangas cerâmicas (Dissertação de mestrado). Museu de Arqueologia e Etnologia, Universidade de São Paulo, São Paulo., a maior parte das tangas é constituída por duas bandas demarcadas por linhas horizontais em sua porção superior, enquanto tangas com apenas uma única banda são menos recorrentes. Abaixo destas bandas, há um campo mais amplo e com altura variável, chamado aqui de painel gráfico, representando uma composição mais elaborada de elementos gráficos e motivos. A presença apenas deste campo, ou seja, a ausência das bandas, constitui também uma recorrência isolada. Abaixo deste campo, localizadas próximo à extremidade inferior, pode haver também linhas simples ou duplas, às vezes com retículas, que são variavelmente articuladas (Nobre, 2017Nobre, E. (2017). Objetos e imagens no Marajó antigo: agência e transformação na iconografia das tangas cerâmicas (Dissertação de mestrado). Museu de Arqueologia e Etnologia, Universidade de São Paulo, São Paulo.).

Desse modo, de acordo com a recorrência dos campos gráficos apresentados, foram definidas quatro áreas que ocorrem mais frequentemente e que foram chamadas de banda 1, banda 2, painel gráfico e linhas, cada uma com suas próprias especificidades, como pode ser observado na Figura 2.

Figura 2
Campos gráficos mais recorrentes das tangas.

Na primeira das bandas, localizada na porção superior e mais larga da tanga, assim como registrado por Nobre (2017)Nobre, E. (2017). Objetos e imagens no Marajó antigo: agência e transformação na iconografia das tangas cerâmicas (Dissertação de mestrado). Museu de Arqueologia e Etnologia, Universidade de São Paulo, São Paulo., o padrão mais recorrente é aquele aqui chamado como padrão 1, caracterizado por “. . . [várias] faixas brancas, alternadamente verticais e oblíquas, formadas pela justaposição de triângulos ou trapézios preenchidos por tinta vermelha ou marrom ou ainda por retículas” (Nobre, 2017Nobre, E. (2017). Objetos e imagens no Marajó antigo: agência e transformação na iconografia das tangas cerâmicas (Dissertação de mestrado). Museu de Arqueologia e Etnologia, Universidade de São Paulo, São Paulo., p. 122). Este padrão de banda é o mais comum, possuindo três variantes, sendo a variante ‘A’ a mais frequente e as variantes ‘B’ e ‘C’ aquelas menos recorrentes (Figura 3). Outros tipos de padrões podem ocorrer nesta banda, mas são incomuns, e geralmente ocorrem quando existe apenas uma banda.

É importante ressaltar que o retângulo central, exibido no padrão 1, tem sido interpretado como uma alusão ao órgão genital feminino (Schaan, 2003Schaan, D. P. (2003). A ceramista, seu pote e sua tanga: identidade e papéis sociais em um Cacicado Marajoara. Revista de Arqueologia, 16(1), 31-45. doi: https://doi.org/10.24885/sab.v16i1.177
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, 2007; Prous & Lima, 2011Prous, A., & Lima, A. P. (2011). De cobras e lagartos: as tangas marajoaras. Revista do Museu Arqueologia e Etnologia, (21), 231-263. doi: https://doi.org/10.11606/issn.2448-1750.revmae.2011.89975
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). Schaan (2003)Schaan, D. P. (2003). A ceramista, seu pote e sua tanga: identidade e papéis sociais em um Cacicado Marajoara. Revista de Arqueologia, 16(1), 31-45. doi: https://doi.org/10.24885/sab.v16i1.177
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percebeu que um retângulo semelhante está presente também sobre a possível representação da vulva em urnas funerárias e estatuetas e, assim, sugeriu que “. . . seu significado está relacionado a gênero e, possivelmente, à sexualidade. . .” (Schaan, 2003Schaan, D. P. (2003). A ceramista, seu pote e sua tanga: identidade e papéis sociais em um Cacicado Marajoara. Revista de Arqueologia, 16(1), 31-45. doi: https://doi.org/10.24885/sab.v16i1.177
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, p. 37). Entretanto, tal interpretação ainda é frágil4 4 Vale lembrar que, em suas análises iconográficas da cerâmica marajoara, Schaan (1997) trabalhou com unidades mínimas de significação que não foram isoladas a partir de um método de análise formal, mas sim por meio da comparação entre os diversos contextos nos quais estão presentes e sem considerar sua posição formal dentro do conjunto (Schaan, 1997). e não se aplica a todas as tangas, e por isso não será considerada neste artigo. Embora este padrão ocorra em mais de 80 por cento das tangas, é necessário considerar que há também outros nos quais o retângulo central não está presente e que são compostos por elementos triangulares arranjados em reflexão deslizante, de forma a criar um zigue-zague, conforme demonstra Nobre (2017)Nobre, E. (2017). Objetos e imagens no Marajó antigo: agência e transformação na iconografia das tangas cerâmicas (Dissertação de mestrado). Museu de Arqueologia e Etnologia, Universidade de São Paulo, São Paulo.. Além disso, nas urnas funerárias globulares do estilo Joanes Pintado, há um padrão bastante semelhante a este, que, como nas tangas, é pintado junto às bordas (Barreto, 2009Barreto, C. (2009). Meios místicos de reprodução social: arte e estilo na cerâmica funerária da Amazônia antiga (Tese de doutorado). Universidade de São Paulo, São Paulo, SP, Brasil.), ou seja, nem sempre está relacionado à vulva.

Figura
Padrão mais recorrente na banda 1 e suas variantes, acervo do Museu de Arqueologia e Etnologia da Universidade de São Paulo, São Paulo.

O segundo campo gráfico, chamado aqui de banda 2, está localizado logo abaixo da banda 1. Essa banda possui uma grande variabilidade de padrões, e estes também são encontrados em outros artefatos, como tigelas, a exemplo daquelas registradas por Barreto (2009, p. 133)Barreto, C. (2009). Meios místicos de reprodução social: arte e estilo na cerâmica funerária da Amazônia antiga (Tese de doutorado). Universidade de São Paulo, São Paulo, SP, Brasil. e Schaan (2007, p. 54)Schaan, D. P. (2007). A arte da cerâmica marajoara: encontros entre o passado e o presente. Habitus, 5(1), 99-117., além de urnas. Estes grafismos são compostos pela combinação de elementos geometrizados e estilizados, como triângulos, elementos cruciformes, linhas, quadriláteros etc., que são repetidos linearmente por movimentos simétricos. Muitos destes padrões são variantes dos mesmos modelos, ou seja, são padrões semelhantes que compartilham a mesma estrutura, mas são compostos por elementos gráficos distintos, como pode ser observado na Figura 4.

Figura 4
Variação dos padrões gráficos da segunda banda, acervos do Museu de Arqueologia e Etnologia da Universidade de São Paulo, São Paulo (A e F), do Museu Nacional, Rio de Janeiro (B, C, E, G e H), do American Museum of Natural History, Nova Iorque (D), e do Museu Paraense Emílio Goeldi, Belém (I). Ilustração do autor.

O campo que ocupa a maior porção da tanga é aquele chamado aqui de painel gráfico, logo abaixo da banda 2, e isolado dela por uma faixa estreita. Este campo é o que apresenta a maior variabilidade, tanto devido às diferentes combinações de elementos gráficos quanto em função dos métodos de composição empregados, os quais, por seu turno, determinam características estruturais, como a delimitação dos espaços e a repetição dos motivos gráficos. Este campo gráfico pode ser estruturado pelos seguintes métodos:

  1. Subdivisão do painel gráfico em painéis menores verticais ou horizontais e com padrões compostos por um motivo gráfico que é duplicado ou desdobrado horizontalmente ou verticalmente (Figura 5A);

  2. Apenas pelo desdobramento horizontal de um motivo, sem a divisão prévia do painel (Figura 5B);

  3. O painel pode ser subdividido, sempre a partir de um eixo central, em vários espaços semelhantes e alternados por meio de movimentos como rotação, reflexão ou somente reflexão deslizante e, após isso, preenchido por elementos semelhantes que repetem os mesmos movimentos. Nesse caso, cria-se um tipo de padrão repetitivo que Shepard (1965)Shepard, A. O. (1965). Ceramics for the archaeologist (No. 609). Washington: Carnegie Institution of Washington. chama de padrão allover (Figura 5C).

Figura 5
Tipos mais recorrentes de divisões estruturais do painel gráfico: A) estruturado a partir de painéis verticais; B) estruturado a partir da disposição de elementos gráficos sobre um eixo virtual; (C) estruturado em espaços semelhantes e alternados e preenchido com elementos gráficos semelhantes. Ilustração do autor.

Estes layouts determinam os tipos de simetria dos padrões formados neste campo. Resumidamente, o tipo mais comum de simetria empregado nos padrões do painel gráfico é a reflexão ou simetria bilateral. Outros tipos de simetrias ocorrem, mas são mais incomuns (Nobre, 2017Nobre, E. (2017). Objetos e imagens no Marajó antigo: agência e transformação na iconografia das tangas cerâmicas (Dissertação de mestrado). Museu de Arqueologia e Etnologia, Universidade de São Paulo, São Paulo.).

A COMPOSIÇÃO DO CORPO

As imagens elaboradas nas tangas são compostas por meio do encaixe múltiplo ou recursivo de figuras aludindo a seres diversos e suas partes corporais. Assim, “. . . muitos dos padrões dos seus campos gráficos compõem imagens reconhecíveis de corpos, muitos de animais, e partes de corpos, tais quais faces e olhos” (Nobre, 2017Nobre, E. (2017). Objetos e imagens no Marajó antigo: agência e transformação na iconografia das tangas cerâmicas (Dissertação de mestrado). Museu de Arqueologia e Etnologia, Universidade de São Paulo, São Paulo., p. 131).

Tais imagens figuradas são integradas por um número limitado de seres (Nobre, 2017Nobre, E. (2017). Objetos e imagens no Marajó antigo: agência e transformação na iconografia das tangas cerâmicas (Dissertação de mestrado). Museu de Arqueologia e Etnologia, Universidade de São Paulo, São Paulo.). Conforme observado por Schaan (1997)Schaan, D. P. (1997). A linguagem iconográfica da cerâmica marajoara: um estudo da arte pré-histórica da Ilha de Marajó, Brasil (400-1300 AD). Porto Alegre: Edipuc., esses seres podem ser figurados tanto de forma icônica, quando se assemelham ao seu protótipo, quanto de modo esquemático ou estilizado, quando elaborados a partir da simplificação de um signo icônico ou a partir de vários referentes. As figuras icônicas, de acordo com Schaan (1997)Schaan, D. P. (1997). A linguagem iconográfica da cerâmica marajoara: um estudo da arte pré-histórica da Ilha de Marajó, Brasil (400-1300 AD). Porto Alegre: Edipuc., são modeladas nos apêndices ou no corpo das vasilhas, ao passo que as figuras abstratas são mais comuns na decoração pintada, excisa e incisa.

No presente artigo, a análise iconográfica lida com um sistema de figuração pautado exclusivamente na pintura, no qual as figuras são simplificadas ou abstraídas. Disso resulta um emaranhado de grafismos no qual se observa um encaixe múltiplo de imagens. Estas imagens são elaboradas por um número reduzido de seres, a partir de suas manipulações gráficas, de modo a criar figuras diferentes, mas relacionadas entre si. Os seres aqui vistos, figurados de modo mais simplificado, conforme Nobre (2017, p. 133)Nobre, E. (2017). Objetos e imagens no Marajó antigo: agência e transformação na iconografia das tangas cerâmicas (Dissertação de mestrado). Museu de Arqueologia e Etnologia, Universidade de São Paulo, São Paulo., são os mesmos modelados nas urnas funerárias e outras vasilhas, de forma mais figurativa.

Estas imagens apresentam algumas características fundamentais para se refletir sobre a agentividade das tangas. Estas características se relacionam às técnicas perspectivistas, definidas por Lagrou (2013)Lagrou, E. (2013). Podem os grafismos ameríndios ser considerados quimeras abstratas? Uma reflexão sobre uma arte perspectivista. In C. Severi & E. Lagrou (Orgs.), Quimeras em diálogo: grafismo e figuração na arte indígena (pp. 67-109). Rio de Janeiro: 7Letras., que permitiriam ao espectador alterar a sua perspectiva e observar novas imagens. As técnicas que, na iconografia das tangas, possibilitam mudar a perspectiva são: (1) relação multiescalar, quando a imagem é elaborada por partes que aludem a ela mesma, como uma face cujos olhos aludem a faces menores; (2) relação metonímica entre parte e todo, quando a imagem resulta da relação entre suas partes e sua totalidade, a exemplo de uma face compondo o todo, com suas partes, como seus olhos, boca e nariz, formadas por uma figura sauroforme (Nobre, 2017Nobre, E. (2017). Objetos e imagens no Marajó antigo: agência e transformação na iconografia das tangas cerâmicas (Dissertação de mestrado). Museu de Arqueologia e Etnologia, Universidade de São Paulo, São Paulo.).

A ANATOMIA CORPORAL

A partir da comparação dos grafismos encontrados nas tangas com figuras de outras morfologias, confeccionadas em excisão, incisão ou modelado, foi percebida a recorrência de vários motivos gráficos que aludem sempre aos mesmos seres. Estes motivos podem ser mais ou menos reconhecíveis.

É comum, em certas urnas funerárias, a existência de um réptil bastante estilizado, conforme observado por Schaan (1997)Schaan, D. P. (1997). A linguagem iconográfica da cerâmica marajoara: um estudo da arte pré-histórica da Ilha de Marajó, Brasil (400-1300 AD). Porto Alegre: Edipuc., com cabeça, corpo, rabo e membros, figurado por meio da modelagem (Figuras 6A e 6B). Conforme observado por Schaan (1997)Schaan, D. P. (1997). A linguagem iconográfica da cerâmica marajoara: um estudo da arte pré-histórica da Ilha de Marajó, Brasil (400-1300 AD). Porto Alegre: Edipuc., as características deste ser são bastante ambíguas, ora sugerindo alguma espécie de jacaré, ora sugerindo um lagarto e, por isso, aqui será chamado de sauro. Este ser é elaborado de forma mais icônica ou figurativa, ou tem sua estrutura reduzida a uma linha que compõe seu tronco e a duas linhas perpendiculares àquela, sinalizando seus membros. Em outros campos, o mesmo motivo aparece simplificado a tal ponto de ser reduzido a um tridígito. Esta figura é simetricamente duplicada, apresentando às vezes duas cabeças, uma em cada extremidade (Figura 6A).

Figura 6
Figurações do ser sauromorfo em técnicas diversas na cerâmica marajoara: A) ser sauromorfo figurado desde uma forma mais realista até a sua simplicação mais elementar; B) ser sauromorfo figurado de forma modelada em urna funerária com decoração excisa, acervo do University Museum; C) figuração do ser sauromorfo de forma excisa e com retoque de pintura vermelha em urna funerária, acervo do Sistema Integrado de Museus e Memoriais/Secretaria de Estado de Cultura do Pará, Belém. Fontes: Schaan (1997)Schaan, D. P. (1997). A linguagem iconográfica da cerâmica marajoara: um estudo da arte pré-histórica da Ilha de Marajó, Brasil (400-1300 AD). Porto Alegre: Edipuc. (A); Palmatary (1950)Palmatary, H. C. (1950). The pottery of Marajó Island, Brazil. Transactions of the American Philosophical Society, 39(3), 261-470. (B); Nobre (2017, pp. 134-135).

Nas tangas, a análise iconográfica verificou a mesma recorrência de motivos gráficos que aludem a este ser sauromorfo (Nobre, 2017Nobre, E. (2017). Objetos e imagens no Marajó antigo: agência e transformação na iconografia das tangas cerâmicas (Dissertação de mestrado). Museu de Arqueologia e Etnologia, Universidade de São Paulo, São Paulo.), como é possível observar na Figura 7. Embora figurado de maneira mais esquemática, é possível notar algumas recorrências estruturais nas formas de sua composição, tais como (1) membros flexionados saindo de seu corpo, podendo sugerir o tronco; (2) forma losangular, amendoada ou quadrangular aludindo o tronco; (3) tridígitos evocando suas patas; (4) corpo inteiro, como se visto de cima; (5) corpo duplicado sempre de modo simétrico (Nobre, 2017Nobre, E. (2017). Objetos e imagens no Marajó antigo: agência e transformação na iconografia das tangas cerâmicas (Dissertação de mestrado). Museu de Arqueologia e Etnologia, Universidade de São Paulo, São Paulo., p. 136).

Figura 7
Seres que aludem a sauros e a suas características estruturais, como corpo simetricamente duplicado, membros ‘abertos’ e corpo losangular, acervos do Museu Nacional, Rio de Janeiro (A e F), da antiga coleção do Instituto Cultural Banco Santos, São Paulo (B), do Museu Paraense Emílio Goeldi, Belém (C), e da coleção Oliveira, Museu do Estado do Pernambuco, Recife (D).

Outro ser também é figurado na iconografia das tangas, desempenhando um papel importante na constituição das imagens (Nobre, 2017Nobre, E. (2017). Objetos e imagens no Marajó antigo: agência e transformação na iconografia das tangas cerâmicas (Dissertação de mestrado). Museu de Arqueologia e Etnologia, Universidade de São Paulo, São Paulo.). Esta figura, assim como o sauro, ora é mostrada de maneira mais figurativa, quando aparece de forma modelada (Figura 8A), ora de maneira mais ‘simplificada’, quando está presente nos grafismos elaborados por meio da pintura, excisão ou incisão (Figuras 8B e 8C).

Figura 8
Figurações de ser abrangendo característica tanto serpentilínea quanto pisciforme, chamado aqui de peixe-serpentilíneo: A) detalhe destacando motivo que alude à figura mais icônica do peixe-serpentilíneo em uma urna funerária, acervo do University Museum; B) motivos aludindo ao peixe-serpentilíneo em tangas, acervo do Museu Nacional, Rio de Janeiro; C) motivos ‘pirâmide escalonada’ referentes à cabeça do ser serpentilíneo, elaborados tanto de maneira mais icônica, como visto em 1 a 4, quanto de forma simplificada, conforme 5 e 6, nos quais são observados degraus invertidos para o interior, de modo a criar uma figura de T em negativo.

O aspecto deste ser mescla tanto características de peixes como de serpentes. Uma forma triangular compõe a sua cabeça, de onde também são projetados elementos como ganchos ou volutas, que parecem aludir a bigodes ou vibrissas (Nobre, 2017Nobre, E. (2017). Objetos e imagens no Marajó antigo: agência e transformação na iconografia das tangas cerâmicas (Dissertação de mestrado). Museu de Arqueologia e Etnologia, Universidade de São Paulo, São Paulo.), conforme pode ser visto na Figura 8B. O conjunto de motivos triangulares com escalonados, que Palmatary (1950, p. 343)Palmatary, H. C. (1950). The pottery of Marajó Island, Brazil. Transactions of the American Philosophical Society, 39(3), 261-470. denomina de ‘pirâmide escalonada’, na iconografia das tangas, é utilizado para figurar sua cabeça (Figura 8C). É comum que sua cabeça seja mais elaborada do que seu corpo, sendo que este último pode ser reduzido a linhas. Tais motivos podem estar presentes de modo mais icônico, quando as características faciais desta figura são sugeridas por meio de elaborações (Figuras 8C, números 1 a 4), ou podem ser simplificados, quando são reduzidos a uma ‘pirâmide escalonada invertida’, com elementos escalonados elaborados em seu interior, criando ali dentro um ‘T’ em negativo e sem os traços faciais, conforme se observa na Figura 8C (números 5 e 6).

As características descritas lembram traços referentes a peixes como os bagres, também conhecidos como peixe-gatos, em função dos seus barbilhos, semelhantes também a vibrissas, ou bigodes dos felinos. Uma espécie de bagre de água doce denominada Sorubimichthys planiceps, também conhecida como surubim-chicote, surubim-lenha ou peixe-lenha, e dispersa pelas bacias do Orinoco, do Amazonas e do Tocantins-Araguaia, possui características como “. . . longos barbilhos junto à boca, cabeça larga. . . . é um corpo alongado e roliço e com um comprimento que pode atingir até um metro e meio” (Nobre, 2017Nobre, E. (2017). Objetos e imagens no Marajó antigo: agência e transformação na iconografia das tangas cerâmicas (Dissertação de mestrado). Museu de Arqueologia e Etnologia, Universidade de São Paulo, São Paulo., p. 141).

Estes traços são bem sugestivos quando comparados às características desta figura da iconografia da cerâmica marajoara, cujos traços incluem um corpo bastante alongado e uma grande cabeça triangular da qual saem volutas ou ganchos que aludiriam aos barbilhos daquele bagre. Apesar disso, é impossível apontar a espécie de peixe à qual este ser figurado na iconografia das tangas se refere, já que “. . . nem sempre as figurações dos animais obedecem aos seus princípios anatômicos” (Schaan, 1997Schaan, D. P. (1997). A linguagem iconográfica da cerâmica marajoara: um estudo da arte pré-histórica da Ilha de Marajó, Brasil (400-1300 AD). Porto Alegre: Edipuc., p. 148).

Além disso, devido ao caráter fluido das figuras existentes na iconografia marajoara, no qual um ser pode ser vários seres ao mesmo tempo, tal associação torna-se ainda mais problemática. A serpente, por exemplo, um ser comum na iconografia desta cerâmica, possui também um corpo alongado; por esta razão, é complicado definir se se trata de um peixe ou de uma cobra. Deste modo, aqui a referência a este ser é feita como peixe-serpentilíneo5 5 Embora, geralmente, seja empregado o termo serpentiforme para designar elementos em forma de serpentes e cobras, o termo ‘serpentilíneo’ aqui é usado em consonância a trabalhos publicados, a exemplo de Nobre (2017) e Oliveira (2016). . Vale lembrar também que Oliveira (2020)Oliveira, E. (2020). Corpo de barro, corpo de gente: metáforas na iconografia das urnas funerárias polícromas. Boletim do Museu Paraense Emílio Goeldi. Ciências Humanas, 15(3), e20190108. doi: 10.1590/2178-2547-BGOELDI-2019-0108
https://doi.org/10.1590/2178-2547-BGOELD...
, presente nesta edição, analogamente, tem identificado nas cerâmicas polícromas da Amazônia Central e do alto rio Madeira um motivo iconográfico com um referente a animais próximos a serpentes e peixes.

A maior parte das imagens exibidas nas tangas é composta pela figura do sauro e do peixe-serpentilíneo, ambos podendo estar presentes de modo icônico ou simplificado. Na maioria das vezes, eles são decompostos, recompostos e, muitas vezes, misturados para a composição de novos seres e figuras (Nobre, 2017Nobre, E. (2017). Objetos e imagens no Marajó antigo: agência e transformação na iconografia das tangas cerâmicas (Dissertação de mestrado). Museu de Arqueologia e Etnologia, Universidade de São Paulo, São Paulo.).

DA RELAÇÃO ‘ENTRE-DOIS’

É recorrente, na iconografia das tangas, a existência de certos seres que dependem da sua relação com outros seres para que possam ser vistos. Existem alguns procedimentos formais que tornam estes seres perceptíveis, a exemplo da reflexão ou do desdobramento de certos grafismos e do encaixe recursivo de certas figuras. Em muitas iconografias ameríndias amazônicas, são comuns procedimentos deste tipo (Lagrou, 2013Lagrou, E. (2013). Podem os grafismos ameríndios ser considerados quimeras abstratas? Uma reflexão sobre uma arte perspectivista. In C. Severi & E. Lagrou (Orgs.), Quimeras em diálogo: grafismo e figuração na arte indígena (pp. 67-109). Rio de Janeiro: 7Letras.; Severi, 2013Severi, C. (2013). O espaço quimérico: percepção e projeção nos atos do olhar. In C. Severi & E. Lagrou (Orgs.), Quimeras em diálogo: grafismo e figuração na arte indígena (pp. 25-66). Rio de Janeiro: 7Letras.). Nos grafismos Kashinawa, por exemplo, há técnicas perspectivistas que tornam visível o invisível a partir da relação das figuras, de modo que “. . . seres surgem do entre-dois, do tocar das linhas entre as quais se pode vislumbrar uma figura” (Lagrou, 2013Lagrou, E. (2013). Podem os grafismos ameríndios ser considerados quimeras abstratas? Uma reflexão sobre uma arte perspectivista. In C. Severi & E. Lagrou (Orgs.), Quimeras em diálogo: grafismo e figuração na arte indígena (pp. 67-109). Rio de Janeiro: 7Letras., p. 96).

No painel gráfico de várias tangas, há a figura de uma pequena face antropomorfizada. Estas pequenas faces são estruturadas pela figura sauroforme, anteriormente comentada. Conforme se vê nas Figuras 9A, 9B e 9D, esta pequena face é estruturada em três áreas: ao centro, um elemento em forma de amêndoa com linhas duplas pequenas saindo de suas laterais, um elemento em forma de triângulo em suas extremidades compondo características como cenho, nariz e boca; e duas áreas delimitadas por linhas laterais nas quais há elementos diversos, como pequenos quadrados ou linhas, que integram os olhos desta pequena face.

Figura 9
Seres com características felínicas compostas a partir do encaixe recursivo de figuras de sauros, de forma bidimensional nos grafismos das tangas, e modeladas em apliques de uma urna funerária: A e B) pequenas faces compostas pelo encaixe de figuras sauromorfas em tangas, acervo do Museu do Estado de Pernambuco, Recife; C, D e F) faces com características felínicas em grafismo de uma tanga e em aplique de urna funerária, acervos do Museu Paraense Emílio Goeldi, Belém (C), e da antiga Coleção Barbier Mueller (E).

Nota-se que o elemento central frequentemente alude à figura do sauro. Esta pequena figura sauroforme é mais icônica no exemplo ilustrado na Figura 9A; contudo, é possível perceber que a mesma figura é sugerida nas outras, de maneira mais simplificada, mas, ainda assim, perceptível, principalmente devido à presença de seu dorso amendoado ou também pela indicação de seus membros.

Estas faces possuem características em comum com algumas figuras que têm atributos felínicos e que são modeladas em tigelas e urnas (Figura 9F). No entanto, ao contrário das imagens felínicas exibidas em outras cerâmicas amazônicas, a exemplo daquelas existentes na cerâmica Guarita (Oliveira, 2016Oliveira, E. (2016). Potes que encantam: estilo e agência na cerâmica polícroma da Amazônia central (Dissertação de mestrado). Museu de Arqueologia e Etnologia, Universidade de São Paulo, São Paulo.), nas quais as presas e os focinhos são destacados, aqui se priorizam outras características, como o focinho, os bigodes e a língua.

Nestes apliques modelados, os traços faciais são sugeridos por elementos em filetes com características sauroformes que sugerem o nariz e o cenho e funcionam como um eixo a partir do qual outros elementos que compõem os olhos são aplicados. Neles, também há a presença de orelhas com lóbulos alargados que aludem à orelha humana. Tanto estes apliques quanto as caras figuradas graficamente nas tangas sugerem transformações a partir do encaixe recursivo de vários seres. Sendo assim, uma imagem intermediária de um ser com características felínicas é composta a partir da fusão de um ser com traços antropomorfos a um com traços sauroformes.

Este modo de figurar, seja nos grafismos das tangas, seja em apliques tridimensionais, compartilha do encaixe recursivo de figuras “. . . como uma técnica de mostrar relações entre seres, de modo que um ser só pode ser vislumbrado através da presença de outro, ou de partes do outro” (Nobre, 2017Nobre, E. (2017). Objetos e imagens no Marajó antigo: agência e transformação na iconografia das tangas cerâmicas (Dissertação de mestrado). Museu de Arqueologia e Etnologia, Universidade de São Paulo, São Paulo., p. 156). Tais relações podem ser metonímicas e pautadas em qualidades agentivas dos corpos, sendo estes caracterizados pela fluidez e transformabilidade das formas (Nobre, 2017Nobre, E. (2017). Objetos e imagens no Marajó antigo: agência e transformação na iconografia das tangas cerâmicas (Dissertação de mestrado). Museu de Arqueologia e Etnologia, Universidade de São Paulo, São Paulo.).

OS CORPOS COMPÓSITOS

Desde a segunda metade do século XIX, os grafismos das tangas despertam a curiosidade. Hartt (1876, p. 23)Hartt, C. F. (1876). Notas sobre algumas tangas de barro cozido dos antigos indígenas da Ilha de Marajó. Archivos do Museu Nacional do Rio de Janeiro, Rio de Janeiro. foi o primeiro a observar que os grafismos do painel gráfico compõem uma face, sugerindo, assim, tratar-se da figuração de uma face humana.

Na iconografia da cerâmica marajoara, algumas figuras se destacam nos campos gráficos. Algumas sugerem certos seres e suas transformações enquanto mostram seres ocultos nos grafismos. Estes seres constituem imagens maiores que funcionam como as partes anatômicas que compõem um corpo, criando, assim, um ser compósito. Aqui, há um jogo caracterizado por uma relação entre parte e todo, no qual o todo alude à figura de uma cara, e cujas ‘partes’ são compostas por seres como sauros, peixes-serpentilíneos e suas simplificações. Como resultado, várias imagens são mostradas ao mesmo tempo. Assim, uma face se abre e revela outras imagens (Nobre, 2017Nobre, E. (2017). Objetos e imagens no Marajó antigo: agência e transformação na iconografia das tangas cerâmicas (Dissertação de mestrado). Museu de Arqueologia e Etnologia, Universidade de São Paulo, São Paulo.). Tais faces, com olhos, nariz e boca e, algumas vezes, orelhas, podem ser indicadas no painel gráfico (Figura 10A).

Figura 10
Composição das faces exibidas no painel gráfico: A) detalhes das características anatômicas destas faces, nas quais são destacados os olhos, o nariz, a boca e as orelhas; B) detalhes de faces cujas partes anatômicas são compostas por seres diversos. Observe-se que o nariz, o bigode e a boca são compostos por seres sauromorfos, enquanto os olhos são compostos por pequenas faces felínicas que, por seu turno, são compostas por seres sauromorfos.

Estas caras são variavelmente compostas e suas características são determinadas pelos seres aqui descritos como sauros, faces felínicas e peixes-serpentilíneos, que estabelecem traços como olhos, boca, nariz e orelhas (Nobre, 2017Nobre, E. (2017). Objetos e imagens no Marajó antigo: agência e transformação na iconografia das tangas cerâmicas (Dissertação de mestrado). Museu de Arqueologia e Etnologia, Universidade de São Paulo, São Paulo.). Percebe-se, assim, uma anatomia compósita como aquelas existentes nas ontologias construtivistas amazônicas, nas quais o corpo é engendrado como uma entidade compósita, criado a partir de vários seres e de suas partes anatômicas (Santos-Granero, 2012Santos-Granero, F. (2012). Introducción. In F. Santos-Granero (Org.), La vida oculta de las cosas: teorías indígenas de la materialidad y la personeidad (pp. 13-43). Quito: Abya-Yala.).

Para além das tangas cerâmicas, este tipo de composição iconográfica também está presente em outros objetos cerâmicos marajoara, como urnas funerárias, vasilhas e bancos, entre outros. Muitas vezes, estas faces podem estar presentes como parte de um corpo, apresentando tronco, com membros sugeridos ou ausentes, e cabeças, como em urnas funerárias, vasilhas, bancos e tangas, nos quais o corpo todo é reduzido à figura de uma face.

Apesar de as faces compostas nos mais distintos objetos compartilharem certas características, elas podem ser estruturadas com traços bastante distintos. Assim, os olhos podem ser sugeridos por figuras que aludem a escorpiões ou a sauros; o cenho e o nariz, por figuras em T, enquanto os arcos supraciliares ou sobrancelhas, por linhas; figuras diversas, como sauros, podem sugerir a boca (Nobre, 2017Nobre, E. (2017). Objetos e imagens no Marajó antigo: agência e transformação na iconografia das tangas cerâmicas (Dissertação de mestrado). Museu de Arqueologia e Etnologia, Universidade de São Paulo, São Paulo.).

No que diz respeito às tangas, tais faces são bastante peculiares, englobando traços antropomorfos com corpos e partes de animais e compondo atributos como olhos, nariz, boca, orelhas, cenho e bigodes (que poderiam ser também barbilhos ou vibrissas), e, em alguns casos, um elemento aludindo a um adorno auricular junto às orelhas.

Tais atributos são sempre sugeridos por meio da sobreposição, isto é, pelo encaixe múltiplo de seres, sendo os olhos variavelmente indicados pela cabeça do peixe-serpentilíneo ou por pequenas faces felínicas compostas pela sobreposição de figuras sauromorfas (Nobre, 2017Nobre, E. (2017). Objetos e imagens no Marajó antigo: agência e transformação na iconografia das tangas cerâmicas (Dissertação de mestrado). Museu de Arqueologia e Etnologia, Universidade de São Paulo, São Paulo.). Além disso, como é possível observar na Figura 10B, figuras sauromorfas podem ser dispostas na composição de modo a indicar o cenho, a linha e a base do nariz e, às vezes, a boca.

TORNANDO VISÍVEL O INVISÍVEL

As faces descritas na iconografia das tangas podem ser compostas por um conjunto de técnicas que envolvem o recorte dos motivos empregados e movimentos como reflexão, translação, rotação etc. Uma das características mais comuns na composição das imagens das tangas é o recorte dos padrões e motivos (Nobre, 2017Nobre, E. (2017). Objetos e imagens no Marajó antigo: agência e transformação na iconografia das tangas cerâmicas (Dissertação de mestrado). Museu de Arqueologia e Etnologia, Universidade de São Paulo, São Paulo., p. 162). Esta é uma técnica vista ainda hoje na arte gráfica de vários povos da Amazônia (Lagrou, 2013Lagrou, E. (2013). Podem os grafismos ameríndios ser considerados quimeras abstratas? Uma reflexão sobre uma arte perspectivista. In C. Severi & E. Lagrou (Orgs.), Quimeras em diálogo: grafismo e figuração na arte indígena (pp. 67-109). Rio de Janeiro: 7Letras.). Müller (1992)Müller, R. P. (1992). Tayngava, a noção de representação na arte gráfica. In L. B. Vidal (Org.), Grafismo indígena: estudos de antropologia estética (pp. 231-248). São Paulo: Studio Nobel., por exemplo, denominou de ‘janela ao infinito’ uma técnica utilizada pelos Asurini que é caracterizada pelo recorte dos padrões e motivos gráficos aplicados às cerâmicas, de forma a sugerir a sua continuidade para além do suporte.

Para Lagrou (2013)Lagrou, E. (2013). Podem os grafismos ameríndios ser considerados quimeras abstratas? Uma reflexão sobre uma arte perspectivista. In C. Severi & E. Lagrou (Orgs.), Quimeras em diálogo: grafismo e figuração na arte indígena (pp. 67-109). Rio de Janeiro: 7Letras., esta técnica é uma maneira de jogar com a tensão entre visibilidade e invisibilidade. Em relação aos padrões que aludem a faces, isso é bastante significativo, porque sugerem sua continuidade para além da superfície das tangas. Movimentos como reflexão, rotação e translação estendem os padrões que compõem a imagem física para as laterais, tais quais os padrões de bandas, criando imagens virtuais. Esta característica insinua que tais imagens funcionam como padrões allover, já que se repetem virtualmente, ao modo das quimeras abstratas ameríndias (Nobre, 2017Nobre, E. (2017). Objetos e imagens no Marajó antigo: agência e transformação na iconografia das tangas cerâmicas (Dissertação de mestrado). Museu de Arqueologia e Etnologia, Universidade de São Paulo, São Paulo.), como é possível observar na Figura 11.

Figura 11
Diferentes tipos de transformações vistas nos diferentes campos das tangas, nos quais se observam figuras de faces compostas a partir do recorte e enquadramento dos padrões: A) faces compostas no painel gráfico do enquadramento do padrão virtual: 1 - tanga do acervo do Museu Nacional, Rio de Janeiro; 2 - rollout hipotético do padrão allover virtual; 3 - motivo com figura do peixe-serpentilíneo que é repetido lateralmente por meio da reflexão; 4 - face exibida no painel gráfico da tanga na qual se observam olhos, nariz e boca; 5 - face distinta observada no rollout hipotético do padrão; B) faces observadas nos padrões da banda 2; C) faces sugeridas no padrão da banda 2 por meio do enquadramento de certas áreas.

O recorte deste padrão é responsável pela estruturação das faces vistas no painel gráfico, haja vista que estas imagens resultam de um enquadramento em um ponto específico de uma tela virtual de motivos gráficos (Nobre, 2017Nobre, E. (2017). Objetos e imagens no Marajó antigo: agência e transformação na iconografia das tangas cerâmicas (Dissertação de mestrado). Museu de Arqueologia e Etnologia, Universidade de São Paulo, São Paulo.). Este enquadramento, que possibilita focar o olhar sobre uma imagem que pode se abrir em um plano virtual, poderia ser considerado como uma técnica de mediação entre o visível e o invisível, assim como propõe Lagrou (2013)Lagrou, E. (2013). Podem os grafismos ameríndios ser considerados quimeras abstratas? Uma reflexão sobre uma arte perspectivista. In C. Severi & E. Lagrou (Orgs.), Quimeras em diálogo: grafismo e figuração na arte indígena (pp. 67-109). Rio de Janeiro: 7Letras. para as artes dos povos amazônicos.

Estes padrões são compostos por motivos gráficos que aludem a seres específicos ou à combinação destes seres, e são deslocados a partir de movimentos como translação, rotação e reflexão (Nobre, 2017Nobre, E. (2017). Objetos e imagens no Marajó antigo: agência e transformação na iconografia das tangas cerâmicas (Dissertação de mestrado). Museu de Arqueologia e Etnologia, Universidade de São Paulo, São Paulo.). Por meio destes movimentos a imagem é encadeada, e a partir deste movimento de repetir a figura surge uma face oculta. Deste modo, assim como as quimeras abstratas ameríndias (Lagrou, 2013Lagrou, E. (2013). Podem os grafismos ameríndios ser considerados quimeras abstratas? Uma reflexão sobre uma arte perspectivista. In C. Severi & E. Lagrou (Orgs.), Quimeras em diálogo: grafismo e figuração na arte indígena (pp. 67-109). Rio de Janeiro: 7Letras.), os grafismos aludem a transformações entre seres.

Este recorte que permite cessar a cadeia de transformações infinitas do padrão virtual não estabiliza completamente a imagem enquadrada. Ao mesmo tempo em que este enquadramento captura uma figura desta rede gráfica, cessando a reprodução lateral do padrão allover potencial, a imagem resultante, como em uma boneca russa, possui outras figuras dentro de si, ou seja, há um jogo de transformações dentro da própria composição gráfica.

Já os padrões da banda 2 são compostos a partir da repetição, ao longo de uma linha, por meio de certos movimentos, sugerindo uma face com cenho, olhos e, às vezes, nariz (Figura 11). Alguns destes padrões, em certos casos, são compostos por figuras de pequenas faces com olhos, nariz e cenho, e podem ser repetidos por movimentos diversos, como se pode observar na Figura 11B. Em outros casos, como visto na Figura 11C, esta face é apenas sugerida, sendo o olhar o responsável pelo seu enquadramento, ao contrário do que ocorre no painel gráfico, no qual a face é revelada pelo recorte de um padrão de rede, ao modo de uma técnica para capturar e prender o olhar. Neste caso específico, por meio da aplicação da reflexão do motivo hexagonal, surgem um par de olhos, nariz e cenho, e estes, por sua vez, também sofrem reflexão, formando outra face. Assim, entre cada par de olhos há uma figura em X que configura o resto desta face (nariz e cenho), de tal forma que, quando se olha cada rosto de um lado para o outro, um conjunto diferente de face surge (Figura 11C).

É importante ressaltar que Schaan (2001Schaan, D. P. (2001). Into the labyrinths of Marajoara pottery: status and cultural identity in an Amazonian complex society. In C. McEwan, C. Barreto & E. Neves (Orgs.), The unknown Amazon: nature in culture in ancient Brazil (pp. 108-133). Londres: British Museum Press., 2003Layton, R. (2003). Art and agency: a reassessment. The Journal of the Royal Anthropological Institute, 9(3), 447-464. doi: https://doi.org/10.1111/1467-9655.00158
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, 2007)Schaan, D. P. (2007). A arte da cerâmica marajoara: encontros entre o passado e o presente. Habitus, 5(1), 99-117. observou estes padrões cobrindo o corpo de figuras de serpentes em urnas funerárias e outros artefatos e, assim, sugeriu que estes grafismos aludiriam à pele da serpente mitológica. Prous (2013)Prous, A. (2013). Tangas of the Marajó (Brazil): ornamental pubic covers, their typology and meaning. Antiquity, 87(337), 815-828. doi: https://doi.org/10.1017/S0003598X00049486
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sugere também que alguns destes padrões, especialmente aqueles em que elementos gráficos triangulares com um T em negativo em seu interior e que são repetidos por reflexão deslizante de modo a estruturar uma figura em zigue-zague, aludiriam à própria serpente ou a seu corpo, a exemplo daquele exibido na Figura 4I. A alusão tanto à serpente e à sua pele quanto às pequenas faces e às faces encadeadas não implica necessariamente a exclusão de uma ou de outra. Ambas poderiam integrar o mesmo jogo de transformação dos grafismos, como observado entre vários grupos da Amazônia indígena, onde todas as coisas, inclusive os grafismos, estão em constante processo de transformação (Lagrou, 2007Lagrou, E. (2007). A fluidez da forma: arte, alteridade e agência em uma sociedade amazônica (Kaxinawa, Acre). Rio de Janeiro: Topbooks.; Severi, 2013Severi, C., & Lagrou, E. (Orgs.). (2013). Quimeras em diálogo: grafismo e figuração na arte indígena. Rio de Janeiro: 7Letras.; Van Velthem, 2003Van Velthem, L. H. (2003). O Belo é a fera: a estética da produção e da predação entre os Wayana. Lisboa: Museu Nacional de Etnologia.). Para os Kaxinawa, por exemplo, os grafismos da pele da jiboia, o Kene, são formas e seres latentes, podendo se transformar em animais, plantas e gente (Lagrou, 2007Lagrou, E. (2007). A fluidez da forma: arte, alteridade e agência em uma sociedade amazônica (Kaxinawa, Acre). Rio de Janeiro: Topbooks., 2012Lagrou, E. (2012). La memoria cristalizada de los artefatos: una reflexión sobre la agencia y la alteridad en construcción de imágenes entre los Cashiahua. In F. Santos-Granero (Org.), La vida oculta de las cosas: teorías indigenas de la materialidad y la personeidad (pp. 255-282). Quito: Abya-Yala., 2013Lagrou, E. (2013). Podem os grafismos ameríndios ser considerados quimeras abstratas? Uma reflexão sobre uma arte perspectivista. In C. Severi & E. Lagrou (Orgs.), Quimeras em diálogo: grafismo e figuração na arte indígena (pp. 67-109). Rio de Janeiro: 7Letras.).

A cadeia de transformações é também intensificada pela composição multiescalar das imagens, por meio de figuras semelhantes, mas em escalas diferentes. Neste caso, uma face menor é composta dentro de uma face maior, assim como as imagens fractais, bem como por meio de composições elaboradas em encaixes múltiplos, ao modo das máscaras da Colúmbia Britânica e do Alasca, na costa noroeste da América do Norte, e do alto Xingu, na Amazônia (Fausto, 2013Fausto, C. (2013). A máscara do animista: quimeras e bonecas russas na América indígena. In C. Severi & E. Lagrou (Orgs.), Quimeras em diálogo: grafismo e figuração na arte indígena (pp. 305-331). Rio de Janeiro: 7Letras.).

A composição multiescalar pode ser pensada como uma relação de hierarquização, conforme proposto por Gell (1998)Gell, A. (1998). Art and agency: an anthropological theory. Oxford: Clarendon Press.. A hierarquização é frequente na iconografia da cerâmica marajoara, sobretudo nas tangas, nas quais figuras maiores são compostas por motivos menores que se referem a determinados seres. Neste caso, como já demonstrado, figuras de pequenas faces também podem formar os olhos na imagem, além de orelhas; contudo, é comum que estruturem seres sauromorfos indicando sua cabeça e seu dorso, a partir de sua reflexão (Nobre, 2017Nobre, E. (2017). Objetos e imagens no Marajó antigo: agência e transformação na iconografia das tangas cerâmicas (Dissertação de mestrado). Museu de Arqueologia e Etnologia, Universidade de São Paulo, São Paulo.), conforme pode ser observado na Figura 12.

Figura 12
Imagem composta por figuras semelhantes em multiescala. Destaque para o ser sauromorfo, no qual pequenas faces indicam sua cabeça e, a partir de sua reflexão, seu dorso.

Esta composição multiescalar das imagens pode ser melhor entendida a partir da noção de ‘imagem fractal’, que foi proposta por Gell (1998)Gell, A. (1998). Art and agency: an anthropological theory. Oxford: Clarendon Press. a partir da noção de ‘pessoa fractal’, inicialmente sugerida por Wagner (1991)Wagner, R. (1991). The fractal person. In M. Strathern & M. Godelier (Eds.), Big men and great men: personifications of power in Melanesia (pp. 159-173). Cambridge: Cambridge University Press., segundo a qual um corpo e as partes que o compõem estariam integralmente implicados em relações multiescalares.

Segundo Santos-Granero (2012)Santos-Granero, F. (2012). Introducción. In F. Santos-Granero (Org.), La vida oculta de las cosas: teorías indígenas de la materialidad y la personeidad (pp. 13-43). Quito: Abya-Yala., nas sociedades da Amazônia ameríndia, a relação entre o corpo e suas partes é uma característica emblemática, podendo também, em certa medida, ser considerada uma ‘pessoa fractal’. Aqui, a pessoa é constituída a partir “. . . de relações de incorporação do outro em diferentes escalas, as quais são sempre similares umas às outras” (Santos-Granero, 2012Santos-Granero, F. (2012). Introducción. In F. Santos-Granero (Org.), La vida oculta de las cosas: teorías indígenas de la materialidad y la personeidad (pp. 13-43). Quito: Abya-Yala., p. 31). Isso, na Amazônia, é bastante significativo, já que nesse espaço as ontologias são estruturadas a partir da lógica da predação.

Na Amazônia antiga, a fractalidade ameríndia, levada a cabo sobretudo pela incorporação do outro, poderia ser traduzida visualmente “. . . por meio das imagens multicompostas, cujos corpos são constituídos por diversos seres ou partes deles” (Nobre, 2017Nobre, E. (2017). Objetos e imagens no Marajó antigo: agência e transformação na iconografia das tangas cerâmicas (Dissertação de mestrado). Museu de Arqueologia e Etnologia, Universidade de São Paulo, São Paulo., p. 169). Na iconografia das tangas, a fractalidade é demarcada no encaixe múltiplo das figuras que compõem as imagens, aludindo a seres em transformação em diferentes escalas. Aqui, ao mesmo tempo em que a composição gráfica sugere uma face com suas partes anatômicas formadas por diversos seres, como um corpo em transformação, tais partes anatômicas também estão em transformação, pois estas também são multicompostas. Assim, a cadeia de transformações se dá nos planos vertical e horizontal (isto é, em duas dimensões) e a maneira como as imagens são enquadradas proporciona um outro plano em profundidade, para dentro da imagem, como uma perspectiva em três dimensões. Dessa forma, a imagem, ao modo das imagens quiméricas, teria o poder de se abrir, revelando uma cadeia de imagens em transformação cada vez mais profunda, com o poder de abduzir o olhar e a mente para dentro dos seus grafismos.

CONCLUSÕES

O estudo da iconografia das tangas cerâmicas permitiu, para além de compreender os princípios estruturais dos seus grafismos, avançar a noção de corporalidade a partir de uma forma específica de compor corpos. Assim, a análise aqui desenvolvida possibilitou compreender mais sobre o regime de figuração marajoara e sobre a maneira como certos princípios cosmológicos ligados à corporalidade ameríndia, a exemplo da fabricação, composição e transformabilidade dos corpos, eram materializados.

A análise iconográfica aqui apresentada mostrou, diferentemente do que Roosevelt (1991)Roosevelt, A. C. (1991). Moundbuilders of the Amazon: geophysical archaeology on Marajo Island, Brazil. San Diego: Academic Press. e Schaan (2004)Schaan, D. P. (2004). The Camutins chiefdom: rise and development of social complexity on Marajó Island, Brazilian Amazon (Tese de doutorado). Universidade de Pittsburgh, Pittsburgh. sugeriram, que o regime figurativo marajoara não valorizava somente figuras antropomorfas ou somente figuras zoomorfas, mas igualmente engloba componentes gráficos que aludem tanto a seres antropomorfos quanto a seres zoomorfos. Deste modo, as imagens existentes nos campos gráficos das tangas mostram faces compósitas, formadas por uma miríade de seres e de suas partes anatômicas de animais. As imagens analisadas são elaboradas de acordo com as regras de composição dos corpos materializados na cerâmica marajoara em geral, a exemplo das urnas funerárias e estatuetas, que mostram figuras compósitas.

Assim, conclui-se que esta iconografia expressa princípios relacionados à produção do corpo, semelhantemente às formas de concepção de corpos e pessoas nas ontologias construtivistas ameríndias. Sendo assim, este regime de figuração repercute, de certa forma, as concepções sobre a corporalidade existentes na Amazônia multinaturalista, na qual a instabilidade das formas de representação dos corpos, com figuras híbridas de humanos e animais, ilustra de maneira visual a noção do corpo como lugar para constantes transformações (Barreto, 2009Barreto, C. (2009). Meios místicos de reprodução social: arte e estilo na cerâmica funerária da Amazônia antiga (Tese de doutorado). Universidade de São Paulo, São Paulo, SP, Brasil.).

Os princípios formais desta iconografia dialogam também com aquilo que Lagrou (2011)Lagrou, E. (2011). Existiria uma arte das sociedades contra o Estado? Revista de Antropologia, 54(2), 747-780. chama de uma ‘arte das sociedades contra o Estado’. Esta é definida por técnicas que possibilitam ao espectador mudar de perspectiva e pela captura e integração de agências inimigas e predatórias, e nos grafismos seria percebida no movimento transformativo entre corpos e no caráter compósito dos seres (Lagrou, 2013Lagrou, E. (2013). Podem os grafismos ameríndios ser considerados quimeras abstratas? Uma reflexão sobre uma arte perspectivista. In C. Severi & E. Lagrou (Orgs.), Quimeras em diálogo: grafismo e figuração na arte indígena (pp. 67-109). Rio de Janeiro: 7Letras.).

Com isso em vista, a forma de materializar certos princípios cosmológicos na iconografia das tangas, referentes à fabricação de imagens e corpos, traz implicações para se repensarem as estruturas de poder durante a fase Marajoara, como aquelas propostas por Roosevelt (1991)Roosevelt, A. C. (1991). Moundbuilders of the Amazon: geophysical archaeology on Marajo Island, Brazil. San Diego: Academic Press. e Schaan (2004)Schaan, D. P. (2004). The Camutins chiefdom: rise and development of social complexity on Marajó Island, Brazilian Amazon (Tese de doutorado). Universidade de Pittsburgh, Pittsburgh.. Assim, a iconografia das tangas cerâmicas, ao invés de repercutir estratégias de legitimação do poder de hierarquias sociais internas, parece mais expressar noções ligadas à corporalidade e a princípios cosmológicos que dizem respeito à mediação entre aquilo que pode ser visto e aquilo que não pode ser visto.

Por fim, considera-se também o papel das tangas na fabricação e composição de corpos de pessoas. É “. . . uma categoria específica de objeto fabricada para ser usada em um corpo, modulando capacidades e qualidade específicas, assim como todos os adornos corporais, no mundo ameríndio” (Nobre, 2017Nobre, E. (2017). Objetos e imagens no Marajó antigo: agência e transformação na iconografia das tangas cerâmicas (Dissertação de mestrado). Museu de Arqueologia e Etnologia, Universidade de São Paulo, São Paulo., p. 221). Além das tangas, um amplo conjunto de objetos referentes à fabricação do corpo e à noção de pessoa, como tintas e potes para tintas, ossos humanos pintados de vermelho, amuletos de pedras verdes, contas de colar de pedra e em cerâmica, labretes, botoques e alargadores de orelhas, estão presentes nos contextos da fase Marajoara, apontando, assim, para a importância dos objetos para a produção corporal e fabricação da pessoa. Vale lembrar que, no mundo ameríndio, a produção e a paramentação corporal, ações intimamente ligadas ao uso e à produção de adornos, estão relacionadas à socialização do corpo e à noção de pessoa. Deste modo, as tangas cerâmicas, como aqui mostrado, compostas a partir de diversos seres, e para serem utilizadas sobre um corpo, poderiam produzir um corpo multicomposto e recursivo, ou seja, um corpo multicomposto (as tangas) sobre outro corpo (das pessoas).

  • 1
    É importante destacar que autores como Layton (2003)Layton, R. (2003). Art and agency: a reassessment. The Journal of the Royal Anthropological Institute, 9(3), 447-464. doi: https://doi.org/10.1111/1467-9655.00158
    https://doi.org/10.1111/1467-9655.00158...
    e Morphy (2011)Morphy, H. (2011). Arte como um modo de ação: alguns problemas com Art and Agency de Gell. PROA Revista de Antropologia e Arte, 1(3), 1-23. criticam a proposta de Gell (1992)Gell, A. (1992). The technology of enchantment and the enchantment of technology. In J. Coote & A. Shelton (Eds.), Anthropology, art and aesthetics (pp. 40-63). Oxford: Clarendon Press., seja por conta da ideia que faz do termo ‘sentido’ e do uso confuso que faz dos conceitos de signo e índice de Peirce, chamando indiscriminadamente todos os objetos de índices que estão inseridos em uma rede de ação, já que não admite que haja aspectos culturais guiando a sua percepção, como se não existissem determinantes que requeressem uma percepção contextualizada desses objetos; seja, ainda, por conta da crítica controversa que faz ao uso da análise formal, sendo que ele mesmo faz uso disfarçado dela sob o termo de análise estilística. Desconsiderados seus problemas, conforme Lagrou (2007)Lagrou, E. (2007). A fluidez da forma: arte, alteridade e agência em uma sociedade amazônica (Kaxinawa, Acre). Rio de Janeiro: Topbooks. pontua, essa proposta é muito útil, já que os objetos podem ser entendidos nas suas relações com os seres humanos, em que, aliados a seus diversos usos, ensinam sobre as relações humanas e a projeção de sua sociabilidade sobre o mundo ao redor.
  • 2
    Observem-se, por exemplo, as tangas dos grupos 3, 5, 6 e 7 da classificação de Nobre (2017)Nobre, E. (2017). Objetos e imagens no Marajó antigo: agência e transformação na iconografia das tangas cerâmicas (Dissertação de mestrado). Museu de Arqueologia e Etnologia, Universidade de São Paulo, São Paulo., nas quais é possível perceber peças que compartilham do mesmo tema iconográfico independentemente das morfologias nas quais ocorrem.
  • 3
    É importante destacar que as análises dos padrões de desgastes, principalmente de seus orifícios, têm verificado a presença de canaletas ocasionadas pelo atrito do cordão de amarração junto à sua superfície externa, o que sugere que tais peças eram usadas com alguma frequência (Meggers & Evans, 1957Meggers, B. J., & Evans, C. (1957). Archaeological investigations at the mouth of the Amazon (No. 167). Washington: Government Publishing Office, Smithsonian Institution, Bureau of American Ethnology.; Nobre, 2017Nobre, E. (2017). Objetos e imagens no Marajó antigo: agência e transformação na iconografia das tangas cerâmicas (Dissertação de mestrado). Museu de Arqueologia e Etnologia, Universidade de São Paulo, São Paulo.; Prous & Lima, 2011Prous, A., & Lima, A. P. (2011). De cobras e lagartos: as tangas marajoaras. Revista do Museu Arqueologia e Etnologia, (21), 231-263. doi: https://doi.org/10.11606/issn.2448-1750.revmae.2011.89975
    https://doi.org/10.11606/issn.2448-1750....
    ; Schaan, 1997Schaan, D. P. (1997). A linguagem iconográfica da cerâmica marajoara: um estudo da arte pré-histórica da Ilha de Marajó, Brasil (400-1300 AD). Porto Alegre: Edipuc.).
  • 4
    Vale lembrar que, em suas análises iconográficas da cerâmica marajoara, Schaan (1997)Schaan, D. P. (1997). A linguagem iconográfica da cerâmica marajoara: um estudo da arte pré-histórica da Ilha de Marajó, Brasil (400-1300 AD). Porto Alegre: Edipuc. trabalhou com unidades mínimas de significação que não foram isoladas a partir de um método de análise formal, mas sim por meio da comparação entre os diversos contextos nos quais estão presentes e sem considerar sua posição formal dentro do conjunto (Schaan, 1997Schaan, D. P. (1997). A linguagem iconográfica da cerâmica marajoara: um estudo da arte pré-histórica da Ilha de Marajó, Brasil (400-1300 AD). Porto Alegre: Edipuc.).
  • 5
    Embora, geralmente, seja empregado o termo serpentiforme para designar elementos em forma de serpentes e cobras, o termo ‘serpentilíneo’ aqui é usado em consonância a trabalhos publicados, a exemplo de Nobre (2017)Nobre, E. (2017). Objetos e imagens no Marajó antigo: agência e transformação na iconografia das tangas cerâmicas (Dissertação de mestrado). Museu de Arqueologia e Etnologia, Universidade de São Paulo, São Paulo. e Oliveira (2016)Oliveira, E. (2016). Potes que encantam: estilo e agência na cerâmica polícroma da Amazônia central (Dissertação de mestrado). Museu de Arqueologia e Etnologia, Universidade de São Paulo, São Paulo..

AGRADECIMENTOS

À Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível Superior (CAPES), pelo financiamento da pesquisa que originou este artigo. A Cristiana Barreto, pela generosidade, ao longo dos anos, em compartilhar comigo seu conhecimento. A Cristina Kormikiari, pela confiança depositada em minha pesquisa no Museu de Arqueologia e Etnologia da Universidade de São Paulo (MAE-USP). A Erendira Oliveira e Marcony Alves, pelos enriquecedores debates sobre iconografia amazônica. A Cristina Demartini, Carla Gibertoni, Sandra Torres, Francisca Figols, Ana Carolina, Regivaldo e Paulo (MAE-USP), Helena Lima, Maura Imázio e Camila (Museu Paraense Emílio Goeldi), Rita Scheel-Ybert, Angela Rabello, Mariana Ferreira e Leonardo de Azevedo (Museu Nacional), Elvira Blásquez, Adriane Alves e Pablo (Museu do Estado de Pernambuco). A Avelino Grota e Giba Della Giustina, pela leitura e revisão do texto. Por fim, aos pareceristas anônimos, pelos frutíferos comentários e sugestões ao manuscrito deste artigo.

  • Nobre, E. (2020). A sintaxe dos corpos compósitos: agência e transformação na iconografia das tangas cerâmicas marajoara. Boletim do Museu Paraense Emílio Goeldi. Ciências Humanas, 15(3), e20190109. doi: 10.1590/2178-2547-BGOELDI-2019-0109

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Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    13 Nov 2020
  • Data do Fascículo
    2020

Histórico

  • Recebido
    30 Set 2019
  • Aceito
    10 Jan 2020
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