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Doenças negligenciadas e bioética: diálogo de um velho problema com uma nova área do conhecimento

Resumos

As doenças negligenciadas representam flagelo persistente no histórico das populações excluídas, sendo, portanto, objeto de interesse da bioética. São classificadas como grupo de doenças infecciosas fortemente associadas às condições de pobreza verificadas, em sua grande maioria, nos países periféricos. O objetivo deste estudo foi aproximar duas áreas do conhecimento por meio de diálogo, a fim de demonstrar que, apesar de específicas, ambas podem atuar de maneira sinérgica. Trata-se de estudo de revisão bibliográfica que procurou aprofundar o tema a partir dos seguintes eixos: 1) conceitos e visões das doenças negligenciadas e da bioética; 2) consequências e contexto das doenças negligenciadas; 3) doenças negligenciadas nos estudos de bioética. Verificou-se o estabelecimento do diálogo, bem como a emergência de elementos que ratificaram a bioética como campo de mediação a ser utilizado na superação do conflito ético que permeia o tema das doenças negligenciadas.

Doenças negligenciadas; Bioética; Pobreza; Vulnerabilidade social


Neglected diseases have long been the scourge of excluded populations, and are therefore of particular relevance to the field of bioethics. Neglected diseases are classified as a group of infectious diseases that are strongly associated with conditions of poverty, and are mostly found in peripheral countries. The aim of the present study was to bring together bioethical knowledge and existing knowledge of such diseases, demonstrating that, while they are different, such areas of knowledge can be used synergistically. A bibliographic review was performed with the aim of expanding knowledge of the following areas: 1) concepts and visions of neglected diseases and bioethics; 2) consequences and context of neglected diseases; 3) neglected diseases in bioethical studies. It was found that a dialogue between the two areas exists, and elements were identified confirming the value of bioethics as a mediation tool for overcoming the ethical conflict that permeates the issue of neglected diseases.

Neglected diseases; Bioethics; Poverty; Social vulnerability


Las enfermedades desatendidas se muestran como un flagelo persistente históricamente en las poblaciones excluidas, por lo tanto, son de un especial interés para la bioética. Se las clasifican como un grupo de enfermedades infecciosas que están fuertemente asociadas a las condiciones de pobreza verificadas, en su gran mayoría, en los países periféricos. Este estudio tuvo como objetivo aproximar dos áreas de conocimiento por medio de un diálogo abierto con el fin de demostrar que, a pesar de específicas, ellas pueden actuar de manera sinérgica. Se trata de un estudio de revisión bibliográfica que procura profundizar los siguientes ejes: 1) conceptos y visiones de las enfermedades desatendidas y la bioética; 2) consecuencias y contexto de las enfermedades desatendidas; 3) enfermedades desatendidas en los estudios de la bioética. Se verificó que hay un diálogo posible y también la necesidad de elementos que ratifican la bioética como un campo de mediación que debe ser utilizado para la superación del conflicto ético que permea el tema de las enfermedades desatendidas.

Enfermedades desatendidas; Bioética; Pobreza; Vulnerabilidad social


Há tempos a humanidade é assolada por doenças associadas à pobreza, que proliferam, sobretudo, em ambientes marcados pela exclusão social. São chamadas de “doenças negligenciadas” e, de acordo com a Organização Mundial da Saúde (OMS) 1. World Health Organization. Department of Control of Neglected Tropical Diseases. Neglected tropical diseases. Hidden successes, emerging opportunities. Genebra: WHO; 2006 [acesso 3 abr 2012]. Disponível: http://whqlibdoc.who.int/hq/2006/WHO_CDS_NTD_2006.2_eng.pdf
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, formam um conjunto de 17 enfermidades que afetam especialmente pessoas que vivem nos trópicos, porém não são exclusivas a eles. Nessa relação, incluem-se enfermidades como: tracoma; úlcera de Buruli; tripanossomíase africana (doença do sono); doença de Chagas (tripanossomíase americana); dengue; dracunculíase; cisticercose; leishmaniose; hanseníase; filariose linfática; oncocercose; esquistossomose; bouba; geo-helmintíase; hidrofobia (raiva); equinococose e fasciolíase. Dados da OMS 1. World Health Organization. Department of Control of Neglected Tropical Diseases. Neglected tropical diseases. Hidden successes, emerging opportunities. Genebra: WHO; 2006 [acesso 3 abr 2012]. Disponível: http://whqlibdoc.who.int/hq/2006/WHO_CDS_NTD_2006.2_eng.pdf
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sobre o tema revelam que muitas delas já foram altamente prevalentes, mas, à medida que as sociedades se desenvolveram e as condições de vida melhoraram, foram aos poucos desaparecendo.

Diante de tais evidências, exige-se da bioética posicionamento que oriente a tomada de decisões e as práticas desenvolvidas pelos setores público e privado com vistas ao enfrentamento do problema, conforme expressa a Declaração Universal sobre Bioética e Direitos Humanos (DUBDH) 2. Organização das Nações Unidas para Educação, a Ciência e a Cultura. Declaração Universal sobre Bioética e Direitos Humanos [internet]. Genebra: Unesco; 2005 [acesso 30 ago 2012]. Disponível: http://unesdoc.unesco.org/images/0014/001461/146180por.pdf
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.A promulgação desse documento tornou explícito o dever da bioética de trazer para o centro do debate o problema das doenças negligenciadas, que, além de nevrálgico, se revela inadiável, em razão de seu caráter socialmente relevante. Nesse sentido, a crítica da corrente da bioética que convive no mesmo espaço em que as causas e os efeitos das doenças negligenciadas são factuais torna-se elemento essencial no processo de promoção da consciência política, destinada a reverter tal condição, sendo capaz de contribuir no combate de males que afetam de maneira incessante a saúde de indivíduos e de seus coletivos.

A trajetória percorrida pela bioética ao longo de sua existência demonstra sua consolidação como disciplina autônoma, ampliando continuamente seu horizonte de atuação. De início, seu foco de ação restringia-se à relação profissional da saúde-paciente e às pesquisas envolvendo seres humanos. Ao longo dos anos, a partir da necessidade de uma agenda mais extensa, que abrangesse a relação entre saúde e sociedade, especialmente as questões prementes dos países em desenvolvimento, sua fundamentação epistemológica foi redesenhada, incluindo, sobretudo nas últimas décadas, questões historicamente persistentes, relacionadas com a pobreza e a exclusão social, como no caso, as doenças negligenciadas.

A negligência que permeia o histórico de determinadas doenças transmissíveis associadas à pobreza impacta diretamente as condições sociais e econômicas de populações marginalizadas, que habitam, em sua grande maioria, as áreas pobres de países de baixa e média renda 3. Brasil. Ministério da Saúde. Secretaria de Vigilância em Saúde. Saúde Brasil 2013: uma análise da situação de saúde e das doenças transmissíveis relacionadas à pobreza. Brasília: Ministério da Saúde; 2014. p. 229-54.. Hoje, mesmo com o premente risco de contaminação de pelo menos 40% da população mundial por uma doença negligenciada, verifica-se que elas permanecem em grande parte ocultas, concentradas em remotas áreas rurais ou em favelas urbanas 3. Brasil. Ministério da Saúde. Secretaria de Vigilância em Saúde. Saúde Brasil 2013: uma análise da situação de saúde e das doenças transmissíveis relacionadas à pobreza. Brasília: Ministério da Saúde; 2014. p. 229-54., 4. Batalha E, Morosini L. Atenção aos esquecidos. Radis. [Internet]. 2013 [acesso 10 mar 2015];124:8- 17. Disponível: http://www6.ensp.fiocruz.br/radis/conteudo/atencao-aos-esquecidos
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Por isso, a linha de pensamento bioético defendida pelo presente artigo é justamente aquela que centra sua atuação na resolução de conflitos éticos que nascem das iniquidades e das injustiças, e que em geral provêm das assimetrias de poder. Por se tratar de tema que rompe fronteiras, este artigo procurou não ir além das referências representadas por aquelas localidades cujos quadros sanitários mostram altos índices de contaminação ou aspectos amplamente favoráveis ao desenvolvimento de doenças negligenciadas, como é o caso dos países da América Latina 5. Neglected tropical diseases: Becoming less neglected [Editorial]. The Lancet. [Internet]. 12 abr 2014 [acesso 22 maio 2014];383(9.925):1.269. Disponível: http://www.thelancet.com/journals/lancet/article/PIIS0140-6736(14)60629-2/fulltext
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. Outras fontes foram acessadas, na tentativa de promover debate bioético que não fosse restrito e que pudesse alcançar dimensão internacional.

Corroborando a perspectiva anteriormente descrita, Kottow 6. Kottow M. Bioética de proteção: considerações sobre o contexto latino-americano. In: Schramm FR, Rego S, Braz M, Palácios M, organizadores. Bioética: risco e proteção. 2ª ed. Rio de Janeiro: Editora UFRJ/Editora Fiocruz; 2009. afirma que a bioética desenvolvida pelos países periféricos precisa dialogar com o discurso hegemônico, mesmo aquele vindo de fora; não pode desconsiderá-lo, sob pena de ficar presa a coordenadas de pensamento desconectados dos centros de decisão e vulneráveis ao embate dos interesses que afetam de modo negativo o bem comum, sobretudo das populações socialmente fragilizadas. Assim, quanto mais divergentes e conflitantes se tornam as bioéticas de procedência moral diversa, mais importante é não perder contato com os vários discursos, inclusive aqueles praticados pelos países ditos centrais, possuidores de maior renda e detentores da hegemonia na produção científica mundial. Portanto, propõe-se promover o diálogo com a bioética em torno de um problema de relevância social, cujo impacto reflete-se no desenvolvimento global.

Método

Trata-se de estudo de revisão bibliográfica que utilizou a literatura especializada em doenças negligenciadas e a bioética, a fim de verificar um possível diálogo entre as duas temáticas do campo da saúde. Utilizaram-se as bases de dados SciELO, PubMed, Biblioteca Virtual em Saúde (BVS) e o Google Scholar. Para captação das publicações científicas, foram empregados os seguintes descritores: “doenças negligenciadas, “doenças tropicais negligenciadas”, “prioridades de pesquisa” e “ética em pesquisa“ (em português), e “neglected diseases”, “neglected tropical diseases”, “research priorities” e “research ethics” (em inglês).

Com base no levantamento realizado nas diversas fontes, efetuou-se a seleção do material relativo ao escopo do estudo. Foram selecionados artigos, capítulos de livros e documentos que apresentaram relevância para a construção do diálogo das doenças negligenciadas com a bioética. Após a leitura e apreciação do material, elaborou-se o presente artigo, a partir da delimitação dos conceitos acerca do objeto posto a dialogar com a bioética, suas consequências, seu contexto de acometimento e sua íntima relação com as condições de vida da população. Em seguida, verificou-se de que modo os estudos teóricos da bioética percebem e explicitam o tema das doenças negligenciadas. Ou seja, o processo de elaboração do artigo ocorreu justamente com base na verificação de pontos de convergência de uma nova área do conhecimento com um velho problema no campo da saúde que é permeado por um conflito ético.

Bioética e o olhar coletivo

Ao longo de sua trajetória, a bioética vem passando por revisões tanto em sua definição conceitual quanto nas propostas de ação. Conceitos que haviam sido deixados de lado foram revisitados e reincorporados, dessa vez como protagonistas do discurso dessa disciplina, que, em essência, está voltada para a sobrevivência da espécie humana. Nesse sentido, cabe lembrar que, mais de trinta anos atrás, o médico estadunidense Van Rensselaer Potter, ao criar o neologismo bioética, definiu-a como área científica dedicada à busca do conhecimento e da sabedoria. Segundo ele, a sabedoria representaria o conhecimento necessário para administrar o próprio conhecimento com o objetivo de se obter o bem social 7. Potter VR. Bioethics: Bridge to the future. Englewood Cliffs: Prentice-Hall; 1971..

De sua concepção, que compreendia a bioética como ponte para o futuro, Potter propunha o aperfeiçoamento da ciência por meio da ética, a fim de garantir a qualidade de vida, transformando-a em uma disciplina capaz de acompanhar o desenvolvimento científico. Calcada na vigilância ética, isenta de interesses morais, e na necessidade de oferecer contínua democratização do conhecimento 7. Potter VR. Bioethics: Bridge to the future. Englewood Cliffs: Prentice-Hall; 1971., a bioética – desde quando foi proposta por Potter até o momento atual – tem buscado consolidar-se como pensamento filosófico agregador, materializado por meio do diálogo contextualizado e plural, que se volta para a mediação de conflitos de natureza ética, a maior parte dos quais afeta com mais intensidade a porção excluída ou vulnerável da sociedade 8. Oliveira AAS. Bioética e direitos humanos. São Paulo: Loyola; 2011..

Ainda que se possa questionar a proposta potteriana de bioética como ciência – uma vez que ela se debruça sobre valores e lida com verdades, e não com fatos 9. Porto D. Bioética de intervenção: retrospectiva de uma utopia. In: Porto D, Garrafa V, Martins GZ, Barbosa SN, organizadores. Bioética, poderes e injustiças. 10 anos depois. Brasília: Conselho Federal de Medicina/Cátedra Unesco de Bioética/Sociedade Brasileira de Bioética; 2012. p. 117.,1010 . Volpato GL. Dicas para redação científica. 3ª ed. São Paulo: Cultura Acadêmica; 2010. [Capítulo], Substratos para redação científica internacional. p.23. –, é inegável que nos últimos trinta anos a bioética foi o campo da ética aplicada que mais progressos apresentou. A análise de sua trajetória nas últimas décadas demonstra que três referenciais básicos passaram a sustentar uma proposta de estatuto epistemológico 1111 . Garrafa V. Da bioética de princípios a uma bioética interventiva. Bioética. 2005;13(1):125-34.:

  1. Estrutura com olhar obrigatoriamente pautado na multi-intertransdisciplinaridade entre variados núcleos de conhecimento e diferentes perspectivas das questões observadas, a partir da interpretação da complexidade: a) do conhecimento científico e tecnológico; b) do conhecimento socialmente acumulado; c) da própria realidade concreta em questão e da qual fazemos parte;

  2. Respeito ao pluralismo moral presente nas democracias seculares pós-modernas, norteadas pela busca do equilíbrio e observação dos referencias sociais específicos que norteiam pessoas, sociedades e nações no sentido da tolerância, sem imposições de padrões morais;

  3. A compreensão da impossibilidade de existência de paradigmas bioéticos universais, o que leva à construção de um novo discurso bioético sustentado basicamente pelo diálogo, pela coerência e pela argumentação.

A partir desse novo modo de pensar a bioética é que questões há muito persistentes na história da humanidade passaram a ocupar espaço de destaque nas propostas que antecederam a agenda para a disciplina no século XXI 1212 . Garrafa V. Dimensão da ética em saúde pública. São Paulo: Faculdade de Saúde Pública USP/ Kellogg Foundation; 1995.

13 . Schramm FR. A terceira margem da saúde. Brasília: Editora UnB; 1996.
-1414 . Garrafa V, Oselka G, Diniz D. Saúde pública, bioética e equidade. Bioética. 1997;5(1):27-33.. Cabe salientar que pioneiramente Berlinguer 1515 . Berlinguer G. Questões de vida: ética, ciência, saúde. São Paulo: APCE/Hucitec/Cebes; 1993. havia adotado o termo bioética cotidiana para descrever questões concernentes às situações que acontecem diariamente, mas não deveriam estar mais acontecendo, a exemplo da pobreza, da exclusão social e das doenças negligenciadas. No Brasil, Garrafae Portoutilizaram a mesma definição, adaptando a ideia para bioética das situações persistentes 1616 . Garrafa V, Porto D. Intervention bioethics: A proposal for peripheral countries in a context of power and injustice. Bioethics. 2003;17(5-6):399-416..

O importante é que tanto a proposta de Berlinguer 1515 . Berlinguer G. Questões de vida: ética, ciência, saúde. São Paulo: APCE/Hucitec/Cebes; 1993. quanto a de Garrafa e Porto 1616 . Garrafa V, Porto D. Intervention bioethics: A proposal for peripheral countries in a context of power and injustice. Bioethics. 2003;17(5-6):399-416. sublinham a necessidade de pensar uma bioética capaz de abordar os determinantes sociais básicos – e, portanto, persistentes e críticos – da vida humana, tanto nos indivíduos quanto nas coletividades. O encontro da bioética com o coletivo, com o social, surgiu timidamente a partir de meados dos anos 1990 e se fortaleceu na década seguinte, tendo como protagonistas autores da América Latina que foram em busca de uma bioética voltada para questões de desigualdade social e equidade, justiça social, responsabilidade individual e coletiva sobre os cuidados de saúde, alocação e priorização de recursos escassos, pobreza, racismo, saúde pública e políticas sociais e sanitárias 1111 . Garrafa V. Da bioética de princípios a uma bioética interventiva. Bioética. 2005;13(1):125-34.

12 . Garrafa V. Dimensão da ética em saúde pública. São Paulo: Faculdade de Saúde Pública USP/ Kellogg Foundation; 1995.

13 . Schramm FR. A terceira margem da saúde. Brasília: Editora UnB; 1996.
-1414 . Garrafa V, Oselka G, Diniz D. Saúde pública, bioética e equidade. Bioética. 1997;5(1):27-33.,1616 . Garrafa V, Porto D. Intervention bioethics: A proposal for peripheral countries in a context of power and injustice. Bioethics. 2003;17(5-6):399-416.,1717 . Oliveira MF. Feminismo, raça/etnia, pobreza e bioética: a busca da justiça de gênero, antirracista e de classe. In: Garrafa V, Pessini L, organizadores. Bioética: poder e injustiça. São Paulo: Loyola; 2003. p. 345-63..

Ressalte-se que a bioética, como nova forma de valorização da vida, deve estabelecer forte relação com as questões sociais que impactam diretamente as condições de saúde das populações, em especial daquelas mais pobres, presentes tanto nos países periféricos quanto nos países centrais. Não pode ficar limitada a questões estritamente biomédicas. Questões de justiça, solidariedade, humanidade e equidade devem ser protagonistas nas análises dos conflitos bioéticos, uma vez que esses conflitos são o meio pelo qual o acesso ao bem-estar e o direito a uma vida mais digna podem se tornar realidade 1818 . Sosa Sánchez TM. Propuesta de diálogo entre bioética y pensamiento revolucionario en Latinoamérica. Revista Brasileira de Bioética. 2010;6(1-4):9-28..

Doenças negligenciadas e bioética

A breve introdução sobre a bioética e sua vinculação com questões de relevância social que persistem no histórico das populações revelou a lógica adotada neste artigo, que é estimular o diálogo entre as doenças negligenciadas e a bioética, mesmo diante das especificidades de cada área do conhecimento. Em nossa visão, três fatos fundamentais atuaram como elementos-chave no estabelecimento do diálogo entre os dois temas.

O primeiro deles é a persistência que as doenças negligenciadas ocupam no quadro da saúde, não mais restrita à situação local, e sim global 1919 . Morel CM. Inovação em saúde e doenças negligenciadas. Cad Saúde Pública. 2006 ago;22(8):1.522- 3., como mencionado anteriormente. O segundo fato é que a bioética e as doenças negligenciadas, mesmo em suas especificidades, trilham caminhos convergentes em alguns pontos. Observa-se, no histórico de ambas, a presença de questões associadas aos determinantes sociais e aos contextos da saúde, tornando-as, assim, áreas do conhecimento de caráter transdisciplinar, complexas, que precisam ser analisadas em sua totalidade 2020 . Junges JR, Zoboli ELCP. Bioética e saúde coletiva: convergências epistemológicas. Ciênc Saúde Colet. [Internet]. 2012 [acesso 10 abr 2012];17(4):1.049-60. Disponível: http://www.scielo.br/ scielo.php?pid=S1413-81232012000400026&script=sci_arttext
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Com base no pensamento de Sotolongo 2121 . Sotolongo PL. O tema da complexidade no contexto da bioética. In: Garrafa V, Kottow M, Saada A, organizadores. Bases conceituais da bioética: enfoque latino-americano. São Paulo: Gaia; 2006., podemos verificar que tanto a temática da bioética quanto a da das doenças negligenciadas têm de lidar, em suas reflexões teóricas e em suas práticas, com circunstâncias, situações e fenômenos referentes à vida e a sua sustentabilidade, os quais emanam das interações entre os seres humanos, sobretudo das interações sociais. Algumas dessas interações afetam as outras, de modo a produzir circunstâncias ou fenômenos inesperados, surpreendentes e paradoxais, para os quais nem sempre há solução prevista ou pensada, o que vem configurar o caráter complexo das duas áreas temáticas.

Pode-se dizer que são transdisciplinares, por se tratar de áreas do saber que superam as fronteiras delimitadoras das disciplinas envolvidas no estudo dos seus objetos, nos diálogos que conduzem aos novos conhecimentos, bem como ao enriquecimento recíproco de todos os agentes, em que o todo é maior que as partes 2222 . Garrafa V. Novas fronteiras bioéticas: ética no mundo globalizado – uma perspectiva do Brasil. Rev Port Bioética. 2008;6:279-90.. A transdisciplinaridade promove a superação das barreiras que marcam os limites das diversas disciplinas, ao promover o contínuo exercício de troca, o qual se traduz em distinguir, e não seccionar; associar e interligar, e não reduzir ou isolar; tornar complexo, e não simplificar 2323 . Petraglia IC. Edgar Morin: a educação e a complexidade do ser e do saber. Petrópolis: Vozes; 1995. p. 76.. As duas áreas são complexas, pois tratam de temas que envolvem a causalidade sensível ao contexto e ao entorno, no que se refere aos componentes naturais, sociais e humanos. Ou seja, trata-se de relação de causalidade sensível tanto ao que está acontecendo agora quanto à história ou ao passado desses componentes 2121 . Sotolongo PL. O tema da complexidade no contexto da bioética. In: Garrafa V, Kottow M, Saada A, organizadores. Bases conceituais da bioética: enfoque latino-americano. São Paulo: Gaia; 2006..

Cabe destacar que a complexidade permite distinguir as qualidades emergentes da interação entre as partes e suas relações com o todo, projetando-se para além do clássico modelo determinista, ao captar, desse ponto em diante, a noção de desordem, imprevisibilidade, erro e caos como fomentadores da evolução e das mudanças 2424 . Garrafa V. Multi-inter-transdisciplinaridade, complexidade e totalidade concreta em bioética. In: Garrafa V, Kottow M, Saada A, organizadores. Op. cit.. Para Morin 2525 . Morin E. Ciência com consciência. Rio de Janeiro: Bertrand Brasil; 1996. Parte 2, Para o pensamento complexo. p. 175-341., enfrentar a complexidade do real significa confrontar-se com os paradoxos da ordem/desordem, da parte/todo, do singular/geral; incorporar o acaso e o particular como componentes de análise científica, integrando a natureza singular e evolutiva do mundo à sua natureza acidental e factual.

De acordo com Garrafa 2424 . Garrafa V. Multi-inter-transdisciplinaridade, complexidade e totalidade concreta em bioética. In: Garrafa V, Kottow M, Saada A, organizadores. Op. cit., todos os elementos conceituais anteriormente apresentados podem ser trabalhados segundo critérios adequados, contribuindo para a construção de um pensamento bioético novo, amplo e comprometido com as questões éticas persistentes, verificadas, em sua grande maioria, na realidade dos países periféricos. Como decorrência dessa constatação, levanta-se o terceiro e último fato determinante para o diálogo estabelecido neste artigo. A complexidade e a transdisciplinaridade das duas áreas estimularam a bioética a adotar postura mais crítica e politizada acerca das questões éticas que envolvem os determinantes sociais da saúde em contextos sociais que, em geral, congregam populações excluídas com alto grau de vulnerabilidade social, como é o caso daqueles locais onde existem doenças e doentes negligenciados.

Diante do que se expôs, é possível afirmar que, no atual estágio em que se encontra a humanidade, a tolerância para com as consequências provenientes do legado das doenças negligenciadas tem-se tornado algo inaceitável. O paradoxo é explícito. Com o avanço da engenharia genética passa-se a conviver com o tratamento de doenças até então incuráveis, mas logo ali ao lado existem indivíduos vivendo em condições subumanas, com total predisposição em contrair doenças que não precisariam mais ocorrer.

Como indicado, o lócus de preferência das doenças negligenciadas são os contextos deixados para trás pelo progresso socioeconômico; consequentemente, são contextos que vivem à margem do desenvolvimento científico e tecnológico alcançado pela humanidade nos últimos anos. Observa-se que a relação estabelecida entre miséria e doenças negligenciadas tem agravado ainda mais o quadro de pobreza de várias populações ao redor do planeta. Ou seja, pode-se considerar a pobreza, simultaneamente, como ponto de partida e resultado final das doenças negligenciadas 2626 . Franco-Paredes C, Santos-Apreciado JI. Freedom, justice and neglected tropical diseases. PLoS negl Trop Dis. 2011;5(8):E1.235.. Para Pogge 2727 . Pogge T. World poverty and human rights. Cambridge, Reino Unido: Polity Press; 2002. p. 169. e Luna 2828 . Luna F. Poverty and inequality: challenges for the IAB: IAB presidential address. Bioethics. 2005 out;19(5-6):451-9., a pobreza deve ser vista como violação dos direitos humanos, principalmente quando causada por muitos dos países ricos ou centrais em sua perversa atuação sobre os países pobres ou periféricos.

O denominador comum do indivíduo pobre e excluído é o desamparo, condição vital em que se necessita proteção e, ainda, dos meios para obtê-la, de modo a evitar o progressivo agravamento ou a cronicidade da exclusão e da pobreza, que tendem a ocorrer na falta de ajuda externa. A sinergia negativa entre pobreza e doença requer proteção, que deve estar disponível e acessível como função protetora do Estado, estabelecendo-se como direito moral que se estende mais além, de acordo com a doutrina política vigente 6. Kottow M. Bioética de proteção: considerações sobre o contexto latino-americano. In: Schramm FR, Rego S, Braz M, Palácios M, organizadores. Bioética: risco e proteção. 2ª ed. Rio de Janeiro: Editora UFRJ/Editora Fiocruz; 2009..

Em nossa visão, o conflito bioético atrelado à temática das doenças negligenciadas, além de relevante, torna-se fato concreto diante de sua magnitude. Isso é confirmado quando se verifica que as doenças negligenciadas, além de acometer 80% da população dos países periféricos, também ocasionam milhões de óbitos por ano. Estima-se que, para o enfretamento desse mal que se perpetua na história da humanidade, é necessário contar com arsenal terapêutico correspondente a 20% da produção do mercado farmacêutico mundial 2929 . Souza Oliveira LS. As doenças negligenciadas e nós. Saúde Coletiva. [Internet]. 2009 mar;6(28):40- 1. [acesso 30 ago 2012]. Disponível: http://www.redalyc.org/pdf/842/84202802.pdf
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No entanto, quando se trata de ações voltadas para o enfrentamento das doenças negligenciadas pela indústria farmacêutica mundial, o que se observa é que essa indústria geralmente destina a maior parte de seu arsenal terapêutico às demandas do mercado, deixando em segundo plano as necessidades dos milhares de excluídos acometidos ou expostos a doenças presentes apenas na realidade sanitária dos países periféricos 3030 . Garrafa V, Lorenzo C. Ética e investigación clínica en los países en desarrollo: aspectos conceptuales, técnicos y sociales. I Curso a Distancia de Ética en la Investigación. Módulo IV. Córdoba, Argentina: Red Latino-Americana y del Caribe de Bioética de UNESCO; 2006.. Estudo sobre a realização de pesquisas voltadas para as doenças negligenciadas envolvendo as principais indústrias farmacêuticas mundiais observou que apenas 1% do orçamento anual de algumas delas era destinado a financiar estudos que contemplam essas doenças 3131 . Trouiller P, Olliaro P, Torreele E, OrbinskiI J, Laing R, Ford N. Drug development for neglected diseases: A deficient market and public-health policy failure. The Lancet. 2002;359(9.324):2.188- 94..

Corroborando a situação anteriormente descrita, dos milhares de medicamentos novos lançados nos últimos 25 anos, verifica-se que percentual muito baixo (menos de 1%) destinou-se ao tratamento das doenças relacionadas à pobreza 2929 . Souza Oliveira LS. As doenças negligenciadas e nós. Saúde Coletiva. [Internet]. 2009 mar;6(28):40- 1. [acesso 30 ago 2012]. Disponível: http://www.redalyc.org/pdf/842/84202802.pdf
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. Ou seja, os dados apontados demonstram e confirmam que as doenças negligenciadas não representam mercado atraente para a indústria farmacêutica, sobretudo pelo fato de seu público-alvo geralmente não dispor de recursos para adquirir tais medicamentos 3232 . Oprea L, Braunack-Mayer A, Gericke CA. Ethical issues in funding research and development of drugs for neglected tropical diseases. Journal of Medical Ethics. [Internet]. 2009; [acesso 4 abr 2014]. 35(10): 310-4. DOI: 10.1136/jme.2008.027078
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Cabe ressaltar que, no período compreendido entre os anos de 1975 e 2004, foram desenvolvidos 1.556 novos medicamentos, dos quais apenas 21 eram destinados às doenças negligenciadas 3333 . Chirac P, Torreele E. Global framework on essential health R&D. The Lancet. [Internet] maio 2006 [acesso 22 maio 2014]; 367 (9.522): 1.560-1. Disponível: http://www.thelancet.com/journals/lancet/article/PIIS0140-6736(06)68672-8/fulltext
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. Além disso, entre 2000 e 2005, nenhuma das vinte empresas farmacêuticas de maior faturamento bruto mundial lançou no mercado um único medicamento sequer para o tratamento de doenças relacionadas à pobreza, que acometem em maior escala as populações dos países periféricos 3434 . Andrade de Oliveira E, Labra ME, Bermudez JAZ. A produção pública de medicamentos no Brasil: uma visão geral. Caderno de Saúde Pública. 2006 nov.; Cad. Saúde Pública, 22(11):2.379-89..

Tal fato é confirmado quando Franco-Paredes e Santos-Apreciado 2626 . Franco-Paredes C, Santos-Apreciado JI. Freedom, justice and neglected tropical diseases. PLoS negl Trop Dis. 2011;5(8):E1.235. asseveram que muitos indivíduos socialmente excluídos, contando com poucas opções e raras oportunidades de impedir o próprio adoecimento, não recebem tratamento para evitar a incapacidade e as mortes prematuras causadas pelas doenças relacionadas à pobreza. Portanto, com base nessas necessidades, o Estado, como agente promotor do bem-estar social, junto com a sociedade organizada, deve intervir na tentativa de eliminar ou reduzir ao mínimo possível as diferenças que, apesar de desnecessárias, evitáveis e injustas 3535 . Fortes PAC. Como priorizar recursos escassos em países em desenvolvimento. In: Garrafa V, Pessini L, organizadores. Op. cit. p. 103-112., se evidenciam no cotidiano e no histórico das populações pobres e marginalizadas.

Schramm 3636 . Schramm FR. Bioética da proteção: ferramenta válida para os problemas morais na era da globalização. Rev. bioét. (Impr.). 2008; 16(1): 11-23. também afirma que a pobreza extrema torna as pessoas reféns, vítimas cujas liberdades fundamentais foram sequestradas, impedindo-as de realizar seus projetos de vida, uma vez que são obrigadas a viver em condições que as privam da competência para alcançar uma vida objetiva e subjetivamente digna. Tais indivíduos e populações podem ser considerados afetados, vulnerados 3737 . Schramm FR, Kottow M. Principios bioéticos en salud pública: limitaciones y propuestas. Cad. Saúde Pública. 2001; 17(4):949-56. e excluídos pelo processo de globalização em curso, enquadrando-se nas características básicas daqueles que estão predispostos a desenvolver algum tipo de doença negligenciada. Dessa forma, é possível pensar a bioética como práxis capaz não apenas de explicitar e debater conflitos morais na intenção de proteger indivíduos e coletividades contra ameaças que podem prejudicar de maneira irreversível suas existências, mas também de recomendar estratégias para o enfrentamento das iniquidades.

Além disso, a bioética deve reforçar, por meio de seu discurso, que a assistência à saúde não pode ser comparada com uma mercadoria a ser comprada e vendida de qualquer maneira no mercado 3535 . Fortes PAC. Como priorizar recursos escassos em países em desenvolvimento. In: Garrafa V, Pessini L, organizadores. Op. cit. p. 103-112.,3838 . Semplici S. Um direito fundamental: o mais elevado padrão de saúde. In: Porto D, Garrafa V, Martins GZ, Barbosa SN, organizadores. Op. cit. p. 323-40.. Na medida em que tais fatos tendem a acontecer, caminha-se para a exclusão, o distanciamento e o isolamento daqueles grupos populacionais que foram privados dos benefícios proporcionados pelo desenvolvimento 3939 . Garrafa V, Prado MM. Tentativas de mudanças na Declaração de Helsinki: fundamentalismo econômico, imperialismo ético e controle social. Cad Saúde Pública. 2001;17(6): 1.489-96..

Para Farmer e Campos 4040 . Farmer P, Campos NG. Rethinking medical ethics: a view from below. Dev World Bioeth. 2004 maio; 4(1):17-41., os avanços da ciência no campo da saúde ocorrem de maneira dessemelhante, conforme cada contexto social, fazendo com que os frutos desse avanço não estejam disponíveis aos que mais precisam. Ainda de acordo com esses autores, tanto o direito à saúde quanto o direito à participação nos avanços científicos são explicitamente díspares quando se comparam os países centrais e os países periféricos. Na visão de Garrafa 4141 . Garrafa V. Ampliação e politização do conceito internacional de bioética. Rev. bioét. (Impr.). 2012; 20(1): 9-20., é indispensável que uma nova bioética, mais dinâmica e mais politizada, construa e coloque à disposição das localidades mais necessitadas de bens de consumo mínimos para a sobrevivência humana um conjunto de ferramentas concretas, oriundas da teoria e do método científico, as quais possibilitem a obtenção da devida dignidade, que por muitas vezes a tantos foi negada. Nesse sentido, o acesso universalizado à saúde torna-se uma pauta obrigatória na nova agenda bioética do século XXI, visto como direito, cidadania, cabendo ao poder público prover o mínimo necessário para que as pessoas vivam condignamente.

Aos olhos do mundo, as doenças negligenciadas continuam imprimindo a sua marca e fazendo cada vez mais vítimas por meio da desfiguração, do estigma, da incapacidade e da morte prematura 2525 . Morin E. Ciência com consciência. Rio de Janeiro: Bertrand Brasil; 1996. Parte 2, Para o pensamento complexo. p. 175-341.. Os grupos mais suscetíveis, tanto na frequência como na magnitude das lesões, são invariavelmente os que estão em desvantagem socioeconômica 4242 . Lorenzo C. Vulnerabilidade em saúde coletiva: implicações para as políticas públicas. Revista Brasileira de Bioética. 2006; 2(3): 299-312.. Basta observar que, em virtude de doenças como a oncocercose e o tracoma, indivíduos desenvolvem cegueira; que a lepra e a filariose linfática os tornam deformados, limitando sua vida social e sua produtividade. Deformidades e amputações ainda acontecem como meio de evitar a morte de indivíduos acometidos por úlcera de Buruli; a tripanossomíase humana africana (doença do sono) debilita gravemente, antes de levar à morte; a hidrofobia, que provoca encefalite aguda, é sempre fatal; a leishmaniose deixa cicatrizes profundas e permanentes ou destrói totalmente as membranas mucosas do nariz, da boca e da garganta, e, em sua forma mais grave, ataca os órgãos internos, levando rapidamente à morte se não for tratada a tempo; a doença de Chagas pode causar problemas cardíacos em adultos jovens, ocupando leitos de hospital ao invés de postos no mercado de trabalho; a esquistossomose severa impede a frequência à escola, pois contribui para a desnutrição e prejudica o desenvolvimento cognitivo das crianças 4343 . World Health Organization. First WHO report neglected tropical diseases: working to overcome the global impact of neglected tropical diseases. [Internet]. WHO/HTMA/NTD/2010.1. Geneva; 2010 [acesso 10 jun 2013]; Disponível: http://www.who.int/neglected_diseases/2010report/en/
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Em outras palavras, o corpo, na condição de espelho para o flagelo das doenças negligenciadas, deve ser reconhecido como parâmetro de intervenção ética que não se limita à dimensão fisiológica. É no corpo que se identifica e se incorpora a dimensão social, ou seja, a articulação das dimensões físicas e psíquicas que se manifestam de maneira integrada tanto nas relações sociais quanto nas relações com o meio. Ao considerar o corpo físico como estrutura de suporte da vida social, pois sem ele a vida social não se concretiza, o conceito de corporeidade e a consequente manutenção da existência concreta das pessoas passam a ser marcos de intervenção ética 4444 . Porto D, Garrafa V. Bioética de intervenção: considerações sobre economia de mercado. Rev. Bioética. [Internet]. 2005 [acesso 22 maio 2014]; 13(1): 111-23. Disponível: http://revistabioetica.cfm.org.br/index.php/revista_bioetica/article/viewArticle/96
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Inúmeras marcas que se apresentam no corpo e na vida dos indivíduos tornam-se claros exemplos do grau de sujeição de determinados indivíduos e coletividades à condição de negligência. Outro fato que salta aos olhos e deve ser levado ao debate é a impossibilidade de dissociar a dimensão biológica da doença do contexto social que a cerca, já que, na maioria dos casos, ambos ocorrem de maneira concomitante. Para Porto e Garrafa 4545 . Porto D, Garrafa V. A influência da reforma sanitária na construção das bioéticas brasileiras. Ciência e Saúde Coletiva. [Internet]. 2011 [acesso 22 maio 2014]; 16(Supl.1): 719-29. Disponível: http://www.scielo.br/scielo.php?script=sci_arttext&pid=S1413-81232011000700002
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, os atores sociais produzem e reproduzem a dinâmica da sociedade em seus corpos e em suas vidas, fato que reforça a proposta deste artigo.

A compreensão do ser humano como simultaneamente biológico, social, cultural e simbólico torna-se mais concreta a partir de uma ampla abordagem da doença. As condições de vida dos indivíduos e da coletividade determinam as suas condições de saúde, que por sua vez devem ser estudadas em uma perspectiva ampla, levando em consideração não só os elementos biológicos, mas também os elementos sociais, culturais e simbólicos 4646 . Samaja JA. A reprodução social e a saúde. Salvador: Ed. Casa de Qualidade; 2000.,4747 . Samaja JA. Epistemologia de la saúde: Reproducción social, subjetividade y transdiciplina. Buenos Aires: Lugar Social; 2004.. Nesse sentido, verificamos que a bioética – como área do conhecimento transdisciplinar, complexa, vinculada às questões atinentes à vida, à saúde e ao meio ambiente – tem a capacidade de proporcionar análises de maior clareza e transparência, revelando os pressupostos que movem os saberes e as práticas em saúde. Ou seja, por meio de sua mediação, de seu debate ético, almeja-se promover a ética do conhecimento, que, no caso das doenças negligenciadas, se torna peça-chave para a reversão de sua condição.

Na atualidade, ao se discutir transplantes, implantes e Projeto Genoma, que prolongam a vida, é necessário atentar também para a persistente necessidade de encontrar solução para doenças relacionadas à pobreza, como a malária, dengue, hanseníase e tantas outras que ainda ceifam vidas precocemente em grande parte do mundo, e que se mantêm epidêmicas para as populações mais vulneráveis e mais pobres 4848 . Fortes ACF, Carvalho RRP, Tittanegro GR, Pedalini LM, Sacardo DP. Bioética e saúde global: um diálogo necessário. Rev. bioét. (Impr.). [Internet]. 2012; 20(2): 219-25. [acesso 10 jun 2013]; Disponível: http://revistabioetica.cfm.org.br/index.php/revista_bioetica/article/view/742
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Para isso, a bioética deve estimular o diálogo com esses problemas a partir do princípio da justiça, da equidade e da solidariedade, haja vista a necessidade de sensibilização para com o sofrimento alheio, a fim que se possam compartilhar recursos de maneira legítima, enfatizando a necessidade de proporcionar condições menos desiguais; só assim se promove o acesso a bens e serviços sem os quais é impossível vislumbrar um futuro mais justo 4848 . Fortes ACF, Carvalho RRP, Tittanegro GR, Pedalini LM, Sacardo DP. Bioética e saúde global: um diálogo necessário. Rev. bioét. (Impr.). [Internet]. 2012; 20(2): 219-25. [acesso 10 jun 2013]; Disponível: http://revistabioetica.cfm.org.br/index.php/revista_bioetica/article/view/742
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. É compreendendo criticamente a realidade que se pode interpretar o passado e projetar um futuro digno para todos 2020 . Junges JR, Zoboli ELCP. Bioética e saúde coletiva: convergências epistemológicas. Ciênc Saúde Colet. [Internet]. 2012 [acesso 10 abr 2012];17(4):1.049-60. Disponível: http://www.scielo.br/ scielo.php?pid=S1413-81232012000400026&script=sci_arttext
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Considerações finais

Diante dos fatos até aqui apresentados, verifica-se que o conflito bioético que circunda e se adentra no tema das doenças negligenciadas está posto e clama pela reversão de sua condição. Tal afirmação corrobora com o fato de que, por se tratar de ética aplicada, voltada para as questões atinentes à vida, a bioética pode e deve ser utilizada como instrumento de mediação, com poder de impulsionar o processo de reversão da condição que se apresenta no histórico de muitas doenças transmissíveis, diretamente relacionadas com as condições de vida presentes sobretudo nas populações dos países periféricos.

Julgamos que o diálogo do tema das doenças negligenciadas com a bioética fundamenta-se tanto pelos referenciais da própria bioética, que estão dispostos a desnudar os verdadeiros problemas de iniquidades persistentes no mundo contemporâneo, quanto por referenciais que se propõem a efetivar a saúde como direito fundamental do ser humano, pondo em prática a definição proposta no artigo 14 da Declaração Universal sobre Bioética e Direitos Humanos da Unesco 2. Organização das Nações Unidas para Educação, a Ciência e a Cultura. Declaração Universal sobre Bioética e Direitos Humanos [internet]. Genebra: Unesco; 2005 [acesso 30 ago 2012]. Disponível: http://unesdoc.unesco.org/images/0014/001461/146180por.pdf
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O referido artigo da DUBDH, além de definir que a promoção da saúde e do desenvolvimento social deve ser objeto central de qualquer governo democrático, considera que usufruir o mais alto padrão de saúde constitui um dos direitos fundamentais do ser humano e que, para isso, o acesso a cuidados de saúde de qualidade e a medicamentos essenciais deve ser garantido a todas as pessoas, especialmente os cuidados e medicamentos voltados para o tratamento e a manutenção da saúde de mulheres e crianças, uma vez que a saúde é essencial à vida em si, devendo ser considerada como bem social humano 2. Organização das Nações Unidas para Educação, a Ciência e a Cultura. Declaração Universal sobre Bioética e Direitos Humanos [internet]. Genebra: Unesco; 2005 [acesso 30 ago 2012]. Disponível: http://unesdoc.unesco.org/images/0014/001461/146180por.pdf
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Para finalizar, verifica-se que as bases que compõem as reflexões e os discursos dos autores utilizados na construção do presente artigo estão em grande parte fundamentadas no discurso bioético determinado a suplantar as injustiças sociais e sanitárias e as assimetrias estabelecidas entre aqueles que detêm o poder e os que não têm poder algum, provenientes, na maioria das vezes, de situações persistentes que ainda acometem a humanidade.

Nesse sentido, constata-se que as visões trazidas para este artigo, em geral desenvolvidas por autores que rejeitam o modo de tratamento insensível e indiferente dedicado por muitos a um problema cujo impacto se reflete na vida de milhões de pessoas, estão pautadas no compromisso da construção de uma bioética participativa e engajada, com vistas à superação dos indesejáveis e persistentes problemas presentes nos países periféricos.

Portanto, a atuação da bioética na superação do pesado ônus causado pelo flagelo das doenças negligenciadas, além de amplificar, por meio de seu discurso, a voz daqueles que se encontram sem visibilidade, deve rechaçar as possíveis causas que privam indivíduos – principalmente aqueles que se encontram em estado de vulnerabilidade social – do acesso a cuidados de saúde de qualidade e a medicamentos que sejam essenciais a sua sobrevivência.

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  • Trabalho desenvolvido a partir de tese de doutoramento no âmbito do Programa de Pós-Graduação em Bioética da Universidade de Brasília, Brasília/DF, Brasil.

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    Jan-Apr 2015

Histórico

  • Recebido
    17 Out 2014
  • Revisado
    06 Mar 2015
  • Aceito
    09 Mar 2015
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