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‘E do verbo fez-se’ partículas em Nheengatú

‘And the word became’ particles in Nheengatú

Resumo

Estudos acerca do contato linguístico permitem observar hierarquias de acessibilidade a palavras de diferentes classes que possam ocorrer como empréstimos. Essas hierarquias indicam, por exemplo, que nomes são mais facilmente transferidos de uma língua para outra do que verbos e estes podem ser inseridos na língua-alvo como verbos, quando há adaptação morfológica, ou como partículas, quando há inserção direta. Neste artigo, apresenta-se o caso de quatro expressões verbais do Português que foram introduzidas em Nheengatú, língua geral amazônica em contato com o Português desde o século XVI, como partículas de modalidade deôntica – tenki de ‘tem que’ e presizu de ‘é preciso’ – e como marcadores de sentenças interrogativas – será de ‘será’, e seraki ‘será que’. Para tanto, primeiramente, apresentam-se os critérios que permitem distinguir uma classe de partículas em Nheengatú, para, em seguida, aplicá-los às partículas de origem verbal emprestadas do Português. Esta análise corrobora os estudos que indicam que marcadores de modalidade são mais facilmente acessíveis a ocorrerem como empréstimos linguísticos do que outras formas de tempo, aspecto e modo (TAM). No entanto, no Nheengatú, observa-se que expressões de modalidade epistêmica podem ser adaptadas na língua-alvo como marcadores gramaticais de sentenças interrogativas, considerados mais difíceis de ocorrerem como empréstimos.

Palavras-chave
Línguas em contato; Partículas; Empréstimos; Modalidade; Marcadores de interrogativa; Hierarquias de acessibilidade a ocorrerem como empréstimos

Abstract

Studies on language contact allow us to observe borrowing hierarchies to the different words classes of a language. These hierarchies indicate, for instance, that nouns are more easily transferred from one language to another than verbs, which can be inserted into the target language as verbs, with morphological adaptation, or as particles. In this article, we present the case of four verbal expressions of Portuguese that were introduced in Nheengatú, the Amazonian língua geral in contact with Portuguese since the 16th century, as particles of deontic modality – tenki from ‘tem que’ and presizu from ‘é preciso’ – and as question markers – será from ‘será’, and seraki from ‘será que’. For this purpose, we first introduce the criteria for distinguishing a class of particles in Nheengatú, then apply them to verbal particles borrowed from Portuguese. This analysis corroborates studies indicating that modality markers are higher in borrowing hierarchies than other forms of TAM. However, in the Nheengatú, we observe that expressions of epistemic modality can be adapted in the target language as grammatical markers of interrogative sentences, considered more difficult to occur as loans.

Keywords
Language contact; Particles; Loanwords; Modality; Question markers; Borrowing hierarchies

INTRODUÇÃO

No século XVI, quando os portugueses invadiram o território posteriormente chamado de Brasil, encontraram uma grande diversidade de povos que falavam as línguas de diferentes famílias linguísticas. Ainda que houvesse grande diversidade linguística, os portugueses perceberam que havia uma língua de uso generalizado em toda a costa litorânea do território, identificada como sendo o Tupinambá (família Tupi-Guarani). Dada a grande extensão territorial, o Tupinambá começou a ser usado como língua franca na administração colonial e na catequese. Ademais, essa língua passou a ser utilizada nas casas das famílias que começavam a se formar pelas uniões entre mulheres Tupinambá e homens portugueses. Aos poucos, à população colonial, foram se agregando indígenas de outras etnias e africanos, trazidos compulsoriamente pela empresa colonial. Ao se espalhar pela região amazônica e, em muitas circunstâncias, substituir outras línguas indígenas, o Tupinambá passou por mudanças lexicais e estruturais, tornando-se uma nova língua e passando a ser conhecida como Nheengatú a partir do século XIX1 1 Conferir, entre outros, Moore et al. (1993), Rodrigues (1996) e Cruz (2011, 2015). , que sobrevive até hoje no alto rio Negro, onde é falada por cerca de 8.000 pessoas, particularmente pelos povos Baré, Baniwa e Werekena, os quais substituíram suas línguas tradicionais do grupo Arúak do norte pelo Nheengatú.

Neste artigo, analisa-se a emergência de partículas para expressar modalidade deôntica e marcadores de questões em Nheengatú, a partir da reanálise de verbos flexionados emprestados do Português. Para tanto, o corpus desta pesquisa foi colhido em trabalhos de campo realizados em seis viagens (2007, 2008, 2009, 2013, 2014, 2016), além de consultas rápidas feitas por aplicativos de celular. No total, esta pesquisa foi realizada a partir de um corpus de mais de 12 horas de gravação e cadernos de campo.

Este artigo é organizado do seguinte modo: primeiramente, apresentam-se os critérios que permitem identificar partículas em Nheengatú. Em seguida, esses critérios são utilizados para identificar uma série de verbos do Português que foram emprestados para o Nheengatú sob a forma de partículas. Após identificadas formalmente como partículas, essas novas partículas de origem verbal alóctone são analisadas em suas propriedades funcionais, de modo a se observar a emergência de modalizadores deônticos e de marcas para expressar interrogativas. Por fim, apresenta-se um sumário da análise.

CRITÉRIOS QUE PERMITEM A IDENTIFICAÇÃO DE PARTÍCULAS EM NHEENGATÚ

Como bem observou Queixalós (2019)Queixalós, F. (2019). Partículas em Sikuani. Boletim do Museu Goeldi. Ciências Humanas, 14(3), 721-737. https://doi.org/10.1590/1981.81222019000300003
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, uma caracterização formal da classe das partículas, de modo a distingui-las das outras classes de morfemas, só é viável mediante um cruzamento de traços, já que nenhum desses traços é categorial. Nesse sentido, esta análise procurou levantar traços fonológicos, morfológicos e sintáticos que, uma vez combinados, permitem caracterizar formalmente a classe das partículas. Nesta seção, investigam-se os critérios que permitem demonstrar que as partículas se diferem de clíticos e, em seguida, apresentam-se os critérios que diferenciam partículas de advérbios2 2 Uma primeira discussão a respeito dos critérios utilizados para identificar as partículas foi apresentada em Cruz (2011, cap. 8.1). Nesta seção, essa discussão é retomada para que se possa aprofundar a análise dos empréstimos verbais do Português que se tornaram partículas em Nheengatú, como será discutido na próxima seção. .

CRITÉRIOS QUE DISTINGUEM PARTÍCULAS DE CLÍTICOS

O principal critério para a diferenciação entre clíticos e partículas é o fato de que estas constituem palavras independentes. No entanto, como bem observaram Dixon e Aikhenvald (2002)Dixon, R. M. W., & Aikhenvald, A. Y. (2002). Word: a typological framework. In R. M. W. Dixon & A. Y. Aikhenvald (Eds.), Word: A-cross-linguistic typology (pp. 1-41). Cambridge University Press., os critérios para identificação de palavras variam de língua para língua, tornando a identificação de palavras independentes uma tarefa analítica árdua. É preciso ter essa consideração em mente para poder identificar partículas, uma vez que estas se diferenciam de clíticos justamente por constituírem palavras independentes. Em Nheengatú, regras fonotáticas permitem identificar palavras independentes, contrastando-as aos clíticos. Nessa língua, a palavra mínima deve ser constituída obrigatoriamente por um pé métrico bimoraico (µ µ)3 3 Trata-se de uma inovação do Nheengatú, uma vez que, em Tupinambá, eram possíveis palavras monossilábicas monomoraicas. Compare, por exemplo, os cognatos ɨ ['Ɂɨ] ‘água’, em Tupinambá, e ii [i'Ɂi] ‘água’, em Nheengatú. . Para obedecer à restrição de palavra mínima que ocorre em Nheengatú, em conformidade com Cruz (2011, p. 329)Cruz, A. (2011). Fonologia e Gramática do Nheengatú: a língua geral falada pelos povos Baré, Warekena e Baniwa. LOT. http://etnolinguistica.wdfiles.com/local--files/tese%3Acruz-2011/cruz_2011_nheengatu.pdf
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, palavras cuja estrutura fonológica profunda seja monomoraica recebem uma vogal cópia da vogal original como epêntese para criar um pé métrico bimoraico. Para evitar a sequência de duas vogais idênticas, há a inserção de um golpe de glote, como esquematizado na regra fonológica em (1) e ilustrado por exemplos de palavras lexicais, em (2) e (3), e por partículas em (4). A regra é tão produtiva em Nheengatú que até mesmo empréstimos precisam ser adaptados para obedecer à estrutura fonotática da língua, como ilustrado em (3):

(1) /(C)V/ → [(C)V.'ʔV]
(2) kaa /ka/ [ka.'ʔa] ‘mato’   nhaã /ɲã/ [ɲã'ʔã] ‘demostrativo (distante)’   pee /pe/ [pe.'Ɂɛ] ‘caminho’   ii /i/ [i.'Ɂi] ‘rio’   suu /su/ [su.'Ɂu] ‘animal’
(3) ʃaa /ʃa/ [ʃa.'ʔa] ‘chá’ (empréstimo do Português)
(4) paa /pa/ [pa.'ʔa] ‘reportativo’     eẽ /ẽ/ [ẽ.'ʔẽ] ‘afirmativo’ (Cruz, 2011, p. 330)

É importante observar, ainda, que, nos exemplos (2), (3) e (4), a vogal que ocorre como epentética não pode jamais ser eliminada. Nesse sentido, o processo de epêntese com harmonia vocálica, para impedir palavra mínima, difere-se da tendência à eliminação de sílabas não acentuadas em posição de final de palavras, como ilustrado em (5). A apócope em (5) ocorre apenas quando não compromete a regra de palavra mínima. Ademais, trata-se de uma regra variável, tendo relação com a idade dos falantes: dialetos mais conservadores, como o falado pelos Baré mais velhos, tendem a não eliminar a sílaba final, ao passo que dialetos mais inovadores, como o falado pelos Werekena mais jovens, tendem a eliminar a sílaba final. No caso dos exemplos de epêntese com harmonia vocálica, ilustrados em (2) e (4), não há variação, possivelmente devido à restrição de palavra mínima. Excetua-se, no entanto, os empréstimos, como exemplificado em (3), que podem ser pronunciados como monossílabos. Neste caso, porém, há que se considerar que várias comunidades têm um alto grau de bilinguismo com o Português.

(5) /musaˈpiɾi/ [musaˈpi]     /gaɾaˈpaua/ [gaɾaˈpa]     /muˈiɾi/ [muˈi] (Cruz, 2011, p. 77)

De acordo com Cruz (2011, p. 330)Cruz, A. (2011). Fonologia e Gramática do Nheengatú: a língua geral falada pelos povos Baré, Warekena e Baniwa. LOT. http://etnolinguistica.wdfiles.com/local--files/tese%3Acruz-2011/cruz_2011_nheengatu.pdf
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, as partículas que começam a se desenvolver como clíticos deixam de receber uma vogal epentética. Este é o caso da variação entre taa (partícula) e ta (clítico) ‘questão com foco em constituinte’. No caso do taa, observa-se que essa partícula começa a se desenvolver como clítico, uma vez que, em alguns exemplos, ela toma como hospedeiro a palavra antecedente, com apagamento da vogal anterior. Em (6a), a questão ‘quem’ pode ser realizada na forma conservadora, isto é, de forma dissilábica. Nesse caso, a partícula /ta/ sofre o processo de epêntese com harmonia vocálica para formar palavra mínima [ta.'ʔa]. Em (6b), o marcador de questão /ta/ é realizado de forma monossilábica, inovadora, como clítico ao nome awa ‘pessoa’.

(6a) Forma dissilábica (conservadora) Cliticização (6b) Forma monossilábica (inovadora) awa taa → awa=ta pessoa QFC pessoa=QFC [awa ta.'ʔa]   [a.'wa.ta] ‘Quem?’   ‘Quem?’     (Cruz, 2011, p. 330)

Um segundo critério utilizado para distinguir palavras independentes de clíticos é o acento. Este, no entanto, não pode ser utilizado como único critério, tendo em vista que há línguas nas quais os clíticos podem ser acentuados em virtude de outros fatores, como entonação (Zwicky, 1985Zwicky, A. (1985). Clitics and Particles. Language, 61(2), 283-305. https://babel.ucsc.edu/~hank/mrg.readings/zwicky1985.pdf
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). Segundo Cruz (2011, p. 329)Cruz, A. (2011). Fonologia e Gramática do Nheengatú: a língua geral falada pelos povos Baré, Warekena e Baniwa. LOT. http://etnolinguistica.wdfiles.com/local--files/tese%3Acruz-2011/cruz_2011_nheengatu.pdf
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, em Nheengatú, todavia, o critério acentual é muito útil. As partículas nessa língua têm acento independente e, portanto, constituem uma palavra mínima. Os clíticos formam um grupo clítico com seu hospedeiro: o hospedeiro recebe o acento fonológico, ao passo que o clítico não é acentuado. Em (7a), observa-se o verbo yawe [ja.'wɛ] ‘ser assim’, acompanhado de uma partícula. Tanto o verbo como a partícula mantêm seus respectivos acentos fonológicos. Em (7b), a mesma palavra lexical ocorre com um clítico:

(7a)       (7b)     yawe kuri     yawe=rã   /ia'ue/ kuˈɾi/     /ia'ue a'ɾama/   [ja.'wɛ kuˈɾi]     [ja.'wɛ.ɾã]   ser.assim FUT     ser.assim=PROSP   ‘Agora será assim.’     ‘Para ser assim.’

CRITÉRIOS QUE PERMITEM DISTINGUIR PARTÍCULAS DE ADVÉRBIOS

Observada a diferença entre partículas e clíticos e após demonstrado que partículas constituem palavras independentes, pode-se analisar partículas como “uma classe aberta de unidades gramaticais invariáveis” (Cruz, 2011Cruz, A. (2011). Fonologia e Gramática do Nheengatú: a língua geral falada pelos povos Baré, Warekena e Baniwa. LOT. http://etnolinguistica.wdfiles.com/local--files/tese%3Acruz-2011/cruz_2011_nheengatu.pdf
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, p. 327). Esta definição, todavia, aproxima as partículas dos advérbios. No entanto, um estudo mais detalhado das duas classes permite observar que os advérbios apresentam propriedades sintáticas e morfológicas que indicam seu pertencimento aos morfemas lexicais da língua, ao passo que partículas têm propriedades mais gramaticais. Nesta seção, apresentam-se as características sintáticas e morfológicas que permitem criar um diagnóstico para separar as duas classes.

Em termos morfológicos, o principal critério que permite distinguir partículas e advérbios é a tendência dos advérbios a se combinarem com o morfema wara ‘nominalizador’, cuja função é criar nomes que indicariam a procedência de uma entidad e, como ilustrado em (8) e (9). Por sua vez, as partículas não são compatíveis com o sufixo -wara:

(8) a-purãdu ne-sui masi-wara u-ri yane-paya   1SG.A-pegurtar 2SG.NA-ABLAT onde-NMLZ 3SG.A-vir 1PL.NA-pai   ‘Eu pergunto ao senhor de onde veio nossos pais.’
(9) yawe kuxima-wara baré=ta   Assim antigamente-NMLZ baré=PL   ‘Assim eram os antigos Baré.’

Embora o critério morfológico de combinação com o sufixo -wara seja útil para indicar o pertencimento de advérbios a uma classe separada em relação às partículas, não se trata de um critério categórico, uma vez que, devido às propriedades semânticas desse nominalizador, ocorre apenas com expressões adverbiais locativas, como em (8), e temporais, como em (9).

Por um critério sintático, as partículas diferem-se de advérbios por não poderem instituir predicados por si só, uma vez que são operadores que modificam o predicado, como ilustrado pela partícula paa ‘reportativo’ em (10). Por sua vez, os advérbios podem instituir predicado, como em (11). Este critério também não é categórico, uma vez que as partículas existenciais, como em (12), são capazes de instituir predicados. A excepcionalidade da partícula existencial em relação às demais pode estar relacionada ao fato de ela ter se desenvolvido a partir da gramaticalização de demonstrativos e, portanto, manter algumas características próprias dessa classe4 4 Para uma análise acerca do desenvolvimento das partículas existenciais em Nheengatú, ver Cruz (2011, cap. 9.4.1). .

(10) ya-yuka paa ya-xai u-pupui   1PL.A-tirar REP 1PL.A-deixar 3SG.A-ferver   ‘Depois tiramos [o caule] e deixamos ferver.’
(11) ae ike=wã     ele aqui=PFV     ‘Já está aqui.’ (Cruz, 2011, p. 397)
(12) Aikue ike musapiri buya=ita   EXIST aqui três cobra=PL   ‘Há aqui três cobras.’

Como advérbios podem ocorrer como predicado, eles são habitualmente acompanhados por clíticos de negação, de restritivo e de aspecto, como ocorre em (11). Por sua vez, partículas não se combinam com clíticos. Novamente a partícula existencial tem comportamento excepcional, uma vez que pode ocorrer com clítico de aspecto, como ilustrado em (13), embora essa ocorrência seja bastante rara.

(13) Wirande kuri aikue=re dabukuri   amanhã FUT EXIST=IMP dabucuri   ‘Amanhã vai existir ainda o dabucuri5.’

Outra característica sintática importante que permite distinguir advérbios de partículas é a distribuição de membros das duas classes de palavras na sentença. As partículas tendem a ter posição fixa na estrutura da sentença. A partir desse critério, partículas podem ser classificadas em partículas de posição inicial, como ocorre com o existencial em (12), e com o mirativo em (14)6 6 Entre as partículas de posição inicial, também ocorrem as partículas de modalidade deôntica (de obrigação e necessidade), que serão discutidas na seção “Empréstimos verbais”. ; em partículas de segunda posição, como o reportativo em (10), e o futuro em (13)7 7 Entre as partículas de segunda posição, Cruz (2011, p. 339-358) também cita taa ‘interrogativo’, supi ‘modalidade epistêmica de certeza’ e será ‘questão polar’. Na seção “Empréstimos verbais”, a partícula será ‘questão polar’ será analisada. , e em partículas flutuantes. O termo partícula flutuante faz supor que essas partículas sejam completamente livres na sentença, no entanto sua posição é determinada pelo elemento que modifica, podendo ocorrer apenas em posição pós-predicado. As partículas flutuantes pós-predicado têm sua posição determinada pelo núcleo do predicado: em predicados verbais, ocorrem após o sintagma verbal (SV), ao passo que, com predicados nominais, as partículas flutuantes pós-predicado ocorrem após o sintagma nominal (SN) nessa função. Os enunciados (14) a (17) exemplificam a classe de partículas flutuantes que ocorrem após o predicado8 8 Entre as partículas flutuantes que ocorrem pós-predicado, Cruz (2011, p. 370-379) menciona também xinga ‘atenuativa’, wera ‘habitual’ e yepe ‘frustrativo’. .

(14) se-ramunhã, xukui aita   1SG.NA-avô MIRAT eles   ‘Meu avô, olha eles!’
(15) ma=rã=ta u-saisu retã ba   o.quê=PROSP=QFC 3SG.A-sovinar INTS PROT   ‘Para que ele está sovinando tanto [a folha]!!??’
(16) “puranga yepe ya-wasemu”     ser.bom FRUSTR 1PL.A-encontrar     ‘Achamos que foi relativamente bom.’ (Cruz, 2011, p. 379)
(17) ya-wata yane-aria ambira= ta irum   1PL-andar 1PL.NA-avós falecido= PL COM   ‘Andávamos com as nossas finadas avós.’

Por sua vez, advérbios são bastante livres, podendo ocorrer em qualquer posição da sentença. Observe, por exemplo, que o advérbio kuxima‘antigamente’ ocorre em posição inicial em (18), no meio da oração em (19) e em posição final em (20).

(18) kuxima ti ya-maã yawe   antigamente NEG 1PL.A-ver assim   ‘Antigamente, não era assim.’   Literalmente: Antigamente, não víamos assim.
(19) u-yupiru kuxima nhaã maiwa   3SG.A-começar antigamente DEM maldição   ‘Começou antigamente aquela maldição.’
(20) bare=ita ta-morai kua rupi kuxima   baré=PL 3PL.A-morar DEM PERL antigamente   ‘Os Baré moravam por aqui antigamente.’

No Quadro 1, apresenta-se um sumário das principais características encontradas que distinguem partículas de advérbios e de clíticos.

Quadro 1
Sumário dos critérios para identificação de partículas.

EMPRÉSTIMOS VERBAIS TRANSFORMADOS EM PARTÍCULAS

Como visto na “Introdução”, o contato com o Português iniciou-se ainda no início do século XVI, de modo que se pode dizer que a própria formação do Nheengatú, diferenciando-se gramaticalmente (fonologicamente e morfossintaticamente) do Tupinambá, é o resultado desse contato. Esse longo período de contato linguístico possibilitou que o Nheengatú apresentasse empréstimos de palavras lexicais oriundas do Português nas classes dos nomes, das conjunções, dos verbos, dos marcadores discursivos, dos adjetivos, como ilustrado em (21), em que empréstimos de diferentes classes lexicais estão indicados em negrito:

(21) Então, ai=rã u-servi nhaã i-tinta   CONJ DEM=PROSP 3SG.A-sevir DEM 3SG.NA-tinta   ‘Então, para isso, serve aquela tinta.’

Conforme exemplificado em (21), os empréstimos lexicais em Nheengatú são bastante pervasivos e atingem níveis diferentes de escalas de hierarquia de acessibilidade às diferentes classes de palavras, bem como afixos, a ocorrerem como empréstimos, disponíveis na literatura especializada9 9 Conferir, por exemplo, Haugen (1950), Muysken (1981) e Matras (2007), entre outras propostas. As hierarquias de acessibilidade de empréstimos citadas apresentam algumas distinções entre as classes mais propensas a receberem empréstimos. No entanto, esta pesquisa adota a hierarquia proposta por Matras (2009): ‘nomes, conjunções > verbos > marcadores de discurso > adjetivos > interjeições > advérbios > outras partículas, aposições > numerais > pronomes > afixos derivacionais > afixos flexionais’. . Ainda que os empréstimos sejam pervasivos entre as classes lexicais, não há registros de empréstimos de morfemas presos no Nheengatú e, portanto, os empréstimos ocorrem apenas no nível da palavra. Isso não quer dizer, no entanto, que empréstimos só apresentem conteúdos lexicais. Empréstimos com função plenamente gramatical são encontrados na classe das partículas, a partir da inserção direta de verbos oriundos do Português.

De acordo com Muysken (2000, p. 184)Muysken, P. (2000). Bilingual speech. A typology of code-mixing. Cambridge University Press., verbos podem ser integrados em uma língua-alvo como: (a) ‘inserção direta’, quando não há modificação da forma do verbo; (b) ‘inserção indireta’, quando há modificação da forma do verbo; (c) ‘verbo leve’, quando o verbo emprestado ocorre em composição com um verbo original da língua; (d) ‘transferência de paradigma’, quando o verbo carrega, para a língua-alvo, todas as possiblidades de flexão. Em Nheengatú, ocorrem os dois primeiros casos: (a) inserção direta e (b) inserção indireta.

No caso de ‘inserção indireta’, o Nheengatú emprega a forma do infinitivo do verbo do Português10 10 O sufixo -r final que marca o infinitivo dos verbos em Português não é aceito pelas regras fonotáticas do Nheengatú, uma vez que nesta língua não ocorrem sílabas com coda consonantal. Nos dialetos mais conservadores do Nheengatú, acrescenta-se uma vogal epentética após a consoante -r final, criando palavras que terminam em –CVRi, como a-puderi [a.pu.ˈde.ɾi] ‘eu posso’. Esta estratégia de adaptação fonológica, no entanto, não é adequada para os padrões rítmicos da língua, uma vez que cria palavras com acento pré-final. Na maioria dos dialetos, e particularmente entre os jovens, há apagamento do rótico, gerando a forma –CVj, [a.pu.ˈdej]. e acrescenta a flexão de pessoa, da série ativa, como exemplificado em (22). Como outras formas verbais, os verbos emprestados podem ocorrer com afixos derivacionais, como o reflexivo/recíproco, o causativo, os nominalizadores, conforme ilustrado em (23).

(22) a-estudai ‘estudei’   re-prejudicai ‘(você) prejudica’   u-gustai ‘(ele/ela) gosta’   ya-resebei ‘recebemos’   ta-diskuti ‘(eles/elas) discutiram’
(23) ape ya-yu-formai   CONJ 1PL.A-R/R-formar   ‘Aí, nós nos formamos.’

No caso de inserção direta, Matras (2009, p. 176)Matras, Y. (2009). Language contact. Cambridge University Press. explica que “. . . o verbo original, ao se manter sem modificações, é tratado como um não verbo”11 11 No original, “. . . the original verb, while remaining unmodified, is treated like a non-verb”. . Esta é a origem de pelo menos quatro partículas em Nheengatú: tenki, presizu, será e seraki, que expressam ‘obrigação’, ‘necessidade’, ‘questão polar’ e ‘questão retórica’, respectivamente. Oriundas de verbos emprestados do Português por inserção direta, essas partículas exercem funções gramaticais na língua-alvo, tornando possível a emergência de novas formas de expressar modalidade deôntica e de marcar gramaticalmente as construções interrogativas do tipo ‘questão polar’ e ‘questão retórica’.

Ainda segundo Matras (2009, p. 186)Matras, Y. (2009). Language contact. Cambridge University Press., a inserção direta para a função modal ocorre particularmente a partir de formas verbais impessoais. Mais especificamente, formas flexionadas como terceira pessoa singular do presente na língua-fonte passam a funcionar como modais na língua-alvo. Como exemplo dessa tendência, o autor cita o caso do Espanhol tiene (que) ‘tem (que)’, puede ‘pode’, que ocorrem como empréstimo por inserção direta em várias línguas autóctones da América do Sul e do Pacífico. De fato, no Nheengatú, as quatro partículas oriundas por empréstimo verbal de inserção direta do Português são originalmente verbos em sua forma impessoal. No entanto, as formas verbais que foram levadas para o Nheengatú como empréstimo não estão restritas ao tempo presente. Apenas a partícula tenki ‘deôntico de obrigação’ tem origem na forma de terceira pessoa do presente do modo indicativo. As partículas será ‘questão polar’ e seraki ‘questão retórica’ são oriundas do verbo ‘ser’ flexionado como terceira pessoa (impessoal) no futuro do modo indicativo. Por sua vez, a partícula presizu ‘deôntico de necessidade’ provém da expressão ‘é preciso...’, formada pelo verbo ser, em sua forma de terceira pessoa (impessoal), do presente do modo indicativo, acompanhada do particípio (forma nominal) do verbo ‘precisar’12 12 Semanticamente, a partícula presizu é usada como modalidade deôntica que indica ‘necessidade’, da mesma forma que sua origem ‘é preciso’. Formalmente, presizu combina-se com qualquer pessoa do discurso – conforme ilustrado nos exemplos (25) e (28). Em termos funcionais, perspectiva adotada neste trabalho, a tendência é de que uma expressão, já gramaticalizada no Português como deôntica, mantenha-se como tal ao ser gramaticalizada em uma outra língua. Por isso, é difícil imaginar um cenário em que a construção ‘eu preciso’, 1ª pessoa do singular, transforme-se em uma construção deôntica no lugar de ‘é preciso’. . O Quadro 2 lista as partículas do Nheengatú com origem em verbos do Português e indica a estrutura original do verbo na língua doadora.

Quadro 2
Partículas em Nheengatú com origem em verbos do Português.

Em termos formais, essas quatro partículas apresentam a maioria das características apresentadas para partículas autóctones no Quadro 1. No que concerne aos critérios fonológicos, essas quatro partículas constituem palavras independentes. No que concerne aos critérios morfológicos, essas partículas não podem ser combinadas com o sufixo -wara ‘nominalizador’. Essa característica não é relevante, no entanto, porque, como visto anteriormente, esse sufixo apenas ocorre com advérbios que expressam espaço ou tempo, de modo que sua combinação com as quatro partículas oriundas do Português seria impossível não apenas por questões gramaticais, mas pela própria semântica das expressões.

Por fim, com relação aos critérios sintáticos, observa-se que essas partículas ocorrem em posição fixa: três das partículas com origem em verbos do Português ocorrem em posição inicial, conforme ilustrado nos exemplos (24) a (26); ao passo que a partícula será ‘questão polar’ ocorre em segunda posição, como ilustrado em (27).

(24) tenki ya-yu-mimi s-ese   OBRIG 1PL.A-R/R-esconder 3SG.NA-REL   ‘Temos que nos esconder disso.’
(25) ape presizu 13 u-munuka kuaye   CONJ NECESS 3SG.A-cortar assim   ‘Aí, foi preciso cortar assim.’
(26) seraki u-valei yanda=rã   QR 3SG.A-valer nós=PROSP   ‘Será que [o cariamã14] vale para nós?’
(27) u-meẽ será re-mbeu yepe   3SG.A-dar QP 2SG.A-contar um   ‘Dá para você contar uma [história]?’

No que concerne aos critérios sintáticos, observa-se que as quatro partículas oriundas do Português não são capazes de instituir predicado, mas apenas ocorrem como operadores que modificam o predicado principal.

Por fim, o último critério sintático a ser considerado é o de que, como visto anteriormente, as partículas nativas, em sua maioria, não poderiam ocorrer com clíticos, excetuando-se a partícula existencial. Com relação a esse critério, pelo menos duas partículas oriundas do Português ocorrem combinadas com clíticos: as partículas presizu, que expressa modalidade deôntica de ‘necessidade’, em (28), e será ‘questão polar’, em (29). O fato de essas partículas ocorrerem com o clítico de negação, ao passo que a maioria das partículas nativas não ocorre com clíticos, pode estar ligado à origem verbal. É razoável imaginar que, ainda que essas partículas não sejam capazes de instituir predicado em Nheengatú, elas mantenham, de sua origem verbal, traços predicativos que permitem a atração de clíticos.

(28) “nhanse ti=presizu ya-piripana maã”     CONJ NEG=NECESS 1PL.A-comprar algo     ‘Por isso, não precisamos comprar nada.’ (Cruz, 2011, p. 360)
(29) tenki ya-siki ti=será   OBRIG 1PL.A-puxar NEG=QP   ‘Tem que buscar, não é?’

Não foi encontrada, no corpus desta pesquisa, nem em observações em trabalho de campo, a combinação das partículas tenki ‘obrigação’ e seraki ‘questão retórica’ com clíticos. Testes de agramaticalidade não puderam ser realizados, porque os falantes consideram os empréstimos como desvios ao que seria supostamente o ‘puro Nheengatú’, e, portanto, os julgamentos de gramaticalidade acabam sendo afetados por uma atitude linguística de preservação do léxico de origem Tupi-Guarani como sendo o único válido15 15 É pertinente observar que testes de gramaticalidade, nos quais determinadas estruturas são expostas a falantes nativos de uma determinada língua com a finalidade de se distinguir estruturas gramaticais e agramaticais, são geralmente utilizados em contextos monolíngues. Em contextos plurilíngues, no entanto, em que o contato linguístico é visto como ‘marca de degenerescência’, os testes de gramaticalidade tendem a ser enviesados por um padrão de normatividade linguística. .

No Quadro 3, apresenta-se um sumário dos principais critérios utilizados para identificar partículas, aplicados à análise das partículas oriundas de verbos do Português a partir de inserção direta.

Quadro 3
Partículas de origem em verbos do Português, correlacionadas aos critérios de identificação da classe de partículas.

A EMERGÊNCIA DE MODALIZADORES E DE MARCADORES DE QUESTÃO A PARTIR DAS NOVAS PARTÍCULAS

Comumente, línguas em contato permitem a transferência de uma língua para outra de expressões modalizadoras, ou seja, expressam “. . . a atitude do interlocutor em relação ao conteúdo proposicional do enunciado. . .”16 16 No original, “. . . la modalité, c’est l’expression de l’attitude du locuteur par rapport au contenu proposionnel de son énoncé. . .”. (Le Querler, 1996Le Querler, N. (1996). Typologie des modalités. Université de Caen., p. 14). Segundo Matras (2007, p. 45)Matras, Y. (2007). The borrowability of grammatical categories. In Y. Matras & J. Sakel (Eds.), Grammatical borrowing in cross-linguistic perspective (pp. 31-74). Mouton de Gruyter., quase metade das 30 línguas consideradas como amostra em um estudo tipológico apresentava formas de replicação de verbos modais. Ainda segundo o autor, pode-se traçar uma hierarquia de acessibilidade a ocorrer como empréstimos para as formas de tempo, aspecto e modo (TAM), em que a categoria modalidade é a mais facilmente acessível a ser transferida de uma língua para outra, conforme indicado pela hierarquia em (30).

(30) modalidade > aspecto/aktionsart > tempo futuro > (outros tempos) (Matras, 2007, p. 46)

As hierarquias de acessibilidade aos empréstimos também indicam que, dentro da categoria ‘modalidade’, pode-se estabelecer uma hierarquia em relação aos modais mais acessíveis a serem realizados como empréstimos, conforme indicado em (31).

(31) obrigação > necessidade > possibilidade > habilidade > desejo (Matras, 2007, p. 45)

Em Nheengatú, dos quatro verbos com origem no Português transformados em partículas, dois têm valor modal tanto na língua-fonte quanto na língua-alvo – trata-se das partículas de modalidade deôntica tenki ‘obrigação’ e presizu ‘necessidade’. As outras duas partículas, será ‘questão polar’ e seraki ‘questão retórica’, provêm de verbos que expressam a modalidade epistêmica da possibilidade, ou mais precisamente da dúvida, na língua-fonte, e passaram a serem utilizadas na língua-alvo para indicar gramaticalmente sentenças interrogativas.

Matras (2007)Matras, Y. (2007). The borrowability of grammatical categories. In Y. Matras & J. Sakel (Eds.), Grammatical borrowing in cross-linguistic perspective (pp. 31-74). Mouton de Gruyter. faz uma tentativa de generalizar essa hierarquia observando que seriam mais acessíveis a ocorrerem como empréstimo os modais que expressam forças mais externas ao participante, como obrigação e necessidade, em direção à dimensão interna do participante, como habilidade e volição. No caso do Nheengatú, verbos oriundos do Português são transformados em partículas para funcionarem como modalidade deôntica de ‘obrigação’, como em (24) e (29), e de ‘necessidade’, como em (25) e (28).

Seguindo a hierarquia proposta por Matras (2007)Matras, Y. (2007). The borrowability of grammatical categories. In Y. Matras & J. Sakel (Eds.), Grammatical borrowing in cross-linguistic perspective (pp. 31-74). Mouton de Gruyter., a próxima categoria com alta acessibilidade a ocorrer como empréstimo seria a de ‘possibilidade’. No Nheengatú, as partículas será ‘questão polar’, em (27) e (29), e seraki ‘questão retórica’, em (26), derivam de verbos em Português que expressam modalidade epistêmica de ‘possibilidade’, ou mais propriamente, ‘dubitativo’, mas se restringiram na língua-alvo à função de marcadores gramaticais de interrogativas.

Observa-se que partículas de modalidade deôntica, tenki e presizu, e partículas de marcadores de questão (com origem em modalidade epistêmica da possibilidade), será e seraki, constituem casos de inserção direta. Por sua vez, para a expressão da habilidade, o processo privilegiado é o da inserção indireta, ou seja, verbos da língua-fonte são adaptados fonologicamente e morfologicamente à estrutura gramatical da língua-alvo. Trata-se do caso dos verbos pudei ‘poder’, em (32), de alta frequência entre os falantes de Nheengatú, mesmo entre os monolíngues nessa língua; e o verbo kõsegui ‘conseguir’, em (33), utilizado por alguns jovens bilíngues. Assim, os verbos pudei e kõsegui constituem verbos em Nheengatú e, como todos os demais verbos da língua, recebem flexão de pessoa.

(32) ape re-pudei=rã re-wike tenki re-minhã ẽtrevista   CONJ 2SG.A-poder=PROSP 2SG.A-entrar OBRIG 2SG.A-fazer entrevista   ‘Aí, para você poder entrar, tem que fazer uma entrevista.’
(33) “ti=ta-kõsegui ta-pisika nhaã usayuwa”     NEG=3PL.A-conseguir 3PL.A-pegar DEM saúva     ‘Não conseguiram pegar aquelas (formigas) saúvas.’ (Cruz, 2011, p. 323)

No final dessa hierarquia de acessibilidade dos modais a serem passíveis de ocorrerem como empréstimo, está a noção de volição. No Nheengatú, não foram encontrados empréstimos com esse uso, pois neste caso os falantes utilizam o verbo nativo putai ‘querer’, como em (34):

(34) kua kunhã =ita ta-putai ta-yangaiwara   DEM mulher =PL 3PL.A-querer 3PL.A-emagrecer   ‘Essas mulheres querem emagrecer.’

A Figura 1 permite observar a correlação entre a hierarquia de acessibilidade a ocorrer como empréstimo, elaborada por Matras (2007)Matras, Y. (2007). The borrowability of grammatical categories. In Y. Matras & J. Sakel (Eds.), Grammatical borrowing in cross-linguistic perspective (pp. 31-74). Mouton de Gruyter., e os dados do Nheengatú.

Figura 1
Hierarquia de acessibilidade para ocorrer em empréstimos (Matras, 2007Matras, Y. (2007). The borrowability of grammatical categories. In Y. Matras & J. Sakel (Eds.), Grammatical borrowing in cross-linguistic perspective (pp. 31-74). Mouton de Gruyter.), correlacionada aos dados do Nheengatú.

As categorias ‘obrigação’ e ‘necessidade’, expressadas em Nheengatú pelas partículas tenki e presizu, respectivamente, são classificadas como formas de manifestar a modalidade deôntica. De Haan (2005, p. 29)De Haan, F. (2005). Typological approaches to modality. In W. Frawley (Ed.), The expression of Modality (pp. 27-70). Mouton de Gruyter. explica que “a modalidade deôntica . . . . lida com o grau de força exercida no sujeito da sentença para realizar uma ação”17 17 No original, “deontic modality, as in John must go to school, deals with the degree of force exerted on the subject of the sentence to perform an action”. . A forte noção de obrigação associada à partícula tenki pode ser observada nos enunciados (35) e (36), retirados de um texto em que um ancião explica as obrigações dos jovens durante o cariamã, a cerimônia de iniciação dos adolescentes para a idade adulta entre os povos Baré, Baniwa e Werekena. Tratam-se de obrigações em que é indicado que o agente não tem como escapar de as cumprir.

(35) ape re-benzei rame tenki ta-yuka saruã-sa nha=irum   CONJ 2SG.A-benzer SUB OBRIG 3PL.A-tirar ser.maldito-NMLZ DEM=COM   ‘Aí, quando você benze, tem que tirar a maldição com aquilo [com a vara].’
(36) tenki a-sofrei   OBRIG 1SG.A-sofrer   ‘Tenho que sofrer.’

Por sua vez, a partícula presizu ‘ necessidade’ é usada para dar conselhos, como ilustrado em (37) a (39). Nesse caso, o agente tem maior possibilidade de escolher se vai de fato realizar a ação expressa pelo verbo principal.

(37) presizu ya-kuntai ae yane-nheenga rupi     NECESS 1PL.A-falar DEM 1PL.NA-língua PERL     ‘É preciso falar isso pela nossa língua.’ (Cruz, 2011, p. 359)
(38) presizu ya-puraki   NECESS 1PL.A-trabalhar   ‘Precisamos trabalhar.’
(39) então s-ese-wara ti=ã=presizu yawe ya-sikie     CONJ 3SG.NA-sobre-NMLZ NEG=PFV=NECESS assim 1PL.A-ter.medo     ‘Então, acerca disso, não precisamos assim ter medo.’ (Cruz, 2011, p. 360)

As partículas será ‘questão polar’ e seraki ‘questão retórica’ indicam gramaticalmente que uma oração ocorre sobre a forma interrogativa. Em Nheengatú, além dessas duas partículas interrogativas com origem no Português, há também uma terceira partícula interrogativa, de origem Tupi-Guarani, taa ‘questão focalizadora de constituinte’, que geralmente ocorre como clítico, cuja função é focalizar um constituinte como escopo de uma pergunta, como ilustrado em (40). Algumas das expressões criadas pela combinação de taa, em sua forma clítica, a sintagmas nominais e posposicionais em Nheengatú, são: awa=ta? ‘quem?’, asui=ta ‘e aí?’, ma=ta? ‘o quê?’, ma=sui=ta? ‘de onde?’, entre outras.

(40) marã taa ainta?   para que QFC eles   ‘Para que (servem) eles?’

Para questões polares, ou seja, questões em que o falante espera de seu interlocutor uma resposta do tipo sim ou não, o Nheengatú utiliza a partícula será, como ilustrado pela pergunta em (41), pela solicitação com forma gramatical de interrogativa em (42) e pelo diálogo em (43):

(41) u-asinai será?   3SG.A-assinar QP   ‘Ele assinou?’
(42) U meẽ será re-beu yepe...?   3SG.A dar QP 2SG.A-falar uma   ‘Dá será para você contar uma...?’
(43) A: “tupana será?”       deus QP       ‘É Deus?’                     B: “Umba!”         NEG.ENUNC         ‘Não!’   (Cruz, 2011, p. 335)            

Moore et al. (1993, p. 107)Moore, D., Facundes, S., & Pires, N. (1993). Nheengatú (LGA), it’s history, and effects of language contact. Proceedings of the Meeting of the Society for the Study of the Indigenous Languages of the Americas, 2(4), 93-118., com base em dados recolhidos de uma colaboradora em Belém, notaram que seria possível que as questões polares fossem formadas por entonação, padrão conservador da língua também observado em dados do século XIX, recolhidos por Barbosa-Rodrigues (1890)Barbosa-Rodrigues, J. (1890). Poranduba amazonense, ou kochiyma-uara porandub, 1872-1887. Typ. de G. Leuzinger & Filhos. http://biblio.etnolinguistica.org/rodrigues_1890_poranduba
http://biblio.etnolinguistica.org/rodrig...
. Cruz (2011, p. 345)Cruz, A. (2011). Fonologia e Gramática do Nheengatú: a língua geral falada pelos povos Baré, Warekena e Baniwa. LOT. http://etnolinguistica.wdfiles.com/local--files/tese%3Acruz-2011/cruz_2011_nheengatu.pdf
http://etnolinguistica.wdfiles.com/local...
afirma que, entre os falantes do rio Negro, a entonação é utilizada para expressar questões-eco, ou seja, “questões em que o falante repete a pergunta (ou, pelo menos, os tópicos discursivos), para ter certeza de que entendeu corretamente”, como em (44). Observe que, em (44), o interlocutor (A) realiza um ato ilocucionário interrogativo, ou seja, solicita esclarecimentos sobre uma dúvida que possui, sem, no entanto, utilizar uma sentença gramaticalmente marcada como questão. Para ter certeza de que compreendeu a dúvida do interlocutor (A), o ouvinte (B) solicita confirmação dos tópicos discursivos, utilizando questões-eco, marcadas apenas por entonação, caracterizada pela curva ascendente final, de modo semelhante ao Português:

(44) A: Cândido Gregório, mata ximiriku rera?     Cândido Gregório, qual 3SG.NA:esposa nome     ‘Qual o nome da esposa do Cândido Gregório?’                         B: Sera? Waimĩ rera? Xi-miriku?       nome velha nome 3SG.NA:esposa       ‘Nome? O nome da velha? Da esposa dele?’  

O uso da entonação, no entanto, não é a única estratégia para expressar questões-eco. Observa-se também a possibilidade de realizar questões-eco com a partícula será ‘questão polar’, como ilustrado em (45). No atual estágio desta pesquisa, não é possível elucidar os fatores que podem levar ao uso de questões-eco marcadas por curva de entonação ascendente, como em (44), ou pela partícula será, como em (45). Uma hipótese para diferença pode estar em fatores sociolinguísticos, como a localização dos falantes, uma vez que o enunciado em (44) foi recolhido no rio Xié, entre os Werekena; ao passo que o enunciado em (45) foi recolhido no rio Negro, entre os Baré. Com relação ao fator sociolinguístico ‘idade’, parece ser irrelevante, uma vez que, em ambos os diálogos, o interlocutor A é um jovem que questiona um ancião, interlocutor B.

(45) A: Nhaã paa re-mbeu yanda=rã Baré ta-rese-wara     DEM REP 2SG.A-dizer nós=PROSP baré 3PL.NA-sobre-NMLZ     ‘Aqui, diz que, você poderia falar para nós sobre os Baré.’     B: Bare ambira ta-resewara será?       Baré falecido 3PL.A-sobre QP       ‘Sobre os finados Baré?’

O terceiro tipo de marcador gramatical de sentenças interrogativas em Nheengatú é representado pela partícula seraki ‘questão retórica’, definida como:

questões retóricas distinguem-se pragmaticamente de questões ordinárias pelo fato de a resposta ser conhecida tanto pelo falante quanto pelo ouvinte; ademais, eles também sabem que o outro também conhece a resposta. Em termos de requerimento de uma resposta, questões retóricas também diferem de questões ordinárias pelo fato de que elas possam ter, mas não necessariamente têm, uma resposta

(Littell et al., 2010Littell, P., Matthewson, L., & Peterson, T. (2010). On the semantics of conjectural questions. In T. Peterson, U. Sauerland (Eds.), Evidence from evidentials (pp. 89-104). UBCWPL., p. sn)18 18 No original, “. . . an RQ differs from an OQ in that the answer is known to the Speaker and the Addressee, and they both also know that the other knows the answer as well. In terms of the requirement for an answer, RQs also differ from OQs in that they can have, but do not require an answer”. .

Os enunciados (46) e (47) ilustram o emprego da partícula seraki ‘questão retórica’. Embora raramente ocorra no corpus, a partícula é encontrada não apenas na fala dos jovens, mas também de idosos monolíngues em Nheengatú.

(46) seraki yawe tupana u-mundu     QR assim deus 3SG.A-mandar     ‘Será assim que Deus mandou?’ (Cruz, 2011, p. 361)
(47) seraki tupana u-yu-batizai mukuĩ viagem?   QR deus 3SG.A-REFL-batizar duas viagens?   ‘Será que Deus se batiza duas vezes?’

Segundo Matras (2009, p. 199), interrogativos são bastante estáveis em situações de contato, ou seja, são expressões que dificilmente ocorrem como empréstimo. Em outras palavras, para estudos em tipologia de contato linguístico, o empréstimo de ‘marcadores de questões’ seria bastante raro. No caso do Nheengatú, no entanto, o empréstimo de ‘marcadores de questões’ pode ter sido facilitado pelo fato de, na língua-fonte, as expressões será e será que estarem associadas, entre outras funções, à expressão da modalidade epistêmica da ‘incerteza’, ou seja, indicam que há uma possibilidade de que um evento ocorra. A modalidade epistêmica é entendida, por Halliday (1970, p. 349)Halliday, M. A. K. (1970). Functional diversity in language as seen from a consideration of modality and mood in English. Foundations of Language, 6(3), 322-361. https://www.jstor.org/stable/25000463
https://www.jstor.org/stable/25000463...
, como “. . . a avaliação do falante sobre probabilidade e previsibilidade, desta forma é externa ao conteúdo, sendo parte da atitude assumida pelo falante”19 19 No original, “[Epistemic modality] . . . . is the speaker’s assessment of probability and predictability. It is external to the content, being a part of the attitude taken up by the speaker”. . Em nossa interpretação, dessa avaliação de probabilidade acerca do conteúdo da proposição, advém a definição mais comumente empregada para as formas epistêmicas como “indicadores de escopo oracional acerca do compromisso de um falante com a verdade de uma proposição” (Bybee & Fleischman, 1995Bybee, J., & Fleischman, S. (1995). Modality in grammar and discourse: An introductory essay. In J. Bybee & S. Fleischman (Orgs.), Modality in grammar and discourse (pp. 1-14). John Benjamins., p. 6)20 20 No original, “Epistemics are clausal-scope indicators of a speaker’s commitment to the truth of a proposition”. .

Como a forma verbal flexiona para terceira pessoa do singular (impessoal) do futuro do modo indicativo do verbo ‘ser, será’, expressa denotativamente a projeção de um estado futuro, como em (48)21 21 Os dados a respeito dos usos de ‘será’ e ‘será que’ em Português provêm de intuição da autora como falante nativa. . Como qualquer projeção de estados futuros, enunciados com o verbo ‘será’ acabam por apresentar também um caráter de ‘incerteza’, o que é reforçado em sentenças interrogativas, como em (49). Comumente, ‘será’ também ocorre em questões-eco, não para que se peça informações acerca de um constituinte, mas para interrogar sobre o evento como um todo, como em (50):

(48) ‘Em um futuro cada vez mais distante, o Brasil será um país menos desigual.’
(49) ‘Será viável a continuidade do processo de demarcação de terras indígenas com a transferência desta responsabilidade para o Ministério da Agricultura?’
(50) A: ‘Os responsáveis pelos crimes ambientais cometidos pela Vale em Brumadinho serão punidos.’   B: ‘Será? Aff... Duvido muito...’

Observa-se, portanto, que a forma verbal ‘será’ expandiu seu uso de projeção de estados futuros para expressar a modalidade epistêmica da ‘incerteza’, podendo ocorrer tanto em sentenças declarativas quanto em sentenças interrogativas. Ademais, o verbo ‘será’ ocorre na expressão ‘será que’, gramaticalizada para função de expressar a modalidade epistêmica da dúvida, tanto em sentenças gramaticalmente declarativas, como em (51), quanto em sentenças interrogativas, como em (52). Particularmente em questões, Perini (2010, p. 124)Perini, M. A. (2010). Gramática do português brasileiro. Parábola Editorial. observa que a expressão ‘será que’ pode ser utilizada para “acrescentar um matiz de incerteza” às interrogativas. A rigor, pode-se dizer que a expressão ‘será que’ é uma das formas mais recorrentes em Português de expressar questões retóricas.

(51) ‘Será que vai chover hoje?’
(52) “Será só imaginação?     Será que nada vai acontecer?     Será que é tudo isso em vão?     Será que vamos conseguir vencer?” (Legião Urbana, 1984)

É possível que a origem como modalidade epistêmica tenha favorecido o empréstimo do verbo ‘será’ (e seu correlato, ‘será que’) por via de inserção direta, transformando-os em partículas. Em Nheengatú, essas partículas especializaram-se na função de indicar gramaticalmente o ato ilocucionário interrogativo, funcionando como marcadores de ‘questão retórica’, seraki, e de ‘questão polar’, será. O Quadro 4 representa a gramaticalização das expressões ‘será’ e ‘será que’ na língua-fonte, em paralelo ao desenvolvimento das partículas será e seraki na língua-alvo.

Quadro 4
Função das partículas será e seraki em Nheengatú em paralelo a sua gramaticalização em Português.

A relação entre modalidade epistêmica e marcadores gramaticais de atos ilocucionários interrogativos não é surpreendente. Lyons (1979, p. 323)Lyons, J. (1979). Linguagem e Linguística: uma introdução. Companhia Nacional. chega mesmo a afirmar que “. . . interrogativas são claramente modais. . .”. Ao criticar Lyons, Boye (2012, p. 315)Boye, K. (2012). Epistemic meaning: A crosslinguistic and functional-cognitive study. De Gruyter Mouton. propõe que “. . . sentidos ilocucionário devem ser concebidos como distintos dos sentidos epistêmicos e apenas funcionalmente e pragmaticamente estariam relacionados a eles”22 22 No original, “. . . illocutionary meanings are conceived as distinct from, and only functionally-pragmatically related to epistemic meanings”. . Pode-se dizer que uma pergunta ordinária implica a ideia de que o falante não tenha nenhum suporte epistêmico acerca da validade de uma proposição. Em outras palavras, ao fazer uma pergunta ordinária, o falante solicita ao ouvinte que confirme ou negue uma proposição, justamente porque, seguindo a máxima da cooperação de Grice (1957Grice, H. P. (1957). Meaning. Philosophical Review, 66(3), 377-388., 1975)Grice, H. P. (1975). Logic and conversation. In P. Cole & J. Morgan (Ed.), Pragmatics (Syntax and Semantics) (pp. 41-58). Academic Press., o falante não tem certeza da validade da proposição. Assim, uma pergunta ordinária implica a modalidade epistêmica da incerteza. O fato de que as noções de modalidade epistêmica da possibilidade e de ato ilocucionário interrogativo, ainda que distintos, estejam cognitivamente ligadas pode ter engatilhado o processo pelo qual os modalizadores do Português ‘será’ e ‘será que’ tenham sido transformados em Nheengatú em marcadores gramaticais de atos ilocucionário interrogativos.

Antes de encerrar esta seção, é preciso retomar um debate que ocorre na literatura especializada acerca da origem da partícula ‘será’ ‘questão polar’. Segundo Navarro (2011a)Navarro, E. A. (2011a). Curso de Língua geral (nheengatu ou tupi moderno) - A língua das origens da civilização amazônica (1 ed.). Paym Gráfica e Editora., a partícula ‘será’ não é um empréstimo, mas, na realidade, “‘será’ provém do Tupi Antigo serã, registrado desde o século XVI, com o mesmo sentido que tem aquela partícula em Nheengatú, empregada para a formulação de questões (Acaso? Será? Porventura?)”. Como exemplo, o autor apresenta dados extraídos do “Teatro de Anchieta” (1977Anchieta, J. (1977). Teatro de Anchieta: obras completas; originais acompanhados de tradução versificada, introdução e notas Pe. Armando Cardoso. Loyola.), como os reproduzidos a seguir:

(53) ere-r-ur-etá serã?     2SG.A-CC-vir-muitos DUB     ‘Acaso trouxeste muitas coisas?’ (Anchieta, 1977, citado em Navarro, 2011a; glosa acrescentada)
(54) apo teko-pisasu aβa serã o-weru?     DEM lei-nova homem DUB 3.A-trazer     ‘Aquela lei nova, quem a trouxe?’ (Achieta, 1977, citado em Navarro, 2011a; glosa acrescentada)

Pela própria tradução de Anchieta de serã por ‘acaso’, observa-se, no entanto, que serã não é realmente um marcador de questão polar, mas expressa modalidade epistêmica da ‘possibilidade’. De fato, no “Teatro de Anchieta” (1977), serã ocorre não apenas em interrogativas, mas também em sentenças declarativas, como em (55).

(55) To! Temiminó, serã     INTJ temiminó DUB     ‘Ó! Um temiminó, talvez.’ (Anchieta, 1977, p. 721, verso 705)

Ademais, pela tradução do exemplo (54), pode-se imaginar que, com a combinação de aβa e serã, formar-se-ia a questão focalizadora de constituinte ‘quem’. Este não é o caso, porém. Em Tupinambá, observa-se que os marcadores de questões focalizadoras de constituinte ocorrem com o clítico =pe, como ilustrado em (56) e (57). O clítico =pe ‘marcador de questão focalizadora de constituinte’ desapareceu no Nheengatú.

(56) abá=pe?   homem=QFC   ‘Quem?’
(57) umã=pe tatapytéra     onde=QFC tatapytéra     ‘Onde está Tatapitera?’ (Anchieta, 1977, p. 615, verso 24; glosas acrescentadas)

Ademais, em outras passagens do texto de Anchieta, há enunciados em que questões polares são realizadas sem nenhuma partícula, como em (58):

(58) i-kauĩ guasú pipo xe=r-amúia Jaguarúna     3.A-cauim AUM dentro 2SG.NA=LK-avô Jaguarúna     ‘Há muito cauim, meu avô Jaguaruna?’ (Anchieta, 1977, p. 721, verso 698; glosa acrescentada)

Se, em Tupinambá, (i) as questões polares podem ser indicadas apenas por entonação, (ii) as questões focalizadoras de constituinte deveriam ser marcadas pelo clítico =pe, e a (iii) partícula serã não indicaria gramaticalmente uma interrogativa, mas apenas a modalidade epistêmica; pode-se reanalizar o enunciado em (54) como uma declarativa marcada pela modalidade epistêmica da dúvida, como em (54’) abaixo:

(54’) apo teko-pɨsasu aβa serã o-weru     DEM lei-nova homem DUB 3.A-trazer     ‘Será que alguém trouxe aquela lei nova.’ (Anchieta, 1977, citado em Navarro, 2011a; glosa e tradução acrescentada)

Em resumo, a partícula serã ‘modalidade epistêmica de dúvida’ não tem ‘o mesmo sentido’ de será ‘questão polar’ do Nheengatú. Poder-se-ia, no entanto, imaginar que serã do Tupinambá gramatizalizou-se para funcionar como marcador de questão polar em Nheengatú. Todavia, uma análise diacrônica da evolução do Tupinambá para língua geral amazônica do século XVIII permite observar que não foi a partícula serã ‘dubitativo’ que se gramaticalizou para indicar questões polares, mas o clítico =pe que estendeu seu uso para a combinação com qualquer núcleo de predicado para expressar questões polares, como em (59) e (60):

(59) ere-potár=pe mbäé amò     2SG.A-querer=Q coisa INDF     ‘Queres alguma coisa?’ (Navarro, 2011b; glosas acrescentadas)
(60) nití=pe nde caraiba     NEG=Q você não.indígena     ‘Não és cristão?’ (Navarro, 2011b; glosas acrescentadas)

Ademais, causa estranhamento pensar que serã tenha se gramaticalizado de modalidade epistêmica da ‘dúvida’ para será ‘questão polar’ na passagem do Tupinambá para o Nheengatú, se seu uso não é frequente. Em análise de dois textos desta língua, tal como registrada no século XVIII (Navarro, 2009Navarro, E. (2009). O Corista Europeu. Tradução de um texto anônimo, em língua geral da Amazônia, do século XVIII. Língua e Literatura, (27), 383-393. https://www.revistas.usp.br/linguaeliteratura/article/view/105511/104169
https://www.revistas.usp.br/linguaeliter...
, 2011bNavarro, E. A. (2011b). Tradução de texto anônimo, em língua geral amazônica, século XVIII. Revista USP, (90), 181-192. https://doi.org/10.11606/issn.2316-9036.v0i90p181-192
https://doi.org/10.11606/issn.2316-9036....
), não foi possível observar nenhuma ocorrência da partícula serã, nem formas cognatas. Obviamente, isso não prova que a partícula tivesse desaparecido completamente da língua, mas sua baixa frequência inviabiliza a hipótese de gramaticalização de serã ‘dubitativo’ para será ‘questão polar’. Ademais, Navarro (2011a)Navarro, E. A. (2011a). Curso de Língua geral (nheengatu ou tupi moderno) - A língua das origens da civilização amazônica (1 ed.). Paym Gráfica e Editora. não explica como serã ‘dubitativo’ teria perdido a nasalidade da última vogal. Em geral, na comparação entre cognatos do Tupinambá no Nheengatú, observa-se uma tendência à preservação da nasalidade das palavras, quando não o aumento do processo de nasalização (por exemplo, arama tornou-se arã ‘prospectivo’; mo- tornou-se mu- ou simplesmente nasalidade etc.).

Mesmo o clítico =pe ‘questão’, que ocorre com bastante frequência tanto no “Teatro de Anchieta” (1977), que registra o Tupinambá do século XVI, quanto nos textos anônimos do século XVIII, desapareceu completamente antes do século XIX. Em Barbosa-Rodrigues (1890)Barbosa-Rodrigues, J. (1890). Poranduba amazonense, ou kochiyma-uara porandub, 1872-1887. Typ. de G. Leuzinger & Filhos. http://biblio.etnolinguistica.org/rodrigues_1890_poranduba
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, questões focalizadoras são marcadas pela partícula taa, e não há indícios do clítico =pe como função de marcador de questão, como em (61):

(61) maá taá cha munhan cuire     O que QFC eu fazer agora     ‘O que eu devo fazer agora?’ (Barbosa-Rodrigues, 1890, p. 55)

No que concerne às questões polares, observa-se, no século XIX, uma variação entre questões polares marcadas apenas por entonação, como em (62), e ou pela partícula será, grafada no século XIX como <cerá>, como ilustrado em (63) e (64). A tradução do exemplo (63) como “é possível”, por Barbosa-Rodrigues (1890, p. 72)Barbosa-Rodrigues, J. (1890). Poranduba amazonense, ou kochiyma-uara porandub, 1872-1887. Typ. de G. Leuzinger & Filhos. http://biblio.etnolinguistica.org/rodrigues_1890_poranduba
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, sugere que, no século XIX, os falantes reconheciam construções com cerá ‘questão’ como polidez. No entanto, o autor não é consistente ao indicar a associação de polidez aos exemplos em que ocorre a partícula cerá. Veja, por exemplo, que, em (64), a interpretação da tradução sugere que a partícula cerá tenha um valor de hipotético, o que muitas vezes se associa ao uso de polidez. Uma investigação mais aprofundada nos dados do século XIX faz-se necessária para verificar a hipótese de que a diferença entre uma questão polar marcada apenas por entonação e uma questão polar indicada por será estaria no grau de polidez.

(62) ne=re-iucá uana uaimi     NEG=2SG.A-matar PFV velha     ‘Tu já mataste a velha?’ (Barbosa-Rodrigues, 1890, p. 55; glosa adaptada)
(63) Aicui cerá re-ricu petêma     MIRAT Q 2SG.A-ter fumo     ‘Ahi está, é possível que tu tenhas fumo?’ (Barbosa-Rodrigues, 1890, p. 72; glosa adaptada)
(64) re-maité cerá apecatu icó     2SG.A-pensar Q longe estar     ‘Pensas que ela está longe?’ (Barbosa-Rodrigues, 1890, p. 74; glosa adaptada)

No século XIX, o contato entre Português e Nheengatú intensificou-se, com o aumento de falantes bilíngues. Por essa razão, é possível que a partícula ‘será’, oriunda do Português, tenha sido incorporada ao Nheengatú naquele momento.

Na análise proposta neste trabalho, portanto, a partícula serã ‘dubitativo’, registrada no Tupinambá do século XVI, teve seu uso restrito antes mesmo do século XVIII. Neste mesmo período, o clítico =pe, usado no século XVI com a função de marca de ‘questão com foco em constituinte’, estendeu seu uso para marcar ‘questão polar’ no século XVIII. Entre o século XVIII e o XIX, o clítico =pe desapareceu23 23 No que concerne às questões com foco em constituinte, não é claro quando o clítico =pe foi substituído pela forma taa. Também não é claro o histórico de desenvolvimento da partícula taa. Pode-se inferir, no entanto, que se trata de uma forma Tupi-Guarani, porque apresenta cognatos em outras línguas da família, como o Tapirapé. Um estudo diacrônico detalhado das interrogativas do Tupinambá ao Nheengatú, todavia, ultrapassa os limites desta pesquisa. . No século XIX, as questões polares voltaram a ser indicadas por entonação, embora o empréstimo do Português ‘será’ comece a ocorrer, tornando-se a forma de indicar ‘questão polar’ no século XXI. O Quadro 5 apresenta um sumário do desenvolvimento das formas de expressão de ‘questão polar’, desde o Tupinambá do século XVI ao Nheengatú do século XXI24 24 No estágio atual deste trabalho, não foi possível comparar o desenvolvimento da questão polar do Nheengatú ao desenvolvimento desse tipo de construção em outras línguas. Trata-se de uma investigação pertinente que deverá ser realizada em pesquisas tipológicas futuras. .

Quadro 5
Expressão de questão polar por fase de desenvolvimento do Nheengatú em relação ao Tupinambá.

CONSIDERAÇÕES FINAIS

Após mais de 400 anos de contato com o Português, o Nheengatú apresenta uma gramática bastante inovadora em relação às demais línguas da família Tupi-Guarani e, até mesmo, em relação ao Tupinambá, língua que foi usada como base para formação da língua geral amazônica a partir da qual o Nheengatú originou-se. Vários estudos apontam essas transformações, tanto em análises mais gerais sobre a língua, em Moore et al. (1993)Moore, D., Facundes, S., & Pires, N. (1993). Nheengatú (LGA), it’s history, and effects of language contact. Proceedings of the Meeting of the Society for the Study of the Indigenous Languages of the Americas, 2(4), 93-118., Rodrigues (1996)Rodrigues, A. D. (1996). As línguas gerais sul-americanas. PAPIA: Revista Brasileira de Estudos Crioulos e Similares, 4(2), 6-18., Cruz (2011)Cruz, A. (2011). Fonologia e Gramática do Nheengatú: a língua geral falada pelos povos Baré, Warekena e Baniwa. LOT. http://etnolinguistica.wdfiles.com/local--files/tese%3Acruz-2011/cruz_2011_nheengatu.pdf
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etc., quanto em estudos acerca de propriedades gramaticais específicas, como as transformações na morfologia transcategorial (Cruz et al., 2019Cruz, A., & Praça, W. N. (2019). Innovation in Nominalization in Tupi-Guarani Languages: A comparative analysis of Tupinambá, Apyãwa an Nheengatu. In: R. Zariquiey, M. Shibatani & D. W. Fleck. (Org.). Nominalization in Languages of the Americas (pp. 625-655). John Benjamins Publishing Company.), nas nominalizações (Cruz & Praça, 2019Cruz, A., Magalhães, M. M. S., & Praça, W. N. (2019). A morfologia transcategorial e sua relação com o padrão omnipredicativo em línguas da família Tupi-Guarani. Revista Virtual de Estudos da Linguagem, 17(32), 69-94.), na emergência do plural (Cruz, 2015Cruz, A. (2015). The rise of number agreement in Nheengatú. Boletim do Museu Paraense Emílio Goeldi. Ciências Humanas, 10(2), 419-439. https://doi.org/10.1590/1981-81222015000200011
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), entre outros estudos.

Bessa-Freire (2004)Bessa Freire, J. R. (2004). Rio Babel: a história das línguas na Amazônia. Atlântica., em sua análise da história social das línguas amazônicas, demonstra que, no século XIX, o Nheengatú perdeu a hegemonia como língua geral, sendo substituído, em diversas regiões da Amazônia, pelo Português. O autor explica ainda que a diminuição de falantes de Nheengatú na região foi consequência, principalmente, do afluxo de migrantes nordestinos ocorrido devido ao ciclo da borracha (1840-1912) e do envio de muitos homens falantes de Nheengatú para compor as tropas brasileiras na Guerra do Paraguai (1864-1870). Desta forma, não só houve diminuição do número de falantes de Nheengatú, como também aqueles que permaneceram falando essa língua passaram a ter mais contato com o Português, aumentando a população bilíngue.

Como consequência linguística desse período, Santos (2020)Santos, B. H. L. P. (2020). Empréstimos lexicais do Português para a Língua Geral: século XVI ao XXI [Dissertação de mestrado]. Universidade de Brasília, Brasília, Brasil. observou que, no século XIX, houve aumento substancial na quantidade de empréstimos do Português na língua geral, em comparação às variedades da língua falada em séculos anteriores. A autora constatou ainda que esses empréstimos deixaram de ser apenas de nomes e passaram a ocorrer em outras classes de palavras, principalmente de verbos e de conjunções coordenativas, mas também, em menor quantidade, de advérbios, de adjetivos e de preposições. A análise de Santos (2020)Santos, B. H. L. P. (2020). Empréstimos lexicais do Português para a Língua Geral: século XVI ao XXI [Dissertação de mestrado]. Universidade de Brasília, Brasília, Brasil. permite observar que a acessibilidade das classes de palavra a ocorrerem como empréstimos em Nheengatú corresponde à hierarquia estabelecida por Matras (2009, p. 157)Matras, Y. (2009). Language contact. Cambridge University Press.: nomes, conjunções > verbos.

Com relação aos verbos, duas estratégias foram adotadas: a inserção indireta, com adaptação fonológica e morfológica, e a inserção direta, com a transformação de verbos em partículas, mais especificamente de partículas de modalidade e de interrogativas.

A presença de partículas de modalidade como empréstimo está de acordo com o esperado a partir da hierarquia de acessibilidade entre as formas de TAM, proposta por Matras (2007, p. 46)Matras, Y. (2007). The borrowability of grammatical categories. In Y. Matras & J. Sakel (Eds.), Grammatical borrowing in cross-linguistic perspective (pp. 31-74). Mouton de Gruyter.: modalidade > aspecto/akstionsart (aspectualidade) > tempo (futuro) > tempo (outros). Dentre as expressões de modalidade, o autor indica ainda que ‘obrigação’, ‘necessidade’ e ‘possibilidade’ seriam mais acessíveis a ocorrerem como empréstimos do que outras expressões de modalidade, como habilidade e desejo. De fato, como vimos anteriormente, em Nheengatú, as modalidades ‘obrigação’, ‘necessidade’ e ‘possibilidade’ ocorrem como partículas oriundas de verbos (tenki, presizu e será/seraki, respectivamente), ao passo que habilidade e desejo ocorrem como verbos de inserção indireta (Quadro 4). Segundo Matras (2009)Matras, Y. (2009). Language contact. Cambridge University Press., essas hierarquias estariam ligadas ao grau de intervenção de forças externas: assim, em um extremo da hierarquia, ‘obrigação’ é uma força totalmente externa, enquanto, no outro extremo, ‘desejo’ é uma força interna ao falante. No caso das partículas será/seraki, embora elas sejam analisadas sincronicamente como ‘interrogativas’, a origem delas no Português está ligada à modalidade da ‘possibilidade’.

Antes de encerrar este artigo, gostaríamos de apresentar uma reflexão de natureza especulativa. Desde 1616, data oficial da fundação de Belém, a língua geral amazônica está sendo utilizada por povos que são, geração após geração, submetidos ao trabalho forçado, à destruição de suas bases epistêmicas e de seus modos de vida particulares, bem como à substituição de suas línguas originárias. Nesse contexto, a emergência dessas partículas, particularmente a de obrigação, pode ser vista como marca do processo colonizador na língua desses povos.

  • 1
    Conferir, entre outros, Moore et al. (1993)Moore, D., Facundes, S., & Pires, N. (1993). Nheengatú (LGA), it’s history, and effects of language contact. Proceedings of the Meeting of the Society for the Study of the Indigenous Languages of the Americas, 2(4), 93-118., Rodrigues (1996)Rodrigues, A. D. (1996). As línguas gerais sul-americanas. PAPIA: Revista Brasileira de Estudos Crioulos e Similares, 4(2), 6-18. e Cruz (2011Cruz, A. (2011). Fonologia e Gramática do Nheengatú: a língua geral falada pelos povos Baré, Warekena e Baniwa. LOT. http://etnolinguistica.wdfiles.com/local--files/tese%3Acruz-2011/cruz_2011_nheengatu.pdf
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    , 2015)Cruz, A. (2015). The rise of number agreement in Nheengatú. Boletim do Museu Paraense Emílio Goeldi. Ciências Humanas, 10(2), 419-439. https://doi.org/10.1590/1981-81222015000200011
    https://doi.org/10.1590/1981-81222015000...
    .
  • 2
    Uma primeira discussão a respeito dos critérios utilizados para identificar as partículas foi apresentada em Cruz (2011, cap. 8.1)Cruz, A. (2011). Fonologia e Gramática do Nheengatú: a língua geral falada pelos povos Baré, Warekena e Baniwa. LOT. http://etnolinguistica.wdfiles.com/local--files/tese%3Acruz-2011/cruz_2011_nheengatu.pdf
    http://etnolinguistica.wdfiles.com/local...
    . Nesta seção, essa discussão é retomada para que se possa aprofundar a análise dos empréstimos verbais do Português que se tornaram partículas em Nheengatú, como será discutido na próxima seção.
  • 3
    Trata-se de uma inovação do Nheengatú, uma vez que, em Tupinambá, eram possíveis palavras monossilábicas monomoraicas. Compare, por exemplo, os cognatos ɨ ['Ɂɨ] ‘água’, em Tupinambá, e ii [i'Ɂi] ‘água’, em Nheengatú.
  • 4
    Para uma análise acerca do desenvolvimento das partículas existenciais em Nheengatú, ver Cruz (2011, cap. 9.4.1)Cruz, A. (2011). Fonologia e Gramática do Nheengatú: a língua geral falada pelos povos Baré, Warekena e Baniwa. LOT. http://etnolinguistica.wdfiles.com/local--files/tese%3Acruz-2011/cruz_2011_nheengatu.pdf
    http://etnolinguistica.wdfiles.com/local...
    .
  • 5
    Ritual de trocas de oferendas entre comunidades do rio Negro.
  • 6
    Entre as partículas de posição inicial, também ocorrem as partículas de modalidade deôntica (de obrigação e necessidade), que serão discutidas na seção “Empréstimos verbais”.
  • 7
    Entre as partículas de segunda posição, Cruz (2011, p. 339-358)Cruz, A. (2011). Fonologia e Gramática do Nheengatú: a língua geral falada pelos povos Baré, Warekena e Baniwa. LOT. http://etnolinguistica.wdfiles.com/local--files/tese%3Acruz-2011/cruz_2011_nheengatu.pdf
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    também cita taa ‘interrogativo’, supi ‘modalidade epistêmica de certeza’ e será ‘questão polar’. Na seção “Empréstimos verbais”, a partícula será ‘questão polar’ será analisada.
  • 8
    Entre as partículas flutuantes que ocorrem pós-predicado, Cruz (2011, p. 370-379)Cruz, A. (2011). Fonologia e Gramática do Nheengatú: a língua geral falada pelos povos Baré, Warekena e Baniwa. LOT. http://etnolinguistica.wdfiles.com/local--files/tese%3Acruz-2011/cruz_2011_nheengatu.pdf
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    menciona também xinga ‘atenuativa’, wera ‘habitual’ e yepe ‘frustrativo’.
  • 9
    Conferir, por exemplo, Haugen (1950)Haugen, E. (1950). The analysis of linguistic borrowing. Language, 26(4), 210-231. https://doi.org/10.2307/410058
    https://doi.org/10.2307/410058...
    , Muysken (1981)Muysken, P. (1981). Halfway between Quechua and Spanish: the case for relexification. In A. Highfield & A. Valdman (Eds.), Historicity and variation in Creole studies (pp. 52-78). Karoma. e Matras (2007)Matras, Y. (2007). The borrowability of grammatical categories. In Y. Matras & J. Sakel (Eds.), Grammatical borrowing in cross-linguistic perspective (pp. 31-74). Mouton de Gruyter., entre outras propostas. As hierarquias de acessibilidade de empréstimos citadas apresentam algumas distinções entre as classes mais propensas a receberem empréstimos. No entanto, esta pesquisa adota a hierarquia proposta por Matras (2009)Matras, Y. (2009). Language contact. Cambridge University Press.: ‘nomes, conjunções > verbos > marcadores de discurso > adjetivos > interjeições > advérbios > outras partículas, aposições > numerais > pronomes > afixos derivacionais > afixos flexionais’.
  • 10
    O sufixo -r final que marca o infinitivo dos verbos em Português não é aceito pelas regras fonotáticas do Nheengatú, uma vez que nesta língua não ocorrem sílabas com coda consonantal. Nos dialetos mais conservadores do Nheengatú, acrescenta-se uma vogal epentética após a consoante -r final, criando palavras que terminam em –CVRi, como a-puderi [a.pu.ˈde.ɾi] ‘eu posso’. Esta estratégia de adaptação fonológica, no entanto, não é adequada para os padrões rítmicos da língua, uma vez que cria palavras com acento pré-final. Na maioria dos dialetos, e particularmente entre os jovens, há apagamento do rótico, gerando a forma –CVj, [a.pu.ˈdej].
  • 11
    No original, “. . . the original verb, while remaining unmodified, is treated like a non-verb”.
  • 12
    Semanticamente, a partícula presizu é usada como modalidade deôntica que indica ‘necessidade’, da mesma forma que sua origem ‘é preciso’. Formalmente, presizu combina-se com qualquer pessoa do discurso – conforme ilustrado nos exemplos (25) e (28). Em termos funcionais, perspectiva adotada neste trabalho, a tendência é de que uma expressão, já gramaticalizada no Português como deôntica, mantenha-se como tal ao ser gramaticalizada em uma outra língua. Por isso, é difícil imaginar um cenário em que a construção ‘eu preciso’, 1ª pessoa do singular, transforme-se em uma construção deôntica no lugar de ‘é preciso’.
  • 13
    A partícula presizu é considerada partícula inicial nesse exemplo porque ela ocorre antes do predicado. Além disso, as conjunções, como o ape, são extrassentenciais e, por isso, ocorrem antes de toda a estrutura oracional.
  • 14
    Ritual de iniciação dos jovens Baré, Baniwa e Werekena. Para mais informações, ver o documentário “Baré: povo do rio” (Toffoli, 2015Toffoli, T. (2015). Baré: Povo do Rio [Documentário]. https://www.youtube.com/watch?v=AFLcfWtUXtA
    https://www.youtube.com/watch?v=AFLcfWtU...
    ).
  • 15
    É pertinente observar que testes de gramaticalidade, nos quais determinadas estruturas são expostas a falantes nativos de uma determinada língua com a finalidade de se distinguir estruturas gramaticais e agramaticais, são geralmente utilizados em contextos monolíngues. Em contextos plurilíngues, no entanto, em que o contato linguístico é visto como ‘marca de degenerescência’, os testes de gramaticalidade tendem a ser enviesados por um padrão de normatividade linguística.
  • 16
    No original, “. . . la modalité, c’est l’expression de l’attitude du locuteur par rapport au contenu proposionnel de son énoncé. . .”.
  • 17
    No original, “deontic modality, as in John must go to school, deals with the degree of force exerted on the subject of the sentence to perform an action”.
  • 18
    No original, “. . . an RQ differs from an OQ in that the answer is known to the Speaker and the Addressee, and they both also know that the other knows the answer as well. In terms of the requirement for an answer, RQs also differ from OQs in that they can have, but do not require an answer”.
  • 19
    No original, “[Epistemic modality] . . . . is the speaker’s assessment of probability and predictability. It is external to the content, being a part of the attitude taken up by the speaker”.
  • 20
    No original, “Epistemics are clausal-scope indicators of a speaker’s commitment to the truth of a proposition”.
  • 21
    Os dados a respeito dos usos de ‘será’ e ‘será que’ em Português provêm de intuição da autora como falante nativa.
  • 22
    No original, “. . . illocutionary meanings are conceived as distinct from, and only functionally-pragmatically related to epistemic meanings”.
  • 23
    No que concerne às questões com foco em constituinte, não é claro quando o clítico =pe foi substituído pela forma taa. Também não é claro o histórico de desenvolvimento da partícula taa. Pode-se inferir, no entanto, que se trata de uma forma Tupi-Guarani, porque apresenta cognatos em outras línguas da família, como o Tapirapé. Um estudo diacrônico detalhado das interrogativas do Tupinambá ao Nheengatú, todavia, ultrapassa os limites desta pesquisa.
  • 24
    No estágio atual deste trabalho, não foi possível comparar o desenvolvimento da questão polar do Nheengatú ao desenvolvimento desse tipo de construção em outras línguas. Trata-se de uma investigação pertinente que deverá ser realizada em pesquisas tipológicas futuras.

AGRADECIMENTOS

Agradecemos à Ana Vilacy Galucio e à equipe editorial do Boletim do Museu Paraense Emílio Goeldi. Ciências Humanas; à Marina Maria Silva Magalhães e à Leia de Jesus Silva, pela leitura da versão preliminar do texto; e aos pareceristas anônimos, pelas valiosas contribuições a este artigo.

  • Cruz, A., & Santos, B. H. L. P. (2021). ‘E do verbo fez-se’ partículas em Nheengatú. Boletim do Museu Paraense Emílio Goeldi. Ciências Humanas, 16(3), e20200052. doi: 10.1590/2178-2547-BGOELDI-2020-0052

ERRATA

  • Na página 1, onde se lia: “‘From verbs to’ particles in Nheengatú”
    Leia-se: “‘And the word became’ particles in Nheengatú”
    Onde se lia: “Studies on language contact allow us to observe borrowing hierarchies to the different words classes of a language”
    Leia-se: “Studies on language contact allow us to observe borrowing hierarchies with regard to the different word classes of a language”
    Onde se lia: “the Amazonian língua geral in contact with Portuguese since the 16th century, as particles of deontic modality”
    Leia-se: “the Amazonian língua geral in contact with Portuguese since the 16th century, such as particles of deontic modality”
    Onde se lia: “For this purpose, we first introduce the criteria for distinguishing”
    Leia-se: “For this purpose, we first introduce criteria for distinguishing”
    Onde se lia: “However, in the Nheengatú, we observe”
    Leia-se: “However, in Nheengatú, we observe”
    Boletim do Museu Paraense Emílio Goeldi. Ciências Humanas, 16(3), e2021-e003, 2021.

ABREVIATURAS

1 primeira pessoa NECESS deôntico de necessidade 2 segunda pessoa NEG negação 3 terceira pessoa NEG.ENUNC negação de enunciado A série ativa NMLZ nominalizador ABLAT ablativo OBRIG deôntico de obrigação AUM aumentativo PERL perlativo CC causativo comitativo PFV perfectivo COM comitativo PL plural CONJ conjunção PROSP PROSPectivo DEM demonstrativo PROT protestivo DUB dubitativo Q interrogativo EXIST existencial QFC questão focalizadora de constituinte FUT futuro QP questão polar FRUST frustrativo QR questão retórica IMP imperfectivo REFL reflexivo INDF indefinido REL relativo INTJ interjeição REP reportativo INTS intensificador R/R reflexivo e recíproco LK linker SG singular MIRAT mirativo SUB subordinador NA série não ativa    

REFERÊNCIAS

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  • Barbosa-Rodrigues, J. (1890). Poranduba amazonense, ou kochiyma-uara porandub, 1872-1887 Typ. de G. Leuzinger & Filhos. http://biblio.etnolinguistica.org/rodrigues_1890_poranduba
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    » http://etnolinguistica.wdfiles.com/local--files/tese%3Acruz-2011/cruz_2011_nheengatu.pdf
  • Cruz, A. (2015). The rise of number agreement in Nheengatú. Boletim do Museu Paraense Emílio Goeldi. Ciências Humanas, 10(2), 419-439. https://doi.org/10.1590/1981-81222015000200011
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Editado por

Responsabilidade editorial: Ana Vilacy Galucio

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    01 Dez 2021
  • Data do Fascículo
    2021

Histórico

  • Recebido
    05 Jun 2020
  • Aceito
    04 Fev 2021
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