Open-access ‘Prazer, meu nome é Galdino Ramos’: uma biografia científica de um pioneiro da identificação forense no Brasil

‘Nice to meet you, my name is Galdino Ramos’: a scientific biography of a forensic identification pioneer in Brazil

Resumo

Galdino Martins de Souza Ramos (1880-1964) desempenhou um papel central no desenvolvimento da papiloscopia no Brasil, contribuindo para a ciência da identificação pelas impressões papilares. Médico formado pela Faculdade de Medicina do Rio de Janeiro, foi autor da tese “Da identificação” (1906), uma das primeiras obras brasileiras sobre o tema. Colaborou com o periódico Amazonas Médico e manteve intercâmbios científicos com Juan Vucetich e Edmond Locard. Atuou também em iniciativas educacionais, políticas e culturais no Amazonas, incluindo a criação do primeiro curso de Odontologia do estado. Entre suas contribuições, destaca-se, ainda, a troca de conhecimento com o antropólogo Roquette-Pinto sobre a ocorrência do tipo datiloscópico denominado arco entre indígenas de Rondônia.

Palavras-chave
Medicina legal; Identificação forense; Impressão digital; História da ciência; Biografia

Abstract

Galdino Martins de Souza Ramos (1880–1964) played a pivotal role in advancing friction ridge examination in Brazil, contributing significantly to the science of identification through papillary impressions. A graduate of the Faculty of Medicine of Rio de Janeiro, he authored the thesis “Da identificação” (1906), one of Brazil’s earliest works on the subject. He collaborated extensively with the journal Amazonas Médico and engaged in scientific exchanges with Juan Vucetich and Edmond Locard. Beyond his forensic contributions, he was actively involved in educational, political, and cultural initiatives in Amazonas, including pioneering the state’s first dentistry course. Notably, his collaboration with anthropologist Roquette-Pinto on the arch fingerprint pattern among Indigenous peoples of Rondônia underscored his multidisciplinary approach and commitment to scientific exploration.

Keywords
Forensic medicine; Forensic identification; Fingerprint; History of science; Biography

INTRODUÇÃO

Em pesquisas sobre os critérios iniciais para a identificação de fragmentos de impressões digitais, encontramos menções ao médico brasileiro Galdino Ramos em relevantes obras como “The fingerprint sourcebook” (McRoberts, 2011; Langenburg, 2011, pp. 14-11) e “Fingerprints and other ridge skin impressions” (Champod et al., 2016, p. 106). Essas referências ressaltam sua importância no contexto da identificação forense, ao lado de nomes como Francis Galton (1822-1911), Victor Balthazard (1872-1950), Edmond Locard (1877-1966) e Juan Vucetich (1858-1925). No entanto, apesar da relevância de seu trabalho, Ramos permanece um nome pouco conhecido no Brasil, e há escassa documentação sobre sua trajetória acadêmica e profissional.

Segundo Langenburg (2011, pp. 14-11), Locard (1914) fundamentou a regra tripartite em sua própria experiência, nas observações realizadas e nas contribuições de estudiosos anteriores, como Galton (1892), Balthazard (1911) e Ramos (1906). No entanto, são limitados os detalhes sobre como Ramos chegou às suas conclusões, bem como as informações mais amplas sobre sua formação e atuação na ciência forense. Esse apagamento contrasta com a influência que seu nome exerceu nos estudos da época, particularmente na evolução dos critérios de identificação por impressões digitais.

Champod et al. (2016, p. 106) reforçam que Locard (1914) se baseou em diversas fontes de conhecimento, como a poroscopia e as análises estatísticas conduzidas também por Galton (1892), Balthazard (1911) e Ramos (1906). Esse reconhecimento coloca Ramos entre os cientistas que ajudaram a consolidar a identificação por impressões digitais no início do século XX. Ainda assim, enquanto os outros estudiosos mencionados têm suas histórias documentadas e amplamente difundidas, Ramos segue praticamente esquecido, tanto na literatura forense brasileira quanto na historiografia científica.

Um dos poucos registros concretos da produção intelectual de Ramos é sua tese, intitulada “Da identificação” (Ramos, 1906), que permaneceu inacessível por décadas e só recentemente foi reencontrada (Gomes & Matsushita, 2024, p. 185). Entretanto, mesmo a redescoberta dele não foi suficiente para trazer à tona informações detalhadas sobre sua trajetória, suas influências acadêmicas e o impacto direto de seu trabalho nos sistemas de identificação da época.

Esse esquecimento ressalta um problema recorrente na ciência brasileira: a marginalização de pesquisadores nacionais cujas contribuições foram relevantes no cenário internacional, mas que não receberam a devida valorização dentro do próprio país. A ausência de estudos biográficos sobre Ramos impossibilita uma compreensão mais ampla de sua atuação e do contexto em que desenvolveu suas pesquisas.

Recuperar a memória de Ramos não significa apenas reconhecer sua importância para a identificação forense, mas também corrigir uma falha histórica na documentação da ciência brasileira. Resgatar sua trajetória e compreender sua influência no campo pericial são passos fundamentais para reconstruir parte da história da papiloscopia e da medicina legal. Esse esforço não apenas valoriza um estudioso brasileiro de grande impacto, mas também reforça a necessidade de preservar a memória científica nacional e dar o devido reconhecimento àqueles que contribuíram para o avanço das ciências.

MATERIAIS E MÉTODOS

Para o desenvolvimento deste estudo, utilizou-se análise documental, revisão de literatura e pesquisa histórica, com base em fontes primárias e secundárias, incluindo artigos científicos, livros, jornais e revistas publicadas entre os séculos XIX e XX. Além disso, foram consultados documentos oficiais, como ofícios, circulares e registros de identificação civil e criminal do então Gabinete de Identificação do Amazonas.

Foram analisados os trabalhos científicos de Galdino Ramos, como sua tese (Ramos, 1906) e artigos publicados nos periódicos Brazil-Médico e Amazonas Médico, além de correspondências trocadas com pesquisadores renomados, como Juan Vucetich.

A revisão foi realizada com o suporte de acervos da Biblioteca Nacional do Brasil, da Seção de Obras Raras da Fundação Oswaldo Cruz (Fiocruz) e de outras fontes especializadas. Para complementar a análise e contextualizar as informações históricas, foram consultadas bases de dados genealógicas e georreferenciadas, sempre que necessário para a validação documental.

RESULTADOS E DISCUSSÃO

BIOGRAFIA DE GALDINO RAMOS

O Dr. Galdino Martins de Souza Ramos nasceu em 1880, na cidade de Picos, estado do Piauí. Era filho de Raymundo Martins de Souza Ramos (1858-1946) e Maria Porcina dos Santos Ramos (1860-1946). Teve como irmãos a Sra. Raymunda Porcina de Souza Ramos (1886-1965); o farmacêutico Júlio Martins de Souza Ramos (1892-1935); o desembargador do Tribunal de Justiça do Acre, José Martins de Souza Ramos (1883-1967); e o político Paulo Martins de Souza Ramos (1896-1969), que ocupou os cargos de deputado federal e governador do estado do Maranhão (“O governo do Acre”, 1930, p. 1; “Uma página dedicada...”, 1936, p. 1; “Homenagem ao Dr. Paulo Ramos”, 1950, p. 1; Câmara dos Deputados, s.d.; Family Search, s.d.).

Galdino Ramos era casado com a Sra. Júlia Regina de Freitas (1881-1961), com quem teve os filhos: o médico José Júlio de Freitas Ramos; Jesuíno de Freitas Ramos, que atuou como assistente jurídico do Ministério da Fazenda, no estado da Guanabara; e Maria Regina Ramos de Alencar, casada com o Dr. José de Albuquerque Alencar, professor universitário e procurador-geral da República em exercício. Além desses, destacam-se as senhoritas Celina e Rosa de Freitas Ramos (“A tragédia...”, 1944, p. 1; “O ‘Diario’ Social...”, 1961, p. 6; Barreto, 1964, p. 6).

A Figura 1 foi extraída de uma ficha de identificação produzida em 3 de novembro de 1905, no Gabinete de Identificação e Estatística do Rio de Janeiro (Ramos, 1906, p. 175).

Figura 1
Foto de Galdino Ramos em 1905, aos 25 anos.

O Dr. Galdino Ramos iniciou a formação acadêmica no curso de Medicina na Bahia, porém, entre os anos de 1901 e 1902, o curso foi interrompido por determinação do ministro Epitácio Pessoa (Britto, 2010, p. 57). Diante dessa interrupção, Ramos migrou para a Faculdade de Medicina do Rio de Janeiro, onde concluiu as disciplinas necessárias em 1905 e defendeu a tese no ano seguinte, em 1906. Este trabalho representou um marco importante na trajetória acadêmica e profissional de Ramos, consolidando sua formação como médico, a qual foi elogiada em uma breve resenha, divulgada à comunidade médica da época (“Bibliographia...”, 1906, p. 269).

Em 1907, o médico Galdino Ramos mudou-se para Manaus, Amazonas, chegando à cidade a bordo do navio a vapor Espírito Santo (“Varias Noticias”, 1907, p. 1). A chegada a Manaus marcou o início de uma intensa atuação profissional e social na região. Além de exercer a medicina, Ramos envolveu-se em diversos setores da sociedade local, contribuindo de forma significativa para o desenvolvimento da cidade e do estado.

Um dos feitos mais notáveis de Galdino Ramos foi seu papel na implantação do curso de Odontologia da Faculdade de Medicina em Manaus, no estado do Amazonas. Ele foi nomeado como o primeiro vice-diretor do curso, exercendo essa função entre 1909 e 1910, e, posteriormente, assumiu o cargo de segundo diretor da história do curso em 1910 (UFAM/FAO, 2019). A liderança e dedicação de Ramos foram fundamentais para o estabelecimento e a consolidação do curso, que se tornou uma referência na formação de profissionais da área odontológica na região Norte do Brasil.

O selo da Universidade Federal do Amazonas (UFAM) é uma adaptação do que era usado pela extinta Universidade de Manáos. O símbolo original foi idealizado pelo Dr. Eulálio Chaves, com alterações que contaram com contribuições de outros membros da comunidade acadêmica. Coube a Galdino Ramos, médico e figura de destaque na história do Amazonas, propor a inclusão da confluência dos rios Negro e Solimões como parte do símbolo. Essa representação geográfica, que simboliza a riqueza natural e a singularidade da região amazônica, ocupa atualmente o centro do selo da UFAM, conforme representado na Figura 2 (UFAM, 2012).

Figura 2
Selo da Universidade Federal do Amazonas; ao centro, representação da confluência dos rios Negro e Solimões, conforme sugerido por Galdino Ramos.

Galdino Ramos colaborou com a revista Amazonas Médico como sócio e membro do corpo editorial, atuando desde sua criação, em 1918, em diversas funções. Destacou-se na comissão de redação da revista e como vice-presidente (Amazonas Médico, 1918, p. 5; Amazonas Médico, 1921-1922, p. 156; “Estado do Amazonas...”, 1921, p. 3165, 1924, p. 3077). O Amazonas Médico foi uma publicação da Sociedade de Cirurgia e Medicina do Amazonas, que visava promover o debate e a divulgação de conhecimentos médicos.

Em 1920, Galdino Ramos representou oficialmente o Amazonas no 1º Congresso Brasileiro de Proteção à Infância, realizado no Rio de Janeiro (“O 1º Congresso...”, 1920, p. 2). A participação no evento reforçou seu compromisso com questões sociais e de saúde pública.

Nos anos de 1924, 1926 e 1927, Galdino Ramos atuou como suplente do corpo clínico da Santa Casa de Misericórdia de Manaus, uma das principais instituições de saúde da região (“Estado do Amazonas...”, 1924, p. 3073, 1926, p. 86, 1927, p. 110). A atuação na Santa Casa refletia seu engajamento com a assistência médica à população.

Em 1926, Galdino Ramos foi eleito deputado estadual pelo estado do Amazonas, ampliando sua atuação no campo político (“Pela Politica”, 1926, p. 2). A eleição demonstrou o reconhecimento de sua liderança e sua capacidade de contribuir para o desenvolvimento da região.

A Figura 3 apresenta uma fotografia datada de 1937 (“Bodas de diamante...”, 1937), registrada durante as comemorações das bodas de diamante dos pais do biografado. Na imagem, da esquerda para a direita, podem ser identificados: Galdino Ramos, diretor do Laboratório Nacional de Análises; Paulo Ramos, governador do Maranhão; Cel. Raymundo Ramos; e o desembargador Sousa Ramos. As demais pessoas na fotografia não puderam ser identificadas.

Figura 3
Os quatro homens em destaque na foto de 1937 são, da esquerda para direita, Galdino Ramos, diretor do Laboratório Nacional de Análises, Paulo Ramos, governador do Maranhão, Cel. Raymundo Ramos e o desembargador Sousa Ramos.

Galdino Ramos integrou a Comissão de Similares nos anos de 1938 e 1939, contribuindo para a regulamentação e a fiscalização de produtos importados para o Brasil (“Comissão de similares”, 1938, p. 15, 1939, p. 20). A atuação nessa comissão refletia seu compromisso com a qualidade e a segurança dos produtos a serem utilizados pelos brasileiros.

Além disso, exerceu a função de diretor do Laboratório Nacional de Análises pelo menos entre 1938 e 1943, período em que fortaleceu o controle de qualidade de alimentos, medicamentos e outros produtos essenciais (“O Laboratório Nacional...”, 1941, p. 45; “Telegramas recebidos...”, 1943, p. 4). A liderança de Ramos no laboratório foi fundamental para garantir padrões técnicos e científicos rigorosos.

Em 1941, Galdino Ramos participou das comemorações dos 35 anos de formatura dos médicos da turma de 1905, evento que reuniu profissionais de destaque na medicina brasileira (“A vida social...”, 1941, p. 11). Essa celebração marcou não apenas uma trajetória pessoal de sucesso, mas também a evolução da medicina no país.

Em 1948, Galdino Ramos integrou a delegação brasileira no 4º Congresso Sul-Americano de Química, realizado no Chile, cuja participação destacou sua relevância no campo científico e contribuição para o avanço da química no continente (“O Brasil”, 1948, p. 8).

No dia 29 de setembro de 1964, aos 84 anos, Galdino Ramos faleceu. Em homenagem, o Diário de Pernambuco publicou uma matéria, destacando a trajetória e o legado dele. Sua vida foi marcada por uma atuação multifacetada, que incluiu contribuições significativas para a medicina, a educação, a política e a ciência no Brasil. Galdino Ramos deixou um legado duradouro, sendo lembrado como uma figura central no desenvolvimento do Amazonas e do país. A seguir, segue, na íntegra, o texto publicado:

Dr. Galdino Ramos - Faleceu a 29 de setembro último, no Rio, em sua residência, à Rua Jardim Botânico n.º 22, onde se achava acamado, o Dr. Galdino Martins de Souza Ramos, ex-químico e Diretor do Laboratório Nacional de Análises.

O extinto era piauiense, filho do casal Raimundo Martins de Souza Ramos e Maria Porcina dos Santos Ramos, e contava 84 anos de idade. Era viúvo de D. Júlia Regina de Freitas Ramos.

Deixou os irmãos desembargador José de Souza Ramos, Dr. Paulo Ramos, ex-Interventor Federal no Maranhão e ex-deputado federal, e Raimunda Ramos e os seguintes filhos: Dr. Jesuíno de Freitas Ramos, assistente jurídico do Ministério da Fazenda no Estado da Guanabara; Maria Regina Ramos de Alencar, esposa do Dr. José de Albuquerque Alencar, professor universitário e Procurador Geral da República em exercício; e as senhoritas Celina e Rosa de Freitas Ramos.

O Dr. Galdino Ramos era médico e exerceu sua clínica por muitos anos no Amazonas, para onde foi, logo depois de formado, ocupando vários cargos inclusive o de deputado à Assembleia Legislativa e professor catedrático.

Possuía vários trabalhos científicos, entre os quais a sua tese de formatura sobre Dactiloscopia, na época citada pelos estudiosos até no exterior.

Estava morando no Rio desde 1934.

Deixa ainda, o extinto, 17 netos e dois bisnetos

(Barreto, 1964, p. 6).

Uma matéria publicada no Jornal do Comércio, de Manaus (Monteiro, 1965), sugeriu que logradouros públicos recebessem os nomes de figuras importantes para a história e a cultura do Amazonas, como Galdino Ramos. O texto criticava a substituição arbitrária de nomenclaturas e destacava o esquecimento de personalidades relevantes, entre elas Antônio Brandão de Amorim, Ermano Stradelli, Vicente Reis, Frei de Santa Luzia, Bernardo de Sena, Adolfo Lisboa e o próprio Galdino Ramos. Esses nomes, segundo Monteiro (1965), representavam personagens fundamentais para a identidade e a memória do estado, mas estavam sendo negligenciados em favor de mudanças que não refletiam a história local.

Monteiro (1965) também condenava a valorização excessiva de figuras estrangeiras em detrimento das locais, apontando as confusões geradas por renomeações recentes. Como exemplo, citava a mudança do aeroporto de Ponta Pelada para Ajuricaba, e da colônia de Oliveira Machado para bairro de Santos Dumont. Ele ressaltava que já existiam outros locais dedicados ao aeronauta Santos Dumont, como uma praça e um jardim, questionando a necessidade de mais homenagens a uma figura estrangeira, em detrimento de personalidades locais que contribuíram significativamente para o desenvolvimento do Amazonas.

Esses protestos parecem ter surtido efeito. Uma pesquisa no Google Maps revelou a existência de uma rua denominada Galdino Ramos em Manaus, conforme ilustrado na Figura 4. Essa homenagem póstuma ao médico e político reflete o reconhecimento de sua importância para a história e a cultura do Amazonas, atendendo, em parte, às reivindicações expressas no jornal (Monteiro, 1965, p. 2). A rua Galdino Ramos serve como um lembrete de seu legado e de sua contribuição para a sociedade amazonense.

Figura 4
Rua Galdino Ramos, São Jorge, Manaus, Amazona, CEP 69033-220.

GALDINO RAMOS E A IDENTIFICAÇÃO

Por ocasião da morte de Francis Galton, o Jornal do Commercio (“Sir Francis Galton”, 1911, p. 1), do Rio de Janeiro, divulgou uma matéria que exaltava os feitos científicos do estudioso britânico e citava pesquisadores que deram continuidade aos seus esforços no campo das impressões digitais. Nas palavras do jornal, Galton realizou pesquisas pioneiras sobre as impressões digitais, inspiradas nas sugestões de William Herschell (1833-1917), do Bengal Civil Service. Ele estabeleceu a base científica da datiloscopia, comprovando a invariabilidade e a diversidade dos desenhos das linhas papilares, consolidando-a como o método perfeito de identificação pessoal. O jornal destacou ainda que Galton foi o primeiro elo em uma cadeia de cientistas que ampliaram seus estudos, incluindo discípulos de Alexandre Lacassagne, na Escola de Lyon, como Pierre Forgeot, Charles Féré, Antoine Frécon e Edmond Locard; na América, o argentino Juan Vucetich (Vucetich, 1904) e o uruguaio Alejandro Sarachaga, além do brasileiro Galdino Ramos (Ramos, 1906). A menção a Galdino Ramos entre os principais expoentes da datiloscopia evidencia o impacto de seu trabalho na consolidação da identificação papiloscópica no Brasil. A obra “Da identificação” (Ramos, 1906) aprofundou os estudos sobre a aplicabilidade da técnica, destacando sua eficácia na identificação civil e criminal.

Galdino Ramos foi citado por Elysio de Carvalho, então diretor do Gabinete de Identificação e Estatística do Rio de Janeiro, em uma entrevista de 1913 sobre a identificação de eleitores (Carvalho, 1913, p. 4). A menção a Ramos nesse contexto evidencia seu reconhecimento como um dos pioneiros da identificação datiloscópica no Brasil, reforçando sua contribuição para a implementação de sistemas de identificação baseados nas impressões digitais. Na época, a utilização da datiloscopia para fins eleitorais representava um avanço significativo na segurança dos processos democráticos, prevenindo fraudes e garantindo maior confiabilidade na autenticação da identidade dos cidadãos.

Além disso, em 1918, Ramos assumiu a direção do recém-criado Gabinete de Identificação do Amazonas, consolidando-se como uma das principais figuras na aplicação prática da datiloscopia no país (Estado do Amazonas, 1918, pp. 157-159). A atuação de Ramos à frente da instituição foi essencial para estruturar e expandir os serviços de identificação civil e criminal na região Norte do Brasil. O gabinete, sob sua liderança, foi responsável por sistematizar o registro datiloscópico da população, alinhando-se às iniciativas nacionais que buscavam modernizar a segurança pública e a administração estatal.

Entre os trabalhos científicos de Galdino Ramos na área de identificação, além de sua obra principal (Ramos, 1906), destaca-se um estudo sobre a ocorrência do tipo fundamental denominado arco. Os franceses Pierre Forgeot e Gabriel Féré argumentavam que esse tipo papilar deveria ser mais frequente entre populações indígenas. No entanto, Ramos (1906) refutou essa hipótese já em “Da identificação” e reafirmou sua posição posteriormente em uma publicação no Amazonas Médico (1918, p. 4). Para sustentar essa argumentação, analisou impressões digitais coletadas entre indígenas de Rondônia pelo antropólogo e professor Roquette-Pinto (1919, p. 124), seu antigo colega de medicina. Na segunda edição de “Rondônia”, Roquette-Pinto (1919, p. 346) apresenta nota a esse respeito:

A respeito dessas observações publicou o dr. Galdino Ramos, notável conhecedor da dactyloscopia, uma interessante monographia (Manáos, 1918 [Amazonas Médico, 1918]), em que discute com brilho algumas das conclusões do auctor. Galton chamou typo primário ao arco, por ser encontrado mais vezes nos dedos dos grandes macacos (anfhropoides). Féret e Forgeot acharam esse mesmo typo, com muita frequência, nos epilépticos e degenerados. Galdino Ramos, em 1905, contestou aquella predominância e formulou uma theoria por explicar a complexidade das figuras das impressões. Para elle “a complexidade daquelles desenhos parece estar na dependência do trabalho funccional”. No material recolhido entre os Índios da Rondonia, Galdino Ramos encontrou provas daquella sua theoria, exposta e documentada com raro talento.

Silvio Terra, então chefe da Seção de Segurança Pessoal da Polícia Civil do Distrito Federal (à época, sediada no Rio de Janeiro), concedeu uma entrevista na qual ressaltou o ditado de que ‘ninguém é profeta em sua terra’. Antes mesmo da oficialização do método de Vucetich na Argentina, o Brasil já havia adotado esse método inovador, impulsionado pelo trabalho de figuras como Félix Pacheco, Bento de Faria, Eurico Cruz, Edgar Costa, Galdino Ramos, entre outros pioneiros. Esses cientistas desempenharam um papel fundamental na difusão e na consolidação da identificação papiloscópica, um sistema que, apesar de sua simplicidade estrutural, revolucionou a forma de reconhecer a individualidade humana com precisão e confiabilidade (“Evolução cultural...”, 1944, p. 1).

O Gabinete de Identificação da Armada, por ocasião da celebração dos seus 45 anos, citou Galdino Ramos em uma publicação da Revista Marítima Brasileira (“Bibliografia”, 1957). A menção a Ramos nesse contexto demonstra o reconhecimento de sua contribuição para a ciência da identificação, não apenas no âmbito civil e criminal, mas também no setor militar, onde os métodos datiloscópicos foram gradativamente incorporados como ferramenta essencial para a gestão de registros e controle de identidade. A publicação destacou personalidades que desempenharam papéis cruciais na consolidação da datiloscopia e da ciência forense, como Legrand du Saule, Juan Vucetich, Alphonse Bertillon, Francisco Latzina, Hermeto Lima e Felix Pacheco (“Bibliografia”, 1957, p. 214).

Além dessa contribuição, Ramos também participou ativamente do intercâmbio científico internacional na área da identificação papiloscópica. Em 10 de abril de 1921, Juan Vucetich, então diretor do Gabinete de Identificação de La Plata, enviou uma circular solicitando informações para embasar uma obra que pretendia intitular “Historia sintética de la identificación”. Em resposta, pelo Ofício nº 25, de 17 de agosto de 1921, Galdino Ramos, na qualidade de diretor do Gabinete de Identificação do Amazonas, forneceu a Juan Vucetich um relatório detalhado, incluindo o quantitativo de identificações realizadas no Amazonas até 31 de dezembro de 1920: das identificações realizadas, 3.539 eram civis e 240 criminais (Amazonas Médico, 1918, 1921-1922).

A trajetória de Galdino Ramos na área da identificação pessoal e da datiloscopia consolidou-o como um dos pioneiros e grandes nomes da ciência forense no Brasil, deixando um legado que influenciou gerações de pesquisadores e profissionais da área. No entanto, apesar de sua relevância científica, de sua atuação prática na implementação da datiloscopia e de seu reconhecimento por figuras de renome, como Juan Vucetich e Edmond Locard, seu nome tem sido progressivamente negligenciado na historiografia da identificação forense no Brasil.

O esquecimento de Galdino Ramos reflete a falta de reconhecimento de cientistas brasileiros que desempenharam papéis essenciais no desenvolvimento da ciência forense. Sua ausência em grande parte da literatura especializada demonstra a necessidade de uma reavaliação da história da identificação papiloscópica, garantindo que sua contribuição pioneira seja devidamente valorizada.

CONCLUSÃO

A trajetória de Galdino Ramos evidencia sua significativa contribuição para as ciências forenses no Brasil, especialmente no âmbito da medicina legal e da identificação forense. Reconhecido tanto nacional quanto internacionalmente, Ramos desempenhou um papel central na institucionalização da identificação civil e criminal, destacando-se por sua atuação no Gabinete de Identificação do Amazonas e por colaborações científicas com pesquisadores renomados, como Juan Vucetich e Edmond Locard. A obra “Da identificação” (Ramos, 1906), juntamente com publicações realizadas no periódico Amazonas Médico, consolidou sua posição como um dos pioneiros da área, contribuindo para o aprimoramento do método datiloscópico e promovendo debates sobre a relação entre padrões digitais e fatores científicos.

Além de sua atuação na identificação forense, Ramos esteve envolvido em diversas áreas do conhecimento, exercendo papel relevante na educação, na política, na medicina e na química. No campo educacional, participou ativamente da formação de novos profissionais, além de colaborar na criação do curso de Odontologia no Amazonas. Sua atuação política e administrativa incluiu a participação em comissões estratégicas voltadas para a modernização institucional e a regulamentação profissional. No setor médico, contribuiu tanto na prática clínica quanto na pesquisa. Na área da química, representou o Brasil no 4º Congresso Sul-Americano de Química, realizado no Chile, demonstrando interesse pelo avanço científico em múltiplos campos. Como diretor do Laboratório Nacional de Análises, esteve diretamente envolvido na implementação e no aprimoramento de metodologias laboratoriais, promovendo a qualificação técnica e a estruturação desse serviço.

Seu legado também se refletiu na criação de símbolos institucionais, como o selo da UFAM, e no reconhecimento de sua trajetória por meio de homenagens em logradouros públicos. Ao longo de sua carreira, Ramos integrou pesquisa científica e aplicação prática, consolidando seu papel na institucionalização dos sistemas de identificação forense no Brasil e deixando um legado que se estende a diversas áreas do conhecimento.

No entanto, apesar da amplitude e da importância de suas contribuições, o nome de Galdino Ramos tem sido progressivamente relegado ao esquecimento. A escassez de referências à sua obra em estudos contemporâneos sobre medicina legal e identificação papiloscópica evidencia a necessidade de um resgate histórico de sua memória, assegurando que seu impacto seja devidamente reconhecido. Diante da centralidade de sua atuação na difusão e no aperfeiçoamento da datiloscopia e de suas contribuições em diversas áreas, torna-se fundamental reapresentá-lo à comunidade científica brasileira, garantindo que novas gerações de pesquisadores e profissionais da área forense tenham acesso ao seu legado.

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REFERÊNCIAS

Editado por

  • Responsabilidade editorial:
    Fernando Ozório de Almeida

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    03 Nov 2025
  • Data do Fascículo
    2025

Histórico

  • Recebido
    03 Abr 2025
  • Aceito
    07 Maio 2025
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