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Uma comparação gramatical, fonológica e lexical entre as famílias Guaikurú, Mataco e Bororo: um caso de difusão areal?

A grammatical, phonological and lexical comparison between the Waikurúan, Matacoan and Bororoan families: a case of areal diffusion?

Resumos

O objetivo desse artigo é fazer uma comparação entre as famílias lingüísticas Guaikurú, Bororo e Mataco com base em (i) uma comparação do morfema relacional em Guaikurú e Bororo; (ii) uma comparação do uso de mecanismos de ar glotal na implementação de plosivas desvozeadas em Kadiwéu (Guaikurú) e Bororo; (iii) a comparação de 350 itens entre Guaikurú e Mataco e 138 itens entre Guaikurú e Bororo. A evidência sugere que essas famílias estiveram em contato intenso, mas um relacionamento genético ainda parece incerto.

Chaco; Morfema relacional; Lingüística areal


This paper aims at a comparison of the Waikurúan, Bororoan and Matacoan language families on the basis of (i) the comparison of the relational morpheme in Waikurúan and Bororo; (ii) the comparison of the use of glottal air flow mechanisms when implementing voiceless plosives in Kadiwéu (Waikurúan) and Bororo (Bororoan); and (iii) the comparison of 350 items in Waikurúan and Matacoan and 138 items in Waikurúan and Bororoan. The evidence suggests that these families have been in intense contact, but a genetic relationship between them seems to be at least uncertain.

Chaco; Relational morpheme; Areal linguistics


ARTIGOS

Uma comparação gramatical, fonológica e lexical entre as famílias Guaikurú, Mataco e Bororo: um caso de difusão areal?1 1 Os dados deste trabalho são provenientes de trabalho de campo: Bororo, Rafael Nonato; Kadiwéu, Filomena Sandalo; Umutina, Stella Telles e Jaqueline França; outras línguas Guaikurú e Mataco, Verónica Grondona e Lyle Campbell. Este trabalho está inserido no projeto SOAS MDP0048, Documentation of Chorote, Nivaclé and Kadiwéu: three of the least known and most endangered languages of the Chaco.

A grammatical, phonological and lexical comparison between the Waikurúan, Matacoan and Bororoan families: a case of areal diffusion?

Rafael NonatoI; Filomena SandaloII

IUniversidade Estadual de Campinas. Instituto de Estudos da Linguagem. Departamento de Lingüística. Campinas, São Paulo, Brasil (rafaeln@gmail.com)

IIUniversidade Estadual de Campinas. Instituto de Estudos da Linguagem. Departamento de Lingüística. Campinas, São Paulo, Brasil (fsandalo@gmail.com)

RESUMO

O objetivo desse artigo é fazer uma comparação entre as famílias lingüísticas Guaikurú, Bororo e Mataco com base em (i) uma comparação do morfema relacional em Guaikurú e Bororo; (ii) uma comparação do uso de mecanismos de ar glotal na implementação de plosivas desvozeadas em Kadiwéu (Guaikurú) e Bororo; (iii) a comparação de 350 itens entre Guaikurú e Mataco e 138 itens entre Guaikurú e Bororo. A evidência sugere que essas famílias estiveram em contato intenso, mas um relacionamento genético ainda parece incerto.

Palavras-chave: Chaco. Morfema relacional. Lingüística areal.

ABSTRACT

This paper aims at a comparison of the Waikurúan, Bororoan and Matacoan language families on the basis of (i) the comparison of the relational morpheme in Waikurúan and Bororo; (ii) the comparison of the use of glottal air flow mechanisms when implementing voiceless plosives in Kadiwéu (Waikurúan) and Bororo (Bororoan); and (iii) the comparison of 350 items in Waikurúan and Matacoan and 138 items in Waikurúan and Bororoan. The evidence suggests that these families have been in intense contact, but a genetic relationship between them seems to be at least uncertain.

Keywords: Chaco. Relational morpheme. Areal linguistics.

INTRODUÇÃO

Este trabalho tem como objetivo fazer uma comparação lingüística inicial entre as famílias Guaikurú, Bororo e Mataco. As línguas da família Mataco e Guaikurú são freqüentemente apontadas como relacionadas (Kaufman, 1994; Viegas Barros, 1993), mas uma relação genética nunca foi atestada. Além disso, similaridades lingüísticas e culturais existem entre as línguas Guaikurú (particularmente Kadiwéu), Guató e Bororo, ambas classificadas como Macro-Jê (ver Levi-Strauss, 1955; Rodrigues, 1983; Steward, 1963; Sandalo, 2002), similaridades as quais podem ser devidas à relação genética ou à difusão lingüística. Nenhuma destas hipóteses pôde ser verificada porque quase nenhum trabalho histórico foi realizado com as línguas do Chaco. Os Mbayás/Kadiwéus foram cultural e politicamente dominantes na área (cf. Mason, 1963), o que pode ter deixado um impacto lingüístico nas outras línguas da região. Todas estas línguas são faladas na região dominada pelos Mbayás, dos quais os Kadiwéus descendem, ou nas proximidades desta região, como pode ser verificado na delimitação da nação Mbayá estabelecida por Sánchez Labrador (1760, p. 7):

La Nacion está muy estendida, y poblada de gente. Se há enseñoreado de la tierra por centenares de leguas. Desde el Tropico de Capricornio, es decir, desde los 23º grados, y medio de latitud Austral, hasta los 19º grados de la misma hacia el Equador, llenan la tierra por la orilla oriental, y parte por la occidental del famoso rio Paraguay.

A família Bororo conta com as seguintes línguas: Bororo, Umutina e Otuké (Campbell, 1997). O Bororo é a última língua viva da família Bororo. Kadiwéu é a única língua sobrevivente do tronco Guaikurú da família Guaikurú (Ceria; Sandalo, 1995) e é falada no Brasil; Mocoví, Pilagá, Toba - faladas na Argentina - e a língua extinta Abipón constituem o tronco Sul da família Guaikurú (Ceria; Sandalo, 1995). Chorote e Nivaclé (Chulupí ou Ashlushlay), juntamente com Maká e Wichí, constituem a família Mataco (cf. Tovar, 1964).

Comparamos, neste trabalho, 350 itens lexicais entre Mataco e Guaikurú e 138 entre Guaikurú e Bororo. Embora a comparação entre Mataco e Guaikurú tenha levado em conta mais itens, em termos percentuais ela se mostrou menos expressiva que a comparação entre Guaikurú e Bororo (4 contra 20%). Portanto, neste primeiro momento, procuramos estabelecer mais relações entre traços dos sistemas gramatical e fonológico das famílias Guaikurú e Bororo.

Na seção 'Similaridades gramaticais', comparamos o morfema relacional nas famílias Guaikurú e Bororo, que apresentam similaridades reconstruíveis a um mesmo sistema de maneira trivial. Em 'Comparação dos mecanismos de ar', analisamos o emprego de mecanismos de ar glotal na implementação das oclusivas surdas em Kadiwéu e Bororo; essa característica do sistema fonético destas línguas é notável, dada a sua baixa ocorrência nas línguas da América do Sul. Na seção 'Comparação lexical', comparamos itens lexicais. A seção 'Considerações finais' apresenta nossas considerações a respeito da comparação realizada.

SIMILARIDADES GRAMATICAIS

As línguas Guaikurú apresentam morfemas de concordância para sujeito e objeto. Apresentamos os fatos a partir da língua Kadiwéu. Kadiwéu apresenta concordância com o sujeito e com o objeto direto através de prefixos. Mas há apenas um lugar para a marca de concordância e, assim, prefixos de sujeito e de objeto estão em distribuição complementar, como pode ser notado nos exemplos de (1) a (9). Há uma hierarquia de pessoa, 2 > 1 > 3, que define qual argumento deve ser marcado morfologicamente. Assim, se o objeto for de terceira pessoa, o verbo concorda com o sujeito, exemplos de (1) a (4).

(1) jema: j-ema:n 1SUJ-amar/querer 'Eu o/a amo.' (2) jema:naGa j-ema:n-Ga 1SUJ-amar/querer-pl 'Nós o/a amamos.' (3) ema:ni a-ema:n-i 2SUJ-amar/querer-pl 'Vocês o/a amam.' (4) yema: y-ema:n 3SUJ-amar/querer 'Ele/ela o/a ama.'

Mas o verbo concorda com o objeto se o sujeito for de terceira pessoa e o objeto de segunda ou primeira pessoa, exemplos de (5) a (7):

(5) id:ema: i-d:-ema:n 1OBJ-relacional-amar/querer 'Ele/ela me ama.' (6) God:ema: Go-d:-eman 1plOBJ-relacional-amar/querer 'Ele/ela nos ama.' (7) Gad:ema:ni Ga-d:-eman-i 2OBJ-relacional-amar/querer-pl2 2 A segunda pessoa é sempre marcada com um circunfixo cuja parte final é um -i, que é glossado como plural por ocupar a posição de outros pluralizadores no Kadiwéu. Assim, trata-se de uma língua com funcionamento similar ao do inglês em relação à segunda pessoa, isto é, não existe uma forma morfológica de segunda pessoa singular. 'Ele/ela ama você.'

Quando não houver nenhuma terceira pessoa envolvida, isto é, ambos os argumentos são primeira ou segunda pessoa, o argumento de segunda pessoa é marcado (2 >1), exemplos (8) e (9).

(8) Gad:ema:ni Ga-d:-eman-i 2OBJ-relacional-amar/querer-pl 'Eu amo você.' (9) ad:ema:ni a-d:-eman-i 2SUJ-relacional-amar/querer-pl 'Você me ama.'

Verbos intransitivos (inacusativos, reflexivos, antipassivos e verbos que sofreram incorporação) são marcados por um conjunto diferente de marcadores de sujeito3 3 Verbos intransitivos inergativos são marcados como verbos transitivos. Este padrão é atestado também em línguas como o Basco e o Georgiano. Note que os verbos inergativos são analisados como lexicalmente transitivos por Hale e Keyser (1993), o que pode explicar a existência deste padrão de marcação. , conforme exemplos de (10) a (12):

(10) id:acotaGa i-d:-acodi-Ga 1SUJ-relacional-descer-pl 'Nós descemos.' (11) d:apiqo Ø-d:-apiqo 4 4 Um verbo intransitivo sempre concorda com o sujeito e, portanto, postulamos a existência de um morfema Ø para sujeito de terceira pessoa intransitiva. 3SUJ-relacional-esquentar 'Está quente.' (12) inemata i-n-ema:n-t-e-wa 1SUJ-antipassivo-amar/querer-EPN-3 dativo 'Eu o amo (antipassivo).'

Em suma, Kadiwéu tem um padrão tripartido de marcação de concordância através de prefixos. A Tabela 1 apresenta os marcadores de sujeito e de objeto do Kadiwéu.

É crucial observar que quando o objeto é de primeira ou segunda pessoa, além de o verbo concordar com o objeto, este ocorre obrigatoriamente em posição pré-verbal e o verbo aparece obrigatoriamente marcado pelo morfema d:-, rotulado de relacional pela literatura indigenista brasileira. Compare os exemplos abaixo: em (13) o objeto precede o verbo e o relacional ocorre, e em (14), o objeto segue o verbo e o relacional não ocorre.

(13) Goti aqa:m:i Gad:ema:ni Goti aqa:m-i Ga-d:-ema:n-i Goti 2PRONOME-pl 2OBJ-relacional-amar/querer-pl 'Goti ama você.' (14) Goti yema Ekode Goti y-ema:n Ekode Goti 1SUJ -amar/querer Ekode 'Goti ama Ekode.'

Mencionamos anteriormente que o verbo sempre concorda com um argumento de segunda pessoa. Note que mesmo se o argumento em concordância for sujeito, se houver um argumento interno de primeira ou segunda pessoa, o relacional é obrigatório e o objeto é preposto, como exposto nos exemplos (15) e (16).

(15) e: aqa:mi Gad:ema:ni e: aqa:mi Ga-d:-ema:n-i 1PRONOME 2PRONOME 2OBJ-relacional-amar/querer-pl 'Eu amo você.' (16) aqa:mi e: ad:ema:ni aqa:mi e: a-d:-ema:n-i 2PRONOME 1PRONOME 2SUJ-relacional-amar/querer-pl 'Você me ama.'

O relacional ocorre também com verbos inacusativos - ver exemplos (10) e (11) - e, nestes casos, também o argumento paciente deve ocorrer em posição pré-verbal. Dado a ocorrência de d:- com diferentes tipos de morfemas, postulamos que se trata realmente de um morfema independente no Kadiwéu. Este morfema indica o deslocamento de um argumento paciente para uma posição à esquerda do verbo.

Evidência adicional vem do fato de o relacional não ocorrer com verbos inergativos e antipassivizados, como mostram os exemplos (17) e (18):

(17) e: jigaa e: j-i-ga:n 1PRONOME 1SUJ-EPN-cantar 'Eu cantei.' (18) e: inema:taGawa e: i-n-ema:n-t-aGa-wa 1PRONOME 1SUJ-antipassiva-amar-EPN-2-dativo 'Eu amo você (antipassivo).'

Mas ocorre com verbos reflexivos e médios, que contam com um argumento paciente deslocado para a posição inicial, exemplos (19) e (20):

(19) e: inidema: e: i-n-d:-ema:n 1PRONOME 1SUJ-refl-relacional-amar 'Eu me amo.' (20) waka dajigo waka Ø-d-ajigo vaca 3SUJ-relacional-dar 'A vaca foi doada.'

Há vestígios da existência do relacional em todas as línguas da família Guaikurú, como pode ser notado na Tabela 2, embora reinterpretados como parte do sistema de concordância nas outras línguas Guaikurú. Note também que, nesta tabela, acrescentamos dados da língua Bororo, uma vez que segue na próxima seção uma discussão sobre estes dados. Vamos argumentar que, também nesta língua, um morfema relacional pode ser reconstruído.

A história de contato lingüístico nas Américas antes do século XVI se distingue bastante da européia. Enquanto no velho mundo foi sobretudo em contextos de isolamento que as línguas se diferenciaram, nas Américas, o contato profícuo entre os povos gerou um quadro lingüístico que dificulta a classificação das línguas por famílias. Essas situações, em que línguas não aparentadas faladas em áreas contíguas compartilham traços lexicais, morfológicos e sintáticos, se deixam melhor apreender pela utilização do conceito de área lingüística (cf. Campbell, 1997). Entre os traços mais estudados nas línguas brasileiras está o relacional. Como esse morfema se encontra em línguas de diferentes famílias e troncos, constitui evidência para a delimitação de uma área lingüística.

A seguir, propomos uma reconstrução interna para o morfema relacional da língua Bororo (família Bororo, tronco Macro-Jê, cf. Rodrigues, 1986), em que reduzimos diacronicamente a variedade alomorfêmica atual a um único morfema, foneticamente caracterizável como uma oclusiva dental surda, e lhe atribuímos um funcionamento original similar ao do Kadiwéu. Essa caracterização, a par das evidências históricas de contato (cf. Métraux, 1945, 1963), permite supor que as línguas de ambas famílias formaram uma área lingüística com relação a esse traço.

Reconstrução do relacional em Bororo

Sistema sincrônico

A Tabela 3 compreende os prefixos de concordância de pessoa e número em Bororo. Esse mesmo conjunto de prefixos é usado na concordância do verbo com o seu objeto, do nome com o seu possuidor e da posposição com o seu argumento. É importante notar que, sincronicamente, Bororo, assim como as línguas da família Guaikurú com exceção de Kadiwéu, não tem hierarquia de pessoa. O relacional em Bororo, se tomarmos o sistema do Kadiwéu como o mais conservador, constitui-se em um resquício de um sistema anterior.

Com a exceção do prefixo de terceira pessoa singular, de que não trataremos neste trabalho, todos os outros apresentam duas séries de alomorfes. A primeira série é afixada a raízes que começam com consoante (i- mago); a segunda, a raízes que começam com vogal (it- aregodu). É a consoante final dos morfemas dessa última série que analisamos como o relacional.

Os prefixos cujos núcleos fonéticos são vogais posteriores (grupo A em itálico na Tabela 3) têm na segunda série apenas um alomorfe. Os prefixos cujos núcleos fonéticos são vogais anteriores (grupo B em negrito na Tabela 3) têm três alomorfes na segunda série.

Os alomorfes da segunda série dos prefixos do grupo B se distribuem da seguinte forma: os terminados em coronais precedem raízes iniciadas com vogal não-alta (it- aregodu, in- o) e os terminados em velar são afixados a raízes iniciadas com vogal alta (ik-ie). Note que a consoante relacional que precede raízes começadas com vogal não-alta pode ser uma coronal nasal (in-) ou uma coronal oral (it-). A escolha é determinada lexicalmente (it- aregodu, in- o).

Evolução diacrônica

Se postulamos como origem comum dos alomorfes relacionais uma oclusiva coronal, podemos dar conta, através de regras naturais de mudança, da variedade alomorfêmica atual da língua. Mostremos, portanto, através de exemplos, como essas mudanças sucessivas moldaram o sistema de prefixos da língua. As tabelas contêm, na primeira linha, um morfema do grupo B; na segunda, um morfema do grupo A; e, na terceira, um outro morfema do grupo B, representante de um grupo de morfemas em que acontece uma variação entre [t] e [d].

Postulamos a situação inicial descrita na Tabela 4, em que não haveria ainda qualquer alomorfia.

Uma primeira mudança seria a simplificação dos clusters consonantais, o que teria acontecido em um momento em que a língua definia as suas atuais restrições silábicas, de tipo silábico (Tabela 5).

Em seguida, o relacional assimila a posterioridade dos prefixos cujo núcleo é uma vogal posterior (Tabela 6).

Além desse, ocorre outro processo de assimilação, da nasalidade da vogal inicial das raízes (Tabela 7). As oclusivas posteriores não participam desse processo devido a não existir uma nasal velar na língua.

Em um momento seguinte, desaparecem as vogais nasais da língua (Tabela 8), mas permanece o relacional nasal, que é reanalisado como uma variação lexicalmente determinada.

Agora, inicia-se na língua uma tendência não mais à assimilação, mas à dissimilação. Diante de vogais anteriores, o relacional torna-se posterior (Tabela 9).

O último fenômeno, esse ainda produtivo na língua, é a dissimilação de surdez em seqüências de obstruintes. A segunda obstruinte surda se vozeia (Tabela 10).

Claro esteja que essa sucessão de regras representa estados sucessivos da língua, não um ordenamento de regras sincronicamente ativo. Embora possamos supor um certo espelhamento entre as regras diacrônicas e as sincrônicas, o desaparecimento de certos traços superficiais (como a nasalidades nas vogais) força uma reinterpretação no momento da aquisição das regras fonológicas.

A idéia da assimilação pelo relacional da nasalidade de uma vogal que mais tarde perderia esse traço é de Rodrigues (1993).

Em suma, postulamos uma reconstrução do morfema relacional para o proto-Guaikurú, que seria de uma oclusiva coronal sonora longa (*d:-). Além disso, hipotetizamos o funcionamento de marcador de deslocamento do objeto para uma posição pré-verbal, ainda ativo em Kadiwéu (cf. Sandalo, 2004), uma língua da família Guaikurú, para o proto-Guaikurú. Hipotetizamos, ainda, que este morfema pode ser reconstruído também para o Bororo com um funcionamento original similar ao Kadiwéu. Neste sentido, acreditamos que, em algum momento, a posição do argumento deve ter se fixado à esquerda no Bororo e o relacional reinterpretado como parte do morfema de pessoa.

COMPARAÇÃO DOS MECANISMOS DE AR

González (2003), em um levantamento com 139 línguas da América do Sul, detectou que apenas 12% incluem ejetivas no seu inventário fonológico, sendo que três são línguas Mataco, que contrastam fonologicamente oclusivas surdas e ejetivas. Embora não haja contraste fonológico entre ejetivas e oclusivas surdas em Guaikurú e Bororo, nestas línguas todas as oclusivas surdas são implementadas como ejetivas. A presença de ejetivas é um traço raro na América do Sul; é, entretanto, um traço comum às línguas que estamos estudando.

As plosivas ejetivas se caracterizam como classe de sons pela estratégia articulatória empregada na construção de pressão dentro da cavidade bucal: paralelamente à obstrução oral, ocorre o fechamento da glote; após isso, a laringe é elevada, diminuindo o volume da cavidade oral e, conseqüentemente, aumentando a pressão interna. Finalmente, a obstrução oral é liberada e, em seguida, a oclusão glotal. Um exemplo de plosiva implementada com essa estratégia no Kadiwéu é o segmento [q] da palavra digiqa 'pedir' (Figura 1).


As ejetivas que encontramos em palavras do Bororo são atípicas por não apresentarem nem uma soltura tão ruidosa, nem um voice onset time (VOT) tão longo quanto as ejetivas prototípicas das línguas andinas. No entanto, os indícios de fechamento e abertura glotal nas extremidades de tais segmentos proíbem adotar a hipótese de que se tenha aí um mecanismo de ar pulmonar. Ora, é mais plausível imaginar que nesses casos tenhamos encontrado ejetivas "fracas", que se caracterizem por uma menor elevação laríngea e por uma coordenação temporal específica entre os movimentos de soltura das duas oclusões.

Na palavra erit'udo 'ir em ajuda de alguém', encontramos um desses segmentos, [t']. Vemos, antes de [t'], uma forma de onda irregular e aperiódica que pode ser atribuída ao gesto de oclusão glotal (Figura 2). É possível perceber que a vogal seguinte ao segmento começa laringalizada (Figura 3), o que se atribui ao gesto adiantado de abertura glotal. Vemos nessa palavra um bom exemplo da classe de som atípico em que estamos interessados.



Nos outros pontos de articulação que não o uvular, as oclusivas surdas do Kadiwéu são igualmente implementadas como uma ejetiva "fraca".

Em termos articulatórios, a produção de uma oclusiva surda com um mecanismo de ar pulmonar exige menos esforço que a produção de uma oclusiva ejetiva. Isso dá conta do fato de que esses são segmentos raros e torna improvável o desenvolvimento de ejetivas a partir de segmentos pulmonares simples, de forma que é plausível o fenômeno, tanto em Kadiwéu quanto em Bororo, ter a origem num sistema diacronicamente reconstruível que contrastava oclusivas surdas com ejetivas, como nas línguas da família Mataco. Dado que em Bororo e Kadiwéu esse contraste não existe, pode-se hipotetizar que sua perda implicou o enfraquecimento das ejetivas, que, no entanto, subsistiria como vestígios do antigo sistema nas duas línguas.

COMPARAÇÃO LEXICAL

Comparamos 350 itens lexicais entre Mataco e Guaikurú e 138 entre Guaikurú e Bororo (Tabelas 11 e 12) e discutiremos algumas das correspondências encontradas. É importante notar que, embora seja bastante comum apontar uma possível relação genética entre Mataco e Guaikurú (Kaufman, 1994), encontramos um percentual maior de cognatos entre Bororo e Guaikurú (20 contra 4%). De qualquer forma, vale observar que o número de cognatos encontrados é bastante pequeno para ambos os pares e estatisticamente irrelevante para o par Mataco-Guaikurú. Guaikurú se refere a uma reconstrução feita em Ceria e Sandalo (1995).

Os possíveis cognatos são os seguintes. Note que aqueles marcados com negrito são os que apresentam correspondências menos atribuíveis a fatores aleatórios. A tabela de possíveis cognatos (Tabela 11) é seguida por uma tabela de correspondências com as respectivas ocorrências (Tabela 12). Como os dados são poucos, há poucas ocorrências para cada correspondência. A correspondência w:k:k foi a que mais se repetiu, embora tenha ocorrido apenas três vezes. Note, também, que os cognatos são bastante próximos e, assim, a comparação lexical feita neste trabalho sugere contato, ao contrário de uma relação genética distante. Isso é verdadeiro para todas as famílias comparadas. Finalmente, observe que, ainda corroborando com a hipótese de contato, alguns dos possíveis cognatos são palavras facilmente emprestáveis, relacionadas ao comércio, como exemplo, as palavras 'caminho/caminha', 'estrada', 'canoa'.

CONSIDERAÇÕES FINAIS

É interessante notar que a comparação lexical entre Bororo e Kadiwéu resulta que as línguas não são relacionadas geneticamente. As palavras semelhantes levam-nos a crer sobretudo na difusão por empréstimo. No entanto, a comparação do morfema relacional tem sido usada, entre outras evidências mais fortes, para estabelecer relações genéticas entre famílias sul-americanas (Rodrigues, 1985). A presença do relacional na família Guaikurú, em conjunção com as evidências que viemos apresentar, de que o relacional em Bororo e nas línguas da família Guaikurú pode ter uma origem comum, aponta a necessidade de mais estudos areais e histórico-comparativos na região do Chaco.

ABREVIATURAS

As seguintes abreviações foram usadas para os exemplos de Kadiwéu:

1 1ª pessoa SUJ sujeito 2 2ª pessoa OBJ objeto 3 3ª pessoa OBL argumento oblíquo COMP complementizador pl plural NEG negativo sg singular.

Note que Kadiwéu não admite hiato; esta língua conta com a epêntese de [t] para evitar a ocorrência de hiato. Um [t] epentético é glossado de EPN. Os dados estão transcritos fonologicamente de acordo com o alfabeto IPA, exceto para os seguintes símbolos: j corresponde a uma africada vozeada e c a uma africada surda.

Recebido: 04/07/2006

Aprovado: 29/06/2007

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  • 1
    Os dados deste trabalho são provenientes de trabalho de campo: Bororo, Rafael Nonato; Kadiwéu, Filomena Sandalo; Umutina, Stella Telles e Jaqueline França; outras línguas Guaikurú e Mataco, Verónica Grondona e Lyle Campbell. Este trabalho está inserido no projeto SOAS MDP0048,
    Documentation of Chorote, Nivaclé and Kadiwéu: three of the least known and most endangered languages of the Chaco.
  • 2
    A segunda pessoa é sempre marcada com um circunfixo cuja parte final é um
    -i, que é glossado como plural por ocupar a posição de outros pluralizadores no Kadiwéu. Assim, trata-se de uma língua com funcionamento similar ao do inglês em relação à segunda pessoa, isto é, não existe uma forma morfológica de segunda pessoa singular.
  • 3
    Verbos intransitivos inergativos são marcados como verbos transitivos. Este padrão é atestado também em línguas como o Basco e o Georgiano. Note que os verbos inergativos são analisados como lexicalmente transitivos por Hale e Keyser (1993), o que pode explicar a existência deste padrão de marcação.
  • 4
    Um verbo intransitivo sempre concorda com o sujeito e, portanto, postulamos a existência de um morfema
    Ø para sujeito de terceira pessoa intransitiva.
  • 5
    As palavras em estágios anteriores da língua Bororo que, entretanto, correspondem sem mudanças a palavras do estágio atual não estão marcadas com um *. Apenas as palavras que sofreram mudanças é que estão marcadas com *.
  • Datas de Publicação

    • Publicação nesta coleção
      16 Nov 2010
    • Data do Fascículo
      Ago 2007

    Histórico

    • Aceito
      29 Jun 2007
    • Recebido
      04 Jul 2006
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