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Arqueologia do povoamento inicial da América ou História Antiga da América: quão antigo pode ser um ‘Novo Mundo’?

The Archaeology of early peopling of America or Ancient History of America: how old could be a ‘New World’?

Resumo

Neste texto, discutimos o tema do povoamento inicial da América como uma narrativa – mais do que sítios, datas e artefatos, são analisados os discursos construídos a partir destes ‘dados’. Esta proposta baseia-se em uma perspectiva da Arqueologia que enfatiza a dinâmica social envolvida na construção do passado. Um dos pontos discutidos envolve a desconstrução da dicotomia entre ‘história x pré-história’ nas Américas. Essa discussão baseia-se em propostas relacionadas à ideia de ‘tempo profundo’ e ‘história profunda’, como já vem sendo discutido por historiadores, arqueólogos e antropólogos em outros países. Além de uma discussão conceitual sobre a construção dessas narrativas, propomos uma reflexão tambémsobre aspectos metodológicos vinculados à pesquisa de contextos relacionados aos momentos iniciais de entrada de pessoas nas Américas. Por fim, sugerimos alguns pontos para reflexão no sentido de construirmos uma História Antigadas Américas que incorpore diferentes formas de narrativa e temporalidades, cuja construção envolveria posições mais simétricas entre os diversos grupos que compõem essa história.

Palavras-chave
Arqueologia; Povoamento; Narrativa; América; História indígena

Abstract

This text discusses the topic of the early peopling of the Americas as a narrative which extends beyond sites, dates, and artifacts to analyze the discourses constructed from these ‘data.’ This proposal is based on an archaeological perspective that emphasizes the social dynamics involved in constructing the past. One of the points discussed involves deconstructingthe dichotomy between history and prehistory in the Americas; this discussion is based on proposals related to the ideas of deep time and deep history which have already been discussed by historians, archaeologists, and anthropologists in othercountries. In addition to a conceptual discussion about the construction of these narratives, we also suggest reflection on methodological aspects of research on contexts related to the times when people initially entered the Americas. Finally,we suggest some points for consideration with regard to constructing an ancient history of the Americas that incorporates different forms of narrative and temporalities which would involve more symmetrical positions for the different groups comprising this history in its construction.

Keywords
Archaeology; Peopling; Narrative; The Americas; Indigenous history

A proposta deste texto é abordar a discussão sobre povoamento da América a partir de uma perspectiva um pouco distinta das demais contribuições que compõem este volume. Ao invés de discutirmos os dados arqueológicos gerados pelas pesquisas recentes, propomo-nos a pensar a questão do povoamento inicial da América como uma narrativa – mais do que sítios, datas e artefatos, serão analisados os discursos construídos a partir destes ‘dados’.

Esta proposta baseia-se nas discussões apresentadas por vários autores ao longo das últimas décadas, os quais enfatizam a dinâmica social envolvida na construção do passado. De acordo com Shanks (2007)SHANKS, Michael. Symmetrical Archaeology. World Archaeology, New York, v. 39, n. 4, p. 589-596, Dec. 2007. DOI: https://doi.org/10.1080/00438240701679676.
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, o passado é resultado de um processo marcado pela constante criação e articulação de conexões com e através dos vestígios. Como essas conexões são dinâmicas e contextuais, o passado está sendo continuamente recriado e não pode ser visto como um dado, mas sim como uma trajetória, uma relação genealógica entre ele e o presente. Essa dinâmica de interação passado-presente constitui o cerne da perspectiva que entende Arqueologia como narrativa. Segundo Joyce (2002)JOYCE, Rosemary A. The Languages of archaeology: dialogue, narrative, and writing. Hoboken: Blackwell Publishers, 2002. e Hodder (2003)HODDER, Ian. Archaeological reflexivity and the “local” voice. Anthropological Quarterly, New York, v. 76, n. 1, p. 55-69, Winter 2003. DOI: https://doi.org/10.1353/anq.2003.0010.
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, o processo de criação de narrativas permeia todos os momentos da pesquisa arqueológica, e não só a elaboração de textos. Desde os primeiros momentos da pesquisa em campo até a elaboração de textos e a sua comunicação, a Arqueologia constrói diversas narrativas e, nesse processo, cria e articula diferentes sujeitos. Assim, para estes autores, discutir a construção das narrativas arqueológicas implica não somente compreender como se produz conhecimento em arqueologia, mas também como o conhecimento arqueológico cria e/ou constrói diferentes comunidades.

Com esta perspectiva orientando nossa análise, as primeiras interrogações seriam: ao falar sobre povoamento inicial da América estamos construindo uma narrativa sobre o que, sobre quem, para quem e construída por quem? Ou seja, como se produz e quais são os sujeitos envolvidos na construção e na compreensão desse passado?

Para começar a discussão, gostaria de citar um trecho do texto de Ailton Krenak, intitulado “Antes o mundo não existia”:

Aqui nesta região do mundo, que a memória mais recente instituiu que se chama América, aqui nesta parte mais restrita, que nós chamamos de Brasil, muito antes de ser ‘América’ e muito antes de ter um carimbo de fronteiras que separa os países vizinhos e distantes, nossas famílias grandes já viviam aqui. Essas nossas famílias grandes, que já viviam aqui, são essa gente que hoje é reconhecida como tribos.

(Krenak, 1992KRENAK, Ailton. Antes o mundo não existia. In: NOVAES, Adauto (org.). Tempo e História. São Paulo: Companhia das Letras, 1992. p. 201-204., p. 201).

Krenak (1992, p. 201)KRENAK, Ailton. Antes o mundo não existia. In: NOVAES, Adauto (org.). Tempo e História. São Paulo: Companhia das Letras, 1992. p. 201-204. exprime aqui a necessidade de reorientação do ponto central da análise arqueológica: a Arqueologia convencionalmente chamada de pré-histórica ou pré-colonial no Brasil, que lida, entre outros temas, com o do povoamento inicial da América, deve ser vista essencialmente como História indígena, como uma história sobre essas “[...] famílias grandes que já viviam aqui” (Oliveira, 2012OLIVEIRA, Jorge Eremites de. A história indígena no Brasil e em Mato Grosso do Sul. Espaço Ameríndio, Porto Alegre, v. 6, n. 2, p. 178-218, jul./dez. 2012. DOI: https://doi.org/10.22456/1982-6524.31745.
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; Franchetto; Heckenberger, 2001FRANCHETTO, Bruna; HECKENBERGER, Michael (org.). Os povos do Alto Xingu: história e cultura. Rio de Janeiro: UFRJ, 2001.; Fausto; Heckenberger, 2007FAUSTO, Carlos; HECKENBERGER, Michael. Indigenous History and the History of the Indians. In: FAUSTO, Carlos; HECKENBERGER, Michael (ed.). Time and memory in indigenous Amazonia: anthropological perspectives. Gainesville: University Press of Florida, 2007. p. 1-43.; Fausto, 2000FAUSTO, Carlos. Os índios antes do Brasil. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Editor, 2000.; Machado, 2017MACHADO, Juliana Salles. Arqueologias indígenas, os Laklãnõ Xokleng e os objetos do pensar. Revista de Arqueologia, Pelotas, v. 30, n. 1, p. 89-119, jul. 2017. DOI: https://doi.org/10.24885/sab.v30i1.504.
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; Neves, E., 1997, 2015; Silva; Noelli, 2016SILVA, Fabíola Andréa; NOELLI, Francisco Silva. História indígena e arqueologia: uma reflexão a partir dos estudos sobre os Jê Meridionais. Revista do Museu de Arqueologia e Etnologia, São Paulo, n. 27, p. 5-20, dez. 2016. DOI:https://doi.org/10.11606/issn.2448-1750.revmae.2016.137271.
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; Silva, 2014SILVA, Fabíola Andréa. El pasado en el presente de los Asurini do Xingu: narrativas arqueológicas y narrativas indígenas. In: RIVOLTA, María Clara; MONTENEGRO, Mónica; FERREIRA, Lucio Menezes; NASTRI, Javier (ed.). Multivocalidad y activaciones patrimoniales en Arqueología: perspectivas desde Sudamérica. Ciudad Autónoma de Buenos Aires: Fundación de Historia Natural Félix de Azara, 2014. p. 35-59.).

O que fazemos ao produzir conhecimento arqueológico sobre esse longo período da História é construir narrativas sobre histórias dos povos originários das Américas. A adoção desta perspectiva traz para o centro do debate a possibilidade de elaboração de discursos alternativos, fundamentados em uma revisão crítica do termo ‘pré-história’, e viabiliza a desconstrução de um rompimento construído e reforçado ao longo do processo de colonização das Américas, consolidado e quase naturalizado pelo discurso científico, a partir do final do século XIX (Rosa, 2015ROSA, Francis Mary Soares Correia da. A invenção do índio. Espaço Ameríndio, Porto Alegre, v. 9, n. 3, p. 257-277, jul./dez. 2015.; Quijano, 2005QUIJANO, Aníbal. Colonialidad del poder, eurocentrismo y América Latina. In: LANDER, Edgardo (org.). A colonialidade do saber: eurocentrismo e ciências sociais: perspectivas latino-americanas. Buenos Aires: CLACSO, 2005. p. 227-278., 2009; Schwarcz, 1993SCHWARCZ, Lilia Moritz. O espetáculo das raças: cientistas, instituições e questão racial no Brasil 1870-1930. São Paulo: Companhia das Letras, 1993.). Rompimento entre um mundo pré e pós-invasão europeia, um mundo que separa as sociedades ameríndias de sua história e que, ao fazê-lo, cria um discurso que, para além do distanciamento temporal, provoca também um movimento de expropriação da terra (Albert, 2005ALBERT, Bruce. Territoriality, ethnopolitics, and development: the indian movement in the Brazilian Amazon. In: SURRALÉS, Alexandre; HIERRO, Pedro García (ed.). The land within: indigenous territory and the perception of environment. Copenhagen: IWGIA, 2005. p. 200-229.; Oliveira, 2015OLIVEIRA, Jorge Eremites de. Arqueologia de contrato, colonialismo interno e povos indígenas no Brasil. Amazônica: Revista de Antropologia, Belém, v. 7, n. 2, p. 354-374, set. 2015. DOI: http://dx.doi.org/10.18542/amazonica.v7i2.3451.
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; Hierro, 2005HIERRO, Pedro García. Indigenous territories: knocking at the Gates of Law. In: SURRALÉS, Alexandre; HIERRO, Pedro García (ed.). The Land within: indigenous territory and the perception of environment. Copenhagen: IWGIA, 2005. p. 252-280.; Silva, 2011SILVA, Fabíola Andréa. O patrimônio arqueológico em terras indígenas: algumas considerações sobre o tema no Brasil. In: FERREIRA, Lúcio Menezes; FERREIRA, Maria Letícia Mazzucchi; ROTMAN, Mónica B. (org.). Patrimônio cultural no Brasil e na Argentina: estudos de caso. São Paulo: Annablume, 2011. p. 193-219.). Esse discurso criou para essas sociedades um não lugar: perdidas em um tempo imemorial, elas ocuparam (e ainda ocupam) lugares que ficaram relegados a um tempo não mais existente, desaparecidos do mapa, sem história, sem gente, pois, para esta narrativa, quando os europeus aqui chegaram, encontraram ‘terra virgem’ – uma terra sem história.

Minha proposta aqui é integrar a este debate a pesquisa sobre povoamento da América, muitas vezes transportada para um suposto passado imemorial e neutro, quase fictício, que se pretende sem relação com o mundo contemporâneo, onde esse passado é construído. Nessa perspectiva, a discussão sobre povoamento inicial da América deve ser entendida como uma narrativa sobre origem dos povos ameríndios e, portanto, como marco fundador de uma História indígena. Mas refletir sobre a antiguidade deste processo não seria uma questão também resultante de uma narrativa? Sabemos que as interrogações sobre quando este processo teve início constituem um dos temas mais polêmicos no debate sobre o povoamento americano. Há inúmeros textos sobre isso e a maioria deles apresenta ou refuta dados sobre sítios, datas, conjuntos artefatuais e modelos de povoamento em escala continental, amparados em diferentes tipos de evidência. Aqui, no entanto, propomos tratar este tema a partir de outra pergunta: pode um ‘Novo Mundo’ ser antigo?

Ao adotar essa perspectiva, compartilhamos as críticas que vêm sendo apresentadas nas últimas décadas a respeito da utilização do conceito de ‘pré-história’, argumentando por uma perspectiva baseada na ideia de Deep History (‘história profunda’), tal como discutida por Shryock e Smail (2011)SHRYOCK, Andrew; SMAIL, Daniel Lord. Introduction. In: SHRYOCK, Andrew; SMAIL, Daniel Lord. Deep history: the architecture of past and present. Berkeley: University of California Press, 2011. p. 3-20., Smail e Shryock (2013)SMAIL, Daniel Lord; SHRYOCK, Andrew. History and the ‘pre’. The American Historical Review, Bloomington, v. 118, n. 3, p. 709-757, June 2013. DOI: https://doi.org/10.1093/ahr/118.3.709.
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, McGrath (2015)MCGRATH, Ann; JEBB, Mary Anne (ed.). Long history, deep time: deepening histories of place. Australia: ANU, 2015. e Griffthis (2000)GRIFFTHIS, Tom. Travelling in Deep Time: la longue durée in Australian history. Australian Humanities Review, Australia, n. 18, p. 1-6, June 2000.. Segundo Smail e Shryock (2013, p. 713)SMAIL, Daniel Lord; SHRYOCK, Andrew. History and the ‘pre’. The American Historical Review, Bloomington, v. 118, n. 3, p. 709-757, June 2013. DOI: https://doi.org/10.1093/ahr/118.3.709.
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:

As a by-product of relentless boundary maintenance, the ‘pre’ does not constitute a historical era in its own right. Rather, it is a narrative space auto-populated by features that define temporal Otherness for the self-consciously modern observer. The ‘pre’ is the domain of tradition, nature, stasis, childhood, rawness, simplicity, enchantment, and superstition. To engage with it directly, as such, is to accept a language of moral superiority and political disablement that few scholars are now willing to speak or tolerate. The specific content of this time/space is problematic because the temporal frame it occupies is stigmatized or, in a reversal of moral polarities, romanticized. Avoidance is a common response.1 1 “Como subproduto de uma persistente manutenção de fronteiras, o ‘pré’ não constitui uma era histórica por si só. Pelo contrário, é um espaço narrativo autopovoado por características que definem a alteridade temporal para o observador conscientemente moderno. O ‘pré’ é o domínio da tradição, natureza, estase, infância, crueza, simplicidade, encantamento e superstição. Engajar-se diretamente com isso, como tal, é aceitar uma linguagem de superioridade moral e incapacidade política que poucos acadêmicos estão dispostos a falar ou tolerar. O conteúdo específico deste tempo/espaço é problemático porque o quadro temporal que ocupa é estigmatizado ou, numa inversão das polaridades morais, romantizado. Evitar é uma resposta comum” (Smail; Shryock, 2013, p. 713, tradução nossa).

Nessa mesma linha de argumentação, destaco ainda a proposta do arqueólogo Gamble (2013GAMBLE, Clive. Settling the earth: the archaeology of Deep Human history. Cambridge: Cambridge University Press, 2013., 2015)GAMBLE, Clive. The anthropology of deep history. Journal of the Royal Anthropological Institute, London, v. 21, n. 1, p. 147-164, Mar. 2015. DOI: https://doi.org/10.1111/1467-9655.12140.
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, que vem, nos últimos anos, trabalhando de forma sistemática para construção de um argumento baseado na ideia de ‘tempo profundo’, através da união entre Geografia, Arqueologia, Antropologia e História.

Segundo Gamble (2015)GAMBLE, Clive. The anthropology of deep history. Journal of the Royal Anthropological Institute, London, v. 21, n. 1, p. 147-164, Mar. 2015. DOI: https://doi.org/10.1111/1467-9655.12140.
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, um dos principais motivos pelos quais deveríamos abondonar o conceito de ‘pré-história’ está relacionado ao fato de este dividir um continuum histórico, resultando em uma abordagem sobre o passado marcada por fragmentações e descontinuidades. Para Gamble (2015)GAMBLE, Clive. The anthropology of deep history. Journal of the Royal Anthropological Institute, London, v. 21, n. 1, p. 147-164, Mar. 2015. DOI: https://doi.org/10.1111/1467-9655.12140.
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, o termo mais apropriado para substituí-lo seria Deep History (‘história profunda’), conceito este inspirado pela noção de Deep Time (‘tempo profundo’), utilizado pela Geologia. Uma remodelação deste conceito para utilização na Antropologia permitiria enfatizar o caráter relacional e racional da história humana, buscando elementos de continuidade e articulação. Nesse sentido, o autor, que trabalha eminentemente com o processo de hominização e sua dispersão pelo globo, é bastante enfático, quando afirma que “My archaeological interests are, I feel, better represented in such a deep history than in the framework offered by prehistory”2 2 “Meus interesses arqueológicos são, eu sinto, melhor representados pela história profunda do que pela perspectiva oferecida pela pré-história” (Gamble, 2015, p. 154, tradução nossa).3 (Gamble, 2015GAMBLE, Clive. The anthropology of deep history. Journal of the Royal Anthropological Institute, London, v. 21, n. 1, p. 147-164, Mar. 2015. DOI: https://doi.org/10.1111/1467-9655.12140.
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, p. 154).

ORIGENS DOS POVOS AMERÍNDIOS: DIFERENTES PERSPECTIVAS DE UM DISCURSO EM CONSTRUÇÃO

Ao discutir questões como rotas de migração, número de migrações e cronologia, (Anderson; Gillam, 2000ANDERSON, David G.; GILLAM, Christipher. Paleoindian colonization of the America: implications from an examination of physiography, demography, and artefact distribution. American Antiquity, New York, v. 65, n. 1, p. 43-66, Jan. 2000. DOI: https://doi.org/10.2307/2694807.
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; Dixon, 2001DIXON, E. James. Human colonization of the Americas: timing, technology and process. Quaternary Science Reviews, Amsterdam, v. 20, n. 1-3, p. 277-299, Jan. 2001. DOI: https://doi.org/10.1016/S0277-3791(00)00116-5.
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; Lanata et al., 2008LANATA, José Luis; MARTINO, Luis; ORSELLA, Ana; GARCIA-HERBST, Arleen. Demographic conditions necessary to colonize new spaces: the case for early human dispersal in the Americas. World Archaeology, London, v. 40, n. 4, p. 520-37, Nov. 2008. DOI: https://doi.org/10.1080/00438240802452890.
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; Goebel et al., 2008GOEBEL, Ted; WATERS, Michael R.; O’ROURKE, Dennis H. The Late Pleistocene dispersal of modern humans in the Americas. Science, Washington, v. 319, n. 5869, p. 1497-1502, Mar. 2008. DOI: https://doi.org/10.1126/science.1153569.
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; Madsen, 2015MADSEN, David B. A framework for the initial occupation of the Americas. PaleoAmerica, London, v. 1, n. 3, p. 217-250, Aug. 2015. DOI: https://doi.org/10.1179/2055557115Y.0000000006.
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; Tamm et al., 2007TAMM, Erika; KIVISILD, Toomas; REIDLA, Maere; METSPALU, Mait; SMITH, David Glenn; MULLIGAN, Connie J.; BRAVI, Claudio M.; RICKARDS, Olga; MARTINEZ-LABARGA, Cristina; KHUSNUTDINOVA, Elsa K.; FEDOROVA, Sardana A.; GOLUBENKO, Maria V.; SEPANOV, Vadim A.; GUBINA, Marina A.; ZHADANOV, Sergey I.; OSSIPOVA, Ludmila P.; DAMBA, Larisa; VOEVODA, Mikhail I.; DIPIERRI, Jose I.; VILLEMS, Richard; MALHI, Ripan S. Beringian standstill and spread of native American founders. PlosOne, San Francisco, v. 2, n. 9, p. e829, Sept. 2007. DOI: https://doi.org/10.1371/journal.pone.0000829.
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; Graf, 2014GRAF, Kelly E.; KETRON, Caroline V.; WATERS, Michael R. (ed.). Paleoamerican odissey. College Station: Texas A&M University, 2014.; Goebel, 2008GOEBEL, Ted; WATERS, Michael R.; O’ROURKE, Dennis H. The Late Pleistocene dispersal of modern humans in the Americas. Science, Washington, v. 319, n. 5869, p. 1497-1502, Mar. 2008. DOI: https://doi.org/10.1126/science.1153569.
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; Neves, W.; Hubbe, 2005NEVES, Walter Alves; HUBBE, Mark. Cranial morphology of Early American from Lagoa Santa, Brazil: implications for the settlement of the New World. PNAS, Washington, v. 102, n. 51, p. 18309-18314, Dec. 2005. DOI: https://doi.org/10.1073/pnas.0507185102.
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), estamos nos perguntando de onde, quando e como vieram para as Américas as primeiras populações de humanos anatomicamente modernos. Assim, discutir o número de migrações, o tamanho dos grupos humanos que começaram a se estabelecer neste continente, as dinâmicas de dispersão, diversificação e interação cultural é também, de certa forma, discutir quando começa a história desse continente no que diz respeito à presença humana, não como campo de conhecimento científico, mas como transformações decorrentes do processo de interação entre pessoas e grupos que atuam conscientemente ou não no sentido de manter e transformar os contextos sociais vigentes.

A História, em termos de atividades, significados, relações sociais entre pessoas, grupos de pessoas e lugares, remonta, nas Américas, a esse período de entrada inicial no continente. Embora esta perspectiva seja ainda tímida aqui, há críticas e propostas que vem sendo construídas na Austrália, na África e na Índia, que podem servir como referências importantes para encaminhar a discussão relativa à crítica ao uso do conceito de ‘pré-história’ para se referir a este período anterior ao processo de colonização, iniciado a partir dos séculos XV-XVI (Ogundiran, 2013OGUNDIRAN, Akinwumi. The end of Prehistory? An africanist comment. American Historical Review, New York, v. 118, n. 3, p. 788-801, June 2013. DOI: https://doi.org/10.1093/ahr/118.3.788.
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; McGrath; Jebb, 2015MCGRATH, Ann; JEBB, Mary Anne (ed.). Long history, deep time: deepening histories of place. Australia: ANU, 2015.; Trautmann, 2011TRAUTMANN, Thomas R. The past in the present. Fragments, Ann Arbor, v. 1, 2011.).

Se entendemos a discussão nesses termos, podemos inseri-la ou colocá-la para dialogar com outras histórias sobre origens, lugares, tempos, seres, envolvidos no surgimento dos humanos no mundo, as quais têm sido contadas à sociedade ocidental desde os primeiros encontros do século XVI (Albert; Ramos, 2002ALBERT, Bruce; RAMOS, Alcida Rita. Pacificando o branco: cosmologias do contato no norte-amazônico. São Paulo: Editora UNESP, 2002.; Barreto; Machado, 2001BARRETO, Cristiana; MACHADO, Juliana Salles. Exploring the Amazon, explaining the unknown: views from the past. In: MCEWAN, Colin; BARRETO, Cristiana; NEVES, Eduardo (ed.). Unknown Amazon. London: The British Museum Press, 2001. p. 232-251.; Cunha, 1992CUNHA, Manuela Carneiro da (org.). História dos índios no Brasil. São Paulo: Companhia das Letras, 1992.; Fausto; Heckenberger, 2007FAUSTO, Carlos; HECKENBERGER, Michael. Indigenous History and the History of the Indians. In: FAUSTO, Carlos; HECKENBERGER, Michael (ed.). Time and memory in indigenous Amazonia: anthropological perspectives. Gainesville: University Press of Florida, 2007. p. 1-43.; Grupioni, 1994GRUPIONI, Luís Donisete Benzi (org.). Índios no Brasil. Brasília: MEC, 1994.; Krenak, 1992KRENAK, Ailton. Antes o mundo não existia. In: NOVAES, Adauto (org.). Tempo e História. São Paulo: Companhia das Letras, 1992. p. 201-204.; Kopenawa; Albert, 2010KOPENAWA, Davi; ALBERT, Bruce. A queda do céu: palavras de xamã yanomami. São Paulo: Companhia das Letras, 2010.).

Com os referenciais teóricos e os compromissos políticos de sua época, desde os primeiros viajantes que chegaram às Américas e adentraram o continente, construíram-se narrativas sobre o presente e o passado dos povos ameríndios (Barreto; Machado, 2001BARRETO, Cristiana; MACHADO, Juliana Salles. Exploring the Amazon, explaining the unknown: views from the past. In: MCEWAN, Colin; BARRETO, Cristiana; NEVES, Eduardo (ed.). Unknown Amazon. London: The British Museum Press, 2001. p. 232-251.; Ferreira, 2010FERREIRA, Lúcio Menezes. Território primitivo: a institucionalização da Arqueologia no Brasil (1870-1917). Porto Alegre: EDIPUCRS, 2010.; Noelli; Ferreira, 2007NOELLI, Francisco Silva; FERREIRA, Lúcio Menezes. A persistência da teoria da degeneração indígena e do colonialismo nos fundamentos da arqueologia brasileira. História, Ciências, Saúde-Manguinhos, Rio de Janeiro, v. 14, n. 4, p. 1237-1264, out./dez. 2007. DOI: http://dx.doi.org/10.1590/S0104-59702007000400008.
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). Ainda nos séculos XVI e XVII, essas narrativas estão permeadas por uma mistura de estranhamento e fascínio, direcionados pela imposição da dominação. Uma marca dessas narrativas é a utilização recorrente de aspectos da mitologia clássica para caracterização e descrição de aspectos das sociedades ameríndias, em uma narrativa que envolve a desconstrução de suas singularidades, através da atribuição de um presente que pode ter sido construído por meio do compartilhamento de aspectos que caracterizam também o passado da própria sociedade europeia (Belluzzo, 1994BELLUZZO, Ana Maria de M. A lógica das imagens e os habitantes do Novo Mundo. In: GRUPIONI, Luís Donisete Benzi (org.). Índios no Brasil. Brasília: MEC, 1994. p. 47-58.; Bettencourt, 1994BETTENCOURT, Lúcia. Cartas brasileiras: visão e revisão dos índios. In: GRUPIONI, Luís Donisete Benzi (org.). Índios no Brasil. Brasília: MEC, 1994. p. 39-46.). As sociedades do Velho e do Novo Mundo se 'reconectam' pela construção de um suposto passado comum, o qual envolve o compartilhamento de certos aspectos dessas sociedades (Barreto; Machado, 2001BARRETO, Cristiana; MACHADO, Juliana Salles. Exploring the Amazon, explaining the unknown: views from the past. In: MCEWAN, Colin; BARRETO, Cristiana; NEVES, Eduardo (ed.). Unknown Amazon. London: The British Museum Press, 2001. p. 232-251.; Fausto, 2000FAUSTO, Carlos. Os índios antes do Brasil. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Editor, 2000.; Ferreira, 2010FERREIRA, Lúcio Menezes. Território primitivo: a institucionalização da Arqueologia no Brasil (1870-1917). Porto Alegre: EDIPUCRS, 2010.). Nesse contexto, uma das primeiras hipóteses apresentadas com relação à origem e à possível rota de conexão entre Velho e Novo Mundo chama a atenção já para a probabilidade de uma ligação terrestre, nas longínquas terras ao norte, conforme proposta pelo padre Acosta, em 1590 (Hrdlicka, 1935HRDLICKA, Ales. Melanesians and Australians and the Peopling of America. Smithsonian Miscellaneous Collections, Washington, v. 94, n. 11, p. 1-58, Oct. 1935.).

Podemos dizer, no entanto, que é a partir da segunda metade do século XVIII que formulações mais sistemáticas sobre as origens dos povos ameríndios passam a ser elaboradas. Nesse âmbito, merece menção a proposta do naturalista alemão Alexandre von Humbolt, que propõe uma unidade racial para a origem dos povos ameríndios, descendentes de uma raça oriunda da Ásia, que teria proliferado ao longo do tempo, passando por várias mudanças (Barreto; Machado, 2001BARRETO, Cristiana; MACHADO, Juliana Salles. Exploring the Amazon, explaining the unknown: views from the past. In: MCEWAN, Colin; BARRETO, Cristiana; NEVES, Eduardo (ed.). Unknown Amazon. London: The British Museum Press, 2001. p. 232-251.; Barreto, 1999BARRETO, Cristiana. A construção de um passado pré-colonial: uma breve história da Arqueologia no Brasil. Revista USP, São Paulo, n. 44, p. 32-51, dez./fev. 1999-2000. DOI: https://doi.org/10.11606/issn.2316-9036.v0i44p32-51.
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-2000).

Após 1822, a discussão sobre origens dos povos ameríndios recebe outras conotações, na primeira metade do século XIX, e adquire um novo papel, diretamente atrelado à identidade para a nação em construção

(Ferreira, 1999FERREIRA, Lúcio Menezes. Vestígios de civilização: o Instituto Histórico e Geográfico Brasileiro e a construção da Arqueologia Imperial (1838-1870). Revista de História Regional, Ponta Grossa, v. 4, n. 1, p. 9-36, verão 1999.; Noelli, 2005NOELLI, Francisco Silva. Rethinking stereotypes and the history of research on Jê populations in South Brazil: an interdisciplinary point of view. In: FUNARI, Pedro Paulo; ZARANKIN, Andrés; STOVEL, Emily (ed.). Global archaeological theory: contextual voices and contemporary thoughts. New York: Kluwer Academic: Plenum Publishers, 2005. p. 167-190.; Schwarcz, 1993SCHWARCZ, Lilia Moritz. O espetáculo das raças: cientistas, instituições e questão racial no Brasil 1870-1930. São Paulo: Companhia das Letras, 1993.; Sequeira, 2005SEQUEIRA, Ana Cristina Piñón. Brazilian Archaeology: indigenous identity in the early decades of the twentieth century. In: FUNARI, Pedro Paulo; ZARANKIN, Andrés; STOVEL, Emily (ed.). Global archaeological theory: contextual voices and contemporary thoughts. New York: Kluwer Academic: Plenum Publishers, 2005. p. 353-364.). No Instituto Histórico e Geográfico Brasileiro (IHGB), discursos oficiais sobre essas origens são construídos por historiadores através da articulação de dados oriundos da Filologia, da Etnografia, da Arqueologia e da História. Dois personagens assumem papel de destaque nesse momento – Varhagen e von Martius. Apesar de haver variações no posicionamento político e também em aspectos metodológicos entre os dois, ambos são uníssonos em apontar uma origem externa para esses povos. Seja em outros lugares das Américas, mais precisamente nas terras altas, como no caso de von Martius, seja além-mar, com hebreus, fenícios e gregos, como no caso de Varhagen, a origem dos povos ameríndios remetia não só a locais exógenos, como também a um passado já perdido em tempos imemoriais. As sociedades por eles estudadas no presente não passariam de ‘ruínas de povos’, resultado de um processo de degeneração, decorrente de miscigenações e influências ambientais promovidas durante uma incessante migração desde a dispersão que tiveram dos locais de origem (Ferreira, 1999FERREIRA, Lúcio Menezes. Vestígios de civilização: o Instituto Histórico e Geográfico Brasileiro e a construção da Arqueologia Imperial (1838-1870). Revista de História Regional, Ponta Grossa, v. 4, n. 1, p. 9-36, verão 1999.; Noelli; Ferreira, 2007NOELLI, Francisco Silva; FERREIRA, Lúcio Menezes. A persistência da teoria da degeneração indígena e do colonialismo nos fundamentos da arqueologia brasileira. História, Ciências, Saúde-Manguinhos, Rio de Janeiro, v. 14, n. 4, p. 1237-1264, out./dez. 2007. DOI: http://dx.doi.org/10.1590/S0104-59702007000400008.
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).

Esse discurso, construído oficialmente pelo IHGB, pode ser entendido também como a primeira formulação mais direta e oficial no sentido de criar uma total dissociação entre passado e presente (Ferreira, 2005FERREIRA, Lúcio Menezes. Footsteps of the American race. Archaeology, Ethnography, and Romanticism in Imperial Brazil (1838-1867). In: FUNARI, Pedro Paulo; ZARANKIN, Andrés; STOVEl, Emily (ed.). Global archaeological theory: contextual voices and contemporary thoughts. New York: Kluwer Academic: Plenum Publishers, 2005. p. 337-352.; Sequeira, 2005SEQUEIRA, Ana Cristina Piñón. Brazilian Archaeology: indigenous identity in the early decades of the twentieth century. In: FUNARI, Pedro Paulo; ZARANKIN, Andrés; STOVEL, Emily (ed.). Global archaeological theory: contextual voices and contemporary thoughts. New York: Kluwer Academic: Plenum Publishers, 2005. p. 353-364.; Lima, 2007LIMA, Tania Andrade. A Arqueologia na construção da identidade nacional: uma disciplina no fio da Navalha. Canindé, Xingó, n. 10, p. 11-24, dez. 2007.). Nesse caso, fomentado pela ideia de progresso e pelos ideais universais de sociedade e humanidade construídos pelo Iluminismo, teremos, ainda no século XIX, uma mudança significativa no que se refere à forma de produção do conhecimento, que passa a ser chancelado deste momento em diante pela ciência (Schwarcz, 1993SCHWARCZ, Lilia Moritz. O espetáculo das raças: cientistas, instituições e questão racial no Brasil 1870-1930. São Paulo: Companhia das Letras, 1993.). Com as obras de Charles Lyell e Charles Darwin, por exemplo, tanto o tempo como o processo de formação da terra e dos seres vivos que nela habitam passam a ser pensados sob uma dimensão completamente distinta do que se convencionava até então. Mas, mais do que isso, passa a ser possível estudar esse processo, observar, mensurar, classificar elementos que poderiam sustentar e comprovar essas novas narrativas (Trigger, 1989TRIGGER, Bruce G. A history of archaeological thought. Cambridge: Cambridge University Press, 1989.; Bicho, 2006BICHO, Nuno Ferreira. Manual de Arqueologia pré-histórica. Lisboa: Edições 70, 2006.; Rowley-Conley, 2006ROWLEY-CONLEY, Peter. The concept of pre-history and the invention of the terms “prehistoric” and “prehistorian”: the Scandinavian origin, 1833-1850. European Journal of Archaeology, London, v. 9, n. 1, p. 103-130, Apr. 2006. DOI: https://doi.org/10.1177/1461957107077709.
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). Nesse mesmo quadro, inserem-se os achados de Peter Lund na região de Lagoa Santa, no Brasil, e de Boucher de Perthes no vale do rio Somme, na França, trazendo para o centro do debate a origem da humanidade. Nesse ímpeto de classificar, ordenar, descrever e, principalmente, propor uma ordenação cronológica para a evolução cultural da humanidade, surge o conceito de ‘pré-história’ (Trigger, 1989TRIGGER, Bruce G. A history of archaeological thought. Cambridge: Cambridge University Press, 1989.; Neves, W.; Piló, 2008; Groenen, 1994GROENEN, Marc. Pour une histoire de la préhistoire. Grenble, FRA: Éditions Jerome Millon, 1994.; Rowley-Conley, 2006ROWLEY-CONLEY, Peter. The concept of pre-history and the invention of the terms “prehistoric” and “prehistorian”: the Scandinavian origin, 1833-1850. European Journal of Archaeology, London, v. 9, n. 1, p. 103-130, Apr. 2006. DOI: https://doi.org/10.1177/1461957107077709.
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; Kehoe, 1991KEHOE, Alice B. The invention of prehistory. Current Anthropology, New York, v. 32, n. 4, p. 467-476, Aug./Oct. 1991.; Chippindale, 1988CHIPPINDALE, Christopher. The invention of words for the idea of ‘prehistory’. Proceedings of the Prehistoric Society, Cambridge, v. 54, p. 303-314, 1988. DOI: https://doi.org/10.1017/S0079497X00005867.
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; Stoczkovski, 1993STOCZKOWSKI, Wiktor. La préhistoire: les origines du concept. Bulletin de la Société Préhistorique Française, Paris, t. 90, n. 1, p. 13-21, janv./févr. 1993.).

Muito já se discutiu sobre a relação entre a constituição dos campos de conhecimento científico no século XIX e a criação dos Estados nacionais, principalmente no que se refere ao caso da História, da Arqueologia e, consequentemente, do conceito de ‘pré-história’ (Funari et al., 2005FUNARI, Pedro Paulo; ZARANKIN, Andrés; STOVEL, Emily (ed.). Global archaeological theory: contextual voices and contemporary Thoughts. New York: Kluwer Academic: Plenum Publishers, 2005.; Ferreira, 2010FERREIRA, Lúcio Menezes. Território primitivo: a institucionalização da Arqueologia no Brasil (1870-1917). Porto Alegre: EDIPUCRS, 2010.; Trigger, 1989TRIGGER, Bruce G. A history of archaeological thought. Cambridge: Cambridge University Press, 1989.; Lima, 2007LIMA, Tania Andrade. A Arqueologia na construção da identidade nacional: uma disciplina no fio da Navalha. Canindé, Xingó, n. 10, p. 11-24, dez. 2007.). Aqui, contudo, vale a pena chamar a atenção que muito mais do que o estabelecimento de relações assimétricas em nível local ou regional, abrangidos pela geografia dos Estados nacionais, a consolidação dos conceitos de ‘história e pré-história’ e as narrativas vinculadas a estes conceitos estabelecem uma geografia política em âmbito global (Smail; Shryock, 2013SMAIL, Daniel Lord; SHRYOCK, Andrew. History and the ‘pre’. The American Historical Review, Bloomington, v. 118, n. 3, p. 709-757, June 2013. DOI: https://doi.org/10.1093/ahr/118.3.709.
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; McGrath, 2015), a qual, por sua vez, está diretamente atrelada a um processo de expropriação e formação de mão de obra, colocada em operação pela expansão do sistema capitalista, causando, até os dias de hoje, implicações profundas para as sociedades autóctones de todos os países nos quais este processo foi colocado em ação (Quijano, 2005QUIJANO, Aníbal. Colonialidad del poder, eurocentrismo y América Latina. In: LANDER, Edgardo (org.). A colonialidade do saber: eurocentrismo e ciências sociais: perspectivas latino-americanas. Buenos Aires: CLACSO, 2005. p. 227-278., 2009QUIJANO, Aníbal. Colonialidade do poder e classificação social. In: SANTOS, Boaventura de Sousa; MENESES, Maria Paula (org.). Epistemologias do Sul. Coimbra: G. C. Gráfica de Coimbra Ltda., 2009. p. 73-118.).

Entre o final do século XIX e o início do século XX, ganha espaço a discussão sobre a existência de um ou mais centros de origem da humanidade, representada por propostas poli ou monogenistas, embasadas em análises de aspectos físicos de indivíduos e populações, classificadas em termos raciais (Schwarcz, 1993SCHWARCZ, Lilia Moritz. O espetáculo das raças: cientistas, instituições e questão racial no Brasil 1870-1930. São Paulo: Companhia das Letras, 1993.). É no âmbito deste debate que surgem as propostas em território brasileiro sobre o ‘homem do sambaqui’, o ‘homem de pacoval’ e o ‘homem de Lagoa Santa’ (Barreto, 1999BARRETO, Cristiana. A construção de um passado pré-colonial: uma breve história da Arqueologia no Brasil. Revista USP, São Paulo, n. 44, p. 32-51, dez./fev. 1999-2000. DOI: https://doi.org/10.11606/issn.2316-9036.v0i44p32-51.
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-2000; Souza, 1991SOUZA, Alfredo M. de. História da Arqueologia brasileira. Pesquisas-Série Antropologia, São Leopoldo, n. 46, 157 p., 1991.). É também nesse contexto que surge o argumento de Florentino Ameghino, paleontólogo argentino que propunha a América, mais precisamente a Argentina, como o centro de origem da humanidade, uma vez que fósseis de sepultamentos humanos teriam sido encontrados em depósitos Terciários nos Pampas e na Patagônia (Podgorny, 2015PODGORNY, Irina. Human origins in the New World? Florentino Ameghino and the emergence of prehistoric archaeology in the Americas (1875-1912). Paleo America, London, v. 1, n. 1, p. 68-80, Jan. 2015. DOI: https://doi.org/10.1179/2055556314Z.0000000008.
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).

Embora ao longo do século XX as teorias poligenistas tenham perdido força, não é de todo raro encontrarmos, ainda hoje, defensores desta proposta, que, contudo, baseiam-se em outros dados, argumentos e teorias significativamente distintas das apresentadas no final do século XIX. Assim, embora não de todo hegemônica, prevalece hoje a hipótese de uma origem única para a humanidade no continente africano (Neves, W. et al., 2015NEVES, Walter Alves; RANGEL JUNIOR, Miguel José; MURRIETA, Rui Sérgio S. (org.). Assim caminhou a humanidade. São Paulo: Palas Athena, 2015.). Com essa perspectiva, a discussão sobre a origem dos povos ameríndios toma um novo rumo, ocupando o centro do debate a seguinte questão: uma vez que toda a humanidade surgiu em algum momento na África, como explicar a presença de povos nas Américas antes da chegada dos Europeus? (Gamble, 1993GAMBLE, Clive. Timewalkers: the prehistory of global colonization. Cambridge: Harvard University Press, 1993., 2013GAMBLE, Clive. Settling the earth: the archaeology of Deep Human history. Cambridge: Cambridge University Press, 2013.).

Essa discussão ganha novos dados e estímulos através de estudos oriundos de outras áreas do conhecimento, também fomentados no bojo das mudanças conceituais que marcam o século XIX. Uma delas certamente envolve os estudos desenvolvidos por Louis Agassiz a respeito das geleiras no Hemisfério Norte, por sua vez relacionada à discussão sobre as glaciações e seus impactos no clima e na história geológica da Terra, com principal atenção para o Hemisfério Norte (Adovasio; Page, 2002ADOVASIO, James M.; PAGE, Jake. Os primeiros americanos. Rio de Janeiro: Editora Record, 2002.). A partir daí, estabelece-se oficialmente a rota preferencial por meio da qual a grande maioria das narrativas sobre origem dos povos ameríndios vai procurar interligar África, Ásia e América – o estreito de Behring (Adovasio; Page, 2002ADOVASIO, James M.; PAGE, Jake. Os primeiros americanos. Rio de Janeiro: Editora Record, 2002.).

Apesar de, ao longo do século XX, encontrarmos pesquisadores que apontam para a possibilidade de outras rotas, como Paul Rivet, que propõe a ocorrência de migrações transpacíficas, a grande maioria das propostas envolve, necessariamente, uma rota via estreito de Behring e, portanto, um caminho com direção definida de Norte para Sul (Hrdlicka, 1935HRDLICKA, Ales. Melanesians and Australians and the Peopling of America. Smithsonian Miscellaneous Collections, Washington, v. 94, n. 11, p. 1-58, Oct. 1935.; Rivet, 1960RIVET, Paul. As origens do homem americano. 8. ed. São Paulo: Anhambi, 1960.; Sanabria, 2013SANABRIA, Isabela Soraia Backx. Paul Rivet e Paulo Duarte: discursos sobre Humanismo e Arqueologia no Brasil. 2013. Dissertação (Mestrado em História) – Instituto de Filosofia e Ciências Humanas, Universidade Estadual de Campinas, Campinas, 2013.; Souza, 1991SOUZA, Alfredo M. de. História da Arqueologia brasileira. Pesquisas-Série Antropologia, São Leopoldo, n. 46, 157 p., 1991.).

Esse caminho abre espaço para uma sucessão de narrativas que, ao longo do século XX, se sofisticaram, incluindo novos dados, utilizando novas metodologias e detalhando esse processo. Essas propostas aparecem já nos trabalhos de Hrdlicka (1935)HRDLICKA, Ales. Melanesians and Australians and the Peopling of America. Smithsonian Miscellaneous Collections, Washington, v. 94, n. 11, p. 1-58, Oct. 1935. no início do século XX, ganham outras formulações com os achados de Wild Horse e Blackwater Draw no Novo México (Mason, 1962MASON, Ronald J. The Paleo-Indian Tradition in Eastern North America. Current Anthropology, New York, v. 3, n. 3, p. 227-278, June 1962.), com a publicação de uma síntese das primeiras datações radiocarbônicas para os sítios Clovis (Haynes Junior, 1964HAYNES JUNIOR, C. Vance. Fluted projectile points: their age and dispersion. Science, New York, v. 145, n. 3, p. 1408-1413, Sept. 1964. DOI: https://doi.org/10.1126/science.145.3639.1408.
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), e ganham sentido na teoria da sobre-matança da megafauna (overkill hypothesis), apresentada por Martin (1973)MARTIN, Paul S. The discovery of America. Science, New York, v. 179, n. 4077, p. 969-974, Mar. 1973. DOI: https://doi.org/10.1126/science.179.4077.969.
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. Elas são, ainda, reforçadas com a utilização de novas evidências biológicas e linguísticas no modelo de Greenberg et al. (1986)GREENBERG, Joseph H.; TURNER II, Christy G.; ZEGURA, Stephen L. The settlement of the Americas: a comparison of the linguistic, dental and genetic evidence. Current Anthropology, Chicago, v. 27, n. 5, p. 477-497, Dec. 1986..

Assim, o modelo Clóvis First começa a ser gestado no início do século XX, em um período anterior ainda à descoberta do método de datação por radiocarbono. Nas décadas de 1930 a 1950, seguindo-se às descobertas no Novo México, vários artigos são publicados com discussões sobre a cronologia relativa das pontas de projétil encontradas em sítios arqueológicos associados à megafauna extinta do Pleistoceno, sobre a possível origem desses grupos de caçadores-coletores e sobre as rotas seguidas para povoamento da América do Norte3 3 Ver Mason (1962), para uma síntese das pesquisas realizadas na América do Norte sobre povoamento inicial da América. . Já neste período, ganha força a ideia de um povoamento associado a grupos de caçadores-coletores que teriam migrado para a América, cruzando o estreito de Behring e adentrado o continente através de um corredor livre de gelo, formado entre as duas grandes geleiras que cobriam praticamente todo o território do Canadá e a parte norte dos Estados Unidos da América. Tendo em vista que esse modelo começa a ser formulado antes da descoberta do método de datação por C14, os principais elementos para estabelecer uma antiguidade relativa aos vestígios encontrados envolviam associações com aspectos da geologia e da paleontologia, ou seja, artefatos encontrados em camadas geológicas relacionados ao período glacial ou pós-glacial e/ou associados a elementos da fauna que remetessem a este período. Colocando a questão nestes termos, podemos propor que a associação com a megafauna foi, inicialmente, um artifício metodológico para inferir antiguidade aos contextos arqueológicos. Nas décadas seguintes, o que era inicialmente um artifício metodológico transformou-se em característica principal de um modelo construído para explicar todo o processo de ocupação do continente americano. A natureza tautológica deste raciocínio não fugiu à crítica de Willey e Phillips (1958, p. 80)WILLEY, Gordon R.; PHILLIPS, Philip. Method and theory in American Archaeology. Chicago: The University of Chicago Press, 1958.:

The Lithic stage cannot be defined without reference to geochronological considerations. […] The effective working criteria are, therefore, associations of artifacts and other evidences of man’s activity in geological deposits, or with plant and animal remains, reflecting these times and conditions. […] The nature of these finds has led to the assumption that the pre- dominant economic activity in this stage was hunting, with major emphasis on large herbivores, including extinct Pleistocene forms, and that the general pattern of life, like that of the animals on which it depended, was migratory in the full sense of the word. The possibility of a measure of circularity entering into this assumption cannot be investigated here but certainly should not be ignored. In any case, upon this basis many American students have erected a simple historical and typological dichotomy: an early hunting stage followed by a gathering stage, each with its own characteristic technological traditions. In the present classification, although we have not been able to avoid this attractive simplification altogether, we will try to maintain a critical attitude toward it.4 4 “O estágio lítico não pode ser definido sem referência a considerações geocronológicas. […] Os critérios de trabalho efetivos são, portanto, associações de artefatos e outras evidências da atividade do homem em depósitos geológicos, ou com restos de plantas e animais, refletindo esses tempos e condições. […] A natureza desses achados levou à suposição de que a atividade econômica predominante nesse estágio era a caça, com grande ênfase nos grandes herbívoros, incluindo as formas extintas do Pleistoceno, e que o padrão geral de vida, como o dos animais dos quais dependiam, era migratório no sentido pleno da palavra. A possibilidade de uma medida de circularidade entrar nesta suposição não pode ser investigada aqui, mas certamente não deve ser ignorada. De qualquer forma, com base nisso, muitos estudantes americanos construíram uma simples dicotomia histórica e tipológica: um estágio de caça precoce seguido por um estágio de coleta, cada um com suas próprias tradições tecnológicas características. Na presente classificação, embora não tenhamos conseguido evitar totalmente essa simplificação atraente, tentaremos manter uma atitude crítica em relação a ela.” (Willey; Phillips, 1958, p. 80, tradução nossa).

O mesmo raciocínio se aplica aos artefatos líticos que poderiam claramente ser associados à atividade antrópica e incorporados como evidências de uma presença antiga do homem nas Américas. Segundo Willey e Phillips (1958)WILLEY, Gordon R.; PHILLIPS, Philip. Method and theory in American Archaeology. Chicago: The University of Chicago Press, 1958., em 1952, Alex Krieger apresentou vários contextos nos quais haveria indícios da presença de uma indústria lítica composta por núcleos e lascas, que corresponderia a um primeiro estágio lítico, possivelmente associado a indústrias do Paleolítico inferior do sudeste da Ásia e que também corresponderia às evidências mais antigas da presença do homem nas Américas. No entanto, segundo Willey e Phillips (1958)WILLEY, Gordon R.; PHILLIPS, Philip. Method and theory in American Archaeology. Chicago: The University of Chicago Press, 1958., nenhum dos contextos apresentados atenderia aos critérios de aceitação requeridos na época.

Nesse sentido, o único conjunto de artefatos líticos que apresentava uma indubitável origem antrópica estava, na época, representado pelas pontas de projétil, então denominadas Clóvis e Folsom. Isso, no entanto, gerava também consequências metodológicas para este debate. Segundo Willey e Phillips (1958, p. 86)WILLEY, Gordon R.; PHILLIPS, Philip. Method and theory in American Archaeology. Chicago: The University of Chicago Press, 1958.:

The consequent emphasis on projectile points – the various types of which are used for identifying the ‘cultures’ – and on knives, scrapers, and other tools supposedly used in butchering, skinning, and preparing skins, has undoubtedly resulted in a one-sided view expressed in the frequent designation ‘early hunting cultures’. The earliest cultures of this category are Clovis and Folsom, with their celebrated fluted projectile points and extinct faunal associations.5 5 “A consequente ênfase em pontas de projéteis – os vários tipos que são usados para identificar as ‘culturas’ – e em facas, raspadores e outras ferramentas supostamente usadas para descarnar, limpar e preparar peles, sem dúvida resultou em uma visão unilateral expressa na designação frequente de ‘culturas primitivas de caça’. As culturas mais antigas dessa categoria são Clovis e Folsom, com suas célebres pontas de projétil acaneladas e associações de fauna extintas.” (Willey; Phillips, 1958, p. 86, tradução nossa).

Essas duas citações da obra “Method and theory in American Archaeology” mostram que, no final da década de 1950, havia uma discussão sobre possibilidade da existência de sítios mais antigos do que aqueles associados a contextos Clóvis ou Folsom, apresentando indústrias líticas e possivelmente dinâmicas de povoamento distintas. A prevalência ou a aceitação mais ampla dos contextos com pontas de projétil esteve relacionada a questões metodológicas, principalmente relevantes em um período de desenvolvimento da Arqueologia no qual as datações radiocarbônicas ainda não estavam disponíveis. Associação com megafauna e tipologia, elementos utilizados para inferir cronologia, transformaram-se em definidores de um único padrão de povoamento. Como ressaltamos, os próprios autores comentam sobre os perigos de utilizar estes elementos como indicadores de um estágio geral e inicial de povoamento.

No entanto, esta precaução parece desaparecer ou, talvez, ser sufocada ao longo da década de 1960. A partir de meados da década de 1960 (Haynes Junior, 1964HAYNES JUNIOR, C. Vance. Fluted projectile points: their age and dispersion. Science, New York, v. 145, n. 3, p. 1408-1413, Sept. 1964. DOI: https://doi.org/10.1126/science.145.3639.1408.
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) e ao longo dos anos 1970 e 1980, com inúmeras publicações sobre o tema (Dias, 2019DIAS, Adriana Schmidt. Um réquiem para Clovis. Boletim do Museu Paraense Emílio Goeldi. Ciências Humanas, Belém, v. 14, n. 2, p. 459-476, maio-ago. 2019. DOI: http://dx.doi.org/10.1590/1981.81222019000200010.
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), o que antes era uma hipótese se transforma em um paradigma que se propõe hegemônico para explicar a origem dos povos ameríndios. Mas, mais do que isso, apesar deste processo remontar, como vimos, a uma saída original da África, o tema passa a ser dominado quase exclusivamente por uma discussão sobre o processo de povoamento da América do Norte, mais especificamente do território dos Estados Unidos da América (Adovasio; Page, 2002ADOVASIO, James M.; PAGE, Jake. Os primeiros americanos. Rio de Janeiro: Editora Record, 2002.; Neves, W.; Piló, 2008; Dillehay, 2014DILLEHAY, Tom D. Entangled knowledge: old trends and new thoughts in first South American studies. In: GRAF, Kelly E.; KETRON, Caroline V.; WATERS, Michael R. (ed.). Paleoamerican odissey. College Station: Texas A&M University, 2014. p. 377-398.). A partir de então, toda e qualquer discussão relativa ao povoamento da América do Sul deve, inexoravelmente, se reportar ao contexto arqueológico do centro dos Estados Unidos (EUA), que passa a ser visto, segundo esse paradigma, como centro fundador do povoamento e de toda a diversidade cultural existente nas Américas.

O modelo Clóvis First, como ficou conhecido, definiu de uma única vez o tempo e a forma que deveria tomar o processo de povoamento de todo o continente (Graf et al., 2014GRAF, Kelly E. Siberian odyssey. In: GRAF, Kelly E.; KETRON, Caroline V.; WATERS, Michael R. (ed.). Paleoamerican odissey. College Station: Texas A&M University, 2014. p. 65-80.). Certamente, não é uma coincidência o fato de a construção e a consolidação desta narrativa ocorrer no auge da Guerra Fria, envolvendo, em sua concepção, uma clara relação de poder assimétrica entre Norte e Sul, atribuindo ao passado uma construção política do presente.

Com essa perspectiva em mente, talvez não seja também coincidência o arrefecimento deste paradigma a partir da primeira década do século XXI, momento em que vemos surgir com mais força a apresentação de novos dados de pesquisa, novas propostas teóricas que minimizam o papel desempenhado pela cultura Clóvis e pela região central dos Estados Unidos como centro fundador e irradiador de toda a diversidade cultural do continente americano (Waters; Stafford Junior, 2014WATERS, Michael R.; STAFFORD JUNIOR, Thomas Wier. The first Americans: a review of the evidence for the Late-Pleistocene peopling of the Americas. In: GRAF, Kelly E.; KETRON, Caroline V.; WATERS, Michael R. (ed.). Paleoamerican odissey. College Station: Texas A&M University, 2014. p. 541-560.; Collins et al., 2014COLLINS, Michael B.; STANFORD, Dennis J.; LOWERY, Darrin L.; BRADLEY, Bruce A. North America before Clovis: variance in temporal/spatial cultural patterns, 27,000-13,000 cal yr BP. In: GRAF, Kelly E.; KETRON, Caroline V.; WATERS, Michael R. (ed.) Paleoamerican odyssey. College Station: Texas A&M University, 2014. p. 521-540.; Dillehay, 2009DILLEHAY, Tom D. Probing deeper into first American studies. PNAS, Washington, v. 106, n. 4, p. 971-978, Jan. 2009. DOI: https://doi.org/10.1073/pnas.0808424106.
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, 2014; Borrero, 2016BORRERO, Luis Alberto. Com lo mínimo: los debates sobre el poblamiento de América del Sur. Interseciones em Antropologia, Olavarria, v. 16, n. 1, p. 5-38, jun. 2016.; Adovasio; Peddler, 2014ADOVASIO, James M.; PEDLER, David R. The ones that still won’t go away: more biased thoughts on the Pre-Clovis peopling of the New World. In: GRAF, Kelyy E.; KETRON, Caroline V.; WATERS, Michael R. (ed.). Paleoamerican odissey. College Station: Texas A&M University, 2014. p. 511-521.; Dias, 2019DIAS, Adriana Schmidt. Um réquiem para Clovis. Boletim do Museu Paraense Emílio Goeldi. Ciências Humanas, Belém, v. 14, n. 2, p. 459-476, maio-ago. 2019. DOI: http://dx.doi.org/10.1590/1981.81222019000200010.
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).

No entanto, uma vez que estamos tratando de narrativas, é fundamental destacar que as citações de Willey e Phillips, a referência ao trabalho de Krieger, assim como os trabalhos de Bryan e Grhun, de Adovasio, Dillehay, Guidon, entre outros autores, mostram que, apesar de uma suposta hegemonia, há outras narrativas sendo produzidas na Arqueologia ao longo do século XX no que diz respeito ao processo de povoamento da América.

ARQUEOLOGIA E HISTÓRIA INDÍGENA NA PERSPECTIVA DA ‘HISTÓRIA PROFUNDA’

Gostaria de retomar o conceito de ‘pré-história’ em sua relação entre distanciamento temporal e expropriação territorial a partir de outro trecho do texto de Krenak (1992, p. 201)KRENAK, Ailton. Antes o mundo não existia. In: NOVAES, Adauto (org.). Tempo e História. São Paulo: Companhia das Letras, 1992. p. 201-204.:

Nos lugares onde cada povo tinha sua marca cultural, seus domínios, nesses lugares, na tradição da maioria das nossas tribos, de cada um de nossos povos, é que está fundado um registro, uma memória da criação do mundo. Nessa antiguidade desses lugares a nossa narrativa brota, e recupera os feitos de nossos heróis fundadores.

A criação do conceito de ‘pré-história’ e, principalmente, sua utilização vinculada à ascensão dos Estados nacionais, baseados em processos de colonização desenrolados na era Moderna, estão intrinsicamente associadas a uma fragmentação da história de povos autóctones, estabelecendo um novo marco para o início da história de regiões já muito antes povoadas (Atalay, 2006ATALAY, Sonya. Indigenous Archaeology as decolonizing practice. American Indian Quarterly, Lincoln, v. 30, n. 3-4, p. 280-310, Summer-Autumn 2006. DOI: https://doi.org/10.1353/aiq.2006.0015.
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; Gosden, 2001GOSDEN, Chris. Postcolonial Archaeologies: issues of identity, culture, and knowledge. In: HODDER, Ian (ed.). Archaeological theory today. Hoboken: Willey, 2001. p. 241-260.; Trigger, 1984TRIGGER, Bruce G. Alternative archaeologies: nationalist, colonialist, imperialist. Man, London, v. 19, n. 3, p. 355-370, Sept. 1984. DOI: https://doi.org/10.2307/2802176.
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). Esse processo fica evidente no desenvolvimento histórico da disciplina arqueológica no Brasil, conforme vários autores já têm apontado (Ferreira, 2010FERREIRA, Lúcio Menezes. Território primitivo: a institucionalização da Arqueologia no Brasil (1870-1917). Porto Alegre: EDIPUCRS, 2010.; Noelli, 2005NOELLI, Francisco Silva. Rethinking stereotypes and the history of research on Jê populations in South Brazil: an interdisciplinary point of view. In: FUNARI, Pedro Paulo; ZARANKIN, Andrés; STOVEL, Emily (ed.). Global archaeological theory: contextual voices and contemporary thoughts. New York: Kluwer Academic: Plenum Publishers, 2005. p. 167-190.; Noelli; Ferreira, 2007NOELLI, Francisco Silva; FERREIRA, Lúcio Menezes. A persistência da teoria da degeneração indígena e do colonialismo nos fundamentos da arqueologia brasileira. História, Ciências, Saúde-Manguinhos, Rio de Janeiro, v. 14, n. 4, p. 1237-1264, out./dez. 2007. DOI: http://dx.doi.org/10.1590/S0104-59702007000400008.
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; Heckenberger, 2001HECKENBERGER, Michael. Estrutura, história e transformação: a cultura Xinguana na longue durée, 1000-2000 d.c. In: FRANCHETTO, Bruna; HECKENBERGER, Michael (org.). Os povos do Alto Xingu: história e cultura. Rio de Janeiro: Editora UFRJ, 2001. p. 21-62.; Silva, 2012SILVA, Fabiola Andrea. Aula magna: Arqueologia como tradução do passado no presente. Amazônica: Revista de Antropologia, Belém, v. 3, n. 2, p. 260-267, set. 2012. DOI: http://dx.doi.org/10.18542/amazonica.v3i2.768.).

Essa dissociação entre sociedades ameríndias do presente e contextos arqueológicos associados ao longo do período de ocupação do continente anterior à invasão europeia se consolidou e se disseminou na sociedade brasileira, gerando implicações políticas significativas para a luta pelos direitos dos povos originários. Mas há de se ressaltar que essa dissociação não ocorre só com relação ao período anterior à invasão, como também se perpetua entre os séculos XVI e XVIII – um exemplo claro disso é a ausência ou a ínfima quantidade de trabalhos sobre História indígena para esse período, seja no campo da História ou mesmo da Arqueologia. Esse processo não é exclusivo do Brasil, nem da América do Sul, e tem se desenrolado em outros lugares do mundo (Ogundiran, 2013OGUNDIRAN, Akinwumi. The end of Prehistory? An africanist comment. American Historical Review, New York, v. 118, n. 3, p. 788-801, June 2013. DOI: https://doi.org/10.1093/ahr/118.3.788.
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), como nos lembra McGrath (2015, p. 21)MCGRATH, Ann; JEBB, Mary Anne (ed.). Long history, deep time: deepening histories of place. Australia: ANU, 2015.:

It is worth recalling the emphasis on ‘discovery’ in the historical narratives of settler-coloniser nations like the United States, Canada and Australia, who asserted sovereignity on the basis of discovery, conquest and land takeover. These peformative enactments involved planting flags, toasting kings and delivering speeches on behalf of European monarchs – all of which took place on lands of long Indigenous connection, where ancestral remains stood as proof of sucessions of inter-generational connection. [...] If noticed at all, the long occupation of Aboriginal Australians was depicted as ‘timeless’, and certainly outside modernity.6 6 “Vale a pena recordar a ênfase em ‘descoberta’ nas narrativas históricas de nações colonizadoras como os Estados Unidos, o Canadá e a Austrália, que afirmaram a soberania com base na descoberta, conquista e aquisição de terras. Esses decretos peformativos envolveram plantar bandeiras, brindar reis e proferir discursos em nome de monarcas europeus – todos os quais ocorreram em terras de longa conexão indígena, onde restos ancestrais permaneceram como prova de sucessões de conexão intergeracional. [...] A longa ocupação dos australianos aborígines foi descrita como ‘atemporal’ e, certamente, fora da modernidade.” (McGrath, 2015, p. 21, tradução nossa).

Caminhando em sentido diametralmente contrário à proposta de dissociação entre passado e presente, podemos mencionar, por exemplo, o desfecho recente da discussão em torno do esqueleto humano encontrado no centro-oeste norte americano e conhecido como ‘The old one’ ou ‘Kennewick man’. Após uma longa controvérsia entre Estado, sociedades indígenas e arqueólogos, a qual envolveu a realização de uma série de análises sobre o indivíduo em questão, testes de DNA publicados em 2015 indicaram uma inequívoca ancestralidade de povos ameríndios, cumprindo um dos requisitos da lei de repatriamento (Native American Graves Protection and Repatriation Act - NAGPRA) nos Estados Unidos, o que garantiu a uma das sociedades indígenas requerentes do ‘The old one’ a possibilidade de realizar o seu ressepultamento (Meltzer, 2015MELTZER, David J. Kennewick Man: coming to closure. Antiquity, Cambridge, v. 89, n. 348, p. 1485-1493, Dec. 2015. DOI: https://doi.org/10.15184/aqy.2015.160.
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).

Apesar de boa parte da discussão ter se iniciado justamente em função do posicionamento contrário de arqueólogos sobre a possibilidade desta conexão, o resultado das análises genéticas aponta para uma associação clara e direta entre ‘Kennewick man’ e as populações ameríndias. Assim, este é um caso emblemático para nossa discussão, uma vez que, pelo próprio discurso científico, é estabelecida uma relação direta biológica entre sociedades do presente e do passado.

Podemos mencionar outro aspecto que segue nessa mesma direção, citando o texto do historiador Roger Echo-Hawk, membro da sociedade indígena Pawnee, nos Estados Unidos, em artigo publicado na revista American Antiquity. Segundo Echo-Hawk (2000)ECHO-HAWK, Roger C. Ancient history in the New World: integrating oral traditions and the archaeological record in deep time. American Antiquity, Washington, v. 65, n. 2, p. 267-290, Apr. 2000. DOI: https://doi.org/10.2307/2694059.
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, é possível trabalhar com a perspectiva de identificar em narrativas de vários grupos indígenas norte-americanos trechos que fazem referências a uma longa jornada, cujos locais mencionados poderiam indicar a passagem pela Beríngia. Estes trechos seriam seguidamente atualizados, mas tenderiam a permanecer como elementos centrais, uma vez que são produzidos com base em narrativas históricas pré-existentes, constituindo parte da estrutura de narrativas de origem veiculadas ainda hoje por vários grupos (Echo-Hawk, 2000ECHO-HAWK, Roger C. Ancient history in the New World: integrating oral traditions and the archaeological record in deep time. American Antiquity, Washington, v. 65, n. 2, p. 267-290, Apr. 2000. DOI: https://doi.org/10.2307/2694059.
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).

Mais do que essas ‘evidências’, no entanto, é absolutamente necessário incluir nessa discussão sobre ‘origem’ dos povos ameríndios não só outras narrativas, mas também a existência de outras temporalidades. Conforme menciona Daniel Smail, o ‘presente’ da História não é sempre almejado, necessário e positivo para todas as sociedades em todos os contextos. O autor cita um diálogo entre um antropólogo e um grupo de jovens indígenas na Austrália, onde um dos jovens afirma que, apesar dos cientistas dizerem que os aborígenes tenham chegado a Austrália há 50.000 anos, os anciãos, ou os sábios, dizem que eles sempre estiverem ali. A partir disso, Smail (2015, p. xi)SMAIL, Daniel Lord. Preface: ‘The gift of history’. In: MCGRATH, Ann; JEBB, Mary Anne (ed.). Long history, deep time: deepening histories of place. Australia: ANU Press, 2015. p. xi-xv. conclui: “The gift of history, it seems, is not a gift that everyone is eager to receive, especially when it has negative implications for identity"7 7 “O presente da história, parece, não é um presente que todos estão ansiosos por receber especialmente quando tem implicações negativas para a identidade” (Smail, 2015, p. xi, tradução nossa). .

Segundo Anne McGrath, historiadora australiana engajada na construção de uma ‘história profunda’, que dialoga com diferentes conjuntos de saberes oriundos da academia e das sociedades aborígenes, temos que estar preparados, nesta empreitada, para lidar com diferentes noções de tempo e espaço (McGrath, 2015MCGRATH, Ann. Deep histories in time, or crossing the great divide? In: MCGRATH, Ann; JEBB, Mary Anne (ed.). Long history, deep time: deepening histories of place. Australia: ANU Press, 2015. p. 1-31., p. 6):

Australian Aboriginal people hold a sense of a much longer history that challenges the western historical imagination. They have a quantitatively and qualitatively different ambit of connection to the past. […] Time is multi-layered and mutable. Many view the recent past as something personal, familial, geological and omnipresent. […] Many indigenous Australians do not sense the great chasm dividing the present from the past. […] In this schema, specific places, people and landscapes are living archival repositories.8 8 “O povo aborígene australiano tem uma noção de uma história muito mais longa que desafia a imaginação histórica ocidental. Eles têm um âmbito quantitativa e qualitativamente diferente de conexão com o passado. […] O tempo é multi-camadas e mutável. Muitos veem o passado recente como algo pessoal, familiar, geológico e onipresente. […] Muitos australianos nativos não sentem o grande abismo que divide o presente do passado. […] Neste esquema, lugares específicos, pessoas e paisagens são repositórios de arquivos vivos.” ( McGrath, 2015, p. 6, tradução nossa).

Assim, a contínua utilização do termo ‘pré’ não só homogeniza, como exclui da construção da história a possibilidade de incorporação de temporalidades distintas, de narrativas alternativas e de renegociações de poder por parte de povos originários, em Estados marcados por dinâmicas colonialistas nos últimos séculos dessa história.

SOBRE TEORIA, MÉTODO E GEOPOLÍTICA: QUÃO ANTIGO PODE SER UM NOVO MUNDO?

Conforme comentamos, a questão da cronologia do processo de povoamento da América é um dos temas mais controversos no que se refere à arqueologia deste continente. Até fim do século XX, a prevalência do modelo Clóvis First definia como limite temporal uma entrada por volta de 12.000 anos radiocarbônicos antes do presente. A partir de meados dos anos 1990 e ao longo das últimas décadas, este cenário tem mudado, trazendo para o centro do debate a intensidade das transformações climáticas durante o último Máximo Glacial e sua influência no processo de ocupação das Américas (Borrero, 2016BORRERO, Luis Alberto. Com lo mínimo: los debates sobre el poblamiento de América del Sur. Interseciones em Antropologia, Olavarria, v. 16, n. 1, p. 5-38, jun. 2016.).

Chamamos a atenção aqui para dois aspectos: critérios de validação dos dados para contextos antigos e metodologias de campo.

Desde o final do século XIX, discutem-se critérios objetivos para validação de contextos arqueológicos, principalmente aqueles relacionados às datas mais antigas para ocupações inicias de diferentes regiões. O caráter claramente antrópico do contexto e sua associação com o tipo de material datado é um elemento central desses critérios. Esta foi a questão principal dos debates envolvendo Boucher de Perthes no vale do Sommes, na segunda metade do século XIX, assim como aqueles envolvendo Peter Lund, no caso da Gruta do Sumidouro, em Lagoa Santa (Neves, W.; Piló, 2008), e continua sendo ainda hoje o caso de muitos sítios arqueológicos das Américas, entre os quais o Boqueirão da Pedra Furada (Meltzer et al., 1994MELTZER, David J.; ADOVASIO, James M.; DILLEHAY, Tom D. On a Pleistocene human occupation at Pedra Furada, Brazil. Antiquity, Cambridge, v. 68, n. 261, p. 695-714, Dec. 1994. DOI: https://doi.org/10.1017/S0003598X00047414.
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; Prous, 1997PROUS, André. O povoamento da América visto do Brasil: uma perspectiva crítica. Revista da USP, São Paulo, n. 34, p. 8-21, jun./ago. 1997. DOI: https://doi.org/10.11606/issn.2316-9036.v0i34p8-21.
https://doi.org/10.11606/issn.2316-9036....
; Guidon; Delibrias, 1986GUIDON, Niède; DELIBRIAS, G. Carbon 14 dates point to man in the Americas 32.000 years ago. Nature, London, v. 321, n. 6072, p. 769-771, June 1986. DOI: https://doi.org/10.1038/321769a0.
https://doi.org/10.1038/321769a0....
; Guidon et al., 1996GUIDON, Niède; PESSIS, A.-M.; PARENTI, Fabio; FONTUGNE, Michel; GUÉRIN, Claude. Nature and age of the deposits in Pedra Furada, Brazil: reply to Meltzer, Adovasio & Dllehay. Antiquity, Cambridge, v. 70, n. 268, p. 408-421, June 1996. DOI: https://doi.org/10.1017/S0003598X00083356.
https://doi.org/10.1017/S0003598X0008335...
; Parenti et al., 1996PARENTI, Fabio; FONTUGNE, Michel; GUÉRIN Claude. Pedra Furada in Brazil, and its ‘presumed’ evidence: limitations and potential of the available data. Antiquity, Cambridge, v. 70, n. 268, p. 416-421, June 1996. DOI: https://doi.org/10.1017/S0003598X0008337X.
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; Boëda et al., 2014BOËDA, Eric; CLEMENTE-CONTE, Ignacio; FONTUGNE, Michel; LAHAYE, Christelle; PINO, Mario; FELICE, Gisele Daltrini; GUIDON, Niède; HOELTZ, Sirlei; LOURDEAU, Antoine; PAGLI, Marina; PESSIS, Anne-Marie; VIANA, Sibeli; COSTA, Amélie da; DOUVILLE, Eric. A new late Pleistocene archaeological sequence in South America: the Vale da Pedra Furada (Piauí, Brazil). Antiquity, Cambridge, v. 88, n. 341, p. 927-955, Sept. 2014. DOI: https://doi.org/10.1017/S0003598X00050845.
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).

No início do século XX, Hrdlicka e Henry Holmes definiram critérios para avaliação de sítios antigos nas Américas, os quais foram, por exemplo, aplicados para os sítios Blackwater Draw e Wild Horse, nos Estados Unidos, vinculados, respectivamente, a ocupações Clóvis e Folson. Segundo estes critérios, para que os sítios apresentassem um contexto consistente, deveriam ter as seguintes características: 1) apresentar artefatos ou restos osteológicos obviamente humanos; 2) apresentar associação estratigráfica direta com restos de animais extintos do Pleistoceno; 3) oferecer controle válido sobre a cronologia – estratigrafia “inalterada” (Adovasio; Page, 2002ADOVASIO, James M.; PAGE, Jake. Os primeiros americanos. Rio de Janeiro: Editora Record, 2002., p. 134).

Em publicação de 1969, Vance Haynes retoma a questão dos critérios e apresenta uma proposta que mantém as principais linhas do argumento de Hrdlicka e Holmes, adicionando a realização de datações:

The primary requirement is a human skeleton, or an assemblage of artifacts that are clearly the work of man. Next, this evidence must lie in situ within undisturbed geological deposits in order to clearly demonstrate the primary association of artifacts with stratigraphy. Lastly, the minimum age of the site must be demonstrated by primary association with fossils of known age or with material suitable for reliable isotopic age dating.9 9 “O principal requisito é um esqueleto humano ou um conjunto de artefatos que são claramente o trabalho do homem. Em seguida, esta evidência deve estar no local dentro de depósitos geológicos não perturbados, a fim de demonstrar claramente a associação primária de artefatos com a estratigrafia. Por último, a idade mínima do local deve ser demonstrada por associação primária com fósseis de idade conhecida ou com material adequado para datação isotópica confiável.” (Haynes Junior, 1969, p. 714, tradução nossa).

(Haynes Junior, 1969HAYNES JUNIOR, C. Vance. The earliest Americans. Science, Washington, v. 166, n. 3906, p. 709-715, Nov. 1969. DOI: https://doi.org/10.1126/science.166.3906.709.
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, p. 714).

Roosevelt et al. (2002)ROOSEVELT, Ana C.; DOUGLAS, John; BROWN, Linda. The migrations and adaptations of the first americans Clovis and pre-Clovis viewed from South America. In: JABLONSKY, Nina G. (ed.). The first americans: the pleistocene colonization of the world. San Francisco: California Academy of Science, 2002. p. 159-236. retomam a discussão e inserem outros critérios: apresentação de um conjunto consistente de datas radiométricas estatisticamente precisas (com sigma menor do que 300), obtidas a partir de amostras individualmente e taxonomicamente identificadas de carvões claramente culturais, encontrados em associação estratigráfica primária com artefatos e cujos resultados tenham sido publicados em periódicos com revisão por pares.

Um ponto que podemos destacar ao observar os critérios ora definidos é que a utilização indiscriminada deles tem como resultado imediato a eliminação de muitos contextos que certamente estariam vinculados às etapas iniciais do processo de povoamento das Américas.

Em primeiro lugar, são pouquíssimos os contextos relacionados às primeiras etapas de povoamento nos quais há material osteológico humano. Eles são, inclusive, escassos para qualquer período, por uma série de fatores, que vão desde a ordem cultural até diversas questões tafonômicas. Em segundo lugar, um conjunto de datações de itens individual e taxonomicamente identificados é algo extremamente difícil de ser obtido, tendo em vista questões tafonômicas relacionadas à preservação de matéria orgânica em contextos relacionados ao fim do Pleistoceno e, ainda mais, em contextos tropicais, como é o caso de várias partes das Américas do Sul e Central. Além desse aspecto, obter um conjunto de datações para um sítio requer não só amostras disponíveis, como recursos financeiros, critério este que, indubitavelmente, cria relações assimétricas entre pesquisas realizadas em diferentes países das Américas. Em terceiro lugar, quando se fala em associação com outros elementos, como fósseis de idades conhecidas, normalmente a referência é a megafauna do Pleistoceno, ou seja, privilegiam-se sítios onde haja esta associação, o que significa priorizar contextos relacionados a um comportamento cultural específico, em detrimento da diversidade de estratégias existentes nas Américas.

Os dois outros itens – presença de artefatos indubitavelmente de origem antrópica e contextos geológicos não perturbados – são essenciais, mas também estão sujeitos a muita controvérsia. O primeiro item é ainda mais problemático, se trabalharmos sob uma perspectiva essencialmente tipológica, que só reconhece artefatos com transformações secundárias padronizadas e recorrentes em diferentes situações.

Com essa crítica, não queremos absolutamente abrir mão de critérios para definição e avaliação desses contextos, mas, como propõem Borrero (2016)BORRERO, Luis Alberto. Com lo mínimo: los debates sobre el poblamiento de América del Sur. Interseciones em Antropologia, Olavarria, v. 16, n. 1, p. 5-38, jun. 2016. e Dillehay et al. (2015)DILLEHAY, Tom D.; OCAMPO, Carlos; SAAVEDRA, José; SAWAKUCHI, Andre Oliveira; VEJA, Rodrigo M.; PINO, Mario; COLLINS, Michael B.; CUMMINGS, Linda Scott; ARREGUI, Iván; VILLAGRAN, Ximena S.; HARTMANN, Gelvam A.; MELLA, Mauricio; GONZÁLEZ, Andrea; DIX, George. New archaeological evidence for an early human presence at Monte Verde, Chile. PLoS ONE, São Francisco, v. 10, n. 11, p. e0141923, Nov. 2015. DOI: https://doi.org/10.1371/journal.pone.0141923.
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, é preciso caminhar entre não ser tão estrito, para não abrir mão a priori de contextos potencialmente relevantes, bem como não sermos tão inclusivos, a ponto de incorporar qualquer contexto que pleiteie uma data antiga. Esse caminho envolve necessariamente uma abordagem contextual que faça o maior uso possível de diálogo entre escalas de análise.

Para além disso, o que gostaríamos de salientar aqui é que todos esses critérios causam certo paradoxo, quando os confrontamos com as expectativas apresentadas por modelos que procuram discutir demografia, dinâmicas de deslocamento e tecnologia para os primeiros momentos ou fases de ocupação da América (Anderson; Gillam, 2000ANDERSON, David G.; GILLAM, Christipher. Paleoindian colonization of the America: implications from an examination of physiography, demography, and artefact distribution. American Antiquity, New York, v. 65, n. 1, p. 43-66, Jan. 2000. DOI: https://doi.org/10.2307/2694807.
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; Borrero, 1999BORRERO, Luis Alberto. The prehistoric exploration and colonization of Fuego-Patagonia. Journal of World Prehistory, Berlin, v. 13, n. 3, p. 321-355, Sept. 1999. DOI: https://doi.org/10.1023/A:1022341730119.; Lanata et al., 2008LANATA, José Luis; MARTINO, Luis; ORSELLA, Ana; GARCIA-HERBST, Arleen. Demographic conditions necessary to colonize new spaces: the case for early human dispersal in the Americas. World Archaeology, London, v. 40, n. 4, p. 520-37, Nov. 2008. DOI: https://doi.org/10.1080/00438240802452890.
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; Steele et al., 1998STEELE, James; ADAMS, Jonathan M.; SLUCKIN, Tim. Modeling paleoindian dispersals. World Archaeology, London, v. 30, n. 2, p. 286-305, Oct. 1998. DOI: https://doi.org/10.1080/00438243.1998.9980411.
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). Isso é especialmente relevante, se incorporarmos aí também as discussões sobre as expectativas relacionadas às dinâmicas de ocupação de locais pouco ou não habitados (Rockman; Steele, 2003ROCKMAN, Marcy; STEELE, James. (ed.). Colonization of unfamiliar landscapes: the archaeology of adaptation. London: Routledge, 2003.).

Apesar de haver certa diversidade no que se refere às dinâmicas propostas por estes modelos10 10 Ver Beaton (1991), por exemplo, para a diferença entre estate settlers e transient explorers. , na maioria deles há concordância sobre o fato de que as etapas de exploração, de reconhecimento e de ocupação inicial de um território envolveriam grupos de poucas pessoas, alta mobilidade, baixa taxa de reocupação dos sítios, com exceção de locais específicos e selecionados para articular e orientar o reconhecimento de novas áreas. A expectativa é que este tipo de dinâmica gere sítios com vestígios arqueológicos extremamente fugazes, com poucos artefatos, predominância de uma tecnologia expeditiva, o que cria dificuldades de visualização e identificação, sem falar, é claro, em dificuldades para datação. Ou seja, se optarmos por utilizar os critérios definidos por Haynes e Roosevelt, por exemplo, certamente encontraremos sítios que se adaptam a eles, mas que, muito provavelmente, não corresponderiam a estas fases iniciais de exploração, com reconhecimento e mapeamento de territórios ainda pouco conhecidos. O uso desses critérios nos direciona para identificação de sítios relacionados a uma outra fase do processo de povoamento, onde os recursos necessários e almejados já estão mapeados, os locais de assentamento preferencial estão definidos, e as fontes de diferentes matérias-primas a curta, média e longa distâncias são conhecidas e estão acessíveis. Esses critérios selecionam sítios que certamente não indicam as datas mais antigas de ocupação de uma região, mas sim uma data mínima.

Em texto publicado em 2015, Tom Dillehay e colaboradores apresentam exatamente este argumento para rediscutir o papel de Monte Verde na dinâmica de ocupação do sul do Chile, no final do Pleistoceno, em função da identificação de novos contextos, com características distintas desse espaço, mas na mesma região.

Segundo Dillehay et al. (2015, p. 22)DILLEHAY, Tom D.; OCAMPO, Carlos; SAAVEDRA, José; SAWAKUCHI, Andre Oliveira; VEJA, Rodrigo M.; PINO, Mario; COLLINS, Michael B.; CUMMINGS, Linda Scott; ARREGUI, Iván; VILLAGRAN, Ximena S.; HARTMANN, Gelvam A.; MELLA, Mauricio; GONZÁLEZ, Andrea; DIX, George. New archaeological evidence for an early human presence at Monte Verde, Chile. PLoS ONE, São Francisco, v. 10, n. 11, p. e0141923, Nov. 2015. DOI: https://doi.org/10.1371/journal.pone.0141923.
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Furthermore, the type of ephemeral records revealed at sites like MV-I and CH-I does not easily fit the criteria of more laterally and/or vertically dense cultural deposits evidenced at later sites, such as MV-II, Arroyo Seco in Argentina, Gault and Friedkin sites in Texas, Clovis and other early localities in North America. These and especially the later Clovis and Fishtail sites may represent a time when landscape use had risen to the point of being more archaeologically visible as a result of human populations exploratory less and colonizing and settling in more. The discontinuous and minimal nature of earlier records and particularly those reported in Brazil, Peru and North America challenge us to consider a wider variety of temporal, spatial and archaeological scales of early, possibly first arrival, human activity associated with sites of low archaeological visibility and with stone and bone technologies sometimes different from what we expect. The types of discontinuous and short-lived records reported here make the task of defining their archaeological and taphonomic characteristics and evaluating their scientific validity or invalidity more difficult than expected.11 11 “Além disso, o tipo de registros efêmeros revelados em locais como MV-I e CH-I não se ajustam facilmente aos critérios de depósitos culturais mais densos lateralmente e/ou verticalmente evidenciados em locais posteriores, como MV-II, Arroyo Seco na Argentina, sítios de Gault e Friedkin no Texas, Clovis e outras localidades antigas na América do Norte. Estes e especialmente os locais posteriores de Clovis e Fishtail podem representar uma época em que o uso da paisagem aumentou a ponto de ser mais arqueologicamente visível como resultado de populações humanas menos exploradoras, mais colonizadoras e instaladas. A natureza descontínua e mínima de registros anteriores e particularmente aqueles relatados no Brasil, no Peru e na América do Norte nos desafiam a considerar uma ampla variedade de escalas temporais, espaciais e arqueológicas de atividades humanas precoces, possivelmente de primeira chegada, associadas a locais de baixa visibilidade arqueológica com tecnologias de pedra e osso, por vezes, diferentes do que esperamos. Os tipos de registros descontínuos e de curta duração relatados aqui tornam a tarefa de definir suas características arqueológicas e tafonomia e de avaliar sua validade científica ou invalidez mais difícil do que o esperado.” (Dillehay et al., 2015, p. 22, tradução nossa).

Articulando as duas discussões, parece-nos evidente que os sítios que atingem as exigências apresentadas pelos critérios de validação e para caracterização dos contextos arqueológicos estariam mais próximos das expectativas para períodos vinculados a ocupações já mais estabilizadas, que envolvem conhecimento ambiental e repetição na dinâmica de ocupação de um mesmo local (Rockman, 2003ROCKMAN, Marcy. Knowledge and learning in the archaeology of colonization. In: ROCKMAN, Marcy; STEELE, James (ed.). Colonization of unfamiliar landscapes: the archaeology of adaptation. London: Routledge, 2003. p. 3-24.; Kelly, 2003KELLY, Robert L. Colonization of new land by hunter-gatherers: expectations and implications based on ethnographic data. In: ROCKMAN, Marcy; STEELE, James (ed.). Colonization of unfamiliar landscapes: the archaeology of adaptation. London: Routledge, 2003. p. 44-58.; Hazelwood; Steele, 2003HAZELWOOD, Lee; STEELE, James. Colonizing new landscapes: archaeological detectability of the first phase. In: ROCKMAN, Marcy; STEELE, James (ed.). Colonization of unfamiliar landscapes: the archaeology of adaptation. London: Routledge, 2003. p. 203-221.; Meltzer, 2003MELTZER, David J. Lessons in landscape learning. In: ROCKMAN, Marcy; STEELE, James. (ed.). Colonization of unfamiliar landscapes: the archaeology of adaptation. London: Routledge, 2003. p. 222-241.). Ou seja, mais do que validar ou refutar contextos antigos, estes critérios selecionam certa etapa, momento ou fase do processo de povoamento que não corresponderia ao início, ao reconhecimento ou à exploração de uma área ainda pouco conhecida. Nesse sentido, atuam como data mínima, e não máxima, no que se refere à cronologia do processo de povoamento (Borrero, 1999BORRERO, Luis Alberto. The prehistoric exploration and colonization of Fuego-Patagonia. Journal of World Prehistory, Berlin, v. 13, n. 3, p. 321-355, Sept. 1999. DOI: https://doi.org/10.1023/A:1022341730119., 2016BORRERO, Luis Alberto. Com lo mínimo: los debates sobre el poblamiento de América del Sur. Interseciones em Antropologia, Olavarria, v. 16, n. 1, p. 5-38, jun. 2016.).

Conforme sugere Borrero (2016)BORRERO, Luis Alberto. Com lo mínimo: los debates sobre el poblamiento de América del Sur. Interseciones em Antropologia, Olavarria, v. 16, n. 1, p. 5-38, jun. 2016., isso não significa que devamos extinguir os critérios para validação do registro, nem abdicar deles, mas que é necessário flexibilizá-los pensando nos contextos que representam, o que torna imperativo transitar entre ser estritos, para não aceitarmos qualquer coisa, mas não sermos absolutamente restritivos, para rechaçar inicialmente casos potenciais. Manter a validação do registro baseada em critérios como quantidade e diversidade de datações absolutas, utilizando diferentes métodos e materiais, é claramente um artifício que privilegia equipes detentoras de recursos e tecnologia, o que torna praticamente inviável sua obtenção para pesquisas cuja falta de recursos é histórica em países da América Latina.

Com relação à metodologia de campo, especialmente para o Brasil, predominam, desde o início da disciplina, em meados do século XX, a indicação e a realização de amostragens que privilegiam intervenções de 1 x 1 m, as quais atingem, via de regra, 1 m de profundidade. Muito raramente, em contextos específicos, as intervenções prosseguem com abertura de áreas mais amplas e/ou mais profundas (Prous, 1991PROUS, André. Arqueologia brasileira. Brasília: Editora UnB, 1991.; Barreto, 1999BARRETO, Cristiana. A construção de um passado pré-colonial: uma breve história da Arqueologia no Brasil. Revista USP, São Paulo, n. 44, p. 32-51, dez./fev. 1999-2000. DOI: https://doi.org/10.11606/issn.2316-9036.v0i44p32-51.
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-2000; Oliveira; Viana, 1999OLIVEIRA, Jorge Eremites de; VIANA, Sibeli Aparecida. O Centro-Oeste antes de Cabral. Revista da USP, São Paulo, v. 44, n. 1, p. 142-189, dez./fev. 1999-2000. DOI: https://doi.org/10.11606/issn.2316-9036.v0i44p142-189.
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-2000).

Para além dessa ‘orientação’ metodológica, são frequentes as referências ou os comentários sobre a ‘interrupção’ de áreas de escavação em função da presença de blocos de rocha, supostamente interpretados como evidências do embasamento rochoso dos sítios – argumentação bastante frequente em trabalhos realizados em abrigos sob rocha.

Se, no entanto, sairmos das Américas e observarmos a estratigrafia de sítios cujo registro arqueológico atinge contextos vinculados ao Pleistoceno, ficará evidente que blocos ao longo da estratigrafia são componentes absolutamente normais em sítios com cronologias extensas, em regiões que experimentaram variações climáticas intensas ao longo do tempo. Desse modo, cabe a pergunta: o que significa um bloco em uma área de 1 x 1!? Nada que necessariamente tenha alguma relação com término da ocupação humana. Em função disso, tal situação nos mostra também que isso só é perceptível e passível de ser contornado em escavações orientadas por superfícies amplas. Apesar de, no Brasil, aprendermos que a proposta de escavação por superfícies amplas está voltada para abordagens que privilegiam observações sincrônicas, ao invés de diacrônicas, o que vemos, na prática, é que sem superfícies amplas é impossível alcançar e compreender sequências estratigráficas com grande profundidade temporal, principalmente se isso envolve ocupações pleistocênicas. Ou seja, superfícies amplas podem ser orientadas tanto para lidar com questões sincrônicas quanto diacrônicas.

Podemos, então, dizer que a metodologia de trabalho fundamentada na realização de áreas de escavação pontuais, com 1 ou mesmo 4 m2, está orientada para estratigrafias, ou cronologias curtas, essencialmente holocênicas. Talvez não por coincidência, essa metodologia foi implementada no Brasil no âmbito do Programa Nacional de Pesquisas Arqueológicas (PRONAPA), cujo interesse estava voltado essencialmente para o contexto vinculado ao Holoceno recente (Dias, 1995DIAS, Adriana S. Um projeto para a arqueologia brasileira: breve histórico da implementação do Programa Nacional de Pesquisas Arqueológicas (PRONAPA). Revista do CEPA, Santa Cruz do Sul, v. 19, n. 22, p. 25-39, sem. 1995.).

Assim, esta estratégia de intervenção nos sítios nos confina a sedimentos holocênicos e, consequentemente, dificulta a identificação de sítios mais antigos do que 12.000 anos AP. Nos casos de Santa Elina (Vialou, A., 2005VIALOU, Águeda Vilhena (org.). Pré-história do Mato Grosso: Santa Elina. São Paulo: Edusp, 2005. v. 1.; Vialou, D. et al., 2017VIALOU, Denis; BENABDELHADI, Mohammed; FEATHERS, James; FONTUGNE, Michel; VIALOU, Águeda Vilhena. Peopling South America’s centre: the late Pleistocen site of Santa Elina. Antiquity, Cambridge, v. 91, n. 358, p. 865-884, Aug. 2017. DOI: https://doi.org/10.15184/aqy.2017.101.
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) e do Sítio do Meio (Guidon; Pessis, 1993GUIDON, Niède; PESSIS, Anne-Marie. Recent discoveries on the Holocene levels of Sítio do Meio rock-shelter, Piauí, Brasil. Clio-Série Arqueológica, Recife, v. 1, n. 9, p. 77-80, 1993.; Boëda et al., 2016BOËDA, Eric; ROCCA, Roxane; COSTA, Amélie da; FONTUGNE, Michel; HATTÉ, Chirstine; CLEMENTE-COSTA, Ignacio; SANTOS, Janaina C.; LUCAS, Lívia; FELICE, Gisèle; LOURDEAU, Antoine; VILLAGRAN, Ximena; GLUCHY, Maria; RAMOS, Marcos Paulo; VIANA, Sibeli; LAHAYE, Christelle; GUIDON, Niède; GRIGGO, Christophe; PINO, Mario; PESSIS, Anne-Marie; BORGES, Carolina; GATO, Bruno. New data on a Pleistocene archaeological sequence in South America: Toca do Sítio do Meio, Piauí, Brazil. PaleoAmerica, London, v. 2, n. 4, p. 286-302, Oct. 2016. DOI: https://doi.org/10.1080/20555563.2016.1237828.
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; Aimola et al., 2014AIMOLA, Giulia; ANDRADE, Camila; MOTA, Leidiana; PARENTI, Fabio. Final Pleistocene and Early Holocene at Sitio do Meio, Piauí, Brazil: stratigraphy and comparison with Pedra Furada. Journal of Lithic Studies, Edinburgh, v. 1, n. 2, p. 5-24, Sept. 2014. DOI: https://doi.org/10.2218/jls.v1i2.1125.
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), há grandes blocos que marcam o momento de transição entre Pleistoceno e Holoceno e que, no segundo caso, praticamente selam o registro arqueológico pleistocênico. Isso, obviamente, não pode ser tomado como regra. A questão seria justamente ter critérios mais claros para definição dos contextos nos quais valeria a pena investir em escavações mais profundas, com o intuito de atingir sedimentos pleistocênicos, mesmo quando há grandes blocos ao longo da estratigrafia.

O que propomos aqui é que, através da incorporação de aspectos geopolíticos envolvidos na definição e na conceituação das Américas como Novo Mundo, adotamos uma estratégia metodológica para trabalhar nos sítios que reforça continuamente essa construção, uma vez que não é viável para sustentar sua antítese – ou seja, estamos presos a um raciocínio tautológico, definido por uma estratégia de pesquisa político-metodológica, o que, talvez, possamos definir como uma aporia de nascença – como pode ser antigo um Novo Mundo?

CONCLUSÃO

Para concluir este artigo, gostaria de reforçar dois pontos. No que tange à antiguidade da ocupação humana nas Américas, ressaltamos a necessidade de rever questões metodológicas e conceituais para avançarmos nessa discussão, descontruindo barreiras políticas, ideológicas e metodológicas que têm influenciado a discussão sobre quão antigo pode ser um Novo Mundo. Já no que se refere à noção de ‘pré-história’ como História indígena, é premente a necessidade de desconstruir o rompimento criado entre sociedades indígenas pré e pós-invasão europeia, de forma a compreender os processos de continuidade e de mudança, e incorporar outros discursos para construção de uma narrativa baseada na perspectiva de ‘tempo profundo’.

Para encaminhar tais questões, apresentamos algumas propostas, entre as quais alterar nossa metodologia de trabalho em campo. De acordo com a argumentação exposta no artigo, fica latente a necessidade de abrir áreas mais amplas, a fim de viabilizar a escavação de áreas mais profundas, ao menos onde há potencial para presença de sedimentos pleistocênicos. Esse potencial pode ser definido, entre outras coisas, por dados relacionados a estudos geoarqueológicos e em associação com outros sítios conhecidos na região.

Também propomos a reflexão crítica sobre a aplicação dos critérios científicos para validação das informações e sua relação com a discussão sobre processos de ocupação da América, incorporando dados de pesquisas vinculadas ao debate sobre a dinâmica de colonização de locais pouco ocupados e/ou pouco conhecidos e procurando trabalhar com enfoque essencialmente contextual, fundamentado em um diálogo entre escalas de análises distintas.

Além disso, sugerimos a incorporação de outros atores e discursos, para além daquele construído por arqueólogos, no intuito de inserir a discussão sobre o povoamento da América em um debate mais amplo sobre a história dos povos ameríndios.

  • 1
    “Como subproduto de uma persistente manutenção de fronteiras, o ‘pré’ não constitui uma era histórica por si só. Pelo contrário, é um espaço narrativo autopovoado por características que definem a alteridade temporal para o observador conscientemente moderno. O ‘pré’ é o domínio da tradição, natureza, estase, infância, crueza, simplicidade, encantamento e superstição. Engajar-se diretamente com isso, como tal, é aceitar uma linguagem de superioridade moral e incapacidade política que poucos acadêmicos estão dispostos a falar ou tolerar. O conteúdo específico deste tempo/espaço é problemático porque o quadro temporal que ocupa é estigmatizado ou, numa inversão das polaridades morais, romantizado. Evitar é uma resposta comum” (Smail; Shryock, 2013SMAIL, Daniel Lord; SHRYOCK, Andrew. History and the ‘pre’. The American Historical Review, Bloomington, v. 118, n. 3, p. 709-757, June 2013. DOI: https://doi.org/10.1093/ahr/118.3.709.
    https://doi.org/10.1093/ahr/118.3.709...
    , p. 713, tradução nossa).
  • 2
    “Meus interesses arqueológicos são, eu sinto, melhor representados pela história profunda do que pela perspectiva oferecida pela pré-história” (Gamble, 2015GAMBLE, Clive. The anthropology of deep history. Journal of the Royal Anthropological Institute, London, v. 21, n. 1, p. 147-164, Mar. 2015. DOI: https://doi.org/10.1111/1467-9655.12140.
    https://doi.org/10.1111/1467-9655.12140...
    , p. 154, tradução nossa).3
  • 3
    Ver Mason (1962)MASON, Ronald J. The Paleo-Indian Tradition in Eastern North America. Current Anthropology, New York, v. 3, n. 3, p. 227-278, June 1962., para uma síntese das pesquisas realizadas na América do Norte sobre povoamento inicial da América.
  • 4
    “O estágio lítico não pode ser definido sem referência a considerações geocronológicas. […] Os critérios de trabalho efetivos são, portanto, associações de artefatos e outras evidências da atividade do homem em depósitos geológicos, ou com restos de plantas e animais, refletindo esses tempos e condições. […] A natureza desses achados levou à suposição de que a atividade econômica predominante nesse estágio era a caça, com grande ênfase nos grandes herbívoros, incluindo as formas extintas do Pleistoceno, e que o padrão geral de vida, como o dos animais dos quais dependiam, era migratório no sentido pleno da palavra. A possibilidade de uma medida de circularidade entrar nesta suposição não pode ser investigada aqui, mas certamente não deve ser ignorada. De qualquer forma, com base nisso, muitos estudantes americanos construíram uma simples dicotomia histórica e tipológica: um estágio de caça precoce seguido por um estágio de coleta, cada um com suas próprias tradições tecnológicas características. Na presente classificação, embora não tenhamos conseguido evitar totalmente essa simplificação atraente, tentaremos manter uma atitude crítica em relação a ela.” (Willey; Phillips, 1958WILLEY, Gordon R.; PHILLIPS, Philip. Method and theory in American Archaeology. Chicago: The University of Chicago Press, 1958., p. 80, tradução nossa).
  • 5
    “A consequente ênfase em pontas de projéteis – os vários tipos que são usados para identificar as ‘culturas’ – e em facas, raspadores e outras ferramentas supostamente usadas para descarnar, limpar e preparar peles, sem dúvida resultou em uma visão unilateral expressa na designação frequente de ‘culturas primitivas de caça’. As culturas mais antigas dessa categoria são Clovis e Folsom, com suas célebres pontas de projétil acaneladas e associações de fauna extintas.” (Willey; Phillips, 1958WILLEY, Gordon R.; PHILLIPS, Philip. Method and theory in American Archaeology. Chicago: The University of Chicago Press, 1958., p. 86, tradução nossa).
  • 6
    “Vale a pena recordar a ênfase em ‘descoberta’ nas narrativas históricas de nações colonizadoras como os Estados Unidos, o Canadá e a Austrália, que afirmaram a soberania com base na descoberta, conquista e aquisição de terras. Esses decretos peformativos envolveram plantar bandeiras, brindar reis e proferir discursos em nome de monarcas europeus – todos os quais ocorreram em terras de longa conexão indígena, onde restos ancestrais permaneceram como prova de sucessões de conexão intergeracional. [...] A longa ocupação dos australianos aborígines foi descrita como ‘atemporal’ e, certamente, fora da modernidade.” (McGrath, 2015MCGRATH, Ann. Deep histories in time, or crossing the great divide? In: MCGRATH, Ann; JEBB, Mary Anne (ed.). Long history, deep time: deepening histories of place. Australia: ANU Press, 2015. p. 1-31., p. 21, tradução nossa).
  • 7
    “O presente da história, parece, não é um presente que todos estão ansiosos por receber especialmente quando tem implicações negativas para a identidade” (Smail, 2015SMAIL, Daniel Lord. Preface: ‘The gift of history’. In: MCGRATH, Ann; JEBB, Mary Anne (ed.). Long history, deep time: deepening histories of place. Australia: ANU Press, 2015. p. xi-xv., p. xi, tradução nossa).
  • 8
    “O povo aborígene australiano tem uma noção de uma história muito mais longa que desafia a imaginação histórica ocidental. Eles têm um âmbito quantitativa e qualitativamente diferente de conexão com o passado. […] O tempo é multi-camadas e mutável. Muitos veem o passado recente como algo pessoal, familiar, geológico e onipresente. […] Muitos australianos nativos não sentem o grande abismo que divide o presente do passado. […] Neste esquema, lugares específicos, pessoas e paisagens são repositórios de arquivos vivos.” ( McGrath, 2015MCGRATH, Ann; JEBB, Mary Anne (ed.). Long history, deep time: deepening histories of place. Australia: ANU, 2015., p. 6, tradução nossa).
  • 9
    “O principal requisito é um esqueleto humano ou um conjunto de artefatos que são claramente o trabalho do homem. Em seguida, esta evidência deve estar no local dentro de depósitos geológicos não perturbados, a fim de demonstrar claramente a associação primária de artefatos com a estratigrafia. Por último, a idade mínima do local deve ser demonstrada por associação primária com fósseis de idade conhecida ou com material adequado para datação isotópica confiável.” (Haynes Junior, 1969HAYNES JUNIOR, C. Vance. The earliest Americans. Science, Washington, v. 166, n. 3906, p. 709-715, Nov. 1969. DOI: https://doi.org/10.1126/science.166.3906.709.
    https://doi.org/10.1126/science.166.3906...
    , p. 714, tradução nossa).
  • 10
    Ver Beaton (1991)BEATON, J. M. Colonizing continents: some problems from Australia and the Americas. In: DILLEHAY, Tom D.; MELTZER, David J. The first americans: search and research. Boca Raton, FL: CRC Press, 1991. p. 209-230., por exemplo, para a diferença entre estate settlers e transient explorers.
  • 11
    “Além disso, o tipo de registros efêmeros revelados em locais como MV-I e CH-I não se ajustam facilmente aos critérios de depósitos culturais mais densos lateralmente e/ou verticalmente evidenciados em locais posteriores, como MV-II, Arroyo Seco na Argentina, sítios de Gault e Friedkin no Texas, Clovis e outras localidades antigas na América do Norte. Estes e especialmente os locais posteriores de Clovis e Fishtail podem representar uma época em que o uso da paisagem aumentou a ponto de ser mais arqueologicamente visível como resultado de populações humanas menos exploradoras, mais colonizadoras e instaladas. A natureza descontínua e mínima de registros anteriores e particularmente aqueles relatados no Brasil, no Peru e na América do Norte nos desafiam a considerar uma ampla variedade de escalas temporais, espaciais e arqueológicas de atividades humanas precoces, possivelmente de primeira chegada, associadas a locais de baixa visibilidade arqueológica com tecnologias de pedra e osso, por vezes, diferentes do que esperamos. Os tipos de registros descontínuos e de curta duração relatados aqui tornam a tarefa de definir suas características arqueológicas e tafonomia e de avaliar sua validade científica ou invalidez mais difícil do que o esperado.” (Dillehay et al., 2015DILLEHAY, Tom D.; OCAMPO, Carlos; SAAVEDRA, José; SAWAKUCHI, Andre Oliveira; VEJA, Rodrigo M.; PINO, Mario; COLLINS, Michael B.; CUMMINGS, Linda Scott; ARREGUI, Iván; VILLAGRAN, Ximena S.; HARTMANN, Gelvam A.; MELLA, Mauricio; GONZÁLEZ, Andrea; DIX, George. New archaeological evidence for an early human presence at Monte Verde, Chile. PLoS ONE, São Francisco, v. 10, n. 11, p. e0141923, Nov. 2015. DOI: https://doi.org/10.1371/journal.pone.0141923.
    https://doi.org/10.1371/journal.pone.014...
    , p. 22, tradução nossa).

AGRADECIMENTOS

Este artigo foi elaborado no âmbito do projeto “Povoamento inicial da América visto a partir do contexto arqueológico brasileiro”, financiado pelo edital da Coordenação deAperfeiçoamento de Pessoal de Nível Superior/Comitê Francês de Avaliação da Cooperação Universitária como Brasil (CAPES/COFECUB) do ano de 2014. Parte das atividades para sua elaboração foram realizadas noLaboratório de Arqueologia e Antropologia Ambiental e Evolutiva/Instituto de Biociências da Universidade de São Paulo (LAAAE/IB-USP), laboratório ao qual estive vinculado como pesquisador-colaborador ao longo de2018. Agradeço aos revisores e colegas de projeto e laboratório pelos valiosos cometários, críticas e sugestões

REFERÊNCIAS

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Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    26 Ago 2019
  • Data do Fascículo
    May-Aug 2019

Histórico

  • Recebido
    31 Ago 2018
  • Aceito
    12 Nov 2018
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