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CARTA DO EDITOR

Este número do Boletim do Museu Paraense Emílio Goeldi. Ciências Humanas é especial: foi pensado como um convite ao estudo da obra do filósofo paraense Benedito Nunes, falecido em 27 de fevereiro de 2011. Nunes foi um dos mais destacados intelectuais brasileiros, ativo professor universitário, autor de centenas de textos que iluminam a fortuna crítica relacionada aos principais romancistas e poetas da língua portuguesa, e também aos grandes filósofos de nosso tempo e do passado. Foi agraciado com as maiores distinções do campo literário e científico, como o Prêmio Jabuti, que ganhou duas vezes; o Prêmio Machado de Assis; o Prêmio Multicultural Estadão; o Prêmio Almirante Álvaro Alberto; e a Ordem do Mérito Cultural, sendo esta o reconhecimento do Estado pela contribuição relevante à cultura brasileira.

Os escritos de Benedito tocam diversos campos do conhecimento, sendo referências para as ciências humanas, a literatura e as artes. Para comentar a qualidade e diversidade desses escritos, bem como mapear possíveis análises críticas a partir do legado que o professor nos deixou, convidamos alguns pesquisadores de diferentes formações e interesses, que aqui apresentam suas visões particulares do homem e da obra: Lilia Silvestre Chaves (Universidade Federal do Pará), Márcio Benchimol Barros (Universidade Estadual Paulista Júlio de Mesquita Filho, Marília), Jeanne-Marie Gagnebin (Pontifícia Universidade Católica de São Paulo e Universidade Estadual de Campinas), Maria Stella Guimarães e Edna Ramos de Castro (Universidade Federal do Pará), e Willi Bolle (Universidade de São Paulo). Todos travaram relações pessoais com Benedito e aceitaram o desafio de saudar o mestre da forma que ele apreciaria: por meio da palavra.

Recebemos, ainda, um tocante depoimento de Antonio Candido, intelectual da mesma estatura que Benedito, humanista da mesma geração, que aqui publicamos como testemunho de alguém que acompanhava e admirava o filósofo à distância. Nossa intenção foi traçar-lhe um perfil mínimo, para o que também lançamos mão de um pequeno e recente texto de sua própria autoria, no qual se posiciona nos campos da arte, da filosofia e da ciência - dando-nos a chave para adentrar em seu pensamento -, e de retratos que lhe foram tirados por fotógrafos residentes em Belém, todos excelentes artesãos do ofício que estava entre os prediletos de Benedito. Ele chegou a afirmar que a fotografia era a forma de expressão artística mais desenvolvida no Pará. Agradecemos, portanto, a Patrick Pardini, Luiz Braga, Elza Lima, Paula Sampaio e Octavio Cardoso, por terem aceitado nosso convite e por terem se preocupado em fotografar Benedito.

Um dos temas que primeiro ocuparam a vida do filósofo, seja em leituras, em cursos universitários ou em escritos, foi a Ética. Benedito gostava de usar a palavra em sentido amplo, enquanto ethos, ou seja, como modo de ser e agir do homem. Segundo ele, o valor de uma postura ética em cada ação que executamos residiria na descoberta e na renovação de nossa própria experiência intelectual e moral. Nesse sentido, a ética poderia ser entendida como um adestramento reflexivo, um exercício de conhecimento do mundo, de nós mesmos e dos outros. Exercício pessoal e solitário, mas que se reverte a favor da experiência da vida, geral e cumulativa, com consequências que estão muito além do imediato e que também atingem muito além das pessoas que nos cercam, no tempo e no espaço.

Em ciência, assim como em outros setores do intelecto humano, a ética deve balizar todos os procedimentos, todos, mas, sobretudo, aqueles que podem gerar prejuízos à vida, à honra, à dignidade e ao patrimônio - e também os que podem denotar hedonismo, desonestidade e oportunismo para o olhar alheio, efeito muitas vezes não previsto pelos que transgridem as regras de civilidade, de convivência e de conduta profissional. Agir com ética deve estar em nosso horizonte a todo o momento, algo a ser constantemente lembrado, discutido, ensinado e cobrado. As facilidades tecnológicas com que o nosso tempo nos distingue, a burocracia, as políticas e normas insensatas, nada justifica a falta de ética, pois o ser ético (ou não) é uma decisão de foro íntimo, que para ninguém ou coisa alguma se transfere.

O comportamento ético tem sido uma preocupação constante nos fóruns de editores científicos. Cursos, seminários e encontros estão sendo organizados sob a égide desse tema, e certamente motivos existem para que assim seja. Quando os laços do rigor afrouxam, abrem caminho para o desrespeito e a fraude, conduta que pode ser facilmente justificável sob muitos argumentos, como de fato o tem sido, incluindo o atribuir-se ao 'erro'. Erro não se confunde com falta de ética. A favor daquele existem as possibilidades do engano, da ignorância, da reparação e da falta de dolo. Contra esta,

enfileiram-se a intenção, a arrogância, a vaidade, o oportunismo, a ambição desmedida e a certeza da impunidade.

Editores de muitas paragens têm chamado a atenção para a necessidade de preservação de uma das mais poderosas invenções da humanidade, a Ciência (nesse caso, com C maiúsculo). Também tentam erguer barreiras que protejam seu principal baluarte, a comunicação, isto é, os mecanismos de justificação, validação e divulgação do conhecimento. Quando um cientista burla esses mecanismos, prejudica a própria instituição que deveria defender por ser seu beneficiário. A falta de ética é um corroer as estruturas internas desses mecanismos, é um desacreditar em sua eficiência e nos seus efeitos benéficos e multiplicadores. É condená-los ao fracasso.

Devemos combater, com todas as nossas forças, as ameaças que pairam sobre a Ciência. Devemos estar atentos aos seguintes pontos:

• Conduta de editores, que, por terem acesso a informações sigilosas e privilegiadas, têm responsabilidade dobrada na preservação dos princípios éticos;

• Tráfico de influência entre editores de uma mesma revista; entre um mesmo editor de duas ou mais revistas; entre editores, pareceristas e autores;

• Estratégias para ampliar a visibilidade de uma revista ou de um autor, como a manipulação do Fator de Impacto e a citação desnecessária (péssimos sinais dos tempos);

• Plágio, desde suas formas mais simples, mas não menos danosas, como a omissão de uma referência bibliográfica ou o 'esquecimento' das aspas, até os casos mais graves, como a apropriação indevida das ideias, dos dados, do esforço de pesquisa ou do texto de outrem;

• Omissão de fontes e de créditos, como instituições depositárias ou proprietárias de espécimes, objetos, imagens, documentos etc.;

• Submissão de trabalhos inacabados ou mal acabados, falhos na estrutura e na argumentação, ou fora das normas da revista, geralmente feitos com falta de atenção, com pressa ou inabilidade, transferindo para editores, revisores e pareceristas a tarefa de aperfeiçoar o texto (o que, por si só, já seria prova da coautoria destes);

• Coautoria, entendida como participação efetiva, real, comprovável, na pesquisa, na redação ou na revisão do trabalho (sim, existem normas claras que definem coautoria, mas não é possível enumerá-las nesse espaço);

• Fabricação de dados e reciclagem de textos (outros péssimos sinais dos tempos);

• Submissão de um mesmo texto, ainda que com outro título e com pequenas mudanças, para mais de uma revista;

• Fragmentação de textos e de dados, prática que, infelizmente, vem sendo estimulada sem o menor pudor por muitos orientadores de dissertações e teses (um bom artigo tem mais mérito e chances de ser citado do que dez artigos medíocres);

• Falta de compromisso com o processo editorial, por exemplo, quando o autor, por discordar ou desgostar de um parecer, retira seu trabalho da revista, mas incorpora as mudanças e sugestões feitas por pareceristas e editores, publicando-o em outra revista; ou quando o autor afirma que o trabalho foi revisado, sem tê-lo feito, de fato; ou quando o parecerista se compromete com uma avaliação, mas não a faz ou a faz sem a atenção devida; ou quando o editor publica de maneira antecipada um trabalho que sabia ter sido submetido também a outra revista;

• Invenção de curriculum, como a declaração de artigos e atribuições inexistentes, repetição de dados, mudança na ordem de autoria de um texto, etc.

O amadurecimento e a expansão da academia no Brasil têm como condição sine qua non o consenso sobre a ética na pesquisa científica. É necessário discutir quais os sentidos, os motivos e as consequências de um malfadado comportamento. Ou tornamos críveis a ciência que fazemos e as instituições que pagam os nossos salários, ou vamos contribuir para sua desvalorização social e para que sejam reforçados os estereótipos e preconceitos que desmerecem o nosso trabalho.

Feito este preâmbulo, ou melhor, esta declaração de princípios, necessária em razão das notícias um tanto alarmantes que têm sido divulgadas nos últimos meses, e também por estarmos às vésperas de um Encontro Nacional de Editores Científicos, cujo tema é a ética em publicações, apresento a seguir os cinco trabalhos aprovados para este número. São quatro artigos e uma nota de pesquisa: Isabel Maria Madaleno (Instituto de Investigação Científica Tropical, Lisboa, Portugal) analisa o uso de plantas medicinais em São Luís, Maranhão, comparando-o com os resultados que dispõe para outras regiões da América Latina; Murilo da Serra Silva (Instituto Federal de Educação, Ciência e Tecnologia do Pará, Marabá) e colaboradores descrevem a cadeia de produção e comercialização de um importante produto florestal não madeireiro, o látex de amapá (Parahancornia fasciculata), chamando a atenção para a invisibilidade de muitos produtos similares, não inclusos nas estatísticas oficiais de produção econômica; Alexsandra Câmara Paz (Universidade Estadual do Maranhão, São Luís) e colaboradores estudam a pesca em Vila do Conde, Barcarena, Pará, região de grande vulnerabilidade ambiental em razão das indústrias e dos terminais portuários ali instalados; e Florent Kohler (Universidade de Tours, França) e colaboradores questionam o conceito de 'fracasso' para designar a experiência de uma associação de produtores alternativos, em Ouro Preto do Oeste, Rondônia. Os quatro artigos, submetidos de maneira independente, acabaram formando um interessante conjunto sobre o uso de recursos naturais na Amazônia, tendo como pano de fundo várias questões relacionadas ao desenvolvimento sustentável. Quanto à nota de pesquisa, de Maura Imazio da Silveira (Museu Paraense Emílio Goeldi, Belém, Pará) e colaboradores, relata a retomada de pesquisas arqueológicas em sambaquis do nordeste paraense, 40 anos depois do último projeto significativo ter sido encerrado naquela região.

O número encerra com resenha de uma coletânea lançada pelo Museu de Astronomia e Ciências Afins, sobre o patrimônio da ciência e tecnologia no Brasil, assunto da maior relevância para a memória e história desse campo, e que deveria constar da agenda de discussões de cursos de museologia, museus, arquivos, bibliotecas e agências de fomento.

Boa leitura!

Nelson Sanjad

Editor Científico

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    03 Nov 2011
  • Data do Fascículo
    Ago 2011
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