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A pandemia da Covid-19 e os pequenos produtores rurais: superar ou sucumbir?

The Covid-19 pandemic and small-scale farmers: surpassing or failing?

Resumo

Diante da pandemia do coronavírus Sars-CoV-2, causador da Covid-19 e do número elevado de pessoas infectadas e mortes no Brasil, esta pesquisa tem como objetivo identificar e entender o impacto desta crise sanitária sobre os pequenos produtores rurais, que compõem um dos grupos vulneráveis da sociedade brasileira. Por meio de questionários e depoimentos de participantes de diferentes regiões, os resultados indicam que os produtores sofreram impactos da pandemia de forma multidimensional sobre a produção, a comercialização, a renda, a saúde humana e as formas de comunicação. Entretanto, conseguiram superar alguns dos desafios impostos pela pandemia a partir de um conjunto de fatores, principalmente de ações solidárias e coletivas, de soluções criativas individuais e do suporte de políticas públicas.

Palavras-chave
Pandemia Covid-19; Percepção dos impactos; Pequenos produtores rurais; Produção e comercialização; Políticas públicas

Abstract

The pandemic of coronavirus Sars-CoV-2 that causes Covid-19 disease has infected a high number of people and caused deaths in Brazil. Thus, this study seeks to identify and understand the impact of this sanitary crisis on small-scale farmers who comprise one of the vulnerable groups of the Brazilian society. We applied questionnaires and gathered reports of participants from different regions and the results indicate that farmers have suffered from the negative impacts of pandemic on multiple dimensions regarding production, commercialization, income, human health, and forms of communication. However, they have been able to overcome some of the challenges brought by the pandemic due to a set of factors, mainly collective actions and solidarity network, individual creative solutions, and public policies.

Keywords
Covid-19 pandemic; Perception of the impacts; Small-scale farmers; Production and commercialization; Public policies

INTRODUÇÃO

Esta pesquisa foca nos pequenos produtores rurais (PPR) do Brasil, que assumem inúmeros riscos para produzir alimentos e colocá-los na mesa do brasileiro dia após dia. Segundo o IBGE (2017)Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística. (IBGE). (2017). Censo Agropecuário de 2017. Recuperado de https://agenciadenoticias.ibge.gov.br/agencia-sala-de-imprensa/2013-agencia-de-noticias/releases/25789-censo-agro-2017-populacao-ocupada-nos-estabelecimentos-agropecuarios-cai-8-8
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, há aproximadamente 3,9 milhões de estabelecimentos da agricultura familiar, que representam 77% do total de imóveis rurais, os quais ocupam 80,9 milhões de hectares e são responsáveis por 23% de toda a produção agrícola brasileira.

Neste momento de pandemia da Covid-19, o trabalho e a condição desses PPR tornaram-se mais desafiadores, no Brasil e em outros países da América Latina (Moura & Souza, 2020Moura, J. B., & Souza, R. F. (2020). Impacts of SARS-COV-2 on Brazilian agribusiness. Recuperado de https://www.cambridge.org/engage/coe/article-details/5eacf1f7b1416d0018389bcc
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; Preiss, 2020Preiss, P. V. (2020). Challenges facing the COVID-19 pandemic in Brazil: lessons from short food supply systems. Agriculture and Human Value, 37, 571-572. doi: https://doi.org/10.1007/s10460-020-10062-4
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; Siche, 2020Siche, R. (2020). What is the impact of COVID-19 disease on agriculture? Scientia Agropecuaria, 11(1), 3-6. doi: http://dx.doi.org/10.17268/sci.agropecu.2020.01.00
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). O Brasil contabiliza milhões de infectados e centenas de milhares de mortes pela Covid-19. Diante disso, é fundamental que façamos perguntas com relação aos PPR: Como está a sua produção? Como está a comercialização de seus produtos? Como está a sua renda? O que mudou com a pandemia com relação às práticas na produção e comercialização? Há políticas públicas voltadas aos PPR devido à pandemia? Como é o acesso a essas políticas públicas?

Nesta pesquisa, o grupo de PPR abrange os agricultores familiares, os assentados, os posseiros, os sem-terra (Movimento dos Sem Terra – MST e outros movimentos sociais), os quilombolas, entre outros grupos com diferentes sistemas agrícolas – corte e queima, agroflorestal, agroecológico, orgânico –, mas com um ponto em comum: enfrentar desafios para produção e comercialização de seus produtos. Dois programas federais foram criados para combater essa vulnerabilidade dos PPR e são fundamentais para viabilizar e fomentar o escoamento da pequena produção: em 2003, o Programa de Aquisição de Alimentos (PAA), atualmente vinculado ao Ministério da Cidadania (MC), e, em 2009, o Programa Nacional de Alimentação Escolar (PNAE), ligado ao Ministério da Educação (MEC).

De 2011 a 2017, o Fundo Nacional de Desenvolvimento da Educação (FNDE) transferiu quase R$ 3 bilhões para a compra de alimentação escolar nas 26 capitais e no Distrito Federal. Deste total, quase R$ 360 milhões (13%) foram utilizados na compra de alimentos da agricultura familiar (L. Araújo et al., 2019Araújo, L. R. S., Brito, A. N. M., Rodrigues, M. T. P., Mascarenhas, M. D. M., & Moreira-Araujo, R. S. R. (2019). Alimentação escolar e agricultura familiar: análise de recursos empregados na compra de alimentos. Cadernos de Saúde Pública, 35(11), 1-9. doi: https://doi.org/10.1590/0102-311x00004819
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) para garantir a segurança alimentar e nutricional de mais de 40 milhões de alunos atendidos pelo PNAE (Resolução n. 2, de 9 de abril de 2020Resolução n. 2, de 9 de abril de 2020. Dispõe sobre a execução do Programa Nacional de Alimentação Escolar – PNAE durante o período de estado de calamidade pública, reconhecido pelo Decreto Legislativo n. 6, de 20 de março de 2020, e da emergência de saúde pública de importância internacional decorrente do novo Coronavírus – Covid-19. Recuperado de https://www.in.gov.br/en/web/dou/-/resolucao-n-2-de-9-de-abril-de-2020-252085843
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). Com relação ao PAA, de 2011 a 2018, 4.288 municípios (77% dos municípios brasileiros) participaram do programa, tendo sido aplicados R$ 2,87 bilhões (Bocchi et al., 2019Bocchi, C. P., Magalhães, E. S., Rahal, L., Gentil, P., & Gonçalves, R. S. (2019). A década da nutrição, a política de segurança alimentar e nutricional e as compras públicas da agricultura familiar no Brasil. Revista Panam Salud Publica, 43, 1-5. doi: https://doi.org/10.26633/RPSP.2019.84
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). Em 2018, no Brasil, 9.675 agricultores familiares foram beneficiados como fornecedores do PAA. Desde 2019, esse programa tem sofrido com interrupções e reduções em seu orçamento. Pergunta-se, portanto: como ficaram tais programas públicos com a pandemia da Covid-19 em virtude da suspensão das aulas presenciais e com o distanciamento físico entre as pessoas?

Diante deste quadro desafiador e multidimensional (sanitário, social, econômico e político), este trabalho buscou identificar o impacto da Covid-19 sobre os pequenos produtores rurais a partir do ponto de vista dos próprios PPR e gestores/técnicos (GT), com o intuito de identificar e entender como esses produtores e suas famílias estão enfrentando esse momento de crise sanitária mundial nos aspectos de saúde pessoal, produção, comercialização, formas de comunicação e adequações sanitárias.

METODOLOGIA

Para analisar os impactos da Covid-19 sobre os PPR, foram aplicados questionários via plataforma online ou por telefone (oralmente) – caso o informante não tivesse acesso à internet – e, em alguns poucos casos, o questionário foi aplicado presencialmente. Com o objetivo de captar a visão de diferentes agentes sociais ligados à produção rural sobre a pandemia, questionários foram também aplicados aos gestores/técnicos (GT) que trabalham diretamente com PPR. A visão de diferentes atores contribui para a triangulação dos dados coletados. Os PPR e GT selecionados são dos estados do Amazonas (AM), do Pará (PA) e de São Paulo (SP), com quem os autores já trabalham em seus projetos de pesquisa.

Os questionários para os dois grupos-alvo abordaram os mesmos temas: (i) impactos da pandemia sobre os pequenos produtores rurais; (ii) acesso aos programas PNAE e PAA durante a pandemia; (iii) adoção de práticas sanitárias; (iv) políticas de restrição municipal (por exemplo, proibição de feiras livres); e (v) formas de comunicação. Os questionários foram aplicados no período de 22 de junho a 3 de julho de 2020 de forma remota e de 5 a 25 de outubro em campo no estado do Amazonas1 1 O período de campo ocorreu em um momento que a curva da média móvel de novos casos estava decrescente, assim, o governo do estado do Amazonas decretou maior flexibilidade das atividades e liberação das viagens fluviais e terrestres entre as cidades do estado, condicionadas ao atendimento das exigências sanitárias (Decreto n. 42.500, 2020). , tomando-se todos os cuidados sanitários necessários: uso de máscara facial, higienização das mãos e distanciamento físico. Ao total, foram 68 respondentes: 37 pequenos produtores rurais e 31 gestores/técnicos de órgãos governamentais ou não governamentais. Esta pesquisa foi aprovada pelo Comitê de Ética em Pesquisa da Universidade Estadual de Campinas (UNICAMP) (CAAE: 33635020.5.000.8142).

É importante destacar que os resultados apresentados são exploratórios e baseados em uma amostra pequena, considerando-se a extensão do território brasileiro e o número de estabelecimentos da agricultura familiar de aproximadamente 4 milhões (IBGE, 2017). Por isso, este trabalho não intenciona fornecer um diagnóstico preciso ou abrangente sobre a complexa situação que afetou agricultores em todo o país, mas sim levantar informações relevantes que situam os PPR no contexto contemporâneo global de incertezas.

ABRANGÊNCIA GEOGRÁFICA

O presente estudo envolveu 68 informantes atuantes em 51 municípios dos três estados – Amazonas, Pará e São Paulo (Figura 1) –, com a seguinte distribuição do número de questionários por categoria social e por estado: gestores/técnicos (GT), 2 (AM), 5 (PA) e 24 (SP); pequenos produtores rurais (PPR): 22 (AM), 7 (PA) e 8 (SP). Este estudo não faz uma comparação entre as categorias sociais, tampouco entre os estados, por isso entende-se que os números de questionários diferentes por estado ou por categoria não interferem na interpretação dos resultados, pois o objetivo é apresentar um diagnóstico exploratório da situação dos PPR durante a pandemia.

Figura 1
Localização dos 51 municípios distribuídos nos estados do Amazonas, Pará e São Paulo, onde residem os PPR e atuam os GT rurais consultados nesta pesquisa. Fonte dos limites territoriais: IBGE (2019Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística. (IBGE). (2019). Malha municipal da divisão político-administrativa brasileira de 2019. Recuperado de https://www.ibge.gov.br/geociencias/organizacao-do-territorio/malhas-territoriais/15774-malhas.html?=&t=downloads
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).

Muitos dos PPR dos três estados (AM, PA, SP) com quem os autores já trabalham praticam agricultura de pequena escala e de base sustentável (Futemma, 2020Futemma, C. (2020). Organic agriculture, agroecology and agroforestry: small farmers in Brazil. In A. M. Arce-Ibarra, M. R. Parra Vázquez, E. Bello & L. Gomes de Araujo (Eds.), Socio-environmental regime and local visions: transdisciplinary experiences in Latin America (Régimen socio-ambiental y visiones locales: experiencias transdisciplinarias en Latinoamérica) (pp. 409-433). New York: Springer.) e comercializam seus produtos por meio de programas governamentais, feiras, mercados e contatos telefônicos. O modo varia conforme a região do país, as condições e a acessibilidade à internet. A seguir, uma breve descrição dos PPR por estado.

SÃO PAULO

Em São Paulo, os PPR estão distribuídos em 44 municípios de várias partes do estado e são compostos por agricultores que, de modo geral, praticam sistemas agroflorestais (SAF) e/ou agricultura orgânica ou agroecológica. Muitos participavam ou ainda participam dos programas governamentais PAA e PNAE. Alguns grupos de agricultores integravam projetos do governo do estado de São Paulo ou de organizações não governamentais (ONG) voltadas para agricultura de base sustentável (por exemplo, Programa de Desenvolvimento Rural Sustentável – PDRS2 2 O Programa de Desenvolvimento Rural Sustentável (PDRS) – Subprojetos Ambientais, finalizado em 2018, visou promover a restauração das paisagens rurais, a partir de sistemas agroflorestais, e garantir melhoria de renda aos agricultores familiares e segurança alimentar no estado de São Paulo. Teve a participação de 611 famílias beneficiárias, sendo a maioria de assentamentos de reforma agrária (N. Araújo et al., 2016). , Subprojetos Ambientais e Conexão Mata Atlântica3 3 O território onde o Conexão Mata Atlântica atua é marcado pela prevalência de pastagens degradadas. São cerca de 800 produtores rurais participantes, dos quais a maioria é composta por pequenos produtores (Secretaria de Infraestrutura e Meio Ambiente [São Paulo], 2021). ), a qual envolve cadeias produtivas variadas, como da horticultura, do leite, de cogumelos e de mel.

Na região expandida de Campinas, muitos produtores trabalham individualmente em seus sítios (imóvel rural), mas estão vinculados a uma organização formal ou informal, tais como cooperativas ou Comunidade que Sustenta a Agricultura (CSA)4 4 Comunidade que Sustenta a Agricultura (CSA) é recente no Brasil (2011) e está na região de Campinas desde 2012/2016. Trata-se de uma rede internacional que promove a agricultura em bases coletivas, aproximando o produtor do consumidor. Considera o consumidor como coprodutor, pois este pode participar de todas as atividades que envolvem a produção e visitar as propriedades rurais (Brown & Miller, 2008). . Na região de Sorocaba, são agricultores que possuem seu imóvel (sítio) e trabalham individualmente ou pertencem a assentamentos de reforma agrária. Na região do Vale do Ribeira, majoritariamente, são agricultores de comunidades quilombolas que praticam a agricultura de corte e queima, com plantio de culturas anuais (milho, feijão, inhame, cará, mandioca) em sistemas convencionais, agroecológicos e sistemas agroflorestais (SAF). Na região do Vale do Paraíba e litoral, são agricultores de assentamentos de reforma agrária, comunidades caiçaras ou proprietários individuais (sítios).

Em áreas rurais do estado de São Paulo com maior acesso à internet, os PPR normalmente comercializavam seus produtos agrícolas via aplicativo de mensagens Whatsapp ou outras redes sociais, principalmente produtores de orgânicos ou agroecológicos. A proximidade de uma classe média que consome produtos orgânicos contribui para o escoamento da produção desses agricultores, conforme mostram pesquisas feitas no Brasil (Fonseca, 2009Fonseca, M. F. A. (2009). Agricultura orgânica: regulamentos técnicos e acesso aos mercados dos produtos orgânicos no Brasil. Nitéroi, Rio de Janeiro: PESAGRO-Rio (Empresa de Pesquisa Agropecuária do Estado do Rio de Janeiro).) e em outros países (Coelho, 2001Coelho, C. N. (2001). A expansão e o potencial do mercado mundial de produtos orgânicos. Revista de Política Agrícola, 10(2), 9-16.).

PARÁ

No Pará, os PPR são de seis municípios do Vale do Acará e baixo Amazonas. As prefeituras de todos os municípios estudados têm contrato para aquisição de gêneros alimentícios da agricultura familiar e do empreendedor familiar rural destinada ao atendimento do Programa Nacional de Alimentação Escolar (PNAE).

No Vale do Acará, os PPR desenvolvem sistemas produtivos diversificados (agroecológico, agroflorestal e convencional), com plantios homogêneos de açaí, criação de pequenos animais, roça sem queima, roça tradicional de corte e queima, horticultura, meliponicultura e apicultura. No baixo Amazonas, os PPR desenvolvem plantios em sistemas agroflorestais e agroecológicos, extrativismo de produtos não madeireiros, criação de pequenos animais, roça sem queima, roça tradicional de corte e queima e produção de hortaliças.

No Pará, de forma geral, os PPR normalmente vendem seus produtos a intermediários ou vendem diretamente ao consumidor em feiras livres ou mercados. Mesmo os agricultores de produtos orgânicos ou agroecológicos enfrentam maiores dificuldades do que seus pares no estado de São Paulo, pois há uma menor classe média que consome esses produtos e com maior valor agregado (Ministério da Agricultura, Pecuária e Abastecimento, 2019). Eles também enfrentam grandes barreiras com relação às estradas e pontes precárias e ao transporte deficiente para escoar seus produtos agrícolas que, em geral, são perecíveis.

AMAZONAS

No Amazonas, na região do distrito do Rio Urubu, município de Boa Vista do Ramos, os agricultores são também meliponicultores. A atividade econômica que mais se destaca na região é a meliponicultura, com 50 produtores cooperados na Cooperativa dos Criadores de Abelhas Indígenas da Amazônia (COOPMEL). Por meio do Programa de Regionalização da Merenda Escolar (Preme) em nível estadual, assegurou-se a substituição de gêneros alimentícios importados por produtos regionais e o resgate de hábitos alimentares saudáveis. Desde 2015, a COOPMEL vem abastecendo mel em sachês para todas as escolas públicas da rede estadual e municipal do Amazonas. Desde 2019, os meliponicultores participam do Programa de Aquisição de Alimentos (PAA) para fornecer mel a granel e sachês para a prefeitura, que distribuem para os beneficiários do Centro de Referência de Assistência Social (CRAS).

O distrito do Rio Urubu ilustra bem as dificuldades de acesso enfrentadas pela população amazônica, pois os PPR dependem de barcos para levar os seus produtos agrícolas e melíponas, e para trazer mantimentos da cidade ou de outras localidades. Ademais, a deficiência ou a ausência de sinal de internet nas comunidades rurais prejudica o acesso à comunicação e à informação e a possibilidade de venda direta para o consumidor via Whatsapp ou redes sociais.

RESULTADOS

A seguir, os resultados serão apresentados em sete partes: (i) Covid-19; (ii) políticas públicas; (iii) produção rural; (iv) comercialização; (v) comunicação; (vi) cuidados sanitários; e (vii) ações solidárias.

COVID-19: CASOS ENTRE OS PEQUENOS PRODUTORES RURAIS

A ocorrência da Covid-19 entre os PPR variou bastante em número e gravidade da doença. A maioria dos PPR (86%) declarou o registro de pessoas próximas infectadas, variando de dez pessoas ou mais entre familiares, conhecidos e/ou funcionários e apenas 11% responderam que não conhecem alguém que foi infectado. Entre aqueles que contraíram a doença, 35% dos PPR responderam que as pessoas tiveram sintomas graves, parte delas foi hospitalizada (24%) e parte não recebeu atendimento (11%). Já 33% dos PPR declararam que as pessoas tiveram sintomas leves e, infelizmente, 26% disseram que houve falecimento entre seus familiares e na comunidade (Figura 2A).

Figura 2
Estados de saúde dos pequenos produtores rurais, familiares e funcionários infectados com a Covid-19, de acordo com os PPR (A) e GT (B).

Quarenta e oito por cento dos GT informaram que conheciam produtores que foram infectados pela doença. Destes, 35% conheciam menos de 30 casos e 13% tinham conhecimento de até 100 casos nas suas áreas de atuação (Figura 2B). Dezesseis por cento relataram não haver casos entre os PPR com quem trabalhavam, mas muitos (32%) não souberam responder. E, de acordo com 61% dos GT, os PPR infectados fizeram testes para Covid-19 em diferentes locais, muitos nas Unidades de Pronto Atendimento (UPA) no próprio município, outros em municípios vizinhos ou na capital do estado, em farmácias, no próprio imóvel rural ou em consultórios itinerantes. Apenas 6% dos GT informaram que os PPR não realizaram testes. Os demais GT (33%) não tinham conhecimento sobre a realização de testes entre os PPR.

De forma geral, pelos relatos tanto dos PPR quanto dos GT, um grande número de pequenos produtores e seus familiares e conhecidos foi infectado pela Covid-19, parte conseguiu atendimento em hospitais ou mesmo ser testada, mas parte não teve atendimento médico, apesar dos sintomas graves, incluindo casos de óbito.

POLÍTICAS PÚBLICAS DURANTE A PANDEMIA

A maioria (88%) dos PPR declarou que participa de alguma política pública (Figura 3A). Desses, 40% declararam que participavam do Programa de Aquisição de Alimentos (PAA), 11% participavam do Programa Nacional de Alimentação Escolar (PNAE), 35% do Programa de Regionalização da Merenda Escolar (Preme) do estado do Amazonas, e apenas 2% solicitaram crédito junto ao Programa Nacional de Fortalecimento da Agricultura Familiar (Pronaf). Uma pequena parcela (9%) respondeu que não participava de nenhuma política pública (Figura 3A).

Figura 3
Participação dos pequenos produtores rurais em políticas públicas – Programa de Aquisição de Alimentos (PAA), Política Nacional de Alimentação Escolar (PNAE) e crédito agrícola – durante a pandemia, de acordo com os PPR e GT.

Com relação ao PAA, 25% dos GT relataram alterações no programa, tais como redução, suspensão ou cancelamento dos contratos. Dezesseis por cento declararam que os produtores tinham retomado o PAA durante a pandemia. E 22% deles relataram não terem informação sobre o PAA (Figura 3B). De acordo com os PPR e GT, em Boa Vista do Ramos, Amazonas, o PAA não paralisou suas atividades por conta da pandemia.

Apesar de ser uma política pública importante para os pequenos produtores para escoar a produção, a grande maioria (78%) dos PPR declarou não participar do PNAE (Figura 3C) durante a pandemia, 8% reduziram a produção e 8% pararam. Apenas um produtor (3%) de Tomé-Açu, Pará, declarou que aumentou sua produção, pois a prefeitura passou a comprar mais alimentos para serem distribuídos tanto para a merenda escolar, como para as famílias mais carentes do município. A maioria (66%) dos GT respondeu que o PNAE sofreu alterações durante a pandemia, confirmando os relatos dos PPR; com o fechamento das escolas, muitas prefeituras suspenderam o contrato com os PPR (31%), outras reduziram (22%) a compra de alimentos ou os alimentos passaram a ser entregues diretamente para as famílias dos alunos (13%) (Figura 3C).

Questionados sobre as políticas de criação de linhas de crédito agrícolas para os PPR durante a pandemia, a maioria (61%) dos GT respondeu que não foram criadas, e 16% responderam que receberam crédito, apesar de 10% relatarem dificuldade de acesso pelos produtores (Figura 3D). Apenas um gestor respondeu que os PPR acessaram o crédito Pronaf.

Com relação à criação de políticas pelas prefeituras para ajudarem os pequenos produtores durante a pandemia, a grande maioria (84%) dos GT respondeu que não foram criadas, mas 16% disseram que sim, houve apoio dos municípios. Apesar de serem minoria, as prefeituras que apoiaram ou criaram políticas de ajuda aos PPR tiveram um papel fundamental para amenizar os efeitos negativos da pandemia sobre os agricultores e suas famílias.

Por exemplo, a partir de ações solidárias, prefeituras compraram os produtos agrícolas (aqui, incluídos o mel de abelhas melíponas e apícolas) direto dos PPR para montarem cestas básicas, distribuídas para as famílias de alta vulnerabilidade do município ou da região. Foram os casos das prefeituras dos estados do Amazonas (Boa Vista do Ramos) e do Pará (Tomé-Açu). Outras ações de algumas prefeituras envolveram o cadastro dos PPR para o recebimento de auxílio financeiro do governo (Tomé-Açu, Pará), fornecimento de alimentos (Concórdia do Pará, Pará), disponibilização de equipamentos de segurança, higienização e transporte dos produtos agrícolas do imóvel ao destino final de venda (alguns municípios do Vale do Ribeira, São Paulo).

PRODUÇÃO RURAL DURANTE A PANDEMIA

A produção dos PPR em seus imóveis rurais é diversificada e os produtos são vendidos in natura ou processados: hortaliças, frutas, raízes, mel de abelhas (apícolas e melíponas). Alguns produzem pães, compotas de geleia e polpas de frutas.

Quando perguntados sobre o impacto da pandemia na produção, as respostas dos PPR ficaram divididas entre não houve impacto (perda zero) na produção (35%) e houve impactos negativos (62%), com taxas variando de 1% a mais de 50% de perda da produção, com exceção de um produtor orgânico (3%), que teve sua produção aumentada (Figura 4). Os relatos dos PPR vão ao encontro das declarações dos gestores/técnicos (GT). Porém, para os GT, a pandemia impactou os PPR de forma mais negativa, pois 97% responderam que os produtores perderam produção, variando também de 1% a mais de 50% de perda (Figura 4). Tanto os PPR quanto os GT informaram que nenhum produtor perdeu 100% de sua produção.

Figura 4
Impacto da Covid-19 sobre a produção dos pequenos produtores rurais, de acordo com os PPR e GT.

COMERCIALIZAÇÃO DURANTE A PANDEMIA

Um dos gargalos para os pequenos produtores rurais é o escoamento ou a comercialização dos produtos agrícolas. As formas mais comuns de viabilizar sua produção são por meio do acesso a políticas públicas (por exemplo, PNAE e PAA) e venda direta em feiras livres (por exemplo, em ruas e praças públicas) e mercados. Por causa da pandemia, muitos municípios estabeleceram a quarentena e decretaram restrição de horários ou o completo fechamento dos mercados e a suspensão das feiras livres.

A grande maioria (90%) dos GT respondeu que os pequenos produtores puderam vender seus produtos agrícolas durante a pandemia em feiras livres e/ou mercados com adoção das medidas sanitárias. Para a maioria dos GT (55%), ocorreu redução nas vendas devido à restrição do horário de funcionamento de feiras e mercados, enquanto, para outros, as vendas foram normais (35%). Apenas 10% responderam que os PPR não puderam comercializar nesses locais públicos devido ao seu fechamento ou pela não ocorrência dessas opções nos municípios.

Para os PPR, a venda variou bastante. Para poucos (5%), a pandemia gerou aumento na venda, para outros (27%), não houve alterações, mas para a maioria (68%) houve impacto negativo (Figura 5A). Os dois produtores que tiveram aumento da venda dos produtos relataram que houve aumento da demanda por frutas cítricas (in natura) e polpas de frutas para fazer sucos (caso do produtor de Tomé-Açu, Pará) e por produtos orgânicos (caso do produtor de Nazaré Paulista, São Paulo). Nos dois casos, os produtores relataram que os consumidores foram em busca de alimentos mais saudáveis para ajudar a combater a Covid-19. O mesmo aconteceu com a comercialização do mel de abelhas nativas (melíponas), dadas as propriedades físico-químicas e o conhecimento local do valor medicinal do mel para o combate a gripe, resfriados e aumento da imunidade, com o objetivo de fortalecer o organismo humano contra a Covid-19. Alguns respondentes relataram que, mesmo com a paralisação do Preme, os meliponicultores conseguiram atender ao mercado local em Boa Vista do Ramos (Amazonas), principalmente com os sachês de mel, que possuem grande aceitação por parte do público consumidor infanto-juvenil.

Figura 5
Impacto da Covid- 19 sobre a comercialização, sobre a renda dos pequenos produtores rurais e sobre as formas de escoamento da produção durante a pandemia, segundo os PPR e GT.

Segundo os GT, nenhum produtor teve aumento na venda, ao contrário, houve impacto negativo grande nas vendas: 81% dos GT responderam que os produtores tiveram uma queda maior que 10% na comercialização dos produtos (Figura 5A). Um ponto importante é que nenhum PPR teve queda total das vendas, ou seja, todos conseguiram vender, ainda que menos do que o normal.

De acordo com 84% dos PPR, houve impacto negativo sobre a renda. A maioria dos PPR (46%) relatou que a queda foi de até 10%. Demais produtores (33%) relataram queda na renda entre 11% e 50%, e apenas 5% relataram perda maior do que 50% (Figura 5B). Apenas 11% dos PPR relataram não ter ocorrido queda na renda, e 5% relataram aumento.

Várias formas de comercialização foram adotadas pelos pequenos produtores durante a pandemia, pois 29% dos PPR declararam que venderam, mas não nos locais de costume, e 21% realizaram venda direta ao consumidor, por encomenda e por entregas em domicílio (via delivery) para vizinhos e por meio de cestas agroecológicas (Figura 5C).Uma pequena parte (10%) dos PPR continuou a vender em feiras livres e/ou mercados, alguns com redução nas vendas e outros com aumento (Figura 5C). Além disso, 31% venderam para cooperativas, programas governamentais (a exemplo do PAA) e/ou fundações (como a Fundação Banco do Brasil) (Figura 5C).

COMUNICAÇÃO ENTRE PEQUENOS PRODUTORES RURAIS E AGENTES EXTERNOS

O distanciamento físico recomendado e decretado variou entres os municípios. Isso trouxe mudanças na forma de comunicação entre os PPR e seus clientes e demais agentes externos (fornecedores, técnicos) nas diversas localidades. Verificou-se que a forma de comunicação mais adotada pelos PPR de todos os estados pesquisados (Amazonas, Pará e São Paulo) foi a comunicação online (35%), sendo o uso de telefone celular ou Whatsapp correspondente à quase totalidade dessa forma de comunicação, por ser um meio mais prático, barato e rápido de se comunicar e até mesmo acessar informações. A comunicação tradicional mostrou-se importante também, seja pessoalmente (22%) ou por meio de um técnico (22%). Outras formas menos frequentes foram o telefone fixo (1%) e por meio de intermediário (1%). Nenhum PPR usou rádio para comunicação, forma comumente usada nos locais mais distantes dos grandes centros da região amazônica. De acordo com a maioria dos GT, a comunicação com os PPR continuou, mas principalmente de forma remota (59%) ou por atendimento presencial parcial (25%).

CUIDADOS SANITÁRIOS ADOTADOS POR CAUSA DA PANDEMIA

Por causa da pandemia da Covid-19 e de sua transmissibilidade, muitos protocolos sanitários foram adotados por toda a sociedade e em todos os setores da economia, incluindo as atividades rurais. Várias cartilhas ou guias foram produzidos e publicados por órgãos públicos que trabalham com os PPR para divulgar orientações voltadas para a prevenção da Covid-195 5 Dois exemplos de cartilhas ou guias disponíveis online: (1) Empresa de Assistência Técnica e Extensão Rural do Distrito Federal (n.d.); (2) Agência Nacional de Assistência Técnica e Extensão Rural (n.d.). . A seguir, são descritos os cuidados sanitários adotados na produção e na comercialização pelos PPR entrevistados.

Produção

De modo geral, os PPR adotaram os cuidados sanitários e de higienização nos processos produtivos durante a pandemia. Destes, seja no campo (áreas de plantio) ou no processamento (manipulação dos produtos agrícolas, colheita, embalagem), o uso de equipamentos de proteção individual (EPI)6 6 Para EPI na agricultura, ver Alves (2013). foi o mais citado (48%) pelos PPR, seguido dos cuidados com higienização pessoal, dos locais de trabalho e dos produtos e materiais em geral (28%) e do distanciamento físico entre as pessoas durante o processo produtivo (16%) (Figura 6A). Ainda, 8% responderam que não houve alteração ou cuidados sanitários específicos, além dos já adotados antes da pandemia (Figura 6A).

Figura 6
Cuidados sanitários e de higienização adotados pelos pequenos produtores rurais nos processos de produção e comercialização durante a pandemia, de acordo com os PPR.

Comercialização

Da mesma forma que há protocolos sanitários para os processos produtivos, há também para a venda dos produtos. Praticamente metade dos PPR (51%) respondeu que passou a adotar cuidados de higienização pessoal, do local de comercialização e no processo de embalagem e transporte dos produtos, neste caso, lavando as embalagens com água e sabão, com água sanitária ou mesmo passando álcool gel 70%. Essa prática foi seguida de uso de EPI, citada por 44% dos PPR (Figura 6B). No caso dos meliponicultores de Boa Vista do Ramos, Amazonas, antes mesmo da pandemia, os protocolos sanitários já eram adotados por conta das exigências de acesso e permanência do Selo de Inspeção Estadual (SIE), emitido pela Agência de Desenvolvimento Agroflorestal do Amazonas (ADAF).

A grande maioria dos GT (83%) confirmou a adoção dos cuidados sanitários no momento da comercialização por muitos PPR, tais como higienização do ambiente de trabalho, dos produtos e materiais, higiene pessoal, uso de EPI e distanciamento físico.

AÇÕES SOLIDÁRIAS: DOAÇÕES E ASSISTÊNCIA

Um fato positivo durante a pandemia da Covid-19 foi o surgimento ou a expansão de muitas ações de solidariedade nas localidades estudadas. Neste caso específico, observaram-se ações tanto para ajudar os PPR, de modo a mitigar os prejuízos da produção/venda, quanto ações dos próprios PPR para ajudar os mais vulneráveis, por meio de doações de alimentos ou produtos de limpeza e higiene pessoal ou outras formas de colaboração. Podemos classificar as ações em duas categorias principais: governamentais (órgãos públicos) e não governamentais (entidades sociais ou ações individuais de pessoas físicas).

As respostas dos GT e dos PPR reforçam que as ações dos governos (seja federal, estadual ou municipal) foram fundamentais para ajudar os PPR. A política do auxílio emergencial do governo federal, via Caixa Econômica Federal (“Auxílio Emergencial”, 2020-2021Auxílio Emergencial. (2020-2021). Recuperado de https://auxilio.caixa.gov.br/#/inicio
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), foi citada por 25% dos GT para dar algum apoio aos PPR que perderam a renda familiar neste período. Outra forma de apoio foi a assistência técnica e extensão rural (ATER) prestada pelos GT (16%) com relação à orientação da produção e comercialização durante a pandemia. Dois porcento dos GT responderam que entidades sociais e governamentais em parcerias com as cooperativas ou associações compraram os produtos dos PPR para serem doados para os grupos sociais mais vulneráveis dos municípios. Esta informação foi ratificada por dois PPR que apontaram a compra dos seus produtos agrícolas pela Fundação Banco do Brasil7 7 Ver Fundação Banco do Brasil (n.d.). , em parceria com as organizações locais (cooperativa e associação), nos municípios de Bragança Paulista (São Paulo) e Santarém (Pará).

Perguntados especificamente sobre recebimento de doações, a maioria dos PPR (68%) respondeu que não recebeu doações de nenhum tipo, 14% responderam que receberam doações de gêneros alimentícios e 11% informaram ter recebido material de limpeza e higiene. Apenas um produtor respondeu que teve desconto na conta de energia elétrica. Alguns produtores pediram o auxílio emergencial da Caixa Econômica Federal, mas somente parte deles teve aprovação do recurso. Por outro lado, alguns produtores também participaram de ações solidárias: 38% dos PPR relataram que contribuíram com a distribuição (3%) ou doações em seus municípios de alimentos (32%) ou produtos de higiene (3%).

DISCUSSÃO

Os resultados desta pesquisa retratam a situação dos pequenos produtores rurais (PPR) nos três estados estudados – Amazonas, Pará e São Paulo – dos impactos negativos, mas também de superação das dificuldades impostas pela pandemia do Sars-CoV-2, a partir das perspectivas dos próprios produtores, como também dos gestores/técnicos (GT). A resposta para a pergunta inicial – “A pandemia da Covid-19 e os pequenos produtores rurais: superar ou sucumbir?” – é a predisposição para a superação. Por um lado, os resultados mostraram o impacto negativo da pandemia sobre a saúde do pequeno produtor e de seus familiares, a perda da produção e a queda na venda e na renda. Por outro lado, os PPR mostraram sua capacidade de superação, adoção de estratégias diferenciadas e adequação aos desafios impostos, os quais têm um histórico de construção de redes sociais, mobilização social e parcerias, que vêm contribuindo para o fortalecimento desses grupos sociais mais vulneráveis e para uma resposta mais proativa para as adversidades (Adams et al., 2020Adams, C., Borges, Z., Moretto, E. M., & Futemma, C. (2020). Governança ambiental no Brasil: acelerando em direção aos objetivos de desenvolvimento sustentável ou olhando pelo retrovisor? Cadernos Gestão Pública e Cidadania, 25(81), 1-13. doi: https://doi.org/10.12660/cgpc.v25n81.81403
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). Entretanto, as dificuldades apontadas tanto pelos GT quanto pelos PPR foram muitas, principalmente a morosidade ou a ausência do poder público. Para compreender melhor as formas encontradas pelos PPR para superar os desafios da pandemia e manter sua produção rural, e mesmo as vendas de seus produtos, discutiremos, a seguir, o papel do Estado, das ações coletivas e parcerias, e o papel das tecnologias de informação.

PAPEL DO ESTADO

As políticas públicas são de extrema importância para viabilizar a produção agrícola no Brasil, principalmente para os PPR, seja para fomentar a produção via linhas de crédito agrícola (por exemplo, Pronaf), seja para apoiar a comercialização (PNAE e PAA), pois se trata de um gargalo histórico para o escoamento da produção de pequena escala (Goletti et al., 2003Goletti, F., Purcell, T., & Smith, D. (2003). Concepts of commercialization and agricultural development. In Agrifood Consulting International Discussion Paper Series (No. 8). Vietnam: Agrifood Consulting International.). Além das políticas federais, ressalta-se a importância do comprometimento das prefeituras, por meio de políticas de apoio e de fomento à atividade rural de pequena escala, já que essa entidade pública é a mais próxima dos PPR, o que facilita a interação direta. Governos estaduais também são atores sociais importantes para o fortalecimento na comercialização de produtos agrícolas, como é o caso do Preme. Os meliponicultores destinam sachês de mel ao governo do Amazonas para distribuição nas escolas estaduais de tempo integral, porém as atividades foram interrompidas por conta do cancelamento do calendário letivo desde março de 2020, quando foi declarada a pandemia da Covid-19 pela Organização Mundial da Saúde (OMS), e até março de 2021 não havia ainda perspectiva de retorno.

Apesar da importância do governo federal em liderar e coordenar as políticas nacionais voltadas para os PPR, os resultados revelam que os programas federais do PNAE (Ministério da Agricultura, Pecuária e Abastecimento, 2020Ministério da Agricultura, Pecuária e Abastecimento. (2020). Orientações para a execução do PNAE durante a situação de emergência decorrente da pandemia do Coronavírus (COVID-19). Recuperado de https://www.fnde.gov.br/index.php/programas/pnae/pnae-area-gestores/pnae-manuais-cartilhas/item/13454-orienta%C3%A7%C3%A3os-para-a-execu%C3%A7%C3%A3o-do-pnae-pandemia-do-coronav%C3%ADrus-covid-19
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) e PAA atenderam muito precária e tardiamente a demanda dos PPR durante a pandemia. O PNAE vem sofrendo uma redução drástica de orçamento desde 2019 (L. Araújo et al., 2019Araújo, L. R. S., Brito, A. N. M., Rodrigues, M. T. P., Mascarenhas, M. D. M., & Moreira-Araujo, R. S. R. (2019). Alimentação escolar e agricultura familiar: análise de recursos empregados na compra de alimentos. Cadernos de Saúde Pública, 35(11), 1-9. doi: https://doi.org/10.1590/0102-311x00004819
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).Mesmo com um número bem menor de projetos aprovados, muitos PPR com contratos vigentes sofreram paralisação parcial ou total do contrato em março de 2020, uma vez que as aulas presenciais nas escolas públicas foram suspensas devido à pandemia, reduzindo ou cancelando totalmente a merenda escolar. Para atender aos alunos mais vulneráveis, o PNAE8 8 Destaca-se a Resolução CD/FNDE n. 2, de 9 de abril de 2020, que “Dispõe sobre a execução do Programa Nacional de Alimentação Escolar – PNAE durante o período de estado de calamidade pública, reconhecido pelo Decreto Legislativo n. 6, de 20 de março de 2020, e da emergência de saúde pública de importância internacional decorrente do novo Coronavírus – Covid-19”. lançou um edital com o objetivo de montar kits de alimentos a serem oferecidos às famílias dos alunos, entregues em suas escolas ou residências. Porém, nem todas as prefeituras participaram deste edital, conforme foi relatado por 78% dos PPR em nossa pesquisa. O PAA sofreu um corte orçamentário maior do que o PNAE (Bocchi et al., 2019Bocchi, C. P., Magalhães, E. S., Rahal, L., Gentil, P., & Gonçalves, R. S. (2019). A década da nutrição, a política de segurança alimentar e nutricional e as compras públicas da agricultura familiar no Brasil. Revista Panam Salud Publica, 43, 1-5. doi: https://doi.org/10.26633/RPSP.2019.84
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) e ainda passou por troca de Ministério. Até 2019, era de responsabilidade do Ministério da Agricultura, Pecuária e Abastecimento (MAPA); em 2020, foi transferido para o Ministério da Cidadania (MC), com apoio do MAPA e do Ministério da Economia (ME)Ministério da Agricultura, Pecuária e Abastecimento. (2019). Feiras orgânicas e agroecológicas da Amazônia. Recuperado de https://www.gov.br/agricultura/pt-br/assuntos/agricultura-familiar/publicacoes/projeto-mercados-verdes-e-consumo-sustentavel/outras-publicacoes/feiras-organicas-e-agroecologicas-da-amazonia
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.

Por causa da pandemia, o Ministério da Cidadania publicou a Medida Provisória n. 957Medida Provisória n. 957, de 24 de abril de 2020. Abre crédito extraordinário, em favor do Ministério da Cidadania, no valor de R$ 500.000.000,00, para o fim que especifica. Recuperado de https://www.in.gov.br/en/web/dou/-/medida-provisoria-n-957-de-24-de-abril-de-2020-254003219
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, de 24 de abril de 2020, a qual liberava R$ 220 milhões para a Companhia Nacional de Abastecimento (Conab), sendo R$ 126 milhões para reativar o PAA, parado desde 2019, com 1.088 projetos aprovados e a estimativa de produção pelos PPR e compra de 46 mil toneladas de alimentos pela Conab. Além disso, foram previstos R$ 94 milhões para receber novos projetos para 2020, cujo prazo de inscrição foi até 17 de julho de 2020 (Conab)9 9 Ver Companhia Nacional de Abastecimento (2020). . A publicação da Medida Provisória n. 957, de 24 de abril de 2020, foi resultado, principalmente, da mobilização popular que teve como base o documento “PAA – Programa de Aquisição de alimentos: comida saudável para o povo”10 10 Ver Articulação Nacional de Agroecologia (2020). , apresentado no início de abril de 2020 e assinado por 877 organizações, redes e movimentos sociais. O documento solicitava a reativação imediata do PAA, bem como o recebimento de novos projetos para combater os impactos negativos da pandemia, alertando para o fato de que um grande número de PPR estava perdendo sua produção e renda e de que muitos vulneráveis estavam sob ameaça de insegurança alimentar (Articulação Nacional de Agroecologia, 2020Articulação Nacional de Agroecologia. (2020). PAA – Programa de aquisição de alimentos: comida saudável para o povo. Recuperado de https://agroecologia.org.br/wp-content/uploads/2020/04/PAA-Comida-Saudavel-para-o-Povo-2.pdf
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).

Outra política pública federal fundamental é o apoio financeiro por meio de linhas de crédito. A quase totalidade (97%) dos PPR respondeu que não solicitou crédito em 2020 e que apenas um acessou o crédito e foi aprovado (provavelmente, referindo-se ao ano de 2019). A maioria dos GT (77%) também informou que não havia acessado novas linhas de crédito destinadas a beneficiários do Pronaf e alguns não tinham conhecimento sobre a disponibilidade para 2020. Somente em 30 de junho de 202011 11 Ver Banco Nacional de Desenvolvimento (2020). foi lançado o Pronaf para a safra 2020-2021, composto pelas linhas convencionais de financiamento, nenhuma específica para a pandemia da Covid-19.

As prefeituras também exercem um papel fundamental em apoiar o agricultor de forma multidimensional: assistência técnica e extensão rural, na compra direta dos produtos, em canais de venda dos produtos, nos arranjos institucionais das cadeias produtivas e de comercialização. Porém, a ação das prefeituras, em geral, é limitada, morosa e chega atrasada. Neste momento de pandemia, as poucas prefeituras que lançaram políticas públicas voltadas aos PPR tiveram um impacto significativo para que estes não perdessem a produção, impedindo, assim, uma queda brusca ou total da renda familiar, conforme descrito nos resultados.

PAPEL DAS AÇÕES COLETIVAS E PARCERIAS

No Brasil, pelo menos nos últimos 30 anos, diversas ações coletivas e parcerias emergiram por meio de redes sociais, cooperativas, associações e fóruns (Adams et al., 2020Adams, C., Borges, Z., Moretto, E. M., & Futemma, C. (2020). Governança ambiental no Brasil: acelerando em direção aos objetivos de desenvolvimento sustentável ou olhando pelo retrovisor? Cadernos Gestão Pública e Cidadania, 25(81), 1-13. doi: https://doi.org/10.12660/cgpc.v25n81.81403
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; Futemma et. al., 2020), ou seja, formaram-se vários coletivos urbanos e rurais, étnicos, locais ou nacionais e até transnacionais (Via Campesina na América Latina) (Futemma, 2020Futemma, C., De Castro, F., & Brondizio, E. S. (2020). Farmers and social innovations in rural development: collaborative arrangements in eastern Brazilian Amazon. Land Use Policy, 99, 104999. doi: https://doi.org/10.1016/j.landusepol.2020.104999
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) voltadas para as questões sociais e ambientais. Na pandemia da Covid-19, na ausência e/ou morosidade dos governos, essas ações coletivas apresentaram-se como uma rede de proteção social aos mais vulneráveis. Elas se mobilizaram e rapidamente tais ações solidárias se espalharam por todo o território brasileiro: Central Única das Favelas (CUFA)/Mães da Favela, Ação Cidadania, Apoio aos Povos Indígenas (APIB), Amigos do Bem, entre outras ações.

Os PPR e suas famílias contribuíram para inúmeras ações coletivas e parcerias, principalmente para a venda de seus produtos a entidades sociais ou ao governo para serem distribuídos aos mais vulneráveis. Vale ressaltar que os PPR também contribuíram com doações, principalmente de alimentos. Porém, algumas famílias agricultoras em situação mais vulnerável também receberam doações até mesmo de outros pequenos agricultores, como mostra o caso na região do Vale do Ribeira, em São Paulo, onde, com apoio do Instituto Socioambiental (ISA), comunidades tradicionais forneceram mais de 500 cestas de produtos de pesca caiçara e da roça dos quilombos para grupos indígenas Guarani e comunidades de quilombo (Instituto Socioambiental, 2020Instituto Socioambiental. (2020). Quilombolas e caiçaras distribuem 15 toneladas de alimentos para comunidades vulneráveis. Recuperado de https://www.socioambiental.org/pt-br/noticias-socioambientais/quilombolas-e-caicaras-distribuem-15-toneladas-de-alimentos-para-comunidades-vulneraveis
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). Portanto, o papel dos PPR em fornecer alimentos frescos nessas redes de solidariedade foi primordial.

Além dessas ações de solidariedade, os PPR participam de outras formas de coletivos ou grupos que ajudam tanto na produção como na comercialização de seus produtos, como é o caso de Comunidade que Sustenta a Agricultura (CSA), formada, principalmente, por agricultores orgânicos (Futemma, 2020Futemma, C. (2020). Organic agriculture, agroecology and agroforestry: small farmers in Brazil. In A. M. Arce-Ibarra, M. R. Parra Vázquez, E. Bello & L. Gomes de Araujo (Eds.), Socio-environmental regime and local visions: transdisciplinary experiences in Latin America (Régimen socio-ambiental y visiones locales: experiencias transdisciplinarias en Latinoamérica) (pp. 409-433). New York: Springer.), casos do CSA de Atibaia e Bananeiras-Guarulhos, em São Paulo, entre os PPR desta pesquisa. Inclusive, os PPR que participam dos CSA relataram aumento da demanda por hortaliças e frutas frescas durante a pandemia. Uma pesquisa da Empresa Brasileira de Pesquisa Agropecuária (Embrapa) nas quatro regiões do Brasil durante a pandemia mostra o aumento de consumo de algumas hortaliças, neste período, em todas as classes e regiões, mas principalmente pelas classes média e alta e nas regiões Sul e Sudeste (Nascimento et al., 2020Nascimento, W. M., Carvalho, H. M. G., & Siqueira, K. B. (2020). O consumo de hortaliças na pandemia. Embrapa Hortaliças. Recuperado de https://www.embrapa.br/hortalicas
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).

Uma parceria apontada pelos PPR durante a pandemia foi da Fundação Banco do Brasil (Fundação BB)Banco Nacional de Desenvolvimento. (BNDES). (2020). Pronaf- Programa nacional de fortalecimento da agricultura familiar. Recuperado de https://www.bndes.gov.br/wps/portal/site/home/financiamento/produto/pronaf
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com organizações locais (cooperativas e associações), por meio de suas agências nos municípios. Com essa parceria, em Bragança Paulista (São Paulo), a Fundação comprou 90 toneladas de produtos da cooperativa dos PPR para montar cestas básicas e doar a famílias carentes e entidades sociais12 12 Ver UNISOL: Central de Cooperativas e Empreendimentos Solidários Brasil (2020). . No baixo Amazonas (Pará), a Fundação publicou uma nota informando que 38 comunidades da região haviam sido assistidas com cestas agroecológicas; e uma produtora da Reserva Extrativista (RESEX) Tapajós-Arapiuns relatou que esse tipo de ação solidária foi essencial no escoamento da sua produção durante a pandemia.

Por fim, mesmo não tendo aderido a grupos ou coletivos, alguns PPR optaram por comercializar suas produções individualmente ou combinaram venda coletiva com individual; observou-se que eles mantêm uma rede de contatos via Whatsapp ou redes sociais, a qual lhes possibilita realizar vendas de seus produtos aos clientes, sejam eles compradores intermediários/atravessadores, supermercados, mercados ou consumidores finais.

PAPEL DAS TECNOLOGIAS DA INFORMAÇÃO (TI)

A falta de conectividade e tecnologia do campo brasileiro dificulta o acesso de produtores a serviços de entregas em domicílio e até atendimentos de emergência (Grilli, 2020Grilli, M. (2020, fevereiro 20). Agro sem CEP. Revista Globo Rural, 42, 15-17.). O Departamento de Apoio à Inovação do MAPA estima que apenas 6% a 9% da agricultura brasileira tenha algum tipo de conectividade. Esses números são ratificados pelo IBGE (2017)Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística. (IBGE). (2017). Censo Agropecuário de 2017. Recuperado de https://agenciadenoticias.ibge.gov.br/agencia-sala-de-imprensa/2013-agencia-de-noticias/releases/25789-censo-agro-2017-populacao-ocupada-nos-estabelecimentos-agropecuarios-cai-8-8
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, que calcula que 5,07 milhões de estabelecimentos rurais (72%) não possuem acesso à internet (Grilli, 2020Grilli, M. (2020, fevereiro 20). Agro sem CEP. Revista Globo Rural, 42, 15-17.). Pesquisadores da Embrapa-Informática apontam que as grandes propriedades têm mais acesso ao sinal 4G, realidade ainda muito distante das pequenas e médias propriedades (Grilli, 2020Grilli, M. (2020, fevereiro 20). Agro sem CEP. Revista Globo Rural, 42, 15-17.; Zaparolli, 2020Zaparolli, D. (2020, janeiro). Agricultura 4.0. Revista Pesquisa Fapesp. Recuperado de https://www.revistapesquisa.fapesp.br
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).

Esta pesquisa mostrou a importância de os PPR terem acesso à internet, pois a maioria usou celular/Whatsapp para se conectar com agentes externos, sejam fornecedores, compradores ou técnicos, durante a pandemia. Portanto, com o distanciamento físico entre as pessoas, o acesso à tecnologia da informação (TI) se tornou premente para os PPR se comunicarem de maneira remota. Mas nem todos tiveram essa acessibilidade, principalmente nos estados do Norte (Amazonas e Pará), acentuada pela instabilidade na energia elétrica fornecida em algumas comunidades amazônicas, sobretudo no Amazonas. Em São Paulo, o acesso à internet foi maior e os PPR puderam contatar diretamente seus clientes e escoar sua produção durante a pandemia, conforme recomendação da própria Organização das Nações Unidas para Alimentação e Agricultura (FAO) de usar o e-commerce (Galanakis, 2020Galanakis, C. M. (2020). The food systems in the era of the Coronavirus (COVID-19) pandemic crisis. Foods, 9(523). doi: https://doi.org/10.3390/foods9040523
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).

Os PPR que não tiveram acesso à internet enfrentaram mais dificuldades e até perda da produção por falta de mercado para escoar. Conforme a Embrapa-Informática, esse cenário precisa mudar, pois a TI é imprescindível para a agricultura. Ao fomentar a conectividade (Grilli, 2020Grilli, M. (2020, fevereiro 20). Agro sem CEP. Revista Globo Rural, 42, 15-17.), auxilia os produtores a superarem os desafios de produzir mais alimentos com preços acessíveis e de forma sustentável, sem ocupar mais áreas de floresta (Zaparolli, 2020Zaparolli, D. (2020, janeiro). Agricultura 4.0. Revista Pesquisa Fapesp. Recuperado de https://www.revistapesquisa.fapesp.br
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, p. 20). Portanto, contribuiria para reduzir a vulnerabilidade dos pequenos produtores.

CONSIDERAÇÕES FINAIS

A pandemia da Covid-19 impactou negativamente os pequenos produtores rurais (PPR) de forma multidimensional: saúde, produção, comercialização, renda e formas de comunicação. Por outro lado, os PPR desta pesquisa mostraram relativa capacidade de superação para enfrentarem os desafios impostos. Muitos produtores e seus familiares e conhecidos foram infectados com o Sars-CoV-2, alguns perderam amigos e parentes para a doença, além de sofrerem perdas na produção e quedas na venda e na renda, mas nenhum(a) produtor(a) teve perda total da produção ou queda total de vendas.

As situações de infectados pela Covid-19 entre os PPR apresentaram grande variação em número de casos e na gravidade ou mesmo fatalidade nos três estados estudados. Importante registrar que muitos PPR relataram problemas com a falta de leitos de Unidades de Terapia Intensiva (UTI) nos municípios e serviço de saúde pública extremamente precário, com atendimento muito ruim à população. Inclusive, 11% dos PPR declararam casos graves sem atendimento médico.

Os impactos sobre a comercialização foram maiores do que na produção, de acordo com declarações de PPR e GT, visto que, no processo de comercialização, há geralmente a necessidade do contato pessoal, principalmente os PPR residentes em comunidades distantes dos centros urbanos. Trata-se de uma etapa da atividade rural mais complexa, apresentando várias e diferentes formas de escoar a produção, seja individual ou coletivamente, presencial ou remotamente, por meio de políticas públicas ou organizações sociais. A diversidade de formas de se comercializar os produtos agrícolas possibilitou que praticamente todos os PPR pudessem escoar o resultado de seu trabalho, mesmo que em quantidade reduzida. A forma de comunicação mais usada para realizar as transações de venda ou falar com agentes externos foi o telefone celular, por meio do aplicativo de mensagens Whatsapp.

Por fim, as políticas públicas federais – PNAE, PAA e crédito agrícola – e municipais se mostraram primordiais para viabilizar a cadeia produtiva rural de pequena escala. Porém, a morosidade do Estado em propor e executar políticas públicas prejudicou esses pequenos produtores rurais em um período de grande vulnerabilidade. Para minimizar os efeitos negativos e as perdas, as ações coletivas e parcerias vinculadas à solidariedade contribuíram para que os PPR tivessem outras opções de escoar seus produtos para mercados diversos e até mesmo ajudar redes de doações de alimentos para as populações mais carentes. Portanto, a criatividade e a capacidade de adequação aos novos desafios, bem como a colaboração com agentes externos, contribuíram para que os PPR não sucumbissem totalmente e pudessem superar este período tão crítico da Covid-19, enquanto que a ação do poder público se fez ausente ou insuficiente durante a pandemia.

Por fim, a pandemia da Covid-19 trouxe à tona os sérios riscos dos desequilíbrios ambientais e o aumento das vulnerabilidades de grupos sociais, como os dos PPR. Isso coloca também grandes desafios para a academia e para os gestores públicos sobre como responder de forma rápida e eficaz às mudanças ambientais, que crescem em ritmo acelerado.

  • 1
    O período de campo ocorreu em um momento que a curva da média móvel de novos casos estava decrescente, assim, o governo do estado do Amazonas decretou maior flexibilidade das atividades e liberação das viagens fluviais e terrestres entre as cidades do estado, condicionadas ao atendimento das exigências sanitárias (Decreto n. 42.500, 2020Decreto n. 42.500. (2020, julho 14). Dispõe sobre medidas para autorização da prestação de serviços de transporte hidroviário intermunicipal de passageiros, no âmbito do Estado do Amazonas, e dá outras providências. Recuperado de https://www.legisweb.com.br/legislacao/?id=398623
    https://www.legisweb.com.br/legislacao/?...
    ).
  • 2
    O Programa de Desenvolvimento Rural Sustentável (PDRS) – Subprojetos Ambientais, finalizado em 2018, visou promover a restauração das paisagens rurais, a partir de sistemas agroflorestais, e garantir melhoria de renda aos agricultores familiares e segurança alimentar no estado de São Paulo. Teve a participação de 611 famílias beneficiárias, sendo a maioria de assentamentos de reforma agrária (N. Araújo et al., 2016Araújo, N., Santos, J. D. S., & Lobo, L. L. (outubro, 2016). Sistemas agroflorestais no Projeto de Desenvolvimento Rural Sustentável – Microbacias II – um subsídio a políticas públicas. In Anais do X Congresso Brasileiro de Sistemas Agroflorestais, Universidade Federal Mato Grosso, Cuiabá, Mato Grosso.).
  • 3
    O território onde o Conexão Mata Atlântica atua é marcado pela prevalência de pastagens degradadas. São cerca de 800 produtores rurais participantes, dos quais a maioria é composta por pequenos produtores (Secretaria de Infraestrutura e Meio Ambiente [São Paulo], 2021)Secretária de Infraestrutura e Meio Ambiente. [São Paulo]. (2021). Conexão Mata Atlântica. Recuperado de https://www.infraestruturameioambiente.sp.gov.br/tag/conexao-mata-atlantica/
    https://www.infraestruturameioambiente.s...
    .
  • 4
    Comunidade que Sustenta a Agricultura (CSA) é recente no Brasil (2011)Fundação Banco do Brasil. (n.d.). Fundação Banco do Brasil: Coronavírus - COVID-19. Recuperado de https://www.fbb.org.br/pt-br/component/k2/conteudo/fundacao-banco-do-brasil-coronavirus-covid-19
    https://www.fbb.org.br/pt-br/component/k...
    e está na região de Campinas desde 2012/2016. Trata-se de uma rede internacional que promove a agricultura em bases coletivas, aproximando o produtor do consumidor. Considera o consumidor como coprodutor, pois este pode participar de todas as atividades que envolvem a produção e visitar as propriedades rurais (Brown & Miller, 2008Brown, C., & Miller, S. (2008). The impacts of local markets: a review of research on farmers markets and community supported agriculture (CSA). American Journal of Agricultural Economics, 90(1), 1296-1302.).
  • 5
    Dois exemplos de cartilhas ou guias disponíveis online: (1) Empresa de Assistência Técnica e Extensão Rural do Distrito Federal (n.d.)Empresa de Assistência Técnica e Extensão Rural do Distrito Federal. (EMATER-DF). (n.d.). Coronavírus: veja como se proteger no campo, na cidade e no trabalho. Recuperado de http://www.emater.df.gov.br/wp-content/uploads/2020/05/CARTILHA-COVID.pdf
    http://www.emater.df.gov.br/wp-content/u...
    ; (2) Agência Nacional de Assistência Técnica e Extensão Rural (n.d.)Agência Nacional de Assistência Técnica e Extensão Rural. (ANATER). (n.d.). Cartilha de orientação ao agricultor familiar: prevenção no meio Rural ao novo Coronavírus (COVID-19). Recuperado de https://www.ematerce.ce.gov.br/wp-content/uploads/sites/86/2020/04/Cartilha-de-Orienta%C3%A7%C3%A3o-ao-Agricultor-Familiar-ANATER.pdf
    https://www.ematerce.ce.gov.br/wp-conten...
    .
  • 6
    Para EPI na agricultura, ver Alves (2013)Alves, T. C. (2013). Manual de equipamentos de proteção individual. Recuperado de https://www.infoteca.cnptia.embrapa.br/bitstream/doc/975090/1/Documentos111.pdf
    https://www.infoteca.cnptia.embrapa.br/b...
    .
  • 7
    Ver Fundação Banco do Brasil (n.d.)Fundação Banco do Brasil. (n.d.). Fundação Banco do Brasil: Coronavírus - COVID-19. Recuperado de https://www.fbb.org.br/pt-br/component/k2/conteudo/fundacao-banco-do-brasil-coronavirus-covid-19
    https://www.fbb.org.br/pt-br/component/k...
    .
  • 8
    Destaca-se a Resolução CD/FNDE n. 2, de 9 de abril de 2020, que “Dispõe sobre a execução do Programa Nacional de Alimentação Escolar – PNAE durante o período de estado de calamidade pública, reconhecido pelo Decreto Legislativo n. 6, de 20 de março de 2020, e da emergência de saúde pública de importância internacional decorrente do novo Coronavírus – Covid-19”.
  • 9
    Ver Companhia Nacional de Abastecimento (2020)Companhia Nacional de Abastecimento. (Conab). (2020). Propostas do PAA podem ser transmitidas a partir de segunda-feira (11). Recuperado de https://www.conab.gov.br/ultimas-noticias/3363-propostas-do-paa-podem-ser-transmitidas-a-partir-de-segunda-feira-11
    https://www.conab.gov.br/ultimas-noticia...
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  • 10
    Ver Articulação Nacional de Agroecologia (2020)Articulação Nacional de Agroecologia. (2020). PAA – Programa de aquisição de alimentos: comida saudável para o povo. Recuperado de https://agroecologia.org.br/wp-content/uploads/2020/04/PAA-Comida-Saudavel-para-o-Povo-2.pdf
    https://agroecologia.org.br/wp-content/u...
    .
  • 11
    Ver Banco Nacional de Desenvolvimento (2020).
  • 12
    Ver UNISOL: Central de Cooperativas e Empreendimentos Solidários Brasil (2020)UNISOL: Central de Cooperativas e Empreendimentos Solidários Brasil. (2020). Ação distribui 90 toneladas de alimentos e incentiva a agricultura familiar local. Recuperado de http://portal.unisolbrasil.org.br/parceria-garante-alimentos-saudaveis-para-cerca-de-2-mil-familias-em-tres-regioes-do-estado-de-sao-paulo/
    http://portal.unisolbrasil.org.br/parcer...
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AGRADECIMIENTOS

Os autores agradecem ao Núcleo de Pesquisa e Estudos Ambientais (NEPAM), ao Laboratório de Ecologia Humana (LEHMA) e ao Programa de Doutorado em Ambiente e Sociedade da UNICAMP, pelo apoio logístico. As duas primeiras autoras expressam seus agradecimentos à Fundação de Pesquisa do Estado de São Paulo (FAPESP), pelo apoio ao projeto AGENTS da pesquisadora responsável e líder desta pesquisa (processo 18/50041-9) e pela bolsa de pós-doutorado (processo 18/25655-3), vinculados ao Programa Internacional T2S Belmont Forum e NORFACE. Duas autoras agradecem à Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível Superior (CAPES), pela bolsa de doutorado. E agradecemos aos revisores anônimos pelos comentários e pelas sugestões preciosos para a publicação final deste trabalho. Essa pesquisa foi possível graças à colaboração e à disponibilidade de gestores, técnicos e pequenos produtores rurais que aceitaram participar e nos permitiram conhecer um pouco desse panorama durante a pandemia da Covid-19.

  • Futemma, C., Tourne, D. C. M., Andrade, F. A. V., Santos, N. M., Macedo, G. S. S. R., & Pereira, M. E. (2021). A pandemia da Covid-19 e os pequenos produtores rurais: superar ou sucumbir? Boletim do Museu Paraense Emílio Goeldi. Ciências Humanas, 16(1), e20200143. doi: 10.1590/2178-2547-BGOELDI-2020-0143

REFERÊNCIAS

Editado por

Responsabilidade editorial: Richard Pace

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    14 Maio 2021
  • Data do Fascículo
    2021

Histórico

  • Recebido
    07 Dez 2020
  • Aceito
    12 Abr 2021
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