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A inserção da obra “Euclides da Cunha e o Paraíso Perdido”, de Leandro Tocantins, na imprensa carioca nos anos de 1960

The insertion of Leandro Tocantins’s “Euclides da Cunha e o Paraíso Perdido” in Rio de Janeiro Press in the 1960s

Resumo

Este artigo analisa a inserção da obra “Euclides da Cunha e o Paraíso Perdido”, de Leandro Tocantins, na imprensa carioca nos anos de 1960. A fundamentação teórica levou em conta, por um lado, os estudos da recepção e da função do autor em nossa contemporaneidade; por outro, os estudos sobre as relações entre literatura e cordialidade na cultura brasileira. Para sustentar essa problematização, foram utilizados textos de Jacques Leenhardt, Roger Chartier, João Cezar de Castro Rocha e Flora Süssekind. A análise operada permitiu observar que a recepção da obra “Euclides da Cunha e o Paraíso Perdido” no meio jornalístico do Rio de Janeiro sofreu influências decisivas da cordialidade que jornalistas e críticos dispensaram ao autor e ao político Leandro Tocantins nos anos de 1960.

Palavras-chave
Literatura; Recepção; Imprensa carioca; Integração da Amazônia

Abstract

In this article we analyze Leandro Tocantins’s “Euclides da Cunha e o Paraíso Perdido” [“Euclides da Cunha and the Paradise Lost”], was received by the in Rio de Janeiro press in the 1960s. We take into account the reception studies and the author’s function in our contemporary world. Studies on the relationship between literature and cordiality in Brazilian culture also support our work. Thus, scholars such as Jacques Leenhardt, Roger Chartier, João Cezar de Castro Rocha and Flora Süssekind are essential to understand and explore the issue. Analysis allowed us to observe that the reception of Tocantins’s “Euclides da Cunha e o Paraíso Perdido” in Rio de Janeiro press received decisive influence from the cordiality with which journalists and critics treated the author and politician Leandro Tocantins in the 1960s.

Keywords
Literature; Reception studies; Rio press; Amazonian integration

INTRODUÇÃO

Desde o incio dos anos de 1960, os nomes do escritor Euclides da Cunha e do historiador Leandro Tocantins haviam sido relacionados pela crtica no que se refere à problemática amazônica. Entretanto, com a obra “Euclides da Cunha e o Paraso Perdido”, editada em 1966 e reeditada em 1968, esse encontro foi selado por meio da apropriação singular que Leandro Tocantins realizou da figura do autor fluminense à frente da Expedição de Reconhecimento do Alto Purus, sobretudo ao realizar a interpretação das cartas e dos relatórios produzidos no transcurso dessa expedição amazônica, em incios do sculo XX.

Essa apropriação singular levou jornalistas e crticos da imprensa carioca, nos anos de 1960, a considerarem esta obra e o seu escritor como reveladores de um Euclides amazônico, precursor da luta pela integração da Amazônia ao restante do pas, desde o momento em que aceitou o convite do Chanceler Barão do Rio Branco para o comando da Expedição de Reconhecimento do Alto Purus. Tal forma de recepção por parte de jornalistas e de crticos em relação ao livro, como será visto, não deixou de sofrer os efeitos que a representação de Leandro Tocantins possuiu como poltico a serviço dos interesses do Estado brasileiro na Amazônia junto à imprensa do Rio de Janeiro nos anos de 1960.

O que está em jogo, no presente artigo, não necessariamente a análise da recepção de Leandro Tocantins sobre Euclides da Cunha, mas sim a abordagem da recepção por parte da imprensa carioca em relação à obra “Euclides da Cunha e o Paraso Perdido” e de seu autor. Esta pesquisa necessitou considerar, por um lado, os estudos da recepção e da função do autor em nossa contemporaneidade e, por outro, os estudos sobre as relações entre literatura e cordialidade na cultura brasileira. Para sustentar essa perspectiva teórica, foram utilizados textos de Leenhardt (1997)LEENHARDT, Jacques. Teoria da comunicação e teoria da recepção. Anos 90, Porto Alegre, v. 5, n. 8, p. 7-13, 1997., Chartier (2012)CHARTIER, Roger. O que é um autor? Revisão de uma genealogia. São Carlos: EdUFSCAR, 2012., Rocha (1998)ROCHA, João Cezar de Castro. Literatura e cordialidade: o público e o privado na cultura brasileira. Rio de Janeiro: EdUERJ, 1998. e Süssekind (1993)SÜSSEKIND, Flora. Papéis colados. Rio de Janeiro: UFRJ, 1993..

Chartier (2012)CHARTIER, Roger. O que é um autor? Revisão de uma genealogia. São Carlos: EdUFSCAR, 2012., em sua obra “O que um autor? Revisão de uma genealogia”, apresenta importante discussão no âmbito da aliança entre a crtica textual e a história cultural, extremamente profcua para a pesquisa em questão, principalmente por identificar certos conjuntos de variações que envolvem os estudos dos textos literários e da função do autor; conjuntos que

[...] designam a mobilidade, a descontinuidade das categorias de atribuição, de designação e de classificação das obras, categorias estas que permitem produzir ou compreender a cultura escrita e, obviamente, entre elas, a presença do nome próprio, do nome do autor [...] (Chartier, 2012CHARTIER, Roger. O que é um autor? Revisão de uma genealogia. São Carlos: EdUFSCAR, 2012., p. 24-28).

De acordo com Chartier (2012, p. 27)CHARTIER, Roger. O que é um autor? Revisão de uma genealogia. São Carlos: EdUFSCAR, 2012., o autor deve, antes, ser definido pela função variável e complexa que possui no âmbito dos discursos, ao invs de o ser pela constatação de sua existência como indivduo: “[...] a função autor caracterstica do modo de existência, de circulação e de funcionamento de certos discursos no interior de uma sociedade”.

Dessa forma, a função autor constitui-se por “[...] operações complexas que relacionam a unidade e a coerência de alguns discursos a um dado sujeito [...]”, as quais realizam a classificação de certos enunciados, capazes de promover uma separação “[...] entre o nome do autor e o indivduo real, entre uma categoria do discurso e o eu subjetivo” (Chartier, 2012CHARTIER, Roger. O que é um autor? Revisão de uma genealogia. São Carlos: EdUFSCAR, 2012., p. 28-29).

Esse princpio de identificação a partir da função discursiva apontaria, entretanto, para um processo de instabilidade na definição autoral das obras, já que tanto a linguagem como as tradições ligadas à determinada função discursiva promoveriam um processo de ‘desindividualização’ do autor e do sujeito emprico subjetivo ligado ele:

Essa dupla desinvidualização do autor com a remissão, de um lado, às formas herdadas dos gêneros, das convenções, das tradições e, de outro, à própria linguagem, ao que Foucault [...] chamou de “o pensamento de fora”, ou seja, esse transbordamento, essa instabilidade, essa pluralidade da significação que remetida direta, e exclusivamente, ao funcionamento automático e impessoal da linguagem na obra (Chartier, 2012CHARTIER, Roger. O que é um autor? Revisão de uma genealogia. São Carlos: EdUFSCAR, 2012., p. 33-34).

Se, por um lado, essa discussão teórica de Chartier (2012)CHARTIER, Roger. O que é um autor? Revisão de uma genealogia. São Carlos: EdUFSCAR, 2012. norteou determinada percepção deste estudo sobre as relações entre o discurso presente em “Euclides da Cunha e o Paraso Perdido” e a construção de seu autor, por outro, ver-se-á que a recepção desta obra e de seu autor – no contexto em questão – relacionou-se intimamente à representação que o cidadão e o homem poltico Leandro Tocantins possuram na imprensa nos anos de 1960.

Com a publicação de Leenhardt (1997)LEENHARDT, Jacques. Teoria da comunicação e teoria da recepção. Anos 90, Porto Alegre, v. 5, n. 8, p. 7-13, 1997., tornou-se mais evidente a operacionalização daquilo que Chartier (2012)CHARTIER, Roger. O que é um autor? Revisão de uma genealogia. São Carlos: EdUFSCAR, 2012. designa como os sentidos, os quais definem, por meio de determinada função discursiva, a constituição de um autor, sobretudo no que se refere à discussão de Leenhardt (1997)LEENHARDT, Jacques. Teoria da comunicação e teoria da recepção. Anos 90, Porto Alegre, v. 5, n. 8, p. 7-13, 1997. sobre a apropriação da obra literária em termos sociológicos, vista como um objeto esttico. Esta apropriação capaz de produzir uma srie de significados para a obra literária diante de seu tempo, mediante determinadas aspirações, valores, posições polticas e interesses individuais ou de grupos sobre ela, enquanto um smbolo sensvel.

De acordo com Leenhardt (1997, p. 9-10)LEENHARDT, Jacques. Teoria da comunicação e teoria da recepção. Anos 90, Porto Alegre, v. 5, n. 8, p. 7-13, 1997.:

[...] Jan Mukarovsky, figura essencial no crculo de Praga, já indicava em 1966 que a obra literária, enquanto um fato semiológico, em parte um signo material polissêmico e, em outra, uma concretização ou interpretação desse signo pela consciência coletiva dos membros de um grupo social particular. Ele chamava a obra concretizada, ou interpretada, “de objeto esttico”, cujo conteúdo semântico corresponde ao sistema de valores e ao sistema normativo da sociedade que o acolheu [...].

No caso em questão, trata-se da percepção sobre como o diálogo com Leenhardt (1997)LEENHARDT, Jacques. Teoria da comunicação e teoria da recepção. Anos 90, Porto Alegre, v. 5, n. 8, p. 7-13, 1997. pode apontar desdobramentos de sentidos a partir da recepção do Euclides amazônico, de Leandro Tocantins, na obra em foco.

O diálogo teórico com Rocha (1998)ROCHA, João Cezar de Castro. Literatura e cordialidade: o público e o privado na cultura brasileira. Rio de Janeiro: EdUERJ, 1998., por meio de “Literatura e cordialidade”, possibilitou a compreensão do significado da inserção da obra em foco no contexto da cultura brasileira, ou seja, no âmbito do que ele denomina de uma sociedade literária composta por homens cordiais.

Essa apreensão fez com que fossem percebidos os limites da teoria de Chartier (2012)CHARTIER, Roger. O que é um autor? Revisão de uma genealogia. São Carlos: EdUFSCAR, 2012. sobre a função autor, já que, em nossa sociedade, o sujeito emprico, o cidadão ligado ao autor literário, exerce uma influência decisiva para a inserção de suas obras, por intermdio de suas relações privadas com o poder, no interior do campo literário brasileiro.

A discussão de Süssekind (1993)SÜSSEKIND, Flora. Papéis colados. Rio de Janeiro: UFRJ, 1993., no livro “Papis colados”, nos levou à compreensão de como as abordagens impressionistas de uma influente crtica de rodap foram decisivas para a construção do autor Leandro Tocantins (1992)TOCANTINS, Leandro. Euclides da Cunha e o Paraíso Perdido. Rio de Janeiro: Biblioteca do Exército, 1992., em “Euclides da Cunha e o Paraso Perdido”, por intermdio da tradição de seu discurso romântico e ecológico presente na abordagem da paisagem amazônica feita pela imprensa carioca nos anos de 1960.

A INSERÇÃO SOCIAL DA OBRA “EUCLIDES DA CUNHA E O PARASO PERDIDO” DIANTE DA PROBLEMÁTICA AMAZÔNICA NOS ANOS DE 1960

Leandro Tocantins nasceu em Belm do Pará. No Rio de Janeiro, estudou no Colgio Pedro II e tornou-se bacharel em Ciências Jurdicas e Sociais, pela Faculdade de Direito da Universidade Federal do Rio de Janeiro. Foi escritor e historiador. Entre seus principais livros, podemos destacar: “O rio comanda a vida” (1952); “Amazônia: natureza, homem e tempo” (1960); “Formação histórica do Acre” (1961b); “Santa Maria de Belm do Grão Pará: instantes e evocações da cidade” (1963); “Euclides da Cunha e o Paraso Perdido” (1966)1 1 A primeira publicação da obra “Euclides da Cunha e o Paraíso Perdido” foi realizada pela Editora do governo do estado do Amazonas, em 1966. As publicações seguintes foram: segunda edição pela Editora Record, em 1968; terceira edição pela Civilização Brasileira, em 1978; e quarta edição pela Biblioteca do Exército Editora, em 1992. .

Como homem público, Leandro Tocantins tornou-se representante da Superintendência do Plano de Valorização da Amazônia (SPVEA) na cidade do Rio de Janeiro, nos incios dos anos de 1960, alm de ter atuado nesta cidade como assessor de Arthur Czar Ferreira Reis, quando este governou o estado do Amazonas, a partir de 1964. Tal episódio rendeu-lhe a oportunidade de realizar pesquisas no arquivo histórico do Itamaraty e de escrever a obra “Euclides da Cunha e o Paraso Perdido”.

Essas relações polticas no âmbito da SPVEA e no governo do estado do Amazonas, somadas às publicações de certas obras amazônicas de Leandro Tocantins por editoras sediadas no Rio de Janeiro2 2 Tratam-se de casas publicadoras Editora Civilização Brasileira, Conquista Editora, Editora Letras e Artes e a Gráfica Record Editora. Uma dessas, a Conquista, possuiu uma coleção intitulada “Temas Brasileiros”, que foi dirigida por Arthur Reis, padrinho intelectual e político de Leandro Tocantins, na qual foi publicada a obra “Amazônia: natureza, homem e tempo”, do autor paraense, em 1960. , foram decisivas para que o autor e a sua obra fossem reconhecidos pela imprensa carioca, em especial por meio dos anseios que jornalistas, crticos e intelectuais possuram em discutir soluções para as fragilidades da Amazônia diante do contexto nacional e internacional da poca.

Considerando-se o cenário descrito, cabe ponderar a inserção social da obra “Euclides da Cunha e o Paraso Perdido” a partir da publicidade que a imprensa carioca realizou nos anos de 1960.

Para tanto, em um primeiro momento, deve-se procurar entender como se deu o efeito representativo da personagem Euclides da Cunha no âmbito da circulação e do funcionamento do discurso de Leandro Tocantins, tomando-se a recepção da obra nos principais órgãos da imprensa carioca nos anos de 1960; em um segundo momento, torna-se mister apontar as influências que a representação de Leandro Tocantins, como autor reconhecido e como homem público influente, exerceu sobre uma recepção positiva da obra junto à imprensa.

A INSERÇÃO DA OBRA “EUCLIDES DA CUNHA E O PARASO PERDIDO” NA IMPRENSA CARIOCA NOS ANOS DE 1960

Desde o lançamento da obra “Amazônia: natureza, homem e tempo” (1960) e do relançamento de “O rio comanda a vida” (1961a), passando por livros como “Formação histórica do Acre” (1961b), “Acre, Rio Branco e esprito Luso” (1962), “Santa Maria de Belm do Grão Pará” (1963), “Euclides da Cunha e o Paraso Perdido” (1966), entre outros ttulos, a crtica de jornais e revistas do Rio de Janeiro sempre foi favorável à produção de Leandro Tocantins, destacando a sensibilidade literária deste escritor, sobretudo no trato das questões amazônicas, com o uso de lirismo pico-romanesco, presente no seu discurso histórico e focado na descrição ecológica da região, bem como na necessidade de adaptação do homem ao meio.

Vários artigos na imprensa carioca no transcurso dos anos de 1960 anotaram as caractersticas presentes na obra do autor paraense. Como exemplo, vale citar a publicação presente no Correio da Manhã3 3 De acordo com Sodré (1999), o jornal Correio da Manhã posicionou-se, em meados dos anos de 1960, como um dos baluartes das liberdades individuais, denunciando os desmandos do regime instaurado em 1964, estando imerso em um contexto no qual a imprensa estrangeira avançava sobre o mercado brasileiro. , de 11 de novembro de 1961, em que “Formação histórica do Acre” exaltada como “[...] a epopeia da incorporação definitiva do Acre ao patrimônio territorial brasileiro, as lutas travadas com armas da guerra e da diplomacia para fixação de uma linha que não espoliasse o Brasil [...]” (Formação..., 1961FORMAÇÃO histórica do Acre. Correio da Manhã, Rio de Janeiro, 11 nov. 1961. p. 9. Disponível em: <http://memoria.bn.br/DocReader/docreader.aspx?bib=089842_07&pasta=ano%20196&pesq=leandro%20tocantins>. Acesso em: 23 nov. 2013.
http://memoria.bn.br/DocReader/docreader...
, p. 9).

Vale registrar que, em 10 de agosto de 1961, no mesmo jornal, uma matria sobre a obra “O rio comanda a vida” a qualifica como “[...] atraente e fascinante, à semelhança de um romance pois este livro rigorosamente cientfico de Leandro Tocantins” (O rio..., 1961O RIO comanda a vida. Correio da Manhã, Rio de Janeiro, 10 ago. 1961. p. 9. Disponível em: <http://memoria.bn.br/DocReader/docreader.aspx?bib=089842_07&pasta=ano%20196&pesq=leandro%20tocantins>. Acesso em: 23 nov. 2013.
http://memoria.bn.br/DocReader/docreader...
, p. 9).

Destarte, as caractersticas lricas e ecológicas tambm puderam ser notadas no livro “Santa Maria de Belm do Grão Pará”, em notcia do crtico Chermont de Britto, no Jornal do Brasil4 4 O Jornal do Brasil, segundo Smith (2000), possuiu tendências liberais e conservadoras, acima de tudo na figura de seu maior dirigente nos anos de 1960 e 1970, o jornalista Nascimento Brito. , de 20 de dezembro de 1963:

Há captulos de Santa Maria de Belm do Grão Pará em que o grave historiador que Leandro Tocantins se transforma no poeta apaixonado de sua terra e então surgem páginas de um lirismo encantador, de emoção quase religiosa, em que todas as galas e garridices da terra, do cu, da floresta, do rio e da mata palpitam e resplandecem (Britto, 1963BRITTO, Chermont de. Santa Maria de Belém do Grão Pará. Jornal do Brasil, Rio de Janeiro, 20 dez. 1963. Caderno B, p. 8. Disponível em: <http://memoria.bn.br/DocReader/DocReader.aspx?bib=030015_08&PagFis=6313&Pesq=leandro%20tocantins>. Acesso em: 22 nov. 2013.
http://memoria.bn.br/DocReader/DocReader...
, p. 8).

interessante destacar que Britto (1961)BRITTO, Chermont de. Formação histórica do Acre. Jornal do Brasil, Rio de Janeiro, 14 nov. 1961. p. 6. Disponível em: <http://memoria.bn.br/DocReader/DocReader.aspx?bib=030015_08&PagFis=6313&Pesq=leandro%20tocantins>. Acesso em: 20 nov. 2013.
http://memoria.bn.br/DocReader/DocReader...
, por meio de suas posições nacionalistas, não só criticou certas obras literárias ligadas à temática amazônica, mas tambm denunciou, em vários artigos no Jornal do Brasil, a situação de fragilidade da região nos anos de 1960. Como se evidencia, a repercussão das obras e do autor na mdia se fazia presente, e a recepção de “Euclides da Cunha e o Paraso Perdido” não foi diferente. De antemão, vale apontar que Leandro Tocantins, ao longo da edição de 1966 desta obra, estabeleceu nos captulos “O sonho”, “A viagem”, “O deserto” e “A obra” um diálogo com a escrita e com a personalidade do homem Euclides, totalmente representativo de sua cumplicidade literária com o autor fluminense. Essa cumplicidade foi necessária para a construção de uma imagem heroica de Euclides, mesmo quando expressou contrariedades a respeito da Amazônia nos documentos relativos à Expedição de Reconhecimento do Alto Purus (Silva; Pacheco, 2014SILVA, Adriana Conceição dos Santos da; PACHECO, Alexandre. A selva que devora o homem. Revista de História da Biblioteca Nacional, Rio de Janeiro, ano 9, n. 106, p. 64-68, jul. 2014.).

Nesse sentido, mediante o memorável inventário que realizou da viagem da Comissão Mista Brasileira Peruana de Reconhecimento do Alto Purus, efetivada entre os anos de 1904 e 1905, Leandro Tocantins afirmou, no prólogo para a edição de 1968 de “Euclides da Cunha e o Paraso Perdido”, ter se apropriado de um Euclides menos influenciado por autores estrangeiros, já que teria se encontrado com sua verdadeira personalidade diante da natureza amazônica. Essa personalidade, servindo-se de sua própria intuição e experiência intelectual adquirida, quase sempre acertou o prognóstico acerca da Amazônia, haja vista que, para o escritor paraense, sua “[...] tendência inata de aproximação com a natureza conduziu-o à observação experimental: muito mais na Amazônia do que nos sertões baianos” (Tocantins, 1992TOCANTINS, Leandro. Euclides da Cunha e o Paraíso Perdido. Rio de Janeiro: Biblioteca do Exército, 1992., p. 14).

Tomando-se esse enredo que concebeu um Euclides mais intuitivo e experimental, esta obra causou expectativa, evidenciada em chamada no Jornal do Brasil, de 7 de agosto de 1968: “Já em distribuição, Euclides da Cunha e o Paraso Perdido, de Leandro Tocantins” (Informe..., 1968INFORME JB. Jornal do Brasil, Rio de Janeiro, 7 ago. 1968. Caderno 1, p. 10. Disponível em: <http://memoria.bn.br/DocReader/DocReader.aspx?bib=030015_08&PagFis=50672&Pesq=leandro%20tocantins>. Acesso em: 14 nov. 2013.
http://memoria.bn.br/DocReader/DocReader...
, p. 10).

Deve-se ponderar, entretanto, que essa expectativa parece ter sido fruto mais de uma informação obtida atravs de comunicação enviada aos órgãos da imprensa do que propriamente da leitura dela.

A respeito disso, vale observar o Diário de Notcias5 5 O Diário de Notícias foi um órgão da grande imprensa carioca, com variados escritores e críticos literários congregados, os quais contribuíram direta ou indiretamente para a tendência nacionalista do jornal, extinto em 1974. , de 12 de setembro de 1968, no qual Eneida de Moraes elogia a obra em tela e, ao que tudo indica, não necessariamente a partir da leitura, mas atravs de certo conhecimento prvio que possua nos anos de 1960 a respeito do autor e de sua obra geral. Veja-se:

Leandro Tocantins a quem devemos tantos livros da melhor qualidade acaba de ser editado pela Gráfica Record: Euclides da Cunha e o Paraso Perdido. outro paraense preocupado sempre com a Amazônia. Leandro Tocantins está dirigindo na mesma editora uma coleção intitulada “Presença Brasileira”. A apresentação de seu livro de Arthur Csar Ferreira Reis (Moraes, 1968aMORAES, Eneida de. Encontro matinal: comentários. Diário de Notícias, Rio de Janeiro, 12 set. 1968a. p. 3. Disponível em: <http://memoria.bn.br/DocReader/docreader.aspx?bib=093718_04&pasta=ano%20196&pesq=leandro%20 tocantins>. Acesso em: 2 dez. 2013.
http://memoria.bn.br/DocReader/docreader...
, p. 3).

Já o crtico Nestor de Holanda, no Diário de Notcias de 28 de novembro de 1968, exaltou a grande expressão do Euclides concebido por Leandro Tocantins, recomendando de forma enfática, em seu rodap, a leitura de “Euclides da Cunha e o Paraso Perdido”, considerado um “[...] excelente livro sado pela Record” (Holanda, 1968HOLANDA, Nestor. Telhado de vidro. Diário de Notícias, Rio de Janeiro, 28 de nov. 1968. p. 1. Disponível em: <http://memoria.bn.br/DocReader/docreader.aspx?bib=093718_04&pasta=ano%20196&pesq=leandro%20tocantins>. Acesso em: 12 dez. 2013.
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, p. 1). Ressalte-se que Holanda (1968)HOLANDA, Nestor. Telhado de vidro. Diário de Notícias, Rio de Janeiro, 28 de nov. 1968. p. 1. Disponível em: <http://memoria.bn.br/DocReader/docreader.aspx?bib=093718_04&pasta=ano%20196&pesq=leandro%20tocantins>. Acesso em: 12 dez. 2013.
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não só assinou a coluna de rodapé “Telhado de vidro”, no Diário de Notícias nos anos de 1960, mas também foi escritor. Entre outras obras, concebeu o livro intitulado “Brasil” (Holanda et al., 1963HOLANDA, Nestor; NIEMEYER, Oscar; SODRÉ, Nelson Werneck; CARNEIRO, Edison, CAVALCANTI, Di; GOMES, Dias; PEREIRA, Astrojildo; ESTRELA, Arnaldo; VIANY, Alex; DUARTE, Sergio Guerra; CAMPOFIORITO, Quirino. Brasil. Moscou: Academia de Ciências de Moscou, 1963.), com intelectuais de tendências esquerdistas, como Oscar Niemeyer, Nelson Werneck Sodré e Astrojildo Pereira, obra publicada pela Academia de Ciências de Moscou em 1963.

Percebe-se, assim, que os elogios sobre “Euclides da Cunha e o Paraso Perdido” parecem ter sofrido os efeitos indiretos do prestgio alcançado por Leandro Tocantins como autor, em decorrência da recepção que a imprensa realizou de sua obra mais ampla, desde o incio dos anos de 1960, como demonstrado anteriormente.

Ademais, Rocha (1998)ROCHA, João Cezar de Castro. Literatura e cordialidade: o público e o privado na cultura brasileira. Rio de Janeiro: EdUERJ, 1998. chamou a atenção para o significado de tais elogios na vida literária brasileira como expressão das chamadas leituras cordiais por parte dos crticos, ou seja, leituras impregnadas pela influência e pelo prestgio que os autores puderam alcançar no campo literário.

Por outro lado, importa considerar que a recepção da obra em tela tambm sofreu a influência das caractersticas discursivas românticas e ecológicas preconizadas por essa mesma imprensa, as quais podem ser visualizadas em uma reportagem, sem assinatura, publicada no Jornal do Brasil, em 27 de agosto de 1968, cujo autor utilizou as palavras do historiador e ex-governador do Amazonas para elogiar a referida obra de Leandro Tocantins, conforme pode ser visto a seguir:

Euclides de Tocantins – Prefaciando o livro Euclides da Cunha e o Paraso Perdido, de Leandro Tocantins, recente lançamento da Gráfica Record Editôra, Artur Csar Ferreira Reis diz das obras do autor: “[...] refletiam esprito amadurecido, apaixonado pela temática de sua preferência espiritual, em prosa que traz sempre uma contribuição ao conhecimento da nação, de suas figuras, de seus tipos, de sua paisagem fsica, de sua problemática, enfim, de sua personalidade como um todo cultural e humano” (Panorama..., 1968PANORAMA das Letras. Jornal do Brasil, Rio de Janeiro, 27 ago. 1968. Caderno B, p. 2. Disponível em: <http://memoria.bn.br/DocReader/DocReader.aspx?bib=030015_08&PagFis=6313&Pesq=leandro%20tocantins>. Acesso em: 12 nov. 2013.
http://memoria.bn.br/DocReader/DocReader...
, p. 2).

Desse modo, pode-se afirmar que, de acordo com teóricos da recepção, como Leenhardt (1997)LEENHARDT, Jacques. Teoria da comunicação e teoria da recepção. Anos 90, Porto Alegre, v. 5, n. 8, p. 7-13, 1997., “Euclides da Cunha e o Paraso Perdido” tornou-se um ‘objeto esttico’6 6 Como já discutido na introdução, o objeto estético, de acordo com Leenhardt (1997), seria um signo autônomo que se enraizaria na consciência coletiva por meio das leituras individuais das obras literárias, sendo, deste modo, signo que se imporia como sentido de representação dos mais variados fenômenos sociais de determinado meio específico. em razão de certas inscrições históricas concebidas por parte da crtica sobre ela, e em confronto com o funcionamento do enredo construdo por Leandro Tocantins para seu Euclides amazônico. Essas inscrições foram geradas, em boa medida, por uma histórica consciência coletiva que sempre encarou a região amazônica como desprotegida diante da cobiça das potências estrangeiras nos anos de 1960 (Santos Filho, 2006SANTOS FILHO, José dos Reis. A instituição imaginária Amazônia Brasileira: registros cognitivos e práticas sociais. Revista Nera, ano 9, n. 9, p. 113-143, jul.-dez. 2006. Disponível em: <http://revista.fct.unesp.br/index.php/nera/article/view/1436/1414>. Acesso em: 24 set. 2014.
http://revista.fct.unesp.br/index.php/ne...
).

Dessa forma, esta obra torna-se um ‘objeto esttico’ não só mediante a representação reveladora que realizou de um Euclides proftico sobre as fragilidades amazônicas, mas sobretudo a partir do efeito de sentido que ela passou a ter – por meio das preocupações dos crticos com a região amazônica – como obra que reacendeu o debate sobre a integração da região ao restante do pas.

Veja-se isso em uma matria, sem assinatura, na coluna de rodap “Vida Literária”, no Diário de Notcias, publicado em 8 de maio de 1966, na qual se verifica o crtico afirmar, por exemplo, que Leandro Tocantins, ao concluir “Euclides da Cunha e o Paraso Perdido”, forneceu uma espcie de ‘chave do pensamento euclidiano’ para a Amazônia, ao mesmo tempo em que assinalou “[...] o tom de profecia de muitas de suas páginas” (Vida..., 1966VIDA literária. Diário de Notícias, Rio de Janeiro, 8 maio 1966. p. 3. Disponível em: <http://memoria.bn.br/DocReader/docreader.aspx?bib=093718_04&pasta=ano%20196&pesq=leandro%20tocantins>. Acesso em: 30 nov. 2013.
http://memoria.bn.br/DocReader/docreader...
, p. 3). Essa visão proftica de Euclides para a Amazônia, por outro lado, tambm foi vista como detentora de revelações sobre o mundo amazônico, as quais deveriam sensibilizar a consciência dos brasileiros sobre o abandono e as fragilidades da região, especialmente diante de um crescente imaginário7 7 Em especial, por parte de intelectuais, de jornalistas e de críticos na imprensa carioca nos anos de 1960. de que as potências estrangeiras pudessem subtrair este lugar do restante do Brasil nos anos de 1960. Isso pode ser visto, por exemplo, no artigo do crtico de iniciais A. A., escrito no Correio da Manhã de 26 de novembro de 1966:

Foi para um tema ainda hoje fascinante, sob vários aspectos, que volveu os olhos o ensasta Leandro Tocantins: para o testamento de Euclides da Cunha sobre o mundo amazônico. Para o esfôrço que o grande escritor empenhou no sentido de que o Brasil se desse conta de uma realidade espantosa. Para o protesto que êle bravamente levantou contra a indiferença e a incompreensão, doido por “vingar a Hilia maravilhosa de tôdas as brutalidades que a maculam desde o sculo XVII”. [...] Em apêndice, um artigo publicado por Euclides, em 1906, na revista Kosmos, excerto de uma entrevista concedida ao Jornal do Comrcio, no ano anterior, e, na ntegra, cartas de Euclides ao Barão do Rio Branco. Agora que a Amazônia se encontra ostensivamente na alça de mira da cobiça estrangeira, a leitura dêsse livro se reveste de particular interesse (O mundo..., 1966O MUNDO amazônico. Correio da Manhã, Rio de Janeiro, 26 nov. 1966. Caderno 2, p. 2. Disponível em: <http://memoria.bn.br/DocReader/docreader.aspx?bib=089842_07&pasta=ano%20196&pesq=leandro%20tocantins>. Acesso em: 23 nov. 2013.
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, p. 2, grifos do autor).

A despeito do fato de que o autor paraense tenha demonstrado Euclides algumas vezes assombrado diante das brutalidades do ambiente amazônico, podemos perceber, na obra em estudo, certas inscrições históricas por parte da crtica traduzidas em uma visão de Euclides como um profeta da Amazônia, um revelador de aspectos de sua brasilidade, um conscientizador de suas fragilidades. Essas inscrições fizeram com que a imagem de Leandro Tocantins girasse em torno do escritor que revelou, em plena dcada de 1960, a importância de Euclides para o debate sobre o problema da efetiva integração da região ao restante do Brasil.

Antonio Olinto8 8 Antonio Olinto, jornalista e crítico literário de tendência liberal, atuou no jornal O Globo, assinando a coluna “Porta de Livraria” nos anos de 1960. Como poeta e ensaísta, pertenceu à ‘Geração de 45’. , no jornal O Globo, em 1966, contribuiu para essa representação do autor Leandro Tocantins, ao afirmar que a relação de Euclides com a Amazônia não havia ainda recebido o reconhecimento necessário do campo literário brasileiro, já que a “[...] presença de Euclides da Cunha na Amazônia estava à espera de um livro [...]” como “Euclides da Cunha e o Paraso Perdido” (Olinto, 1966OLINTO, Antonio. Euclides e a Amazônia. O Globo, Rio de Janeiro, 1966. p. 12., p. 12). interessante observar, inclusive, como essa percepção a respeito do Euclides amazônico foi marcante para Olinto (2007)OLINTO, Antonio. A Amazônia é nossa. Revista Justiça e Cidadania, Rio de Janeiro, n. 80, mar. 2007. p. 1. Disponível em: <http://www.editorajc.com.br/2007/03/a-amazonia-e-nossa/>. Acesso em: 22 maio 2014.
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, bem como para sua geração de crticos, posto que em anos mais recentes sugeriu a leitura de “Euclides da Cunha e o Paraso Perdido” dentro do mesmo esprito dos anos de 1960, afirmando que diante:

[...] do acirramento do interesse estrangeiro pela região, nada melhor do que ler, principalmente, “Euclides da Cunha e o Paraso perdido”, em que Leandro Tocantins estuda o fascnio de Euclides em face do que vira naquele Paraso que podia já estar perdido (Olinto, 2007OLINTO, Antonio. A Amazônia é nossa. Revista Justiça e Cidadania, Rio de Janeiro, n. 80, mar. 2007. p. 1. Disponível em: <http://www.editorajc.com.br/2007/03/a-amazonia-e-nossa/>. Acesso em: 22 maio 2014.
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, p. 1).

Entretanto, não se pode deixar de observar que esse clamor sobre a criação de uma consciência a respeito da Amazônia, principalmente diante da necessidade de integração ao restante do pas, já havia sido anotado pela crtica para outras obras de Leandro Tocantins na dcada de 1960.

Britto (1961)BRITTO, Chermont de. Formação histórica do Acre. Jornal do Brasil, Rio de Janeiro, 14 nov. 1961. p. 6. Disponível em: <http://memoria.bn.br/DocReader/DocReader.aspx?bib=030015_08&PagFis=6313&Pesq=leandro%20tocantins>. Acesso em: 20 nov. 2013.
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, no Jornal do Brasil, de 14 de novembro de 1961, elogiou o livro “Formação histórica do Acre” por conter a revelação feita por parte de Leandro Tocantins acerca de elementos de uma brasilidade que deveria ser entendida e integrada ao restante do pas, momento em que recomendou essa obra “[...] à admiração de todos os brasileiros, e muito especialmente à dos que se batem por revivescer e revigorar essa consciência amazônica sem a qual jamais completaremos a unidade nacional” (Britto, 1961BRITTO, Chermont de. Formação histórica do Acre. Jornal do Brasil, Rio de Janeiro, 14 nov. 1961. p. 6. Disponível em: <http://memoria.bn.br/DocReader/DocReader.aspx?bib=030015_08&PagFis=6313&Pesq=leandro%20tocantins>. Acesso em: 20 nov. 2013.
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, p. 6).

Alm dessa recomendação, Britto (1961)BRITTO, Chermont de. Formação histórica do Acre. Jornal do Brasil, Rio de Janeiro, 14 nov. 1961. p. 6. Disponível em: <http://memoria.bn.br/DocReader/DocReader.aspx?bib=030015_08&PagFis=6313&Pesq=leandro%20tocantins>. Acesso em: 20 nov. 2013.
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ressalta a importância de Leandro Tocantins para o entendimento da região, relacionando-o a outros grandes autores:

[...] êsse escrúpulo que dá autenticidade a tudo que lhe sai das mãos pacientes e fecundas, e que o coloca entre os Euclides da Cunha, os Jos Verssimo, os Inglês de Souza, os Araújo Lima, os Raimundo Morais, os Arthur Csar Ferreira Reis, isto , os grandes escritores da Amazônia (Britto, 1961BRITTO, Chermont de. Formação histórica do Acre. Jornal do Brasil, Rio de Janeiro, 14 nov. 1961. p. 6. Disponível em: <http://memoria.bn.br/DocReader/DocReader.aspx?bib=030015_08&PagFis=6313&Pesq=leandro%20tocantins>. Acesso em: 20 nov. 2013.
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, p. 6).

Ressalte-se que, por efeito da constituição da obra “Euclides da Cunha e o Paraso Perdido” como um ‘objeto esttico’ representativo dos anseios da integração da Amazônia, Leandro Tocantins praticamente não teve seus posicionamentos polticos questionados pelo enredo que teceu para o seu Euclides amazônico. Essa aceitação decorreu do fato de a imprensa, nos anos de 1960, ter reproduzido para o autor paraense a tradição discursiva que sempre descreveu as propostas civilizadoras de Euclides da Cunha como legtimas para a Amazônia (Ribeiro, 2007RIBEIRO, Fabrício Leonardo. Febre na selva: a Amazônia na interpretação de Euclides da Cunha. 2007. 170 f. Dissertação (Mestrado em História) – Universidade Estadual Paulista “Júlio de Mesquita Filho”, Franca, 2007. Disponível em: <http://www.franca.unesp.br/Home/Pos-graduacao/fabricioleonardo.pdf>. Acesso em: 20 jun. 2013.
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).

O posicionamento desses jornalistas e crticos na imprensa ante a obra de Leandro Tocantins demonstra que muitas das proposições de Ribeiro (2003)RIBEIRO, Ana Paula Goulart. Jornalismo, literatura e política: a modernização da imprensa carioca nos anos de 1950. Estudos Históricos, Rio de Janeiro, v. 1, n. 31, p. 147-160, 2003. sobre as relações entre jornalismo, literatura e poltica na imprensa carioca nos anos de 1950 podem, em parte, ser estendidas para a dcada de 1960. Como se observa, apesar de ter ocorrido um processo de modernização da imprensa a partir dos anos de 1950, perodo em que o jornalismo passou a impor maior objetividade aos fatos noticiados, nos anos de 1960 certos jornalistas e crticos ainda teciam argumentos provindos de um estilo impressionista e cujas caractersticas principais giravam em torno da apreensão de determinados pontos contraditórios, representados nas estticas literárias, bem como das posições dos escritores diante delas. Esta crtica pretendeu apreender nos escritores aquilo que eles possuiriam de mais original (Martins, 1983MARTINS, Wilson. A crítica literária no Brasil. Rio de Janeiro: Francisco Alves, 1983.).

No caso de Leandro Tocantins, pode-se perceber como o impressionismo dos jornalistas e dos crticos que se voltaram não só para “Euclides da Cunha e o Paraso Perdido”, mas tambm para outras obras, sempre procurou construir argumentos menosprezando os elementos sócio-históricos que teriam contribudo para a confecção delas. Essa postura revela que uma influente crtica de rodap ainda estava presente nas páginas dos jornais nos anos de 1960, a despeito da ascensão de uma crtica literária universitária na imprensa, com tendências cientficas e imparciais (Süssekind, 1993SÜSSEKIND, Flora. Papéis colados. Rio de Janeiro: UFRJ, 1993.). Assim, segundo Ribeiro (2003, p. 158)RIBEIRO, Ana Paula Goulart. Jornalismo, literatura e política: a modernização da imprensa carioca nos anos de 1950. Estudos Históricos, Rio de Janeiro, v. 1, n. 31, p. 147-160, 2003., apesar de o jornalismo nos anos de 1950 ter assumido “[...] cânones discursivos e profissionais próprios [...]”, distanciando-se da literatura, isso não significou que

[...] os dois campos (o literário e o jornalstico) se tenham autonomizado totalmente. Muitos escritores ainda eram jornalistas e muitos jornalistas se aventuravam na vida literária. As duas atividades eram muito próximas e o contato entre elas, inevitável. Na realidade, literatura e jornalismo pertenciam a um mesmo sistema de bens simbólicos, que só se separaram (e adquiriram uma autonomia relativa) na medida em que foram capazes de constituir mercados distintos, associados a lógicas produtivas diversas (Ribeiro, 2003RIBEIRO, Ana Paula Goulart. Jornalismo, literatura e política: a modernização da imprensa carioca nos anos de 1950. Estudos Históricos, Rio de Janeiro, v. 1, n. 31, p. 147-160, 2003., p. 158).

Veja-se, a seguir, como as relações polticas de Leandro Tocantins tambm estiveram por trás da inserção social de “Euclides da Cunha e o Paraso Perdido”.

“EUCLIDES DA CUNHA E O PARASO PERDIDO” NO ÂMBITO DAS RELAÇÕES POLTICAS DE LEANDRO TOCANTINS NOS ANOS DE 1960

A concepção da obra “Euclides da Cunha e o Paraso Perdido” não apenas contou com as benesses do poder, como tambm representou, no plano da cultura, a poltica desenvolvimentista implantada por Arthur Czar Ferreira Reis como governador do estado do Amazonas, entre os anos de 1964 e 1967.

Arthur Reis, ao programar uma srie de polticas econômicas para a superação do atraso daquele estado em relação ao restante do Brasil, com um plano bienal, entre 1965 e 19669 9 Plano que contou com técnicos do Banco Nacional de Desenvolvimento Econômico (BNDE). , tambm procurou implantar um programa cultural. Dessa forma, atravs da imprensa oficial do estado, foram publicados mais de cem livros dedicados a autores que retrataram os problemas amazônicos, entre eles “Euclides da Cunha e o Paraso Perdido”.

Leandro Tocantins, em um primeiro momento, no entanto, nos forneceu motivações mais poticas para a concepção de sua obra. Após a publicação desta obra pelo governo do estado do Amazonas, em 1966, o autor afirmou, no prólogo da segunda edição, em 1968, que a vontade de escrever sobre Euclides da Cunha vinha desde a sua adolescência. De acordo com ele:

[...] Euclides da Cunha e o Paraso Perdido o pagamento de uma dvida de gratidão pelos momentos de animação espiritual que me proporcionou – a mim, adolescente no Ginásio do Instituto Nossa Senhora de Nazar, em Belm do Pará – a leitura de Os Sertões e de À Margem da História (Tocantins, 1992TOCANTINS, Leandro. Euclides da Cunha e o Paraíso Perdido. Rio de Janeiro: Biblioteca do Exército, 1992., p. 14).

Ademais, vale observar o que evidencia Rocha (1998)ROCHA, João Cezar de Castro. Literatura e cordialidade: o público e o privado na cultura brasileira. Rio de Janeiro: EdUERJ, 1998., em seu livro “Literatura e cordialidade”, demonstrando como a paisagem nacional já havia sido mobilizada por escritores, a exemplo de Jos de Alencar, com o objetivo de valorizarem a vocação que têm para as letras, desprezando, neste sentido, a possvel contribuição de condicionantes sociais, inclusive para a inserção social de Alencar como autor de “O Guarani” (1979).

Independentemente desse argumento, muito contribuiu para a concepção de “Euclides da Cunha e o Paraso Perdido” o acesso que o autor possua aos documentos da Expedição de Reconhecimento do Alto Purus, quando foi representante da SPVEA na cidade do Rio de Janeiro, no incio dos anos de 1960. Este episódio proporcionou-lhe a oportunidade de frequentar o Arquivo Histórico do Itamaraty e de aprofundar seu conhecimento sobre os registros da Comissão de Reconhecimento do Alto Purus, bem como de participar da publicação do livro “O rio Purus” (Cunha, 1960CUNHA, Euclides da. O rio Purus. Rio de Janeiro: SPVEA, 1960.), feita pela SPVEA (O rio..., 1960O RIO Purus. Diário de Notícias, Rio de Janeiro, 20 nov. 1960. Suplemento Literário, p. 3. Disponível em: <http://memoria.bn.br/DocReader/docreader.aspx?bib=093718_04&pasta=ano%20196&pesq=leandro%20tocantins>. Acesso em: 12 nov. 2013.
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).

No entanto, ao se tornar adido do estado do Amazonas, no Rio de Janeiro, em 1964, sob os auspcios da poltica desenvolvimentista do governador Arthur Czar Ferreira Reis, teve a oportunidade de pesquisar os documentos sobre a expedição ao Purus e de escrever a obra em questão neste artigo.

Em 1966, Euclides da Cunha faria cem anos, se fosse vivo. O então Governador Arthur Czar Ferreira Reis – que operou no Amazonas, ao lado de uma revolução administrativa, uma revolução cultural – pediu-me que escrevesse o anunciado livro sobre Euclides da Cunha, pois desejava inclu-lo na srie que tem o seu nome, dentre outras sries cujos ttulos alcançaram, no fim de seu Governo, o número de cento e seis. Era a homenagem do Amazonas ao grande revelador do Paraso Perdido (Tocantins, 1992TOCANTINS, Leandro. Euclides da Cunha e o Paraíso Perdido. Rio de Janeiro: Biblioteca do Exército, 1992., p. 17).

O patrocnio do nacionalista e do desenvolvimentista Arthur Czar Ferreira Reis foi fundamental para a concepção de “Euclides da Cunha e o Paraso Perdido”, pois, como já afirmado, proporcionou ao escritor paraense condições materiais e o acesso efetivo aos acervos do Itamaraty, fato percebido pela crtica quando do lançamento da obra.

Destarte, a coluna de rodap “Panorama das Letras”, no Jornal do Brasil, veiculada em 18 agosto de 1968, apontou relação entre o conhecimento prvio da documentação sobre a presença de Euclides da Cunha na Amazônia e a feitura do livro de Leandro Tocantins:

EUCLIDES – De Leandro Tocantins, a Gráfica Record Editôra publica Euclides da Cunha e o Paraso Perdido. Documentos inditos da missão oficial de Euclides no Amazonas são revelados no livro. Um Paraso Perdido o ttulo do livro que Euclides pretendia escrever sobre a Amazônia (Rei, 1968REI, Marcos. Panorama das letras. Jornal do Brasil, Rio de Janeiro, 14 ago. 1968. Caderno B, p. 2. Disponível em: <http://memoria.bn.br/DocReader/DocReader.aspx?bib=030015_08&PagFis=6313&Pesq=leandro%20tocantins>. Acesso em: 14 dez. 2016.
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, p. 2, grifo do autor).

Essa forma de inserção da primeira edição deste livro na imprensa, no entanto, representou não somente o reconhecimento de Leandro Tocantins como autor, por parte de Arthur Czar Ferreira Reis, mas tambm como homem poltico e assessor de governo no estado do Rio de Janeiro. Essas relações no campo poltico foram decisivas para a inserção desta obra, como demonstrado em artigo do Correio da Manhã, de 26 de novembro de 1966:

No livro que o govêrno do Amazonas acaba de publicar, como contribuição às comemorações do centenário de nascimento de Euclides, intitulado Euclides da Cunha e o Paraso Perdido, LT analisa com precisão as observações e considerações que o autor de Os Sertões formulou sôbre a Amazônia, ressaltando sua consistência cientfica e o seu caráter premonitório (O mundo..., 1966O MUNDO amazônico. Correio da Manhã, Rio de Janeiro, 26 nov. 1966. Caderno 2, p. 2. Disponível em: <http://memoria.bn.br/DocReader/docreader.aspx?bib=089842_07&pasta=ano%20196&pesq=leandro%20tocantins>. Acesso em: 23 nov. 2013.
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, p. 2, grifos do autor).

Por outro lado, a própria inserção do homem poltico como autoridade sobre os problemas amazônicos na imprensa carioca, desde os anos de 1950, como nos anos de 1960, ‘contaminou’ tambm a autoridade do escritor e de sua obra romântica e ecológica, e vice-versa, em um movimento que engendrou efeitos positivos sobre a recepção não apenas de “Euclides da Cunha e o Paraso Perdido”, mas tambm de outras obras do autor ao longo daquela dcada.

Nesse sentido, os mesmos jornais que, atravs dos mais variados artigos, perceberam o autor e a sua obra como exercendo um trabalho de conscientização sobre a Amazônia, reiteradamente tambm destacaram as ações de Leandro Tocantins para a efetivação de polticas visando à integração da região, fosse como assessor da SPVEA ou como representante do estado do Amazonas.

Veja-se, por exemplo, o artigo intitulado “Amazônia contra o colonialismo”, publicado no Diário de Notcias, em 11 de novembro de 1966, quando o autor esteve à frente da representação do governo de Arthur Reis, no Rio de Janeiro:

O Sr. Leandro Tocantins asseverou que a ajuda externa será aceita, mas em têrmos nacionalistas, eliminando-se qualquer hipótese de domnio estrangeiro na área. Para isto – continuou – a Sudam fixou uma srie de benefcios para os investidores brasileiros que terão o pagamento de seus impostos reduzido, concedendo-se, neste sentido, outros benefcios fiscais, a fim de possibilitar o desenvolvimento rápido da Amazônia (Amazônia..., 1966AMAZÔNIA contra colonialismo. Diário de Notícias, Rio de Janeiro, 11 nov. 1966. p. 10. Disponível em: <http://memoria.bn.br/DocReader/docreader.aspx?bib=093718_04&pasta=ano%20196&pesq=leandro%20tocantins>. Acesso em: 30 nov. 2013.
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, p. 10).

Como se pode observar, são inúmeras as reportagens que ora tratam do poltico e ora do autor, em especial entre os anos de 1965 e 1968, sendo evidenciadas, em algumas matrias, remissões ao autor – tambm chamado de professor – como representante da SPVEA, oferecendo evidências de que parte dos jornalistas e crticos que julgaram a obra de Leandro Tocantins teve suas leituras influenciadas pela representação poltica alcançada por ele na imprensa, alm do próprio efeito produzido pelo discurso do autor, fato evidenciado em matria do Correio da Manhã, de 19 de setembro de 1965:

O professor Leandro Tocantins, representante do govêrno do Estado do Amazonas no Rio de Janeiro, declarou-nos ontem, a propósito da grave situação da Amazônia, que a região “deixou de ser simplesmente um captulo da problemática brasileira para constituir um componente do jôgo internacional” (Professor..., 1965PROFESSOR analisa o problema amazônico. Correio da Manhã, Rio de Janeiro, 19 set. 1965. p. 16. Disponível em: <http://memoria.bn.br/DocReader/docreader.aspx?bib=089842_07&pasta=ano%20196&pesq=leandro%20 tocantins>. Acesso em: 22 nov. 2013.
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, p. 16).

Nesse sentido, a relação entre o autor e o homem poltico dialoga com as posições teóricas de Chartier (2012, p. 31)CHARTIER, Roger. O que é um autor? Revisão de uma genealogia. São Carlos: EdUFSCAR, 2012., ao afirmar, a partir de uma crtica a Michel Foucault, que a função autor, por um lado, seria o produto de uma tensão entre “[...] os mecanismos sociais e institucionais [...]” ligados a ela e, por outro, a desenvoltura de ‘um Eu emprico’, que igualmente influenciaria na sua constituição. Essa forma de representação de um Leandro Tocantins enquanto autoridade ambivalente manifestou-se, por exemplo, na pequena polêmica entre o escritor paraense e a escritora e crtica literária Eneida de Moraes, no Diário de Notcias, em 1968, evento que influenciou a escritora a dar anúncio positivo em relação à segunda edição de “Euclides da Cunha e o Paraso Perdido”.

Ao criticar a postura poltica do autor Leandro Tocantins no prefácio que escreveu para o relançamento de “O rio comanda a vida”, Eneida de Moraes (1968c)MORAES, Eneida de. Encontro matinal: “O rio comanda a vida”. Diário de Notícias, Rio de Janeiro, 25 maio 1968c. p. 3. Disponível em: <http://memoria.bn.br/DocReader/docreader.aspx?bib=093718_04&pasta=ano%20196&pesq=leandro%20 tocantins>. Acesso em: 30 nov. 2013.
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, no rodap “Encontro matinal”, do Diário de Notcias, publicado em 25 de maio de 1968, afirmou que ele foi condescendente com a presença dos americanos na Amazônia à poca, como tambm com os abusos cometidos por certos potentados locais na região. Ela (Moraes, 1968cMORAES, Eneida de. Encontro matinal: “O rio comanda a vida”. Diário de Notícias, Rio de Janeiro, 25 maio 1968c. p. 3. Disponível em: <http://memoria.bn.br/DocReader/docreader.aspx?bib=093718_04&pasta=ano%20196&pesq=leandro%20 tocantins>. Acesso em: 30 nov. 2013.
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), então, com tendência marxista, criticou a ausência de um posicionamento mais contundente por parte de Leandro Tocantins, acima de tudo em relação aos abusos cometidos no âmbito do projeto Jari10 10 O Projeto Jari foi constituído para a fabricação de celulose e de produção de energia nas margens do rio Jari, no Pará. Foi idealizado, nos anos de 1960, pelo bilionário norte-americano Daniel Keith Ludwig e por seu sócio Joaquim Nunes Almeida. , no Território Federal do Amapá, com relação à forma como trabalhadores nordestinos foram arregimentados para esse projeto ou mesmo à pressão que os interesses norteamericanos estavam exercendo sobre a Amazônia.

Alm disso, Eneida de Moraes (1968c)MORAES, Eneida de. Encontro matinal: “O rio comanda a vida”. Diário de Notícias, Rio de Janeiro, 25 maio 1968c. p. 3. Disponível em: <http://memoria.bn.br/DocReader/docreader.aspx?bib=093718_04&pasta=ano%20196&pesq=leandro%20 tocantins>. Acesso em: 30 nov. 2013.
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demonstrou discordâncias conceituais com o autor, sugerindo que, no referido prefácio, ele estava a camuflar acontecimentos da história da Amazônia, ao afirmar aos leitores de sua coluna literária que: “[...] História história e não estória” (Moraes, 1968cMORAES, Eneida de. Encontro matinal: “O rio comanda a vida”. Diário de Notícias, Rio de Janeiro, 25 maio 1968c. p. 3. Disponível em: <http://memoria.bn.br/DocReader/docreader.aspx?bib=093718_04&pasta=ano%20196&pesq=leandro%20 tocantins>. Acesso em: 30 nov. 2013.
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, p. 3). Após essa crtica, no entanto, Leandro Tocantins enviou uma carta para a escritora, na qual procurou demonstrar sua posição diante dos problemas explicitados por ela, que, então, se ‘desmanchou’ em elogios para o autor, ao comentar a carta enviada por ele em sua coluna literária “Encontro Matinal”, no Diário de Notcias de 9 de agosto de de 1968 (Moraes, 1968bMORAES, Eneida de. Encontro matinal: comentários. Diário de Notícias, Rio de Janeiro, 9 ago. 1968b. p. 3. Disponível em: <http://memoria.bn.br/DocReader/docreader.aspx?bib=093718_04&pasta=ano%20196&pesq=leandro%20 tocantins>. Acesso em: 30 nov. 2013.
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). Ela teceu comentários que demonstraram sua rendição à autoridade de Leandro Tocantins não apenas como autor, mas tambm como homem poltico e como seu conterrâneo, já que, ao mesmo tempo em que se retratou por tê-lo questionado publicamente, anunciou de forma enfática e positiva o lançamento de “Euclides da Cunha e o Paraso Perdido”:

[AGRADECIMENTOS: A Leandro Tocantins pela carta (Ótima) explicando sua posição no] problema da Amazônia e a invasão americana. Leandro Tocantins e eu somos paraenses e vim comentando aqui o nôvo prefácio à segunda edição de seu belo livro “O Rio Comanda a Vida”. Pena não poder publicar essa carta na ntegra. Mas há uma boa notcia a dar: vai aparecer por estês dias um novo livro de Leandro Tocantins: “Euclides da Cunha e o Paraso Perdido”. Agradeço a carta de LT afirmando: “ assim, ‘dialogando’, que os homens de bem se entendem" (Moraes, 1968bMORAES, Eneida de. Encontro matinal: comentários. Diário de Notícias, Rio de Janeiro, 9 ago. 1968b. p. 3. Disponível em: <http://memoria.bn.br/DocReader/docreader.aspx?bib=093718_04&pasta=ano%20196&pesq=leandro%20 tocantins>. Acesso em: 30 nov. 2013.
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, p. 3).

Assim, ao questionar a posição de Leandro Tocantins sobre o problema da integridade da Amazônia frente aos interesses estrangeiros, a escritora, mediante a reação de Tocantins, procurou desfazer a polêmica, recorrendo à paisagem amazônica, ao afirmar que ambos eram paraenses, e tambm como forma de se irmanar a ele.

interessante perceber, de acordo com Santos (2007)SANTOS, Eunice Ferreira dos. Eneida de Moraes: ritos de entrada e de permanência no cenário político e jornalístico literário brasileiro (1920-1970). Moara, Belém, n. 27, p. 26-38, jan.-jun. 2007., que Eneida de Moraes sempre utilizou sua ‘crônica-militante’ para realizar denúncias no Diário de Notcias, as quais muitas vezes foram censuradas entre os anos de 1957 a 1970. Estes textos nem sempre eram aprovados pelo Diário de Notcias e tiveram grande influência da fase em que a escritora pertenceu ao Partido Comunista Brasileiro, em plena ditadura Vargas, tendo sido presa várias vezes pelo regime varguista.

Lima (1960a)LIMA, Raul. Livros e fatos: safra de leitura. Diário de Notícias, Rio de Janeiro, 28 ago. 1960a. p. 3. Disponível em: <http://memoria.bn.br/DocReader/docreader.aspx?bib=093718_04&pasta=ano%20196&pesq=leandro%20tocantins>. Acesso em: 24 nov. 2013.
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, ao analisar a obra “Amazônia: natureza, homem e tempo”, de Leandro Tocantins, no Diário de Notcias, publicado em 28 de agosto de 1960, envolveu-se tambm em uma polêmica com o autor paraense, que àquela altura já possua certa representatividade poltica junto à imprensa, em razão dos trabalhos à frente da SPVEA.

Na ocasião, Lima (1960b)LIMA, Raul. Livros e fatos: Amazônia. Diário de Notícias, Rio de Janeiro, 18 set. 1960b. p. 3. Disponível em: <http://memoria.bn.br/DocReader/docreader.aspx?bib=093718_04&pasta=ano%20196&pesq=leandro%20tocantins>. Acesso em: 24 nov. 2013.
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afirmou que esta obra não teria sido editada à altura das intenções de Leandro Tocantins em estudar a problemática amazônica com efetiva profundidade. Tais afirmações causaram a reação do escritor paraense, que foi reverberada no Diário de Notcias de 18 de setembro de 1960, momento em que Raul Lima não só se desculpou, mas tambm reverenciou Leandro Tocantins de forma enfática (Lima, 1960bLIMA, Raul. Livros e fatos: Amazônia. Diário de Notícias, Rio de Janeiro, 18 set. 1960b. p. 3. Disponível em: <http://memoria.bn.br/DocReader/docreader.aspx?bib=093718_04&pasta=ano%20196&pesq=leandro%20tocantins>. Acesso em: 24 nov. 2013.
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). Vale ressaltar que este crtico, cuja coluna “Livros e Fatos” no Diário de Notcias era assinada por ele, sempre expôs suas posições democráticas diante da censura que constantemente se abatia a esse jornal nos anos de 196011 11 Foi também comentarista internacional nos anos de 1940 no periódico intitulado Revista, sempre procurando se posicionar a favor da causa aliada nos anos em que transcorreram a Segunda Guerra Mundial. .

Tais polêmicas revelam-se como sintomas do que Rocha (1998, p. 57)ROCHA, João Cezar de Castro. Literatura e cordialidade: o público e o privado na cultura brasileira. Rio de Janeiro: EdUERJ, 1998. afirmou ser a função delas no âmbito de uma cultura da cordialidade, e suas relações com a valorização da paisagem nacional12 12 A partir da polêmica entre Gonçalves de Magalhães e José de Alencar em torno do poema “A Confederação dos Tamoios”, em meados do século XIX. , já que, para esse autor, a polêmica deve ser “[...] vista como noção primeira que condena qualquer debate a gravitar em torno do eixo jamais questionado da própria ideia de nacionalidade”. Ainda para Rocha:

[...] na esfera especfica da polêmica, a presença desse eixo promove uma singular metamorfose. A polêmica deixa de constituir um momento privilegiado para a proposta de códigos renovadores dos pressupostos subjacentes ao próprio debate. No interior de uma experiência histórica dominada por homens cordiais, tal oportunidade se perde, pois cada desacordo, em lugar de ser enfrentado como uma diferença de pressupostos, compreendido como um ataque pessoal. E deste modo que se compreende a polêmica numa sociedade cordial (Rocha, 1998ROCHA, João Cezar de Castro. Literatura e cordialidade: o público e o privado na cultura brasileira. Rio de Janeiro: EdUERJ, 1998., p. 57).

Segundo Süssekind (1985 apud Rocha, 1998ROCHA, João Cezar de Castro. Literatura e cordialidade: o público e o privado na cultura brasileira. Rio de Janeiro: EdUERJ, 1998., p. 151-152), várias circunstâncias são definidoras da noção de vida literária no Brasil, entre elas a censura, as polêmicas, o público, as formas de escrita, as opções de leitura, de forma que “[...] com o mesmo propósito de delinear um sistema, Silviano Santiago identificou, na transformação da amizade em critrio esttico, a origem da ‘mediocridade fofoquenta e a misria opinativa do meio intelectual brasileiro’”.

Entretanto, as apropriações sobre a obra “Euclides da Cunha e o Paraso Perdido” por parte da crtica apontadas anteriormente, ainda que realizadas no âmbito de relações cordiais, foram expressas por meio de abordagens representativas de diferentes posicionamentos polticos e, dessa forma, passveis de revelar as contradições existentes entre a esttica literária de Leandro Tocantins e suas posições como autor e cidadão que contava com as benesses do poder.

A presença dessa crtica de rodap independentemente das tendências polticas aponta para a importância que possuiu, no sentido de favorecer os interesses polticos dos variados jornais cariocas nos anos de 1960, fossem de tendências nacionalistas ou mais liberais.

Ressalte-se que a maioria dos órgãos da imprensa carioca, como o Diário de Notcias, o Correio da Manhã e o Jornal do Brasil, posicionava-se, de forma geral, a favor de polticas públicas que contribussem para uma efetiva integração da Amazônia nos anos de 1960, especialmente diante da histórica cobiça por parte das potências estrangeiras sobre a região. Como se observa, são inúmeras as matrias desses jornais que trataram desse tema ao longo dos anos de 196013 13 A título de exemplificação, para os anos de 1960, foram encontradas em relação ao tema integração da Amazônia as seguintes ocorrências nos principais órgãos da imprensa carioca, através de uma constante pesquisa na Hemeroteca Digital da Biblioteca Nacional (Fundação Biblioteca Nacional, s. d.): 81 para o jornal Correio da Manhã; 94 para o Diário de Notícias; 93 para o Jornal do Brasil. , inclusive após o golpe de 1964, quando as polticas econômicas dos governos militares passaram a realizar intervenções desenvolvimentistas mais efetivas na Amazônia, perodo em que a imprensa brasileira, de uma forma geral, foi subserviente aos desmandos do regime militar.

Nesse contexto, tanto o autor como o representante poltico Leandro Tocantins tornaramse smbolos dos anseios desses jornais no tocante ao problema da integração da região ao restante do pas. Essa perspectiva, principalmente em relação à inserção social de “Euclides da Cunha e o Paraso Perdido”, apresentou relações com os dizeres de Rocha (1998)ROCHA, João Cezar de Castro. Literatura e cordialidade: o público e o privado na cultura brasileira. Rio de Janeiro: EdUERJ, 1998. referentes aos intercâmbios entre literatura e sociedade, já que este autor demonstrou, em seu livro “Literatura e cordialidade”, como a interpenetração do privado sobre o público sempre foi decisiva para a inserção social dos escritores em nossa sociedade:

Afinal, se para o estudo dos intercâmbios entre literatura e sociedade não basta examinar a maneira como os textos representam as relações sociais engendradas por determinado modo de produção, mas importa, tambm e principalmente, (examinar) a forma como o texto encena sua inserção no sistema de produção [...], numa sociedade de homens cordiais, esta inserção precedida pela do escritor na República das Letras (Rocha, 1998ROCHA, João Cezar de Castro. Literatura e cordialidade: o público e o privado na cultura brasileira. Rio de Janeiro: EdUERJ, 1998., p. 30).

Essa forma de inserção do escritor na sociedade remete novamente ao que Chartier (2102, p. 29-30)CHARTIER, Roger. O que é um autor? Revisão de uma genealogia. São Carlos: EdUFSCAR, 2012. afirmou teoricamente para a função autor como sendo não apenas “[...] uma função, mas tambm uma ficção, e uma ficção semelhante a essas ficções que dominam o direito quando ele constrói sujeitos jurdicos que estão distantes das existências individuais dos sujeitos empricos”.

CONCLUSÃO

Diante do exposto, pode-se afirmar que a postura personalista e pragmática da crtica que recepcionou a obra de Leandro Tocantins não realizou correções polticas, salvo em alguns casos, ao autor de “Euclides da Cunha e o Paraso Perdido”, as quais poderiam ter trazido à tona, como fez a escritora Eneida de Morais, as relações existentes entre os conceitos do historiador e as posições do homem público, com tendências favoráveis aos novos donos do poder a partir de 1964, sobretudo para lembrar que esta obra foi editada em 1966, portanto, dois anos após o golpe.

Apesar de não terem sido realizadas praticamente correções polticas por parte de jornalistas e de crticos, ainda assim possvel afirmar que a função autor neste livro – mesmo muitas vezes definida pelo estilo discursivo presente na obra mais ampla de Leandro Tocantins – sofreu grande influência do reconhecimento que o cidadão Leandro Tocantins angariou junto à imprensa. Isso verificado especialmente ao se observar que os crticos e os jornalistas, ao alçarem Tocantins como um autor-smbolo das expectativas nacionalistas sobre a problemática da integração da Amazônia, construram em boa medida essa representação, em virtude da extensão do reconhecimento obtido por ele junto à imprensa carioca como homem poltico a serviço do Estado brasileiro na Amazônia nos anos de 1960.

Assim, torna-se evidente tambm o quanto seria fictcio imaginar a inserção social desta produção literária apenas como fruto de seu reconhecimento como obra, sem se considerar as influências que ela sofreu da anterioridade da própria inserção do autor e do cidadão Leandro Tocantins no campo literário brasileiro. E isso não só a partir de seu talento, mas, em boa medida, atravs da influência de suas relações interpessoais com polticos, como Arthur Reis, mas tambm em razão da notoriedade que angariou como homem de Estado junto à imprensa.

  • 1
    A primeira publicação da obra “Euclides da Cunha e o Paraíso Perdido” foi realizada pela Editora do governo do estado do Amazonas, em 1966. As publicações seguintes foram: segunda edição pela Editora Record, em 1968; terceira edição pela Civilização Brasileira, em 1978; e quarta edição pela Biblioteca do Exército Editora, em 1992.
  • 2
    Tratam-se de casas publicadoras Editora Civilização Brasileira, Conquista Editora, Editora Letras e Artes e a Gráfica Record Editora. Uma dessas, a Conquista, possuiu uma coleção intitulada “Temas Brasileiros”, que foi dirigida por Arthur Reis, padrinho intelectual e político de Leandro Tocantins, na qual foi publicada a obra “Amazônia: natureza, homem e tempo”, do autor paraense, em 1960.
  • 3
    De acordo com Sodré (1999)SODRÉ, Nelson Werneck. História da imprensa no Brasil. Rio de Janeiro: Mauad, 1999., o jornal Correio da Manhã posicionou-se, em meados dos anos de 1960, como um dos baluartes das liberdades individuais, denunciando os desmandos do regime instaurado em 1964, estando imerso em um contexto no qual a imprensa estrangeira avançava sobre o mercado brasileiro.
  • 4
    O Jornal do Brasil, segundo Smith (2000)SMITH, Anne Marie. Um acordo forçado: o consentimento da imprensa à censura no Brasil. Rio de Janeiro: FGV, 2000., possuiu tendências liberais e conservadoras, acima de tudo na figura de seu maior dirigente nos anos de 1960 e 1970, o jornalista Nascimento Brito.
  • 5
    O Diário de Notícias foi um órgão da grande imprensa carioca, com variados escritores e críticos literários congregados, os quais contribuíram direta ou indiretamente para a tendência nacionalista do jornal, extinto em 1974.
  • 6
    Como já discutido na introdução, o objeto estético, de acordo com Leenhardt (1997)LEENHARDT, Jacques. Teoria da comunicação e teoria da recepção. Anos 90, Porto Alegre, v. 5, n. 8, p. 7-13, 1997., seria um signo autônomo que se enraizaria na consciência coletiva por meio das leituras individuais das obras literárias, sendo, deste modo, signo que se imporia como sentido de representação dos mais variados fenômenos sociais de determinado meio específico.
  • 7
    Em especial, por parte de intelectuais, de jornalistas e de críticos na imprensa carioca nos anos de 1960.
  • 8
    Antonio Olinto, jornalista e crítico literário de tendência liberal, atuou no jornal O Globo, assinando a coluna “Porta de Livraria” nos anos de 1960. Como poeta e ensaísta, pertenceu à ‘Geração de 45’.
  • 9
    Plano que contou com técnicos do Banco Nacional de Desenvolvimento Econômico (BNDE).
  • 10
    O Projeto Jari foi constituído para a fabricação de celulose e de produção de energia nas margens do rio Jari, no Pará. Foi idealizado, nos anos de 1960, pelo bilionário norte-americano Daniel Keith Ludwig e por seu sócio Joaquim Nunes Almeida.
  • 11
    Foi também comentarista internacional nos anos de 1940 no periódico intitulado Revista, sempre procurando se posicionar a favor da causa aliada nos anos em que transcorreram a Segunda Guerra Mundial.
  • 12
    A partir da polêmica entre Gonçalves de Magalhães e José de Alencar em torno do poema “A Confederação dos Tamoios”, em meados do século XIX.
  • 13
    A título de exemplificação, para os anos de 1960, foram encontradas em relação ao tema integração da Amazônia as seguintes ocorrências nos principais órgãos da imprensa carioca, através de uma constante pesquisa na Hemeroteca Digital da Biblioteca Nacional (Fundação Biblioteca Nacional, s. d.FUNDAÇÃO BIBLIOTECA NACIONAL. Hemeroteca Digital da Biblioteca Nacional. [s. d.]. Disponível em: <http://memoria.bn.br/hdb/uf.aspx>. Acesso em: 26 mar. 2016.
    http://memoria.bn.br/hdb/uf.aspx...
    ): 81 para o jornal Correio da Manhã; 94 para o Diário de Notícias; 93 para o Jornal do Brasil.

REFERÊNCIAS

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    Jan-Apr 2017

Histórico

  • Recebido
    30 Maio 2016
  • Aceito
    06 Dez 2016
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