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'Cave canem!': cuidado com os 'Pronapianos'! Em busca dos jovens da arqueologia brasileira

Looking for the Young of the Brazilian archaeology

Resumos

Comenta quatro trabalhos do Simpósio sobre fronteiras territoriais e identidades socioculturais: as causas e os significados da variabilidade artefatual dos registros arqueológicos, apresentados no XIII Congresso da Sociedade de Arqueologia Brasileira. Posteriormente, busca entender a relação entre práticas, teorias e discursos na arqueologia brasileira, tomando como exemplo o Programa Nacional de Pesquisas Arqueológicas.

Teorias arqueológicas; Arqueologia brasileira; Historiografia


Comments four papers of a symposium about territorial frontiers and socio-cultural Identities: reasons and significance for the variability of artifacts in the archaeological record presented during the XIII Congress of the Society of Brazilian Archaeology. Afterwards, it tries to understand the relation between practice, theory and discourse in Brazilian archaeology, mainly in the context of the National Archaeological Research-Program.

Archaeological theories; Brazilian archaeology; Historiography


DOSSIÊ

FRONTEIRAS TERRITORIAIS E IDENTIDADES SOCIOCULTURAIS: CAUSAS E SIGNIFICADOS DA VARIABILIDADE ARTEFATUAL DOS REGISTROS ARQUEOLÓGICOS

'Cave canem!': cuidado com os 'Pronapianos'! Em busca dos jovens da arqueologia brasileira

Looking for the Young of the Brazilian archaeology

Klaus Hilbert

Pontifícia Universidade do Rio Grande do Sul. Programa de Pós-graduação em História. Professor Titular. Porto Alegre, Rio Grande do Sul, Brasil (hilbert@pucrs.br)

RESUMO

Comenta quatro trabalhos do Simpósio sobre fronteiras territoriais e identidades socioculturais: as causas e os significados da variabilidade artefatual dos registros arqueológicos, apresentados no XIII Congresso da Sociedade de Arqueologia Brasileira. Posteriormente, busca entender a relação entre práticas, teorias e discursos na arqueologia brasileira, tomando como exemplo o Programa Nacional de Pesquisas Arqueológicas.

Palavras-chave: Teorias arqueológicas. Arqueologia brasileira. Historiografia.

ABSTRACT

Comments four papers of a symposium about territorial frontiers and socio-cultural Identities: reasons and significance for the variability of artifacts in the archaeological record presented during the XIII Congress of the Society of Brazilian Archaeology. Afterwards, it tries to understand the relation between practice, theory and discourse in Brazilian archaeology, mainly in the context of the National Archaeological Research-Program.

Keywords: Archaeological theories. Brazilian archaeology. Historiography.

Admirável mundo jovem

When we are young we are a jungle of

complications. As we get older we simplify.

Graham Greene. The Quiet American

Os quatro trabalhos apresentados no simpósio sobre fronteiras territoriais, identidades sócio-culturais e os significados da variabilidade artefatual demonstram a vontade dessa geração de arqueólogas brasileiras de debater conceitos e conjuntos de idéias que percebem cultura material como um sistema de símbolos e não apenas como demarcador de tempo. Entendem cultura material não somente para definir culturas arqueológicas em seus limites, mas para representar uma possibilidade concreta de compreender seu significado sócio-cultural. Cada uma das questões tratadas neste simpósio, sem dúvida, proporcionaria assunto para muitos outros encontros e interessantes diálogos. Mas, foi justamente o entrelaçamento das temáticas e também a composição da mesa de participantes que criou um mundo fascinante de perguntas e respostas, repletas de surpresas e desafios.

Os artigos de Dias (2007), Schaan (2007), Silva (2007) e Monticelli (2007) são de interessante leitura, densas e provocantes nos seus conteúdos, estimulantes e abertas ao diálogo. Mas, ao declarar meu entusiasmo, simultaneamente confesso minhas dúvidas, não a respeito dos trabalhos, mas referente à formulação do presente texto. Sentia-me, às vezes, como Penélope ao desfazer seu vestido de casamento à noite. Do mesmo modo, rasguei seguidamente o tecido da minha narrativa em busca de outros desenhos, outras linhas argumentativas. A história que pretendia contar no início do meu projeto não correspondia aos resultados finais. Muitas vezes, a formulação desse texto complicava-se quando precisava interpretar os motivos para certas preferências teóricas, narrativas, escolhas discursivas ou procedimentos metodológicos nos trabalhos das autoras. Sem citar a insegurança masculina provocada pela presença de uma maioria esmagadora feminina nesse simpósio. Não estou reclamando, quem me dera, mas alguns erros de interpretação, incompreensões ou eventuais colocações preconceituosas, manifestadas nesse texto, podem ser explicados por essas ou outras circunstâncias.

Apesar da escolha de um conjunto de temáticas contemporâneas, quase todos os trabalhos aqui publicados buscam um referencial nas formas tradicionais do fazer arqueologia no Brasil. Eles buscam, quem sabe, uma motivação inicial para depois, e com mais convicção, poder desenvolver as reflexões teóricas e metodológicas com mais detalhes.

Observei, nos trabalhos das arqueólogas, referências a uma linha divisória importante na arqueologia brasileira marcada pelo Programa Nacional de Pesquisas Arqueológicas (PRONAPA), sumariamente questionado pelas autoras como uma forma tradicional e antiga de fazer arqueologia. É interessante notar como, nos últimos anos, a memória desse programa de pesquisas arqueológicas ganhou o privilégio de uma permanente manutenção. Em artigos, livros, dissertações, teses, relatórios ou projetos acadêmicos, popularizou-se a constante lembrança do PRONAPA. Mesmo depois de 40 anos, permanece um signo poderoso e polissêmico. É evidente, também, que esse passado teórico e metodológico da arqueologia brasileira continua preocupando os arqueólogos brasileiros.

Estabelecendo diálogos

"The time has come," the Walrus said,

"To talk of many things:

Of shoes - and ships - and sealing-wax -

Of cabbages - and kings -

And why the sea is boiling hot -

And whether pigs have wings".

Lewis Carroll. Through the Looking Glass

Comunicação é um ato social que conecta a autora ao leitor pela expectativa, por parte da autora, em obter uma resposta a suas perguntas. Através dessa resposta, as palavras da autora ganham significados, são avaliadas, contestadas ou confirmadas (JOYCE, 2002, p. 30).

Entre as quatro autoras existe uma concordância interessante, em pelo menos duas, na avaliação dos significados do sistema de classificação de cultura material em fases e tradições na arqueologia brasileira (SCHAAN, 2007; SILVA, 2007).

Em territórios tradicionais da Arqueologia: o reconhecimento da importância que esse sistema de classificação por atributos técnicos, tipológicos, estilos, motivos, desenhos etc. teve facilita a "comunicação entre os pesquisadores", conforme Silva (2007, p. 101), e fornece meios que permitam "em pouco tempo o mapeamento nacional da distribuição" de culturas arqueológicas, observado por Schaan (2007, p. 78).

Em novos territórios: Silva (2007, p. 102) destaca a incapacidade dos antigos sistemas classificatórios de contribuir "para um dos objetivos principais da Arqueologia [...] explicar, através do registro arqueológico, os comportamentos e a trajetória das populações humanas do passado" ou, de forma muito semelhante citando Schaan (2007, p. 78), a "necessidade de produzir uma história do passado que seja dinâmica e dê conta dos processos de mudança sociocultural".

Denise Schaan (2007, p. 78) aponta, no início de seu artigo, a dificuldade de "compatibilizar as classificações herdadas de fases e tradições" como um dos grandes problemas na arqueologia da Amazônia, utilizando uma história mais desejada, que leva em conta os "processos de mudança sociocultural". Ela constrói uma narrativa de oposições entre o modelo tradicional relacionado ao PRONAPA e uma arqueologia contemporânea que "busca reconstituir contextos históricos, sujeitos à mudança cultural e transformações sociais". A primeira é herdada e surge praticamente com a história da pesquisa, é "fossilizada", provoca "mal-estar", representa uma "camisa-de-força" que "impede", não permite, não "contribui" para "um dos objetivos maiores da arqueologia", está ligada a "conversas informais", e ao uso irrefletido "de artefatos tecnológicos [...] para identificar grupos sociais". A segunda está contextualizada com a formulação de "questões relevantes", com a "apreciação de mudança cultural", "busca reconstituir contextos históricos", permite e possibilita.

O caminho inicia na frente da porta

The Road goes ever on and on

Down from the door where it began.

Now far ahead the road has gone,

And I must follow, if I can,

Pursuing it with eager feet,

Until it joins some larger way

Where many paths and errands meet.

And whither then? I cannot say.

J. R. R. Tolkien. The Old Walking Song

Usarei esse espaço que me foi concedido para organizar minhas idéias e para compartilhar os resultados de minhas reflexões com o leitor e, evidentemente, esperar por avaliações, respostas e críticas.

A freqüente associação do Programa Nacional de Pesquisas Arqueológicas (1965 e 1970) na literatura arqueológica brasileira ao Histórico-Culturalismo me incentivou a refletir sobre os motivos dessa afirmação. Por essa razão escolhi como tema da minha contribuição a esse simpósio, entender como os arqueólogos brasileiros usaram as abordagens tradicionais da Arqueologia para delimitar as fronteiras entre idéias, ocupar diferentes espaços de atuação para definir novas identidades e preocupações arqueológicas.

A pergunta estava lançada, a curiosidade acesa, mas os caminhos eram praticamente desconhecidos. Apenas restava uma certeza: era preciso um debate prolongado para perceber melhor o passado das idéias arqueológicas. Esperamos que esses artigos sirvam como contribuição a um debate sempre aberto e de múltiplas vozes.

Perguntei então pelo caminho que iniciava bem na frente da minha porta, procurei apoio nos trabalhos de alguns colegas que muito antes já andaram por essas trilhas e elaboraram revisões brilhantes sobre os marcos teóricos da arqueologia brasileira, como Dias (1995), Kern (1996), Barreto (1998), Lima (2002), Oliveira (2002) e muitos outros. Depois consultei autores com Trigger (1995), Lyman et al. (1997), Barnard (2000), O'Brien et al. (2005), Steward (1973), White (1987), entre outros, para esclarecimentos específicos, sobretudo referentes ao pensamento histórico-cultural e evolucionismo cultural, conceitos básicos que me interessam nesse contexto relacionado ao PRONAPA.

A primeira opção foi procurar respostas no plano do irracional. Talvez se tratasse de uma reação tipicamente machista em encontrar explicações e reações de meus colegas nas diversas categorias de quadro emocional. Então formulei, como passo provisório de minhas reflexões, a hipótese da vingança. Que motivo forte!

Pergunto: a constante lembrança, e recriação do PRONAPA, seriam comparáveis com o Ceterum censeo Carthaginem esse delendam exclamado por Catão? A arqueologia brasileira sofreu por causa do PRONAPA tantas derrotas humilhantes que precisavam eternamente ser lembradas? Parece que alguns colegas brasileiros realmente assumiram esse papel de Catão, construindo memórias vingativas e mitos de derrotas e vitórias.

A segunda opção em busca dos motivos que levaram profissionais brasileiros a relacionar o PRONAPA ao pensamento histórico-cultural foi de cunho muito pessoal. Precisava entender primeiro a acepção do pensamento histórico-cultural, em geral, e especificamente para alguns colegas, para melhor avaliar o peso e o significado desse conceito, e quais foram as idéias e práticas básicas do PRONAPA. Essa foi uma reação pessoal, pois os arqueólogos brasileiros chamados, por profissionais da mesma categoria, de 'Pronapianos' ou 'Pronapistas' ou os 'histórico-culturalistas empobrecidos' são meus colegas, alguns são meus amigos. Sem saber o que exatamente significava ser histórico-culturalista, evolucionista, difusionista, processualista ou pósprocessualista, corria o risco de fazer parte de um ou de outro grupo, uma irmandade, uma tribo arqueológica sem o saber. Em todo caso, ainda estou convencido que os arqueólogos 'Pronapianos' dificilmente cometeram todos estes pecados de que são acusados e com certeza nem todos eram estes tradicionalistas recalcados. Ao contrário! Acho, sem poder comprovar minha afirmação nesse momento, que os 'Pronapianos' eram os jovens arqueólogos brasileiros, representavam na década de 1960 a 'jovem guarda'.

Então qual foi o erro, o pecado cometido por eles? Talvez, daquele jovem que pela primeira vez experimentou o poder de dar nomes às pequenas coisas esquecidas e totalmente ignoradas pelos outros arqueólogos da época, o poder de explicar e controlar o tempo e os espaços arqueológicos, "Quantos anos têm essas pedras, de onde veio, como funciona?", seja mágica!

A terceira reação foi de um desses arqueólogos, ainda não sei exatamente de qual categoria, mas creio que de um desses insatisfeitos com suas próprias respostas e dos outros. Fui procurar esclarecimento sobre alguns conceitos básicos, tais como Histórico-Culturalismo, Difusionismo, Evolucionismo Cultural, Evolucionismo, etc. Entrei em diálogo com arqueólogos e antropólogas para conhecer os caminhos para os conceitos do Histórico-Culturalismo e Evolucionismo Cultural.

Pronto para caminhar

I'm ready to go anywhere, I'm ready for to fade

Into my own parade, cast your dancing spell my way,

I promise to go under it.

Bob Dylan. Mr. Tambourine Man

Entendi que até meados do século passado, a arqueologia norte-americana era uma ciência com forte orientação em aspectos históricos e culturais, mas também com ligações com a Antropologia Cultural, Antropologia Social e Lingüística. O antropólogo alemão Franz Boas, influenciado pela teoria da Kulturkreislehre, pouco interessado na comparação de culturas e na sua classificação progressiva, enfatizava o estudo minucioso de cada cultura (HOEBEL, 1972, p. 68; TRIGGER, 1995, p. 187). Boas (1920) entendia que temáticas como mitos, arte, cultura material, organização social e outras deveriam ser estudadas profundamente no seu contexto e na sua área cultural. Depois, a distribuição de todas as evidências registradas eram organizadas em forma de tabelas e marcadas em mapas para determinar quais dessas manifestações eram universais e específicas dentro de cada área cultural e, ainda, onde as culturas com maior complexidade estavam localizadas. Na seqüência desse levantamento minucioso, conclusões sobre o desenvolvimento histórico e cultural poderiam ser formuladas. Boas (1920, p. 316) resume que

the method which we try to develop is based on a study of dynamic changes in society that may be observed at the present time. We refrain from the attempt to solve the fundamental problem of the general development of civilization.

Mas ele reafirmava que as leis ou normas que procurava estavam relacionadas aos efeitos fisiológicos, psicológicos e às condições sociais, não aos progressos culturais.

Boas tentou afastar a antropologia americana da abordagem dedutiva especulativa dos evolucionistas para uma abordagem indutiva e exata das ciências naturais. Isto não significava que o referido autor pretendia transformar a Antropologia em ciência natural, mas sim convencer os antropólogos norte-americanos de preocuparem-se com questões e problemas científicos (HOEBEL, 1972, p. 68). Formado em matemática e física, Boas reagia contra as idéias evolucionistas e assim desenvolveu uma proposta de análise com uma abordagem histórica no estudo das diversas etnias, na difusão de determinados traços e normas entre as culturas. Esta abordagem particularista trouxe várias conseqüências para a definição normativa de cultura, em que cada artefato era visto como expressão de idéias e normas compartilhadas por todos os membros da sociedade.

Arqueólogos que trabalharam sobre essa abordagem da 'Escola particularista' reconstruíram, baseados em combinações específicas da cultura material, áreas culturais que formavam, dentro do mesmo horizonte cronológico, um mosaico. Nesse âmbito, as transformações culturais podiam ser observadas da mesma forma, como na Siedlungsarchäologische Methode de Kossinna (1920) ou na Kulturkreislehre dos antropólogos alemães e austríacos como Leo Frobenius, Fritz Graebner o difusionista Friedrich Ratzel (TRIGGER, 1995, p. 151). Mudanças culturais foram explicadas pelos arqueólogos europeus através de migrações de povos inteiros, enquanto os norte-americanos privilegiaram outros mecanismos de dispersão, por exemplo, relações interétnicas e influências através do comércio e trocas de produtos. Em muitas de suas pesquisas, nota-se a preocupação de Franz Boas em ilustrar que nem raça e língua formavam barreiras na dispersão de idéias e normas e que o comportamento humano era determinado pelo conjunto das tradições culturais transmitidos de uma geração a outra através do aprendizado e não pelo ambiente. Segundo Boas (2006, p. 35), o comportamento humano era determinado pela cultura.

Amo as coisas

Amo las cosas loca,

locamente.

Me gustan las tenazas,

las tijeras,

adoro

las tazas,

las argollas,

las soperas,

sin hablar,por supuesto,

del sombrero.

Pablo Neruda. Oda a las cosas

Entendi que o conceito do Evolucionismo Cultural unilinear propõe a existência de uma única linha dominante. Ao longo dessa linha, as sociedades evoluem, passando pelos mesmos estágios. Conforme os paradigmas do Evolucionismo unilinear, as sociedades progredirem em velocidades diferentes, consequentemente as mais lentas permanecem nos níveis mais baixos em comparação com aquelas que progredissem mais rapidamente. Os principais pensadores do Evolucionismo unilinear do século XIX foram John Lubbock (1870), Henry Sumner Maine (1879) e Edward Burnett Tylor (1871). Eles se preocuparam com diferentes temáticas: cultura material, forma de subsistência, sistema de parentesco ou religião. Acreditavam que esses fenômenos culturais, na verdade, estavam interligados da seguinte maneira: formas de subsistência provocavam mudanças no sistema de parentesco, na religião, na tecnologia, na forma e função dos artefatos etc. (BARNARD, 2000, p. 29). O paradigma da evolução unilinear possibilitava conectar o presente ao passado.

A principal crítica levantada atualmente contra o Evolucionismo unilinear é que a evolução não é um factual e sim ideológico. A filogênese, a evolução dos seres vivos, não é um fato, mas serve para explicar uma ordem natural observada. A busca de uma ordem na natureza, uma classificação dos organismos, independe da teoria da evolução. A observação deve ser colocada antes da formulação de teorias, conceitos e línguas para garantir a visibilidade da diversidade. Se a idéia da evolução ou qualquer outra teoria é formulada ou colocada antes da observação, o mundo aparece à luz dessa teoria. A teoria nunca vai estar errada, mas sempre de acordo com a observação (RIEPPEL, 1992, p. 18).

O Evolucionismo universal surgiu no início do século XX e ampliou seu foco para níveis mais gerais. Morgan (1877) propôs organizar as sociedades em selvagens, bárbaros e civilizados. Mas essa proposta de um Evolucionismo universal também foi uma reação de uma nova geração de evolucionistas contra as idéias funcionalistas e relativistas. Um dos mais conhecidos representantes do Evolucionismo universal foi Gordon V. Childe (1892-1957). Em Man Makes Himself (1936), Childe desenvolveu suas idéias da história da humanidade baseadas em exemplos de diferentes partes do mundo e seguindo o conceito de um Evolucionismo universal através de grupos de caçadores-coletores, origens da agricultura, formação dos estados até a revolução urbana.

Leslie A. White (1900-1975), outro importante proponente do Evolucionismo universal, encontrava-se bastante isolado na antropologia americana dominada pelos conceitos relativistas de cultura dos 'Particulatistas' e pelos colegas que defendiam um Evolucionismo multilinear. Durante os quarenta anos que lecionou na Universidade de Michigan, White formou um grupo de seguidores composto de estudantes e colegas neo-evolucionistas. Ele desenvolveu dois grandes campos de preocupações acadêmicas: um interessado no funcionamento interno das culturas, outro evolucionista e interessado em cultura apenas como um processo progressivo (O'BRIAN et al., 2005, p. 20). Em The Science of Culture: A Study of Man and Civilization, White (1949) expressou suas idéias sobre cultura como um sistema simbólico, integrado e dinâmico, em que a tecnologia representava o componente mais importante. Cultura, em todos os seus aspectos material, social e ideológico, era facilmente transmitida de um indivíduo, geração ou região para uma outra através de mecanismos sociais. Trata-se de uma espécie de herança social. "We thus view culture as a continuum, a suprabiological, extra-somatic order of things and events that flows down through time from one age to the next" (WHITE, 2006, p. 107). Sua abordagem chamada de "culturology" sugeria o estudo científico dos fenômenos culturais, sem se referir especificamente à raça, tipo físico, inteligência, moral etc. De fato, pessoas, tribos ou nações ganharam menção apenas para excluí-las do enfoque mais cultural de sua pesquisa. Em outra ocasião, White (1987, p. 48) esclareceu que o esquema do Evolucionismo universal descreve processos culturais ou estágios de desenvolvimento cultural em geral e não se aplica a história cultural de tribos ou nações. Ele concordava que cada povo tinha sua própria história e essa história era única. A história cultural de cada povo somente poderia ser explicada em termos de sua própria história cultural e não em termos de uma fórmula evolucionista. White procurou apoio nos conceitos evolucionistas de Edward B. Tylor (1871) que também afirmou sua preocupação com a cultura e com a maneira como um estágio cultural se desenvolve a partir de outro anterior e como um conjunto de traços culturais surge através de processos evolutivos. Mas isso não significava, conforme White, que todos devem passar pelos mesmos estágios de desenvolvimento, como muitos dos seus críticos, principalmente Franz Boas afirmaram.

Preocupado mais com a questão evolucionista, White (2006, p. 119) argumentou em "Energy and the Evolution of Culture" que a energia era um dos mecanismos chave da evolução cultural e entendido como um processo:

Culture thus becomes primary a mechanism for harnessing energy and of putting it to work in the service of man, and, secondly, of channeling and regulating his behavior not directly concerned with subsistence and offense and defense. Social systems are therefore determinated by technological systems, and philosophies and arts express experience as it is determinated by technology and refracted by social systems.

Para ele, energia em si não tinha valor, nem força. Para se tornar decisivo dentro de um sistema cultural, energia precisava ser transformada, direcionada e controlada. Na fase inicial da evolução humana, energia existia apenas em forma do corpo humano, depois os hominídeos exploraram outras fontes de energia como fogo, água e vento. Progressos na criação e manufatura de artefatos, domesticação de animais e plantas e intensificação de agricultura, aumentaram a eficiência tecnológica e aceleraram a evolução cultural. Interessante constatar que, com essa abordagem materialista, White nunca se considerou um marxista.

Marshall Sahlins, Elman Service, Marvin Harris e James Ford seguiram as propostas evolutivas de White (BARNARD, 2000, p. 39). Leslie White é importante para a compreensão de alguns conceitos teóricos e metodológicos do Programa Nacional de Pesquisas Arqueológicas, pois uma de suas alunas era Betty J. Meggers, que foi acusada de ser marxista. Lewis R. Binford também foi um dos alunos de graduação de Leslie White. Entre várias tentativas de definição de cultura de White, Binford (1962, p. 218) adotou a seguinte: "Cultures is viewed as the extrasomatic means of adaptatiotin for human organism". Além da definição de cultura, Binford igualmente assumiu as idéias de White sobre o desenrolar da evolução social que parte do princípio básico de que as sociedades se desenvolveram do mais simples ao mais complexo, de grupos sociais com estruturas políticas pouco hierarquizadas para sociedades complexas.

A evolução multilinear das culturas foi sugerida por Steward (1973), da University of Illinois, como uma tentativa de se afastar tanto das generalizações do Evolucionismo universal quanto das afirmações polêmicas da evolução unilinear. O conceito da evolução multilinear buscava contornar essas dificuldades propondo diversas trajetórias de evolução tecnológica e social em regiões diferentes. As trajetórias são essencialmente restringidas pelas determinações tecnológicas e principalmente pelas situações ecológicas, ambientais. Essa visão multilinear tem certa semelhança com as idéias de Charles Darwin, inicialmente pela analogia com a evolução biológica e também pelas ligações fortes com a idéia da ecologia cultural. A evolução multilinear, uma metodologia essencialmente baseada na idéia de existirem regularidades significativas nas mudanças culturais, estava preocupada na definição de leis culturais. Além disso, estava pensando na reconstrução histórica, mas não esperava que os dados históricos pudessem ser classificados em estágios evolutivos com abrangência universal. A evolução multilinear de Steward procurava estudar culturas inteiras em todos os seus detalhes para verificar qual forma social específica aparecia em diferentes níveis evolutivos, quer dizer, nos diversos graus de complexidade de integração social (STEWARD, 1973, p. 19).

Na coletânea de diversos artigos publicados em 1955, como "Theory of Culture Change", Steward (1973, p. 3) destacava a importância de diferenciar entre uma abordagem científica geral e uma histórica particularista. A primeira buscava organizar fenômenos em categorias com a finalidade de reconhecer relações consistentes entre eles a fim de estabelecer leis de regularidades e formular conclusões e prognósticos. A última estava mais preocupada com a ocorrência de fenômenos em tempo e espaço, a singularidade de cada constelação e o sistema de valores que caracterizam áreas culturais. É evidente, que os conceitos teóricos e os métodos da primeira abordagem são parcialmente diferentes da última. Steward (1973, p. 4) partiu do pressuposto de que "certain basic types of culture may develop in similar ways under similar conditions but that few concrete aspects of culture will appear among all groups of mankind in a regular sequence". Foi muito cuidadoso nas suas definições sobre a evolução multilinear. Ele afirmava que "certos tipos básicos de cultura" que "podem desenvolver" em "condições semelhantes" "alguns aspectos" em uma seqüência regular em todos os grupos humanos. Essa cautela explica-se por sua posição teórica e metodológica. Ele afastou-se das idéias dos particularistas históricos, mas deixou bem claro que existia um contraste entre suas propostas de Evolucionismo multilinear com os conceitos unilineares defendidos por Morgan (1877), Tylor (1871), Gordon Childe e Leslie White.

O Evolucionismo Cultural da década de 1950 representava uma alternativa ao Histórico-Culturalismo que buscava interpretar e classificar mudanças culturais no decorrer do tempo e no espaço, com o objetivo principal de estabelecer contextos cronológicos dos complexos culturais e das suas manifestações. Diferentemente, o Evolucionismo Cultural, em analogia à evolução biológica, percebia as mudanças culturais como graduais e como resultado de diversos processos. A diferença entre a proposta do Evolucionismo Cultural de White e o de Steward está na proposta de uma evolução geral das culturas para White, ou de culturas específicas para Steward.

Tudo confirma-se pela vitória

Wo alles sich durch Sieg beweist

und tauscht den Blick und tauscht die Ringe

im Weingeruch, im Rausch der Dinge -

dienst du dem Gegenstück, dem Geist.

Gottfried Benn. Einsamer nie

Walter Taylor em "A Study of Archaeology" (1983) também manifestou suas dúvidas a respeito das idéias dos particularistas históricos. Ele criticou a utilização de poucas categorias de artefatos para explicar mudanças culturais sem primeiro estudar o contexto do artefato. Além disso, muitos artefatos foram excluídos do processo comparativo, privilegiando apenas certas classes de cultura material e valorizando exclusivamente seus elementos estilísticos e sua distribuição no espaço. Em troca, Walter Taylor sugeriu o local, o sítio arqueológico, como unidade básica de observação nas interpretações arqueológicas e a elaboração de uma cronologia interna, sem isolar o objeto de seu contexto. O estudo da função de um objeto, de conjuntos de objetos ou até de sítios arqueológicos, a complexidade da questão funcional de conjuntos ou de artefatos, precisavam ser levados em consideração. Um contexto cultural arqueológico era o resultado material do comportamento cultural e de suas relações. Essas relações são chamadas por Taylor (1983, p. 114) de "afinidades" definidas da seguinte forma: "An archaeological cultural context [...] is based upon material results of cultural behavior and their affinities".

O estudo mais aprofundado do material arqueológico, aproveitando todos os dados possíveis, abordagem chamada por Taylor de "conjunctive approach", tinha a clara intenção de aproximar a Arqueologia novamente da Antropologia. Este projeto começou a ter sucesso a partir do momento em que dois aspectos fundamentais da arqueologia tradicional foram questionados: a concepção de cultura e as bases teóricas científicas da disciplina. Essa proposta de associação do "cunjunctive approach" de Taylor formou a base de uma discussão que antecedeu abordagens da Arqueologia Processualista como, por exemplo, da Ecologia, teoria de sistemas, teoria de alcance médio, análise de sítios etc.

A aproximação definitiva entre Arqueologia e Antropologia aconteceu na década de 1960 com o surgimento da "New Archaeology". O estudo Archaeology as Anthropology de Binford (1962) é considerado uma das primeiras manifestações que marcaram essa mudança, hoje chamada de Arqueologia Processual. Em muitos trabalhos dos arqueólogos processualistas, o caráter narrativo do pensamento histórico-cultural era veementemente questionado. Criticaram que os acontecimentos históricos não se baseavam em leis ou em regularidades e que as explicações que não iam além do particular, individual e específico, não poderiam ser alcançadas através de estudos históricos. Por essa razão, a Arqueologia Processual não era entendida como uma ciência histórica, mas como uma ciência antropológica. Independente de fatores como espaço e tempo, estudava principalmente fenômenos que envolviam diretamente as questões humanas em geral. Antes mesmo de poder pesquisar processos históricos, uma sociedade deveria ser analisada como uma unidade funcional. Arqueólogos da "New Archaeology" questionavam a prioridade da cronologia por não explicar, de forma convincente, como uma sociedade evoluía.

Com a aceitação das definições culturais neo-evolucionistas, surgiu também a idéia de comparar sociedades que estavam no mesmo nível evolutivo, sem estarem no mesmo contexto histórico e cronológico. Nessas abordagens comparativas, diferentes das abordagens das 'áreas culturais', a Arqueologia Processual se distanciava da Arqueologia Normativa.

Com todas essas indicações ao longo do caminho, creio ser preciso confrontar abordagens históricas e culturais com a Arqueologia Processual. Para a primeira, uma arqueologia interessada na história das culturas, o objetivo da pesquisa estava focado na fronteira entre diferentes áreas culturais. De acordo com essa abordagem, justamente em regiões de limites, manifestava-se a história dos grupos com mais clareza. No centro das áreas culturais, as diferenças eventualmente observadas não eram de interesse primário. Isso se explica pela forma como o conceito de cultura era definido. Cultura não era vista como a totalidade das manifestações materiais e ideais, mas apenas como um mundo representativo, compartilhado pela maioria do grupo. Definido por Tylor (1871, p. 1) como: "that complex whole which includes knowledge, belief, art, morals, laws, customs and any other capabilities and habits acquired by man as a member of society".

Para a Arqueologia Processual um dos objetivos principais era a análise das semelhanças e das regularidades entre sociedades. Nesta corrente de pensamento, maior valor era dado aos enfoques que comprovassem variabilidades. A arqueologia histórico-culturalista visava reconstruir normas, usando como base os elementos semelhantes dentro de um grande conjunto de artefatos. A Arqueologia Processual tinha, ao contrário, a diversidade dos comportamentos, ou seja, as divergências das normas como principal objetivo. Para uma arqueologia orientada na história das culturas, o interesse era a construção daquele objeto imaginado, a busca da idéia por trás do objeto. Essa 'norma' não interessava a Arqueologia Processual. Ela procurava formar grupos que se diferenciassem dos outros, através de atributos comuns. Normas não eram relevantes para uma pesquisa baseada nas teorias da Arqueologia Processual, pois não era resultado de adaptações sociais ou ambientais. Por trás da variabilidade de um artefato poderiam estar diversas normas ou comportamentos distintos. Para a Arqueologia Processual a questão ecológica era de extrema importância. Binford (1972) explicava mudanças no comportamento das sociedades, através das mudanças ambientais. Dessa abordagem surge a análise dos padrões de comportamento, "patterned behavior", entendido como comportamento humano padronizado. Esses padrões de comportamento se diferenciam das 'normas' mencionadas acima por serem de caráter menos genérico e não sustentados por idéias, mas por ações e comportamentos. Argumentavam que esses padrões refletiam-se nas associações regulares dos artefatos. Arqueólogos processualistas, que no primeiro instante estavam preocupados com a adaptação das sociedades pretéritas no seu ambiente natural, questionam "para que servem certos artefatos?", eles não buscavam saber "qual o significado do objeto?". Essa tendência levou ao desenvolvimento de metodologias para descobrir a funcionalidade dos artefatos e ao mesmo tempo incentivou alguns especialistas a observarem categorias de cultura material antes praticamente ignoradas pela Arqueologia Normativa, como por exemplo, ossos ou restos de alimentação que auxiliaram na reconstrução das condições ambientais, e artefatos líticos lascados, onde predominavam aspectos de funcionalidade sobre os estéticos (BERNBECK, 1997, p. 47).

A proposta de Binford, em 1962, era a reconstrução completa dos sistemas culturais das sociedades pretéritas. No decorrer dos anos, essa proposta ficou menos ambiciosa. Ficou evidente que os aspectos funcionais da cultura material predominaram nos estudos da Arqueologia Processual. Essa discrepância entre o programa original e a prática levou ao desenvolvimento da Arqueologia Pós-Processual. Originalmente três manifestações culturais deveriam ser estudadas: técnico-funcionais, sócio-funcionais e ideo-funcionais (BINFORD, 1962). Nessa proposta, Binford também se orientou nas idéias de White que separava os sistemas culturais em subsistemas tecnológicos, sociológicos e ideológicos (WHITE, 2006, p. 108).

A ênfase em estudar os processos sociais, em vez dos históricos, também deve ser relacionada com a obra de White. Binford (1972, p. 117) coloca isso na seguinte fórmula: "Processes, as I understand it, refers to the dynamic relationships (causes and effects) operative among the components of a system or between systemic components in the environment". Com exceção de alguns arqueólogos ingleses, como por exemplo, David Clarke, Analytical Archaeology (1968) e Models in Archaeology (1972), a Arqueologia Processual não teve muitos seguidores na Europa. A principal crítica que se fazia, era que a "New Archaeology" era demasiadamente fixada na ecologia. Em muitos trabalhos dos arqueólogos processualistas, essa visão de uma humanidade passiva não era considerada adequada pelos colegas europeus. As abordagens neo-evolutivas da Arqueologia Processual também foram questionadas Outro aspecto veementemente criticado era a forma agressiva com quais os pesquisadores da "New Archaeology" defendiam suas propostas e como a arqueologia tradicional normalista era atacada. Muitos reclamaram que a Nova Arqueologia produzia uma imagem distorcida de que era a arqueologia tradicional, criando um 'boneco de palha' que facilmente podia ser derrubado (O'BRIEN et al., 2005, p. 8).

E aqui estou tão sábio quanto antes

Habe nun, ach! Philosophie,

Juristerei und Medizin,

Und leider auch Theologie

Durchaus studiert, mit heißem Bemühn.

Da steh ich nun, ich armer Tor!

Und bin so klug als wie zuvor.

Johann. W. v. Goethe. Faust

Agora que cheguei tão longe, estou preocupado com meu retorno, com a questão inicial: por que da preocupação com o Programa Nacional de Pesquisas Arqueológicas e porque de suas supostas relações com o Histórico-Culturalismo?

Apesar do Evolucionismo não mostrar muita variação desde o final do século XIX, arqueólogos norte-americanos não desistiram de integrá-lo nas suas análises, principalmente como modelo explicativo das mudanças culturais. Betty Meggers, por exemplo, aplicou, durante toda a década de 1950 e grande parte da década de 1960, as abordagens do evolucionismo cultural de Leslie White em sua pesquisa. Ela aproveitou principalmente suas idéias de captação de energia através de tecnologia e a influência dessa sobre cultura (O'BRIEN et al., 2005, p. 24).

Ao lado de Betty Meggers e Clifford Evans, um outro nome importante na compreensão dos conceitos metodológicos e teóricos que direcionavam o PRONAPA foi James Ford que, na década de 1930, também freqüentou as aulas de graduação de Leslie White. Em 1962, James Ford produziu um livro didático no qual ele explicou suas idéias evolucionistas sobre cultura e no qual ele afirmou que a tarefa de um antropólogo não era estudar pessoas, mas culturas. Esse manual organizado por Ford foi resultado de um seminário que aconteceu na Colômbia em julho de 1961, com apoio da National Science Foundation e do Department of Social Affairs of the Pan American Union. Os instrutores desse seminário, direcionado especificamente aos pesquisadores sul-americanos, foram, além de Ford, também Meggers e Evans. Fernando Altenfelder Silva foi o representante brasileiro que mais tarde integrou-se ao PRONAPA.

O método estatístico quantitativo para criar cronologias culturais, ou o "Método Ford", que reunia idéias teóricas do evolucionismo cultural sugeria um procedimento útil de colocar elementos tipológicos em linhas de tempo. Com um simples cálculo de percentagens, os dados quantitativos dos tipos, agruparam-se em padrões, que poderiam ser interpretados como processos evolutivos. O manual de Betty Meggers e Clifford Evans (1970), Como interpretar a linguagem da cerâmica, e o manual de Ford se complementavam e formavam um instrumento prático que influenciou a arqueologia Sul-americana nas décadas de 1960 e 1970. Longe das disputas entre particularistas e neo-evolucionistas americanos, os jovens arqueólogos brasileiros praticavam ciência no sentido de encontrar um caminho para entender e explicar como e porque seu mundo arqueológico funcionava e como as mudanças culturais poderiam ser medidas e visualizadas.

Os principais pontos das idéias de James Ford podem ser resumidos da seguinte maneira: 1) Culturas são vistas como um rio de idéias; 2) dentro de uma área geográfica restrita, mudanças culturais normalmente são graduais; 3) rupturas ou mudanças rápidas sugerem fatores externos; 4) a história das culturas é comparável com histórias biológicas ou evoluções; 5) um tipo é artificial e criado pelos arqueólogos com o intento de evidenciar a evolução das culturas através do tempo e espaço; 6) cada vez que um arqueólogo define um tipo, ele, na verdade, está apostando na eficácia desse tipo servir como um marcador de um pequeno segmento de história; e 7) tipos também refletem idéias culturais das pessoas que criam os artefatos. Culturas têm uma ordem interna e as pessoas sempre são conscientes da necessidade dessa ordem. A tipologia, criada pelos arqueólogos, reflete essa ordem e as diferentes tradições culturais (FORD, 1962. p. 14; LYMAN et al., 1997, p. 130).

Tipos definidos em tempo e espaço são chamados por Meggers e Evans de "complexos culturais" "complexo cerâmico" ou "complexo lítico", por exemplo, e reúnem tipos dentro de uma categoria específica de artefatos. Tipos na categoria de outros objetos materiais, como arquitetura ou tipos dentro de elementos sócio-políticos e religiosos, também são "complexos culturais". Todos esses "complexos" são equivalentes a culturas pré-históricas ou a fases arqueológicas.

Meggers e Evans (1970, p. 93) eram muito cuidadosos e preocupados com uma associação metonímica e prematura de objetos às etnias. Até na designação das fases e tradições deveriam somente "ser usados nomes de tribos históricas se os restos arqueológicos estivessem inequivocamente associados com os habitantes posteriores à conquista". Essa prudência na designação das fases e tradições estava relacionada com a incerteza dos autores sobre "espécies de unidades culturais estão refletidas em entidades arqueológicas distintas". Por essa razão, preferiam o termo 'fases', por estar "livre de conotações etnográficas [...]. O termo 'fase' permite referência a entidades arqueologicamente reconhecíveis, sem implicar em nenhuma significação tribal ou lingüística" (1970, p. 87). Da mesma maneira alertam que "é obrigação do arqueólogo considerar as conseqüências de suas decisões, e avaliar cuidadosamente todas as evidências a seu dispor quando estiver considerando o estabelecimento de uma fase arqueológica" (1970, p. 93). A leitura correta do gráfico de uma seqüência seriada, por evidenciar uma cronologia relativa de cada sítio arqueológico da fase, possibilitava pesquisas de ordem ecológica, evolução cultural, difusão, além de permitir discussões em torno de aspectos sócio-políticos, econômicos e religiosos da cultura (1970, p. 95).

Em caso de amostras numerosas, quando complexos arqueológicos encobriam longos períodos de tempo e áreas muito grandes, surgia a necessidade de dividir a seqüência seriada em múltiplos complexos culturais correspondentes a igual número de fases. Entendi que essa divisão do gráfico em fases acontecia através de um corte horizontal. Essa estratigrafia estatística permitia a ocorrência de múltiplos tipos fazerem parte da mesma fase, mas com popularidades quantitativas distintas. A definição de uma fase, baseada em critérios gráficos de representações estatísticas, coincide com as idéias de Ford, que igualmente privilegiava critérios de popularidade na definição dos tipos. Para ele, dentro de um grupo social, mudanças culturais não ocorriam simultaneamente. Sempre existiam, lado a lado, formas tradicionais em processo de esquecimento, formas modernas com maior aceitação e formas completamente novas que futuramente se tornarão populares (FORD, 1962, p. 9).

No manual, Ford (1962, p. 7) explicava sua visão deste fenômeno cultural, propondo que:

cultural forms are not created by the genius of individuals (...). New cultural forms whether in the categories of tools, politics, religions, social customs, buildings, arrow points or pottery, can come from preceding forms. Sequences of related forms are traditions (...). There cannot be a break in one of these traditions any more than there can be a break in the lineage of a zoological species.

A definição de uma tradição arqueológica, então, teria muita semelhança com a definição de uma espécie biológica, tipos cerâmicos seriam equivalentes a populações biológicas (MEGGERS; EVANS, 1970, p. 7).

Franz Boas (1938, p. 159) define cultura como: "the totally of the mental and physical reaction and activities that characterizes the behavior of the individuals composing a social group". Culturas são manifestações únicas, delimitadas e presas em um sistema cartesiano entre linhas cronológicas e colunas espaciais. Entre essas linhas e colunas entre tempo e espaço, as culturas se desenvolvem. Diferentemente das fases e tradições, definidas como manifestações sincrônicas pelos evolucionistas culturais, as culturas, percebidas pelos histórico-culturalistas, são definidas através de um corte vertical e, portanto, diacrônicas.

Mas onde está a neve do ano passado?

Prince, n'enquerez de sepmaine

Ou elles sont, ne de cest an

Qu'a ce reffrain ne vous remaine:

Mais ou sont les neiges d'antan?

François Villon. Ballade des Dames du temps jadis

Creio que agora encontrei um ponto interessante que poderia revelar uma pista para os motivos que levaram alguns arqueólogos a relacionar o Programa Nacional de Pesquisas Arqueológicas ao Histórico-Culturalismo. Além das razões ideológicas, políticas ou de identidade, acredito que existam motivos de ordem de interpretação dos conceitos teóricos e metodológicos. O Histórico-Culturalismo, junto com o PRONAPA, forma, hoje, um signo de conotações negativas e representa o passado, o ultrapassado, a neve do ano passado. Como procurei mostrar acima, as disputas entre idéias, reconhecimento, verba e influência que aconteceram na década de 1950 eram entre evolucionistas e histórico-particularistas.

Interessante nesse contexto de alinhamento de fronteiras é que Ford (1962), Meggers e Evans (1970) combinaram tanto modelos difusionistas quanto evolucionistas. A transição entre esses dois modelos é gradual e compartilha certos aspectos de tempo e espaço (TRIGGER, 1995, p. 154). Ambos os modelos, evolucionistas e difusionistas, são perspectivas que explicam como culturas mudam. Na verdade, são perspectivas opostas e ao mesmo tempo complementares. São opostas porque a perspectiva evolucionista percebe o crescimento da complexidade em uma sociedade ao longo de uma linha de tempo, enquanto o Difusionismo enfatiza a transmissão de idéias de um lugar para outro como motivo das mudanças culturais. São complementares porque explicam mudanças sociais de forma diacrônica, indicando a relação entre coisas através do tempo.

O conceito de Evolucionismo Cultural reúne narrativas culturais e biológicas. Confesso que essas múltiplas orientações me confundiram inicialmente, pois outra diferença apontada por alguns teóricos entre o Evolucionismo e o Difusionismo reside justamente no enfoque social do Evolucionismo e no enfoque cultural do Difusionismo. Social entendido como uma unidade social e cultural como um conjunto compartilhado de idéias, habilidades e objetos. O Difusionismo, com sua perspectiva mais cultural, está relacionado com o Determinismo Cultural, levado ao extremo pelo Relativismo Particularista de Franz Boas (1938). A perspectiva social buscou entender como as pessoas se relacionavam e como as sociedades mudaram através do tempo (BARNARD, 2000, p. 11). As idéias da evolução de culturas, sejam elas universais como no caso de White ou específicas como defendidas por Steward, buscam entender como e porque culturas mudam e quais eram as manifestações culturais. Pessoas eram vistas apenas como portadoras de culturas. O indivíduo, o grupo, a comunidade e a sociedade ganham importância, por exemplo, no Funcionalismo e no Processualismo.

Os limites que criamos entre os conceitos para auxiliar no posicionamento desse mundo dos paradigmas, mais me confundiram do que ajudaram. Sei que as linhas são difusas, sugerindo transições entre perspectivas diacrônicas e sincrônicas, entre perspectivas sociais ou culturais. Nem todos os arqueólogos ou antropólogos evolucionistas estavam preocupados com sociedades e nem todos que estavam interessados em áreas culturais procuravam compreender culturas. Além do mais, nem todas as abordagens que envolvem questões culturais no tempo e espaço são necessariamente histórico-culturais e nem todos que aplicavam metodologias de seriações, produzindo estratigrafias estatísticas, organizando culturas em seqüências são evolucionistas. Acredito que as teorias de evolução cultural ocupam uma posição intermediária entre os paradigmas evolutivos e histórico-culturais, mas são, sem dúvida, evolucionistas. O que evolui, sociedades ou culturas, depende do discurso. Nesse ponto entra o PRONAPA. Tenho certeza de que os 'Pronapianos' tinham uma orientação definida no campo do Evolucionismo Cultural e não eram histórico-culturalistas empobrecidos.

De alguma forma retornei ao início do caminho. Também não quero abusar da paciência do leitor que nessa altura já está procurando uma saída honrosa desse labirinto. Como uma proposta de conclusão, quero incentivar outros arqueólogos a pensar sobre seu compromisso com a sociedade ao mesmo tempo em que procuram entender quais das múltiplas formas de que arqueologias estão praticando.

Recebido: 30/10/2006

Aprovado: 09/03/2007

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Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    31 Mar 2011
  • Data do Fascículo
    Abr 2007

Histórico

  • Recebido
    30 Out 2006
  • Aceito
    09 Mar 2007
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