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Discussões sobre bioética, direito penal e pacientes testemunhas de Jeová

Resumo

Este estudo tem como finalidade refletir sobre os aspectos bioéticos e jurídicos implicados na relação médico-paciente testemunha de Jeová. Para isso, o trabalho abordará, inicialmente, a relação médico-paciente diante dos impasses terapêuticos desse grupo de pacientes, estudando essa relação do ponto de vista histórico e elucidando os pontos acerca dos pacientes adeptos à religião. Em seguida, abordar-se-ão os princípios bioéticos envolvidos no cuidado do paciente testemunha de Jeová, discutindo cada princípio e sua incorporação ao atendimento desse grupo. Por fim, será discutida a abordagem jurídica à luz dos direitos fundamentais do paciente, caracterizando as normas constitucionais e penais que se aplicam ao cuidado dos profissionais de saúde a pacientes adeptos a essa religião.

Autonomia pessoal; Bioética; Paternalismo; Relação médico-paciente; Religião

Abstract

This study aims to reflect on the bioethical and juridical aspects tied to the doctor-Jehovah’s Witness patient relationship. To that end, the work will focus, initially, on the doctor-patient relationship faced with the therapeutic obstacles of this group of patients, studying the relationship from the historical standpoint and elucidating the topics about the patients of this religion. Then, we will focus on the bioethical principles involved in the care for Jehovah’s Witness patients, discussing each principle and its incorporation to the care for this group. Finally, we will focus on the juridical approach in the light of the patient’s fundamental rights, characterizing the constitutional and criminal norms that apply to the care of health professionals to patients of this religion.

Personal autonomy; Bioethics; Paternalism; Physician-patient relations; Religion

Resumen

Este estudio tiene como objetivo reflexionar sobre los aspectos bioéticos y legales involucrados en la relación médico-paciente de los testigos de Jehová. Para ello, se abordará inicialmente la relación médico-paciente ante los impasses terapéuticos de este grupo de pacientes desde la perspectiva histórica teniendo en cuenta a los pacientes practicantes de esta religión. Luego, se plantearán los principios bioéticos involucrados en el cuidado del paciente testigo de Jehová, discutiendo cada principio y su incorporación en la asistencia a este grupo. Por último, se discutirá el enfoque jurídico a la luz de los derechos fundamentales del paciente, caracterizando las normas constitucionales y penales que se aplican a la asistencia de los profesionales de la salud a los pacientes practicantes de esta religión.

Autonomía Personal; Bioética; Paternalismo; Relaciones médico-paciente; Religión

Conhecidos pela pregação de testemunhos de casa em casa, as Testemunhas de Jeová (TJ) correspondem a um grupo religioso com origem no ano de 1869, sendo, inicialmente, um grupo de estudos bíblicos, mas que evoluiu para uma extensa comunidade religiosa. Seus membros devem cumprir exigências como forma de compromisso e fidelidade com o reino de Deus, sendo as mais conhecidas: evitar qualquer tipo de interesse civil, como participar de partidos políticos e de serviço militar, e não se submeter a transfusão de sangue 11. Chehaibar GZ. Bioética e crença religiosa: estudo da relação médico-paciente Testemunha de Jeová com potencial risco de transfusão de sangue [tese] [Internet]. São Paulo: Universidade de São Paulo; 2010 [acesso 5 jan 2022]. Disponível: https://bit.ly/3P7Swcb
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. Com todas as peculiaridades, os TJ são parte dos usuários dos serviços de saúde, sendo, portanto, necessário estabelecer o cuidado essencial e singular para o paciente, devendo o serviço de saúde estar preparado para acolher e cuidar do enfermo, respeitando sua autonomia.

No âmbito da prática médica, os TJ são considerados um grupo que exige atenção singular. Tal comunidade religiosa tem como importante fundamento a posição contrária a tratamentos que envolvam hemotransfusão, tomando como base escritos bíblicos presentes nos livros de Gênesis, Levíticos e Atos, segundo os quais a recepção de sangue resulta em condenação eterna, conforme destaca Chehaibar 11. Chehaibar GZ. Bioética e crença religiosa: estudo da relação médico-paciente Testemunha de Jeová com potencial risco de transfusão de sangue [tese] [Internet]. São Paulo: Universidade de São Paulo; 2010 [acesso 5 jan 2022]. Disponível: https://bit.ly/3P7Swcb
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. Para eles, a transfusão transforma-os em seres poluídos, permitindo que a comunidade implemente punições que podem envolver suspensão de privilégios religiosos, censura pública e desassociação, na qual amigos e familiares devem evitá-los 11. Chehaibar GZ. Bioética e crença religiosa: estudo da relação médico-paciente Testemunha de Jeová com potencial risco de transfusão de sangue [tese] [Internet]. São Paulo: Universidade de São Paulo; 2010 [acesso 5 jan 2022]. Disponível: https://bit.ly/3P7Swcb
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Nesse cenário, a bioética serve de base para o suporte na relação médico-paciente diante da condição dificultosa. Ela traz consigo princípios definidos como trindade bioética, formada por autonomia, beneficência e justiça 22. Campos A, Oliveira DR. A relação entre o princípio da autonomia e o princípio da beneficência (e não maleficência) na bioética médica. Revista Brasileira de Estudos Políticos [Internet]. 2017 [acesso 5 jan 2022];(115):13-45. DOI: 10.9732/P.0034-7191.2017V115P13
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, além de propostas a serem seguidas nesse vínculo, prezando sempre por uma relação democrática e deliberativa, contando com a participação não somente do profissional, mas de todos os envolvidos nesse elo, para escolher a melhor alternativa de intervenção.

Somam-se a isso, na óptica jurídica, os direitos fundamentais desses pacientes, que devem ser considerados e observados pelo médico, visto que a Constituição Federal de 1988 garante a todos os indivíduos o direito à liberdade religiosa, além de trazer no caput de seu art. 5º uma cláusula geral de liberdade, que abrange a autonomia privada do indivíduo e, portanto, aspectos inerentes à dignidade da pessoa humana 33. Brasil. Constituição da República Federativa do Brasil de 1988 [Internet]. Brasília: Presidência da República; 1988 [acesso 5 jan 2020]. Disponível: https://bit.ly/3P525Z8
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Por outro lado, deve-se ter em consideração que o direito à vida é um direito fundamental indisponível e, portanto, não pode ser objeto de disposição por parte de seu detentor. Assim, caso um paciente venha a dispor expressamente de seu direito à vida em prol de seu direito à liberdade religiosa, o médico ou profissional de saúde que apresentasse conduta conivente com tal vontade (por meio tanto de atos comissivos quanto de atos omissos) não estaria isento de sanções jurídicas, principalmente criminais, dado que o consentimento do ofendido (o paciente) é irrelevante quando se trata de direitos indisponíveis, como é o direito à vida.

Portanto, do ponto de vista jurídico, o médico tem o dever de respeitar a autonomia e a liberdade religiosa do paciente, ao mesmo tempo que tem o dever de zelar pela vida deste, sob pena de responsabilização criminal. Indubitavelmente, trata-se, aqui, de uma situação complexa e peculiar, que inspira maiores discussões, a fim de que se esclareçam os limites da atuação do médico ou profissional de saúde perante paciente testemunha de Jeová.

Diante do impacto pessoal e profissional da terapêutica do paciente TJ, este trabalho busca correlacionar aspectos bioéticos e jurídicos e a relação médico-paciente testemunha de Jeová, trazendo, para isso, uma discussão acerca dos princípios bioéticos e da relação médico-paciente mediante os impasses terapêuticos, além de uma abordagem jurídica à luz dos direitos fundamentais do paciente, com destaque para as normas constitucionais e penais que se aplicam à intervenção terapêutica ou cirúrgica de médicos e profissionais de saúde sobre pacientes adeptos a essa comunidade religiosa.

Por tratar-se de estudo qualitativo e descritivo, utilizou-se o método de abordagem dedutiva para buscar comprovar sua hipótese. Para isso, procedeu-se a uma revisão de literatura narrativa por meio de busca bibliográfica em bases de dados e de busca direcionada, relacionada, principalmente, ao conteúdo doutrinário jurídico e ao ordenamento jurídico brasileiro.

Relação médico-paciente testemunha de Jeová

A medicina e a relação médico-paciente vivenciaram períodos de características diversas quanto à interação entre os polos profissional e paciente. Inicialmente qualificada como paternalista, a relação médico-paciente tinha como fundamento a assimetria entre profissional e enfermo, tendo como base o conhecimento técnico do qual o médico era dotado. Entendia-se que o paciente, sendo leigo, não era capaz de compreender seus problemas de saúde e, portanto, não estava preparado para decidir a melhor opção terapêutica para si, atribuindo ao médico a autonomia técnica 44. Wanssa MCD. Autonomia versus beneficência. Rev. bioét (Impr.) [Internet]. 2011 [acesso 5 jan 2022]; 19(1):105-17. Disponível: https://bit.ly/391tZVE
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, 55. Kovács MJ. Bioética nas questões da vida e da morte. Psicol USP [Internet]. 2003 [acesso 5 jan 2022]; 14(2):115-67. DOI: 10.1590/S0103-65642003000200008 . Essa concepção paternalista ganhou fundamento em inúmeros momentos da história, entre eles, a concepção do juramento hipocrático, que não trazia o compartilhamento da decisão com o paciente em suas recomendações, além dos períodos medievais, nos quais a figura médica passou a ser associada a uma ética sacerdotal, cuja autoridade era de origem divina 44. Wanssa MCD. Autonomia versus beneficência. Rev. bioét (Impr.) [Internet]. 2011 [acesso 5 jan 2022]; 19(1):105-17. Disponível: https://bit.ly/391tZVE
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A partir de 1945 e da publicação da Declaração Universal dos Direitos Humanos , pôde-se observar uma mudança do panorama da relação médico- paciente, com esta abrangendo os direitos e as liberdades de escolha do paciente, promovendo uma inversão do que ocorria em momentos anteriores 66. Siqueira JE, Zoboli E, Sanches M, Pessini L. Bioética clínica: memórias do XI Congresso Brasileiro de Bioética, III Congresso Brasileiro de Bioética Clínica e III Conferência Internacional sobre o Ensino da Ética [Internet]. Brasília: CFM; 2016 [acesso 5 jan 2022]. Disponível: https://bit.ly/3ymNDpp
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. Ou seja, o médico atribuía ao paciente a escolha sobre seu tratamento, ainda que este não se apresentasse em condições adequadas para tal decisão. Essa fase de foco no paciente agregou também o termo de consentimento informado, instrumento que se associa ao respeito à autonomia do paciente, mas também à retórica de liberdade de escolha e consumo 44. Wanssa MCD. Autonomia versus beneficência. Rev. bioét (Impr.) [Internet]. 2011 [acesso 5 jan 2022]; 19(1):105-17. Disponível: https://bit.ly/391tZVE
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, 66. Siqueira JE, Zoboli E, Sanches M, Pessini L. Bioética clínica: memórias do XI Congresso Brasileiro de Bioética, III Congresso Brasileiro de Bioética Clínica e III Conferência Internacional sobre o Ensino da Ética [Internet]. Brasília: CFM; 2016 [acesso 5 jan 2022]. Disponível: https://bit.ly/3ymNDpp
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Somente no século XX surgiu a tendência de se estabelecer uma relação médico-paciente horizontal, na tentativa de abandonar as assimetrias entre os polos que promoviam a verticalização da relação. Nessa fase, passou-se a prezar pela decisão conjunta envolvendo todas as partes presentes nesse vínculo, devendo o profissional da saúde e sua equipe esclarecer todos os componentes terapêuticos a serem realizados, podendo o paciente confrontar as opções e declarar suas vontades. Logo, o consentimento deixa de ser informado e passa a ser nomeado termo de consentimento livre e esclarecido (TCLE), contando com a atividade dos dois polos da relação 66. Siqueira JE, Zoboli E, Sanches M, Pessini L. Bioética clínica: memórias do XI Congresso Brasileiro de Bioética, III Congresso Brasileiro de Bioética Clínica e III Conferência Internacional sobre o Ensino da Ética [Internet]. Brasília: CFM; 2016 [acesso 5 jan 2022]. Disponível: https://bit.ly/3ymNDpp
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Atualmente, a fixação de uma postura deliberativa e democrática na prática médica encontra fundamentos, entre diversos documentos, no Código de Ética Médica (CEM), quando este coloca que é vedado ao médico (…) deixar de obter consentimento do paciente ou de seu representante legal após esclarecê-lo sobre o procedimento a ser realizado, salvo em caso de risco iminente de morte (art. 22), assim como deixar de garantir ao paciente o exercício do direito de decidir livremente sobre sua pessoa ou seu bem-estar, bem como exercer sua autoridade para limitá-lo (art. 24) 77. Conselho Federal de Medicina. Código de Ética Médica [Internet]. Brasília: CFM; 2018 [acesso 5 jan 2022]. Disponível: https://bit.ly/3kOv1qD
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. Assim, o CEM estabelece como dever do médico o esclarecimento sobre os procedimentos e o respeito à decisão do paciente diante das opções disponíveis.

Com isso, no relacionamento com paciente TJ, o profissional deve ter como base uma postura deliberativa, oferecendo as melhores opções ao paciente e acatando aquela que seja declarada como sua vontade, utilizando o TCLE como ferramenta. Perante um paciente com clara capacidade de compreensão e de tomar decisões e que não apresente risco iminente de morte, o médico jamais deverá violar seus princípios religiosos e, sabendo que a filosofia dos TJ vai contra as terapias de hemotransfusão, a equipe médica deve respeitar a autonomia e a liberdade religiosa do paciente, bem como seu direito à vida digna, lançando mão de terapias alternativas para suprir suas necessidades. Por outro lado, em casos de risco iminente de morte, há a exceção trazida pelo art. 22 do CEM 77. Conselho Federal de Medicina. Código de Ética Médica [Internet]. Brasília: CFM; 2018 [acesso 5 jan 2022]. Disponível: https://bit.ly/3kOv1qD
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, podendo o médico prezar pela preservação da vida e aplicar a terapêutica transfusional sem consentimento do paciente.

Princípios bioéticos

Cuidado do paciente testemunha de Jeová

Tendo em vista os avanços tecnológicos envolvendo as ciências biológicas, a bioética veio para garantir a integração responsável entre a vida e a biotecnologia, considerando os dilemas morais, sociais e científicos que surgem em meio a essas associações. A bioética apresenta-se na forma de três princípios, também denominados trindade bioética: autonomia, beneficência e justiça 11. Chehaibar GZ. Bioética e crença religiosa: estudo da relação médico-paciente Testemunha de Jeová com potencial risco de transfusão de sangue [tese] [Internet]. São Paulo: Universidade de São Paulo; 2010 [acesso 5 jan 2022]. Disponível: https://bit.ly/3P7Swcb
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, 22. Campos A, Oliveira DR. A relação entre o princípio da autonomia e o princípio da beneficência (e não maleficência) na bioética médica. Revista Brasileira de Estudos Políticos [Internet]. 2017 [acesso 5 jan 2022];(115):13-45. DOI: 10.9732/P.0034-7191.2017V115P13
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. Estes não são regulamentadores, mas servem de orientação para a reflexão dos profissionais em sua atuação técnica e científica 22. Campos A, Oliveira DR. A relação entre o princípio da autonomia e o princípio da beneficência (e não maleficência) na bioética médica. Revista Brasileira de Estudos Políticos [Internet]. 2017 [acesso 5 jan 2022];(115):13-45. DOI: 10.9732/P.0034-7191.2017V115P13
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O princípio da autonomia corresponde ao respeito e ao direito de autogovernar-se 22. Campos A, Oliveira DR. A relação entre o princípio da autonomia e o princípio da beneficência (e não maleficência) na bioética médica. Revista Brasileira de Estudos Políticos [Internet]. 2017 [acesso 5 jan 2022];(115):13-45. DOI: 10.9732/P.0034-7191.2017V115P13
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, 55. Kovács MJ. Bioética nas questões da vida e da morte. Psicol USP [Internet]. 2003 [acesso 5 jan 2022]; 14(2):115-67. DOI: 10.1590/S0103-65642003000200008 , ou seja, o direito do paciente de decidir sobre seu atendimento, tratamento e tudo aquilo que tange a seu corpo 22. Campos A, Oliveira DR. A relação entre o princípio da autonomia e o princípio da beneficência (e não maleficência) na bioética médica. Revista Brasileira de Estudos Políticos [Internet]. 2017 [acesso 5 jan 2022];(115):13-45. DOI: 10.9732/P.0034-7191.2017V115P13
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. O profissional da saúde e sua equipe têm o dever de respeitar a vontade do paciente ou, ainda, de seu representante legal, devendo, também, respeito a seus valores morais e suas crenças 88. Leite Segundo AV, Barros KMA, Axiotes ECG, Zimmerman RD. Aspectos éticos e legais na abordagem de pacientes Testemunhas de Jeová. Rev Ciênc Méd [Internet]. 2007 [acesso 5 jan 2022];16(4-6):257-65. Disponível: https://bit.ly/394tSbS
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. Ou seja, diante da realidade do tratamento de paciente TJ, cabe ao profissional da saúde oferecer um acolhimento integral e adequado do enfermo, identificando suas vontades, valores e particularidades, para que seja oferecida a melhor conduta terapêutica, condizente com os desejos do paciente.

Vale ressaltar que, nesse contexto, a autonomia se faz presente a partir do momento em que o profissional explica completa e adequadamente ao paciente e seus familiares todos os procedimentos a serem realizados, respeitando o nível educacional do enfermo e informando-o com linguagem apropriada. Isso porque, para uma tomada de decisão adequada, o paciente deve compreender amplamente as técnicas, riscos, complicações e alternativas, cabendo ao profissional capacitá-lo para deliberar e fazer suas escolhas de maneira independente. É nesse contexto que ganha destaque o TCLE, que deve sempre ser utilizado em benefício do paciente e do profissional, garantindo a autonomia da relação médico-paciente 55. Kovács MJ. Bioética nas questões da vida e da morte. Psicol USP [Internet]. 2003 [acesso 5 jan 2022]; 14(2):115-67. DOI: 10.1590/S0103-65642003000200008 , 99. França ISX, Baptista RS, Brito VRS. Dilemas éticos na hemotransfusão em Testemunhas de Jeová: uma análise jurídico-bioética. Acta Paul Enferm [Internet]. 2008 [acesso 5 jan 2022];21(3):498-503. Disponível: https://bit.ly/3sk2ai7
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O princípio da beneficência tem como principal foco maximizar o bem do outro 22. Campos A, Oliveira DR. A relação entre o princípio da autonomia e o princípio da beneficência (e não maleficência) na bioética médica. Revista Brasileira de Estudos Políticos [Internet]. 2017 [acesso 5 jan 2022];(115):13-45. DOI: 10.9732/P.0034-7191.2017V115P13
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. Tal princípio guiou a atividade profissional médica por anos, fundamentando a ética hipocrática, vinculando-se a outro princípio, o da não maleficência, e ambos se mostraram indissociáveis, visto que buscam constantemente obter o máximo de benefícios e o mínimo de malefícios. Assim, segundo tais princípios, os profissionais da saúde devem avaliar os riscos e benefícios de suas práticas, expondo-os aos usuários dos serviços de saúde, para que estes façam a melhor escolha considerando a relação risco-benefício.

A beneficência e a não maleficência devem estar integradas aos outros princípios bioéticos, visando à não utilização da beneficência de modo paternalista, como ocorria em períodos passados. Ou seja, cabe ao médico avaliar tecnicamente a enfermidade e analisar os melhores passos a serem seguidos para a solução do problema, tomando por base a beneficência e a não maleficência. A partir disso, deve-se conscientizar o paciente e a família sobre todo o conteúdo que envolve as opções de escolha, para que, entre as melhores possibilidades, o enfermo escolha aquela que mais condiz com seus valores.

O terceiro princípio, o da justiça, pode ser definido por meio da frase “devemos tratar igualmente os iguais e desigualmente os desiguais” 11. Chehaibar GZ. Bioética e crença religiosa: estudo da relação médico-paciente Testemunha de Jeová com potencial risco de transfusão de sangue [tese] [Internet]. São Paulo: Universidade de São Paulo; 2010 [acesso 5 jan 2022]. Disponível: https://bit.ly/3P7Swcb
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, ou seja, o princípio da justiça visa à equidade. Ele se fundamenta em liberdade, igualdade e equilíbrio das relações humanas, tendo como objetivo a igualdade de direito aos serviços de saúde 22. Campos A, Oliveira DR. A relação entre o princípio da autonomia e o princípio da beneficência (e não maleficência) na bioética médica. Revista Brasileira de Estudos Políticos [Internet]. 2017 [acesso 5 jan 2022];(115):13-45. DOI: 10.9732/P.0034-7191.2017V115P13
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, oferecendo a cada paciente aquilo que se apresenta como moralmente correto, adequado e eticamente devido 11. Chehaibar GZ. Bioética e crença religiosa: estudo da relação médico-paciente Testemunha de Jeová com potencial risco de transfusão de sangue [tese] [Internet]. São Paulo: Universidade de São Paulo; 2010 [acesso 5 jan 2022]. Disponível: https://bit.ly/3P7Swcb
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. A justiça pode ser vista a partir de diferentes perspectivas, que podem ser utilitárias, liberais, igualitárias ou comunitárias, permitindo que condutas e procedimentos médicos não sejam isentos de questionamentos sobre a aplicação da justiça 11. Chehaibar GZ. Bioética e crença religiosa: estudo da relação médico-paciente Testemunha de Jeová com potencial risco de transfusão de sangue [tese] [Internet]. São Paulo: Universidade de São Paulo; 2010 [acesso 5 jan 2022]. Disponível: https://bit.ly/3P7Swcb
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. No entanto, o acolhimento e a construção de uma boa relação médico-paciente, fundamentada nos princípios bioéticos e prezando sempre pela prática da autonomia do paciente, permitirão que a justiça seja alcançada, uma vez que os profissionais garantirão assistência singular conforme as singularidades de cada paciente, sendo ele TJ ou não.

No direito brasileiro

Transfusão de sangue em testemunha de Jeová

Após abordagem bioética das situações em que se faz necessária a transfusão de sangue em pacientes adeptos às TJ, deve-se passar, então, a uma análise jurídica de tal situação, a fim de averiguar as hipóteses em que, além de agir de modo a violar a bioética principialista, o médico ou profissional de saúde avilta também as normas jurídicas brasileiras. Para isso, este trabalho abordará o contexto da transfusão de sangue em TJ à luz dos direitos fundamentais positivados na Constituição Federal 33. Brasil. Constituição da República Federativa do Brasil de 1988 [Internet]. Brasília: Presidência da República; 1988 [acesso 5 jan 2020]. Disponível: https://bit.ly/3P525Z8
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, sem prejuízo à aferição de eventual responsabilização penal ao médico que submete o paciente forçosamente a transfusão de sangue, de modo a negar-lhe a autonomia inerente à relação médico-paciente hodierna.

Antes de tudo, deve-se ter em mente o fato de a conduta do paciente adepto às TJ, que se nega ao tratamento médico por motivo religioso, gozar de amparo constitucional. Isso porque a Constituição Federal de 1988 positiva, em seu art. 5º, V, o direito fundamental à liberdade de crença, segundo o qual é inviolável a liberdade de consciência e de crença, sendo assegurado o livre exercício dos cultos religiosos e garantida, na forma da lei, a proteção aos locais de culto e a suas liturgias 33. Brasil. Constituição da República Federativa do Brasil de 1988 [Internet]. Brasília: Presidência da República; 1988 [acesso 5 jan 2020]. Disponível: https://bit.ly/3P525Z8
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Portanto, a Carta Magna reconhece explicitamente a liberdade religiosa, tutelando o direito de aderir ou não a qualquer fé transcendental e acolhendo positivamente a pluralidade de expressões religiosas em seu sistema constitucional 1010. Branco PGG. Direitos fundamentais em espécie. In: Mendes GF, Coelho IM, Branco PGG. Curso de Direito Constitucional. 10ª ed. São Paulo: Saraiva; 2015. p. 393-401. . Compreenda-se que a recusa de transfusão de sangue por adeptos às TJ é compreendida como parte de seus dogmas e doutrinas, habitando, portanto, o exercício de sua fé religiosa.

Além disso, o paciente que se recusa à transfusão de sangue tem a seu lado o princípio da autonomia privada, diretamente relacionado ao princípio bioético da autonomia e considerado o elemento ético da dignidade da pessoa humana. Tal princípio é considerado o fundamento do livre-arbítrio dos indivíduos, que lhes permite buscar, a sua própria maneira, o ideal de viver bem e ter uma vida boa 1111. Barroso LR. A dignidade da pessoa humana no Direito Constitucional contemporâneo: a construção de um conceito jurídico à luz da jurisprudência mundial. Belo Horizonte: Fórum; 2014. .

Por ser considerada um dos elementos do princípio da dignidade da pessoa humana, a autonomia privada encontra guarida na Constituição Federal de 1988, sendo positivada, em seu art. 1º, III, como um dos princípios fundamentais do Estado Democrático de Direito brasileiro 33. Brasil. Constituição da República Federativa do Brasil de 1988 [Internet]. Brasília: Presidência da República; 1988 [acesso 5 jan 2020]. Disponível: https://bit.ly/3P525Z8
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. Nesse sentido, a autonomia privada expressa a autodeterminação individual e resulta do reconhecimento do ser humano como um agente moral, capaz de decidir o que é bom ou ruim para si, e com o direito de seguir a sua decisão, desde que ela não viole direitos alheios 1212. Sarmento D. Dignidade da pessoa humana: conteúdo, trajetórias e metodologia. Belo Horizonte: Fórum; 2016. p. 140. .

Por fim, a autonomia privada relaciona-se à responsabilidade pessoal que cada pessoa tem sobre sua vida, o que inclui fazer e executar decisões finais que envolvam que tipo de vida seria boa de se viver 1313. Dworkin R. Is democracy possible here? Princeton: Princeton University Press; 2006. . Compreende-se que, além de não poder violar direitos alheios, a autonomia privada encontra limites nos direitos indisponíveis, como a vida. Não há de se falar em autonomia privada quando uma pessoa solicita ao médico uma injeção letal para dar cabo da própria vida. A indisponibilidade do direito deve ser considerada, portanto, um limite a esse princípio.

Por outro lado, a conduta de rejeitar transfusão de sangue pode colocar em risco dois direitos fundamentais de extrema importância no Estado democrático de direito brasileiro: o direito à saúde e o direito à vida. O direito à saúde instiga o Estado ao cumprimento das demandas que possam propiciar aos cidadãos uma vida sem nenhum comprometimento que afete seu equilíbrio físico ou mental. Desse modo, pode-se dizer que sua extensão de incidência é muito ampla, já que engloba todas as medidas que protegem a integridade da pessoa humana 1414. Agra WM. Curso de direito constitucional. 9ª ed. Belo Horizonte: Fórum; 2018. .

Pontue-se, portanto, que o direito à saúde não diz respeito apenas ao bem-estar físico do indivíduo, mas também a seu equilíbrio mental e emocional. Ou seja, o paciente não deve ser compreendido pelo médico como um ser simplesmente físico, mas, sim, como uma existência complexa, que envolve seus aspectos físicos, emocionais, sociais e espirituais. Se, por um lado, o direito à saúde do indivíduo fica em risco pelo fato de ele se privar de tratamento adequado por suas convicções religiosas, haveria violação a tal direito fundamental se o médico impusesse injustificadamente tratamento médico ao paciente, violando, de tal maneira, seu bem-estar mental ao submetê-lo a tratamento que afronta os ensinamentos de sua religião.

Deve-se ter em mente, diante do exposto, que o direito fundamental à saúde não enseja apenas a interpretação de que há uma imposição aos entes estatais no sentido da observância ao direito à saúde dos indivíduos, em seu aspecto defensivo ou prestacional. Isso porque a previsão constitucional que diz respeito ao direito à saúde impõe aos próprios indivíduos, em suas relações horizontais, o dever de respeitar o direito à saúde de seus equivalentes, a fim de garantir a observância à chamada eficácia horizontal dos direitos fundamentais 1515. Rothenburg WC. Direitos fundamentais. São Paulo: Método; 2014. .

No que tange ao direito à vida, o caput do art. 5º da Constituição Federal de 1988 33. Brasil. Constituição da República Federativa do Brasil de 1988 [Internet]. Brasília: Presidência da República; 1988 [acesso 5 jan 2020]. Disponível: https://bit.ly/3P525Z8
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preconiza que será considerado inviolável o direito à vida, sendo este garantido aos brasileiros e estrangeiros residentes no país. Pode-se afirmar que o direito à vida consiste no direito a estar vivo, de lutar pelo viver, de permanecer vivo. Sem prejuízo, é o direito de não ter interrompido o processo vital, senão pela morte espontânea e inevitável 1616. Silva JA. Curso de direito constitucional positivo. 39ª ed. São Paulo: Malheiros; 2016. .

No Brasil, verifica-se que o direito à vida é um direito fundamental indisponível, ou seja, caso um paciente adepto às TJ autorize o médico a tirar-lhe a vida para que não tenha de se submeter a uma transfusão de sangue, por exemplo, mesmo assim seria um fato ilícito, já que o consentimento da vítima não pode ter validade nesse caso, por tratar-se de direito que não pode ser disposto por seu titular.

Nesse contexto, há nítida situação de colisão de direitos fundamentais, já que, caso um indivíduo testemunha de Jeová resolva exercer sua autonomia privada, impedindo que o profissional de saúde o submeta a uma transfusão de sangue a fim de garantir o exercício de sua liberdade religiosa, seu direito à saúde e até mesmo seu direito à vida poderão restar prejudicados. Tal situação conflituosa deve ser resolvida por meio da adoção do critério da proporcionalidade ou, então, por meio de sopesamento dos valores envolvidos.

É muito comum que se mencione o princípio da proporcionalidade como critério intrínseco à ponderação de direitos fundamentais ou até mesmo como sinônimo desta. Todavia, deve-se compreender que o princípio da proporcionalidade, desenvolvido pela jurisprudência alemã e exteriorizado em uma estrutura racionalmente definida, com subelementos independentes, quais sejam, análise da adequação, da necessidade e da proporcionalidade em sentido estrito 1717. Silva VA. O proporcional e o razoável. Revista dos Tribunais [Internet]. 2002 [acesso 5 jan 2022]; 798(2002):23-50. Disponível: https://bit.ly/3kNZYuX
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, somente deve ser aplicado quando a restrição a um direito fundamental for veiculada na forma de regra presente em texto normativo infraconstitucional 1818. Silva VA. Direitos fundamentais: conteúdo essencial, restrições e eficácia. 2ª ed. São Paulo: Malheiros; 2014. , de modo que se examine a constitucionalidade da norma infraconstitucional restritiva de direitos fundamentais por meio de análise de sua proporcionalidade.

Apesar disso, há casos em que não existe qualquer regra constitucional ou infraconstitucional que discipline a colisão entre direitos fundamentais. Ou seja, pode ser que dada situação de colisão ainda não tenha sido objeto de ponderação por parte do legislador. Nesses casos, não cabe a aplicação do princípio da proporcionalidade, sendo necessário adotar a técnica do sopesamento entre os potenciais princípios aplicáveis na resolução do caso concreto 1818. Silva VA. Direitos fundamentais: conteúdo essencial, restrições e eficácia. 2ª ed. São Paulo: Malheiros; 2014. .

O Conselho Federal de Medicina (CFM), órgão regulamentador do exercício da prática médica em território brasileiro, acaba por disciplinar indiretamente a atitude a ser tomada pelo médico quando da ocasião de colisão de direitos, mesmo que tais disposições não tenham envergadura legal, já que vincula somente os médicos, e sua infringência geraria apenas responsabilidade administrativa ao infrator. Nesse sentido, como visto anteriormente, o CEM, em seu art. 22 77. Conselho Federal de Medicina. Código de Ética Médica [Internet]. Brasília: CFM; 2018 [acesso 5 jan 2022]. Disponível: https://bit.ly/3kOv1qD
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, veda ao médico deixar de obter consentimento do paciente ou de seu representante legal depois de o esclarecer sobre o procedimento a ser realizado, salvo em caso de risco iminente de morte.

Portanto, a conduta que se espera de um médico é que a vontade do paciente, em respeito à relação médico-paciente horizontal, seja respeitada pelo profissional de saúde, mesmo que tal atitude contrarie a prescrição dada pelo médico com base em seu diagnóstico. A vontade do paciente poderá ser dispensada somente em caso de risco iminente de morte, quando o direito fundamental à vida prevalecerá sobre a liberdade religiosa do paciente.

Mesmo não tendo envergadura legal, as disposições constantes no CEM 77. Conselho Federal de Medicina. Código de Ética Médica [Internet]. Brasília: CFM; 2018 [acesso 5 jan 2022]. Disponível: https://bit.ly/3kOv1qD
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encontram-se presentes indiretamente em outros diplomas legais. O art. 22 do CEM encontra correspondência no art. 146 do Código Penal 1919. Brasil. Decreto-Lei nº 2.848, de 7 de dezembro de 1940. Código Penal. Diário Oficial da União [Internet]. Brasília, p. 23911, 31 dez 1940 [acesso 5 jan 2022]. Seção 1. Disponível: https://bit.ly/3FpmvYx
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, que tipifica o constrangimento ilegal, isto é, constranger alguém, mediante violência ou grave ameaça, ou depois de lhe haver reduzido, por qualquer outro meio, a capacidade de resistência, a não fazer o que a lei permite, ou a fazer o que ela não manda 1919. Brasil. Decreto-Lei nº 2.848, de 7 de dezembro de 1940. Código Penal. Diário Oficial da União [Internet]. Brasília, p. 23911, 31 dez 1940 [acesso 5 jan 2022]. Seção 1. Disponível: https://bit.ly/3FpmvYx
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.

O legislador penal, todavia, exclui, no § 3º, I, do artigo 1919. Brasil. Decreto-Lei nº 2.848, de 7 de dezembro de 1940. Código Penal. Diário Oficial da União [Internet]. Brasília, p. 23911, 31 dez 1940 [acesso 5 jan 2022]. Seção 1. Disponível: https://bit.ly/3FpmvYx
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analisado, a tipicidade da conduta do médico ou cirurgião que intervém, sem o consentimento do paciente ou de seu representante legal, se justificada a intervenção por iminente perigo de vida . Por ser previsto no próprio dispositivo que prevê a conduta tipificada, trata-se, aqui, de legítima causa legal de exclusão de tipicidade.

Contudo, a exclusão abordada pode ser claramente justificada por uma das quatro excludentes de ilicitude: o estado de necessidade. Em seu art. 24, o Código Penal brasileiro dispõe: considera-se em estado de necessidade quem pratica o fato para salvar de perigo atual, que não provocou por sua vontade, nem podia de outro modo evitar, direito próprio ou alheio, cujo sacrifício, nas circunstâncias, não era razoável exigir-se 1919. Brasil. Decreto-Lei nº 2.848, de 7 de dezembro de 1940. Código Penal. Diário Oficial da União [Internet]. Brasília, p. 23911, 31 dez 1940 [acesso 5 jan 2022]. Seção 1. Disponível: https://bit.ly/3FpmvYx
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. Nesse sentido, o estado de necessidade é caracterizado pela colisão de bens jurídicos de distintos valores, devendo um deles ser sacrificado em prol da preservação daquele que é reputado como mais valioso. (…) Com essa configuração, a delimitação do estado de necessidade e da conduta de salvaguarda necessária é, normalmente, feita através do critério de ponderação de bens 2020. Bitencourt CR. Tratado de direito penal. 22ª ed. São Paulo: Saraiva; 2016. p. 410. .

Tal situação enquadra-se perfeitamente na conduta do médico que intervém no paciente sem seu consentimento em caso de risco iminente de morte, já que praticou o fato para salvar de perigo atual (a morte), que não provocou por sua vontade (a doença advém de causas naturais, e não da atuação do médico) nem podia de outro modo evitar, direito alheio cujo sacrifício não era razoável exigir-se (ou seja, a vida do paciente). Atente-se, todavia, ao trecho em que o legislador prevê que o agente não podia de outro modo evitar o perigo atual. Ou seja, havendo uma maneira de evitar a morte do paciente que seja por ele autorizada, o médico deve tentar executá-la, e não partir para a intervenção não consensual, sob pena de afastar a incidência do estado de necessidade e, consequentemente, a exclusão de tipicidade do art. 146, § 3º, I, do Código Penal 1919. Brasil. Decreto-Lei nº 2.848, de 7 de dezembro de 1940. Código Penal. Diário Oficial da União [Internet]. Brasília, p. 23911, 31 dez 1940 [acesso 5 jan 2022]. Seção 1. Disponível: https://bit.ly/3FpmvYx
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Foram apresentados, portanto, os requisitos para que não haja responsabilização penal do médico que intervenha em paciente testemunha de Jeová de modo a submetê-lo forçosamente a transfusão de sangue. Em suma, busca-se aplicar a concordância prática entre os direitos fundamentais conflitantes, a fim a harmonizar os interesses em jogo. Assim, a transfusão de sangue à revelia do paciente somente será possível em situações excepcionais em que, cumulativamente, haja risco de morte, for o único tratamento possível e, por fim, quando houver razões médicas suficientes para justificá-la 2121. Marmelstein G. Curso de direitos fundamentais. 5ª ed. São Paulo: Atlas; 2014. .

Passe-se, agora, à análise acerca de eventual responsabilização penal do médico que intervém à revelia do paciente, de modo a submetê-lo à transfusão de sangue forçosa, principalmente nos casos que envolvam eventuais lesões corporais decorrentes de tal método terapêutico. O Código Penal brasileiro 1919. Brasil. Decreto-Lei nº 2.848, de 7 de dezembro de 1940. Código Penal. Diário Oficial da União [Internet]. Brasília, p. 23911, 31 dez 1940 [acesso 5 jan 2022]. Seção 1. Disponível: https://bit.ly/3FpmvYx
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tipifica, em seu art. 129, a lesão corporal como crime, o que, a princípio, poderia gerar responsabilidade criminal ao médico que deixasse lesões corporais no paciente submetido a transfusão de sangue. Todavia, a doutrina 2222. Zaffaroni ER, Pierangeli JH. Manual de Direito Penal Brasileiro. 8ª ed. São Paulo: Revista dos Tribunais; 2009. tem defendido a incidência de uma teoria capaz de excluir a tipicidade das condutas dos profissionais de saúde que intervenham em seus pacientes com finalidade terapêutica. Trata-se da teoria da tipicidade conglobante.

De acordo com essa teoria, o juízo de tipicidade exige, além da tipicidade legal, a tipicidade conglobante, isto é, consistente na averiguação do alcance proibitivo da norma, que não pode ser considerada isoladamente, mas, sim, conglobada na ordem jurídica 2323. Queiroz P. Direito Penal: parte geral. 4ª ed. Rio de Janeiro: Lumen Juris; 2008. . Nesse sentido, o ordenamento jurídico brasileiro analisado sistematicamente não apenas não proíbe, como também incentiva a intervenção médica em seus pacientes com finalidades terapêuticas.

A Lei 8.080/1990 2424. Brasil. Lei nº 8.080, de 19 de setembro de 1990. Dispõe sobre as condições para a promoção, proteção e recuperação da saúde, a organização e o funcionamento dos serviços correspondentes e dá outras providências. Diário Oficial da União [Internet]. Brasília, p. 18055, 20 set 1990 [acesso 5 jan 2022]. Seção 1. Disponível: https://bit.ly/3w9tHny
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(Lei do SUS) dispõe, em seu art. 6º, I, d , que se encontra incluída no âmbito de atuação do Sistema Único de Saúde (SUS) brasileiro a assistência terapêutica integral, inclusive farmacêutica . Além disso, o art. 19-M do mesmo diploma legal especifica a assistência terapêutica integral em dispensação de medicamentos e produtos de interesse para a saúde e a oferta de procedimentos terapêuticos, em regime domiciliar, ambulatorial e hospitalar 2424. Brasil. Lei nº 8.080, de 19 de setembro de 1990. Dispõe sobre as condições para a promoção, proteção e recuperação da saúde, a organização e o funcionamento dos serviços correspondentes e dá outras providências. Diário Oficial da União [Internet]. Brasília, p. 18055, 20 set 1990 [acesso 5 jan 2022]. Seção 1. Disponível: https://bit.ly/3w9tHny
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. Ou seja, a própria Lei do SUS prevê a oferta de assistência terapêutica integral dos médicos a seus pacientes.

Por intervenções com fim terapêutico podem-se entender aquelas que perseguem a conservação ou o restabelecimento da saúde, ou então a prevenção de um dano maior ou, em alguns casos, a simples atenuação ou desaparecimento da dor 2525. Zaffaroni ER, Pierangeli JH. Op. cit. p. 480. . Nesse sentido, as intervenções que acabam por gerar alguma lesão corporal ao paciente também têm fim terapêutico, quando perseguem algum desses objetivos, mesmo que fracassem em seu propósito.

Em todas as intervenções terapêuticas que não envolvam risco iminente de morte, o médico é obrigado a pedir autorização do paciente, sob pena de suportar responsabilização administrativa. Todavia, cabe discutir sobre a responsabilização penal do médico nos casos em que, sem autorização do paciente, o profissional de saúde intervém com finalidade terapêutica e acaba por causar lesões corporais (o que pode acontecer no caso de transfusão de sangue). O médico poderá incorrer, nesse caso, em crime contra a liberdade pessoal, mais especificamente, em crime de constrangimento ilegal, conforme o art. 146 do Código Penal 1919. Brasil. Decreto-Lei nº 2.848, de 7 de dezembro de 1940. Código Penal. Diário Oficial da União [Internet]. Brasília, p. 23911, 31 dez 1940 [acesso 5 jan 2022]. Seção 1. Disponível: https://bit.ly/3FpmvYx
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Cabe pontuar, contudo, que, pelo fato de o ordenamento jurídico brasileiro incentivar a intervenção médico-terapêutica, nenhum tipo de lesão corporal decorrente de tal prática, independentemente da anuência do paciente, é punível, por carecer de tipicidade em decorrência da aplicação da teoria da tipicidade conglobante. Portanto, em casos que não envolvam risco iminente de morte, a intervenção médica sobre o paciente deve ser sempre consensual, sob pena de o profissional de saúde ser submetido a responsabilização administrativa. Além disso, pode-se atribuir responsabilidade penal se configurar algum tipo de delito contra a liberdade pessoal, mas nunca tipicidade penal de lesões, porque o fim terapêutico exclui essas intervenções do âmbito de proibição do tipo de lesões 2525. Zaffaroni ER, Pierangeli JH. Op. cit. p. 480. .

Considerações finais

Reconhecendo o paciente testemunha de Jeová como dotado de particularidades na abordagem terapêutica, em especial diante de técnicas que envolvam hemotransfusão, fica evidente a necessidade de a equipe adequar o cuidado para continuar oferecendo as melhores opções ao usuário dos serviços de saúde. A expressão contrária vinda do paciente é justificada por seu direito à liberdade de religião, bem como pelo princípio bioético da autonomia, e, portanto, deve o médico respeitar e atuar sempre visando aos princípios bioéticos e aos direitos do paciente.

Tal vontade somente poderia ser descumprida em caso de risco iminente de morte, nos termos do que determinam o art. 22 do CEM 77. Conselho Federal de Medicina. Código de Ética Médica [Internet]. Brasília: CFM; 2018 [acesso 5 jan 2022]. Disponível: https://bit.ly/3kOv1qD
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e o art. 146, § 3º, I, do Código Penal 1919. Brasil. Decreto-Lei nº 2.848, de 7 de dezembro de 1940. Código Penal. Diário Oficial da União [Internet]. Brasília, p. 23911, 31 dez 1940 [acesso 5 jan 2022]. Seção 1. Disponível: https://bit.ly/3FpmvYx
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. No entanto, em outras circunstâncias, a desobediência da equipe de saúde ao pedido do paciente configuraria crime de constrangimento ilegal, previsto no Código Penal, além de se tratar de conduta passível de responsabilização administrativa por descumprimento flagrante do CEM. Além disso, a ação médica que viola indevidamente a vontade do paciente fere o direito fundamental à saúde, principalmente em seus aspectos social e espiritual. Por fim, ao impedir que um paciente que não se encontra em risco de morte tenha controle sobre o próprio corpo, um dos elementos fundamentais da dignidade da pessoa humana é desrespeitado: o princípio da autonomia privada.

Assim, cabe ao profissional assistente atuar com base nos princípios bioéticos, sempre com vistas à manutenção dos direitos do paciente. Deve-se construir uma relação horizontal entre ambos os polos, em que o profissional reconhece o paciente como entidade além da doença e, diante de suas particularidades, oferece opções terapêuticas convenientes para o caso. Com isso, o profissional poderá estar de acordo com os ideais éticos e legais estabelecidos para a profissão e o paciente poderá receber uma abordagem médica adequada, considerando-o um ser biopsicossocial e espiritual.

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Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    01 Ago 2022
  • Data do Fascículo
    Apr-Jun 2022

Histórico

  • Recebido
    2 Out 2020
  • Revisado
    27 Abr 2022
  • Aceito
    28 Abr 2022
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