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Considerações médicas, éticas e jurídicas sobre decisões de fim de vida em pacientes pediátricos

Resumo

A partir do caso do bebê Charlie Gard, discutem-se aspectos relativos à tomada de decisão médica em pediatria, sobretudo em relação a pacientes portadores de doenças incuráveis e terminais. Foram considerados princípios bioéticos e do cuidado paliativo, além de questões jurídicas relacionadas a autoridade parental e obstinação terapêutica, sob a perspectiva do ordenamento jurídico brasileiro. O processo de tomada de decisões referentes a cuidado de fim de vida em pediatria deve contemplar compartilhamento de responsabilidades entre equipe de saúde e pais, com a participação da criança sempre que possível, buscando o princípio do melhor interesse. Deve-se evitar a judicialização de questões médicas, situação associada a desgaste e sofrimento de todas as partes envolvidas. Conclui-se que a tomada de decisão de final de vida em pediatria deve se pautar na busca do direito a viver com dignidade, mas, sobretudo, de mantê-la até o fim.

Doenças mitocondriais; Cuidados paliativos; Bioética; Tomada de decisões; Futilidade médica

Abstract

To discuss, in the case of the baby Charlie Gard, aspects to be considered in medical decision making in pediatrics, especially in patients with incurable and terminal diseases. Bioethical principles and Palliative Care were considered, as well as legal issues related to parental authority and therapeutic obstinacy, from the perspective of the Brazilian legal system. Decisions related to end-of-life care in pediatrics should be a process of sharing responsibilities between the health team and parents, with the participation of the child whenever possible, seeking the principle of the best interest. Judicialization of medical issues must be avoided, as it is associated with attrition and suffering for all parties involved. End-of-life decision-making in pediatrics should be based on the search for the right to live with dignity, but, above all, to maintain it until the end of life.

Mitochondrial diseases; Palliative care; Bioethics; Decision making; Medical futility

Resumen

A partir del caso del bebé Charlie Gard, se discuten aspectos relativos a la toma de decisiones médicas en pediatría, sobre todo en pacientes portadores de enfermedades incurables y terminales. Se consideraron los principios bioéticos y de los cuidados paliativos, además de las cuestiones jurídicas relacionadas con la autoridad parental y la obstinación terapéutica, desde la perspectiva del ordenamiento jurídico brasileño. El proceso de toma de decisiones referidas a los cuidados en el fin de la vida en pediatría debe contemplar responsabilidades compartidas entre el equipo de salud y los padres, con la participación del niño siempre que sea posible, buscando el principio del mejor interés. Se debe evitar la judicialización de cuestiones médicas, situación asociada a desgaste y sufrimiento para todas las partes involucradas. Se concluye que la toma de decisión de final de vida en pediatría debe guiarse por la búsqueda del derecho a vivir con dignidad, pero, sobre todo, de mantenerla hasta el final de la vida.

Enfermedades mitocondriales; Cuidados paliativos; Bioética; Toma de decisiones; Inutilidad médica

A evolução da medicina, com toda a tecnologia médica disponível, ao mesmo tempo que permite diagnóstico acurado e tratamento precoce de número cada vez maior de doenças, altera a história natural dessas enfermidades, o que torna o prognóstico tarefa mais complexa. Teremos maior arsenal de possibilidades para manter a vida, mas ainda sabemos muito pouco sobre as consequências de nossas ações ao empregá-lo. O que representa para as famílias, em médio e longo prazos, optar pelo uso de equipamentos de suporte artificial de vida capazes de substituir de forma permanente função vital, como a respiratória, mas que não sejam capazes de curar a doença em si? 11. Beauchamp TL, Childress JF. Princípios de ética biomédica. São Paulo: Loyola; 2002.

O aumento da disponibilidade de recursos tecnológicos para a manutenção da vida de crianças com doenças incuráveis tem potencializado conflitos entre equipe de saúde e família. Isso causa, por vezes, transferência do poder decisório para o Poder Judiciário, geralmente com consequências desastrosas para todas as partes envolvidas. No primeiro semestre de 2017, o caso do bebê inglês Charlie Gard, acometido por doença genética grave, progressiva e incurável, provocou discussões ao redor do mundo, envolvendo diferentes áreas do conhecimento, incluindo medicina, direito e bioética.

O objetivo deste artigo é utilizar o caso do bebê Charlie Gard para discutir, de forma crítica, aspectos a serem considerados na tomada de decisão médica em pediatria, notadamente em casos de pacientes graves, portadores de doenças incuráveis e terminais. Para tanto, será analisada a aplicação dos princípios bioéticos da autonomia, beneficência, não maleficência e justiça 11. Beauchamp TL, Childress JF. Princípios de ética biomédica. São Paulo: Loyola; 2002., dos princípios do cuidado paliativo e das questões jurídicas envolvidas, principalmente quanto a autoridade parental e obstinação terapêutica, sob a perspectiva do ordenamento jurídico brasileiro.

Breve relato do caso Charlie Gard

Charlie Gard nasceu a termo, aparentemente saudável, em 4 de agosto de 2016. Com poucas semanas de idade, seus pais, Chris Gard e Connie Yates, perceberam os primeiros sinais de fraqueza muscular. Aos dois meses, ele foi internado no Great Ormond Street Hospital em Londres, com dificuldade para se alimentar, hipoatividade e insuficiência respiratória. Iniciaram-se cuidados intensivos e investigações levaram ao diagnóstico de distúrbio mitocondrial grave e raro: síndrome de depleção de DNA mitocondrial.

No início de 2017, os pais de Charlie identificaram tratamento experimental que consistia na suplementação de nucleosídeos que teoricamente substituiriam a função do DNA danificado, reduzindo os efeitos bioquímicos e clínicos da doença. Apesar de esse tipo de tratamento não ter sido, até então, utilizado em pacientes com o subtipo da mutação genética que ocasionava a doença de Charlie, os médicos inicialmente consideraram a possibilidade de utilizá-lo. No entanto, ainda em janeiro de 2017, Charlie apresentava evidências de crises convulsivas e deterioração da função encefálica, e os médicos ficaram convencidos de que o tratamento, tanto a terapia intensiva contínua com suporte avançado de vida quanto a terapia com reposição de nucleosídeos, seria inútil.

Um médico norte-americano envolvido na pesquisa de nucleosídeos ofereceu-se para tratar Charlie, e, nesse período, mediante campanhas, os pais da criança arrecadaram recursos financeiros necessários para custear o tratamento e o transporte de Charlie para os Estados Unidos (EUA).

Contudo, os médicos que cuidavam do paciente consideraram que a transferência e submissão ao tratamento eram contrárias ao melhor interesse da criança, uma vez que a doença se encontrava em estágio muito avançado.

Em 28 de fevereiro, os médicos solicitaram à Divisão de Família do Tribunal Superior de Justiça de Londres permissão para retirar o suporte avançado artificial de vida e prestar cuidados paliativos exclusivos a Charlie. Apesar de os pais de Charlie não concordarem com essa decisão, no dia 11 de abril o juiz Francis decidiu a favor do hospital 22. United Kingdom. High Court of Justice. Family Division. Case no. FD17P00103 [Internet]. 11 abr 2017 [acesso 21 nov 2017]. Disponível: https://goo.gl/FFfg5t
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. A família de Charlie apelou e a decisão foi revisada e confirmada pela Corte de Apelação em 23 de maio 33. United Kingdom. Court of Appeal. Civil Division. Case no. B4/2017/1236/PTA+A [Internet]. 23 maio 2017 [acesso 21 nov 2017]. Disponível: https://goo.gl/iWjpWw
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, na Suprema Corte em 8 de junho 44. United Kingdom. Supreme Court. In the matter of Charlie Gard [video] [Internet]. 2017 [acesso 21 nov 2017]. Disponível: https://goo.gl/jDMMCP
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e na Corte Europeia de Direitos Humanos 55. European Court of Human Rights. Application no. 39793/17: Charles GARD and Others against the United Kingdom [Internet]. 27 jun 2017 [acesso 21 nov 2017]. Disponível: https://goo.gl/TnjTR2
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em 20 de junho. Com todas as vias legais esgotadas, foram feitos planos para retirar o suporte artificial de vida, segundo a recomendação médica.

O caso despertou atenção da sociedade e da mídia ao redor do mundo, a ponto de o presidente dos Estados Unidos da América, Donald Trump, e o Papa Francisco fazerem declarações públicas de apoio aos pais de Charlie. Além disso, vários especialistas internacionais em medicina e ciências apresentaram propostas de tratamento com evidências aparentemente novas, alegando que as chances de Charlie se beneficiar com a terapia com nucleosídeos pudessem ser maiores do que o que havia sido dito até aquele momento.

Em 10 de julho, o Great Ormond Street Hospital resolveu apresentar essas novas evidências ao Tribunal Superior de Londres, que ordenou que o especialista em doença mitocondrial dos EUA avaliasse o bebê Charlie em Londres. Após reunião multidisciplinar e novas provas da acentuada gravidade da doença de Charlie, incluindo resultados de ressonância magnética, em 24 de julho os pais aceitaram que o tratamento experimental pudesse não trazer benefícios ao bebê e decidiram acatar a indicação do Great Ormond Street Hospital.

Os pais de Charlie solicitaram, então, que o bebê fosse transferido para casa a fim de que pudesse estar perto da família e em seu próprio quarto nos momentos finais de vida. Entretanto, por motivos não divulgados na mídia, o hospital negou que o bebê fosse levado para casa. O bebê Charlie foi transferido a instituição de cuidados paliativos onde foi submetido à retirada do suporte artificial que mantinha sua respiração e morreu em 28 de julho.

Aspectos médicos do caso

Como descrito, o bebê Charlie Gard era portador de doença mitocondrial, alteração adquirida geneticamente que determina disfunções expressivas do funcionamento de seus órgãos e tecidos e afeta de forma contundente a sobrevida. A doença mitocondrial é causada pelo mau funcionamento das mitocôndrias, organelas presentes no citoplasma das células de todos os tecidos do corpo humano. Executam papel fundamental no metabolismo da energia celular por meio da cadeia respiratória, produzindo mais de 90% da adenosina trifosfato (ATP) necessária para a execução dos processos biológicos celulares 66. Moggio M, Colombo I, Peverelli L, Villa L, Xhani R, Testolin S et al. Mitochondrial disease heterogeneity: a prognostic challenge. Acta Myol. 2014;33(2):86-93..

A cadeia respiratória é formada por grupo de cinco complexos enzimáticos situados na membrana interna da mitocôndria que participam de reações químicas em cadeia cujo processo global denomina-se fosforilação oxidativa. Esse processo é crucial não apenas para a produção de energia em forma de ATP, mas, também, para a formação e detoxificação de radicais livres importantes para a sobrevivência e programação da morte celular.

A maior parte das proteínas que atuam na cadeia respiratória é codificada pelo DNA celular (DNAn), mas algumas delas o são pelo DNA mitocondrial (DNAmt). Por isso, para que a cadeia respiratória funcione normalmente, tanto o sistema genético celular quanto o mitocondrial devem estar íntegros e funcionando em conjunto. Alterações no DNAn ou no DNAmt provocam modificações no complexo fosforilativo da respiração celular, comprometendo a síntese e o transporte de proteínas mitocondriais, além de alterar a capacidade de síntese e renovação de nucleosídeos do genoma mitocondrial 77. Dimmock DP, Lawlor MW. Presentation and diagnostic evaluation of mitochondrial disease. Pediatr Clin North Am. 2017;64(1):161-71..

As mitocondriopatias estão presentes em cerca de um em cada 5 mil indivíduos e, por se originarem em alterações tanto do DNAn quanto do DNAmt, podem ter diferentes padrões de herança genética: materna, autossômica recessiva ou autossômica dominante. O fato de as mitocôndrias estarem presentes em todos os tecidos do corpo humano confere a essas doenças caráter multissistêmico, comprometendo vários órgãos e tecidos simultaneamente, e curso progressivo. Há grande quantidade de doenças mitocondriais geneticamente distintas, cada uma delas caracterizada por diferentes sinais e sintomas 66. Moggio M, Colombo I, Peverelli L, Villa L, Xhani R, Testolin S et al. Mitochondrial disease heterogeneity: a prognostic challenge. Acta Myol. 2014;33(2):86-93..

As manifestações clínicas podem variar e dependem dos órgãos que estão predominantemente acometidos. Tendem a ser mais pronunciados sinais e sintomas decorrentes da disfunção em órgãos e tecidos com maior demanda energética, como músculos, cérebro, fígado, coração e rins. As principais manifestações clínicas são: fraqueza muscular, neuropatia periférica, encefalopatia, atraso do desenvolvimento neuropsicomotor, convulsões de difícil controle, cegueira cortical, oftalmoplegia e insuficiência hepática 88. El-Hattab AW, Scaglia F. Mitochondrial DNA depletion syndromes: review and updates of genetic basis, manifestations, and therapeutic options. Neurotherapeutics. 2013;10(2):186-98.

9. Stojanovic V, Mayr JA, Sperl W, Barišić N, Doronjski A, Milak G. Infantile peripheral neuropathy, deafness, and proximal tubulopathy associated with a novel mutation of the RRM2B gene: case study. Croat Med J. 2013;54(6):579-84.

10. Gorman GS, Taylor RW. RRM2B-related mitochondrial disease. In: Adam MP, Ardinger HH, Pagon RA, Wallace SE, editors. GeneReviews [Internet]. Seattle: University of Washington; 2014 [acesso 17 jun 2017]. Disponível: https://goo.gl/onQF5r
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-1111. Nogueira C, Almeida LS, Nesti C, Pezzini I, Videira A, Vilarinho L et al. Syndromes associated with mitochondrial DNA depletion. Ital J Pediatr [Internet]. 2014 [acesso 17 abr 2014];40:34.Disponível: https://goo.gl/TtULaz
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.

A primeira mitocondriopatia foi relatada em 1959, e a descoberta de que as mitocôndrias têm DNA próprio aconteceu em 1963. No entanto, somente em 1981 a sequência nucleotídica do DNA mitocondrial humano foi plenamente desvendada 1212. Nasseh IE, Tengan CH, Kiyomoto BH, Gabbai AA. Doenças mitocondriais. Rev Neurociênc. 2001;9(2):60-9.. Em 1989 foram relatadas as primeiras doenças relacionadas a alterações desse DNA.

Existem diferentes alterações genéticas que provocam a síndrome de depleção do DNA mitocondrial caracterizada pela redução de cópias de DNAmt e consequente disfunção da mitocôndria nos tecidos acometidos. Charlie Gard era portador de um dos subtipos mais graves da doença, relacionado à mutação do gene mitocondrial RRM2B, alteração genética extremamente rara. Os portadores dessa mutação desenvolvem durante os primeiros meses de vida fraqueza muscular intensa associada a insuficiência respiratória, microcefalia, atraso no desenvolvimento neurológico, crises convulsivas de difícil controle, surdez e mau funcionamento renal. A doença progride rapidamente, provocando a morte após poucos meses 88. El-Hattab AW, Scaglia F. Mitochondrial DNA depletion syndromes: review and updates of genetic basis, manifestations, and therapeutic options. Neurotherapeutics. 2013;10(2):186-98..

A grande diversidade de sintomas, o envolvimento de diferentes órgãos e os diversos modos de progressão da doença são um desafio para o desenvolvimento de intervenções terapêuticas eficazes 1313. Viscomi C. Toward a therapy for mitochondrial disease. Biochem Soc Trans. 2016;44(5):1483-90.. Além disso, por se tratarem de alterações genéticas distintas e extremamente raras, é muito difícil elaborar ensaios clínicos controlados envolvendo número adequado de pacientes que permita o estudo de alternativas terapêuticas.

Existe um pequeno grupo de doenças mitocondriais para as quais existe indicação de suplementação com vitaminas ou cofatores, como a suplementação de Coenzima Q10 para defeitos de biossíntese dessa molécula ou suplementação de riboflavina, biotina e tiamina para alterações de deficiência específica dessas vitaminas 1414. Davison JE, Rahman S. Recognition, investigation and management of mitochondrial disease. Arch Dis Child. 2017;102(11):1082-90.. Apesar disso, recente revisão da Cochrane Review Groups 1515. Pfeffer G, Majamaa K, Turnbull DM, Thorburn D, Chinnery PF. Treatment for mitochondrial disorders. Cochrane Database Syst Rev. 2012;(4):CD004426. conclui que até este momento não há evidência que justifique qualquer intervenção farmacológica específica em pacientes portadores de mitocondriopatias.

No caso da síndrome de depleção do DNA mitocondrial, estão surgindo estudos em modelos animais e culturas celulares em que é utilizada terapia de reposição com nucleosídeos associada a inibidores de seu metabolismo 1616. Cámara Y, González-Vioque E, Scarpelli M, Torres-Torronteras J, Caballero A, Hirano M<italic> e t al</italic>. Administration of deoxyribonucleosides or inhibition of their catabolism as a pharmacological approach for mitochondrial DNA depletion syndrome. Hum Mol Genet [Internet]. 2014 [acesso 26 dez 2013];23(9):2459-67. Disponível: https://goo.gl/wCzDM4
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. Esse era o tratamento experimental pelo qual os pais de Charlie lutavam na Justiça, baseados na informação de que essa terapia provocaria redução na depleção do DNAmt. Entretanto, tais drogas foram utilizadas em modelos cuja mutação ocorria nos genes TYMP e DGUOK, e não no gene RRM2B, responsável pela doença de Charlie.

Faltam dados sobre o impacto clínico de reduzir a depleção do DNAmt, bem como estudos sobre possíveis efeitos colaterais associados ao tratamento, principalmente quanto ao uso de inibidores do catabolismo de nucleosídeos.

Como ainda não há estudos em humanos, não é possível avaliar a biodisponibilidade da droga no organismo, as doses necessárias para se obter o efeito desejado, o benefício clínico ou efeitos colaterais secundários à medicação. Estudos apontam que a terapia de alteração genética e o tratamento com células-tronco sejam opções promissoras para lidar com mitocondriopatias 1717. Nightingale H, Pfeffer G, Bargiela D, Horvath R, Chinnery PF. Emerging therapies for mitochondrial disorders. Brain. 2016;139(Pt 6):1633-48., mas até o momento não existe qualquer intervenção que proporcione a cura da doença.

Aspectos jurídicos

Do ponto de vista jurídico, o caso Charlie Gard pode ser analisado pelas seguintes perspectivas: 1) choque entre autoridade parental e indicação clínica; 2) interferência do Estado em questão privada; e 3) licitude da obstinação terapêutica. No entanto, não é possível dissociar essas questões e tratá-las separadamente; por essa razão, este tópico tratará das três perspectivas conjuntamente.

Charlie Gard, como menor, está sujeito à autoridade parental, ou seja, aos deveres parentais de criar, assistir e educar os filhos menores. Segundo Konder e Teixeira 1818. Konder CNP, Teixeira ACB. Crianças e adolescentes na condição de pacientes médicos: desafios da ponderação entre autonomia e vulnerabilidade. Pensar. 2016;21(1):70-93., a função do instituto é instrumentalizar os direitos fundamentais dos filhos, tornando-os pessoas capazes de exercer suas escolhas pessoais com a correlata responsabilidade. Assim, é de se perquirir se a tomada de decisão médica faz parte dos limites da autoridade parental. As questões de saúde inserem-se nos direitos de personalidade e, como tal, não podem ser transferidas para outrem, nem mesmo para os pais ou responsáveis legais.

É certo que os pais respondem pelos seus filhos menores. Contudo, essa responsabilidade deve ser vista mais como múnus do que como direito absoluto, não sendo possível que os pais assumam a priori a tomada de decisões personalíssimas, que devem estar sempre conformadas ao princípio do melhor interesse do menor no caso concreto.

Ocorre que se é costumeiro transferir o poder decisório aos pais na pediatria, do ponto de vista jurídico essa transferência é questionável. Na discussão sobre hemotransfusão em pacientes menores cuja família é composta por Testemunhas de Jeová, o entendimento é pacificado acerca da não preponderância da vontade dos pais 1919. Wheeler R. Why do we treat the children of Jehovah’s Witnesses differently from their adult parents? Arch Dis Child. 2015;100(7):606-7..

Parece aqui que, do ponto de vista jurídico, se aceita que o poder decisório nas questões de saúde seja transferido para os genitores quando seu interesse é a manutenção da vida do filho e, em contrapartida, nega-se esse poder quando seu interesse contraria a preservação da vida. Vislumbra-se assim contradição no tratamento da questão, que pode ser justificada pela dificuldade da cultura ocidental em lidar com a morte 2020. Ariès P. O homem diante da morte. São Paulo: Unesp; 2014..

Outro argumento comum tem sido a suposta inadequação da interferência do Estado em decisão que é própria da família. Todavia, o ordenamento jurídico inglês, assim como o brasileiro, prevê a possibilidade de acionar o Poder Judiciário caso os pais ajam contra o melhor interesse do filho. Assim, a judicialização do caso pelo Great Ormond Street Hospital foi amparada pela legislação vigente.

Deve-se questionar se levar essa questão ao Poder Judiciário era realmente a melhor opção. Infelizmente, poucos detalhes da relação médicos-familiares foram divulgados até o momento, o que permite ilações sobre o acontecido. Será que a comunicação da equipe de saúde foi eficaz? Será que houve interferência do Comitê de Ética Hospitalar? Ou mesmo do Comitê de Bioética?

Entende-se que deixar decisões tão pessoais ao alvedrio da Justiça faz parte de fenômeno social recente: a supervalorização do Poder Judiciário. Se no século passado o Poder Legislativo era visto como responsável pela pacificação social, por meio da feitura de leis, na contemporaneidade o Poder Judiciário assumiu esse papel, o que justifica a judicialização de questões privadas, como a decisão médica.

Em verdade, a decisão sobre a manutenção ou não do suporte vital de Charlie Gard não deveria ter sido tomada pela Suprema Corte inglesa, nem mesmo pela Corte Europeia de Direitos Humanos, mas sim por processo decisório compartilhado entre equipe médica e familiares, visando sempre o melhor interesse da criança. Portanto, concorda-se com o argumento de que a interferência estatal foi inadequada.

A discussão jurídica sobre a licitude da obstinação terapêutica é atualíssima e ainda encontra pouco arcabouço na literatura, exatamente pela dificuldade social em lidar com a morte. Assim, do ponto de vista médico, é socialmente aceitável o prolongamento da vida biológica, sem que se faça maiores ilações acerca do benefício para o paciente dessa manutenção artificial.

Thaddeus Pope 2121. Pope TM. Clinicians may not administer life-sustaining treatment without consent: civil, criminal, and disciplinary sanctions. JHBL. 2013;9(2):213-96. tem se destacado no cenário norte-americano como ferrenho defensor da ilicitude da obstinação terapêutica, respaldando-se no princípio bioético da beneficência. Nos Estados Unidos, hospitais e médicos começam a ser processados por obstinação, mas esse movimento ainda é incipiente, tornando-se mais comum quando a obstinação foi explicitamente recusada pelo paciente em diretiva antecipada de vontade (DAV). No caso em análise, as DAV não se aplicariam, porque Charlie não tinha discernimento para manifestar sua vontade. Por isso, a discussão centra-se em quem tem poder decisório, mas também em qual é a melhor decisão para o paciente.

O avanço tecnológico modificou o curso natural de várias doenças, de forma positiva, como na substituição temporária de órgãos intensamente acometidos em pacientes com doenças agudas graves, mas também de forma negativa, como na manutenção artificial da vida biológica de pacientes com doenças crônicas e terminais. Ademais, o surgimento quase que diário de novos tratamentos experimentais alimenta a esperança de muitos doentes e familiares quanto à possibilidade de vencer a batalha contra o inexorável.

Ressalte-se que o caso Charlie Gard não é o primeiro de divergência entre pais de paciente com quadro de saúde irreversível e equipe médica prestadora de cuidados. Em outubro de 2004, outra ocorrência envolvendo obstinação terapêutica em menor causou comoção na Inglaterra. Charlotte Wyatt nasceu prematuramente, na vigésima sexta semana de gestação, e aos onze meses era mantida viva por aparelhos, em coma irreversível 2222. Powell R. Dilemmas in the medical treatment of patients facing inevitable death. Arch Dis Child. 2007;92(9):746-9.. A equipe do Hospital Portsmouth solicitou ao Poder Judiciário ordem de não reanimação caso a criança tivesse parada cardiorrespiratória.

Os médicos alegavam que a pedido dos pais já a haviam reanimado três vezes, e que o procedimento era fútil, pois não havia perspectiva de melhora do quadro clínico.

Os pais, por sua vez, sustentavam que um milagre poderia acontecer e não aceitavam a decisão médica de não reanimação. A corte londrina acatou os argumentos da equipe médica e autorizou que não realizasse qualquer procedimento para reanimar a criança em caso de parada cardiorrespiratória. Percebe-se, assim, que o conflito envolvendo médicos e pais de pacientes em condições irreversíveis não é recente nos tribunais ingleses, que muitas vezes se têm se mantido contrários à obstinação terapêutica.

Cuidados paliativos, obstinação terapêutica e tomada de decisão em pediatria

No sentido oposto ao da medicina superespecializada e focada em diagnóstico e cura de doenças, associada ao uso irrestrito de recursos tecnológicos para suporte artificial de vida, surgem com crescente importância os cuidados paliativos, sobretudo no contexto do cuidado de pacientes portadores de doenças crônicas e ameaçadoras da continuidade da vida.

Cuidado paliativo é área de atuação médica que, segundo definição da Organização Mundial da Saúde atualizada em agosto de 2017, é abordagem de melhora à qualidade de vida dos pacientes (adultos ou crianças) e de seus familiares que enfrentam problemas associados a doenças que ameaçam a vida. Previne e alivia sofrimento por meio da investigação precoce, avaliação correta e tratamento da dor e de outros problemas físicos, psicossociais ou espirituais2323. World Health Organization. Palliative care [Internet]. 2014 [revisado ago 2017; acesso 23 out 2017]. Disponível: https://goo.gl/e9mx1a
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Para a abordagem e cuidado de pacientes portadores de doenças crônicas e incuráveis, é fundamental que estejam envolvidos profissionais de saúde capacitados a focar sua atenção na pessoa doente e não na doença. Esse foco é essencial para que se possa identificar no paciente e em sua família todas as fontes de sofrimento e atuar de forma assertiva e interdisciplinar com o objetivo de aliviá-lo, auxiliando os pais e demais familiares a tomar decisões que efetivamente estejam alinhadas com os melhores interesses da criança, conforme disposto pela Organização das Nações Unidas 2424. Fundo das Nações Unidas para a Infância. Convenção sobre os direitos da criança [Internet]. 20 nov 1989 [acesso 21 nov 2017]. Disponível: https://goo.gl/1NHHzr
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,2525. Naciones Unidas. Pacto internacional de derechos civiles y políticos [Internet]. 16 dez 1966 [acesso 21 nov 2017]. Disponível: https://goo.gl/iGeXqZ
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Cuidados paliativos pediátricos exigem habilidades técnicas para o tratamento de sintomas físicos como náusea, dor, dispneia, insônia, delirium e fadiga. Além disso, requerem habilidades humanísticas para cuidar de outras esferas de sofrimento pouco abordadas, como medo, solidão, abandono, tristeza, falta de recursos socioeconômicos, e também habilidades de comunicação para que se consiga definir, com a família, os objetivos do cuidado para o paciente.

São necessárias características como empatia e compaixão, tempo e dedicação de equipe multiprofissional formada por médico, enfermeiro, assistente social, psicólogo, fisioterapeuta, terapeuta ocupacional, nutricionista, capelão, entre outros, que trabalhe de forma integrada e cujo objetivo do cuidado seja prioritariamente aliviar o sofrimento.

Para cada conduta proposta é fundamental que sejam analisados os potenciais benefícios confrontando-os com os riscos e sofrimentos que possam ser infligidos. O profissional precisa estar atento para evitar obstinação terapêutica e manutenção ou introdução de medidas fúteis que, por não terem potencial de alterar o curso natural da doença, em nada beneficiarão o paciente, podendo prolongar e tornar ainda mais doloroso o processo de morte. O risco de práticas que configurem obstinação terapêutica é ainda maior quando se trata de pacientes com doenças progressivas, incuráveis e terminais.

Para que possa ser alcançado o objetivo de oferecer à criança e ao adolescente cuidados de saúde condizentes com seu maior interesse, além dos conhecimentos em cuidado paliativo é necessário que existam políticas públicas adequadas. Esses instrumentos legais devem valorizar e ampliar o acesso a essa modalidade de cuidado, fomentar discussões jurídicas que respaldem a prática da ortotanásia, e, principalmente, pautar as decisões nos marcos da bioética principialista: autonomia, beneficência, não maleficência e justiça 2626. Madeira IR. A bioética pediátrica e a autonomia da criança. Residência Pediátr. 2011;1(1 Suppl):10-4..

A autonomia é a capacidade de gerenciar sua própria vontade ou buscar aquilo que julga ser o melhor para si, livre da influência de outras pessoas. A beneficência refere-se à obrigação ética de agir buscando o maior benefício possível, associado ao menor prejuízo ou não maleficência, cuja finalidade é reduzir efeitos adversos ou indesejáveis das ações diagnósticas e terapêuticas no ser humano. Por fim, o princípio da justiça busca equidade e equilíbrio ao utilizar recursos a fim de alcançar, com melhor eficácia, o maior número de pessoas 2727. Grootens-Wiegers P, Hein IM, Van den Broek JM, Vries MC. Medical decision-making in children and adolescents: developmental and neuroscientific aspects. BMC Pediatr. 2017;17(1):120.. No caso Charlie Gard, como os recursos a serem empregados foram angariados pela família, provavelmente não haveria infração evidente a este último.

Quando aplicamos os princípios da bioética à faixa etária pediátrica, a discussão que envolve o princípio da autonomia perde parte de seu significado, uma vez que, nessa população, o desenvolvimento das características necessárias à tomada de decisão pode não estar presente, principalmente no caso de bebês que ainda não adquiriram a capacidade de falar ou de se comunicar plenamente. Se a legislação vigente não reconhece a autonomia do indivíduo antes que complete 18 anos de idade, deve-se considerar também as influências do meio social, bem como os aspectos culturais e religiosos preponderantes na família, que interferem nas decisões sobre o cuidado médico a ser prestado à criança.

Grootens-Wiegers e colaboradores 2727. Grootens-Wiegers P, Hein IM, Van den Broek JM, Vries MC. Medical decision-making in children and adolescents: developmental and neuroscientific aspects. BMC Pediatr. 2017;17(1):120., baseados em estudos de neurociência, relatam que, a fim de que se desenrole o processo de aquisição de competências necessárias para a tomada de decisão que se inicia na infância e se aprimora com o decorrer da idade, a criança ou o adolescente deve desenvolver quatro capacidades distintas: 1) expressar uma escolha, o que implica aptidão de comunicar preferência; 2) compreender o tratamento médico que está sendo proposto, o que pressupõe inteligência, domínio da linguagem, atenção direcionada para a informação e memória; 3) raciocinar sobre riscos, benefícios e consequências do tratamento proposto; e 4) capacidade de apreciação, o que implica que, além de compreender as várias opções disponíveis, o indivíduo consegue, utilizando pensamento abstrato, compreender a relevância de tais alternativas para a própria condição clínica. Em geral, todas essas habilidades estariam presentes em torno dos 12 anos de idade, desde que a criança cresça em ambiente favorável ao seu desenvolvimento.

Entretanto, essa idade coincide com o início da adolescência, fase da vida em que o indivíduo tende a assumir comportamentos que o expõem a riscos, como atitudes impulsivas, sobretudo em situações emocionais e quando acompanhado por seus pares. Tais características podem fazer com que a competência do adolescente para tomar decisões varie de acordo com o momento e o contexto. Por isso, é importante que o profissional de saúde e os pais estejam atentos para garantir que a tomada de decisão do adolescente ocorra com a menor influência possível de fatores sociais e emocionais, oferecendo ambiente e tempo adequados para a escolha competente e, consequentemente, confiável 2727. Grootens-Wiegers P, Hein IM, Van den Broek JM, Vries MC. Medical decision-making in children and adolescents: developmental and neuroscientific aspects. BMC Pediatr. 2017;17(1):120..

O processo de tomada de decisão em fim de vida abarcadas envolve diversas questões culturais, entre as quais a cultura da negação da morte e luta pela vida que deve ser mantida a qualquer preço. Não existe, no Brasil, tradição de valorização da autonomia do paciente, e as decisões de final de vida acabam sendo tomadas pela equipe médica baseadas no conceito de beneficência e influenciadas pelos valores culturais e morais dos profissionais da saúde.

Alguns autores brasileiros defendem que a decisão de se limitar ou suspender procedimentos ou tratamentos que prolonguem a vida do doente em fase terminal de enfermidade grave e incurável deve ser decisão médica. Isso porque é o profissional quem conhece os efeitos benéficos e colaterais de cada intervenção, bem como a possível evolução da doença, sendo capaz de identificar as condutas de limitação de suporte de vida que melhor atendam ao interesse da criança 2828. Lago PM, Devictor D, Piva JP, Bergounioux J. Cuidados de final de vida em crianças: perspectivas no Brasil e no mundo. J Pediatr. 2007;83(2 Suppl):S109-16.. Esse pensamento paternalista também predomina em outros países da América do Sul e na Europa.

Entretanto, a Resolução 1.805/2006 do Conselho Federal de Medicina 2929. Conselho Federal de Medicina. Resolução CFM nº 1.805, de 9 de novembro de 2006. Na fase terminal de enfermidades graves e incuráveis é permitido ao médico limitar ou suspender procedimentos e tratamentos que prolonguem a vida do doente, garantindo-lhe os cuidados necessários para aliviar os sintomas que levam ao sofrimento, na perspectiva de uma assistência integral, respeitada a vontade do paciente ou de seu representante legal. Diário Oficial da União. Brasília; p. 169, 28 nov 2006. Seção 1. deixa claro que a suspensão ou a não introdução de medidas que prolonguem a vida do paciente em fase terminal deve estar de acordo com a vontade da pessoa ou de seu representante legal, valorizando abordagem centrada na autonomia. Quando aplicada a pacientes pediátricos, entende-se que cabe aos pais ou a outro responsável legal a função de representar a vontade do paciente. De forma semelhante ao caso do bebê Charlie Gard, são comuns na prática clínica situações em que há divergência entre o desejo dos pais ou representantes legais e o que a equipe de saúde considera a melhor alternativa terapêutica para a criança ou o adolescente.

Nas decisões sobre suporte vital para criança gravemente enferma, aqueles que têm de tomar a decisão, sejam eles pais, profissionais de saúde ou magistrados, devem estar adequadamente informados sobre fatos relevantes. Devem igualmente também estar dispostos a usar a lógica e encontrar razões a favor e contra a solução, ter a mente aberta e se esforçar conscientemente para superar seus preconceitos intelectuais, emocionais, religiosos e morais 3030. Wilkinson D, Savulescu J. Hard lessons: learning from the Charlie Gard case. J Med Ethics. 2 ago 2017. DOI: 10.1136/medethics-2017-104492. A busca pela beneficência ou melhor interesse da criança deve ser construída a partir do diálogo entre pais e equipe de saúde, com informações relacionadas ao diagnóstico e prognóstico, alinhamento das expectativas, possibilidades ideais e cabíveis, e definição dos objetivos de cuidado.

Os desejos certamente serão díspares. Algumas famílias valorizarão a vida de forma absoluta, enquanto outras podem acreditar que indivíduos sem capacidade de interagir com outros têm qualidade de vida considerada inaceitável, o que torna o trabalho da equipe de saúde ainda mais complexo. Verifica-se, assim, que é necessário conhecer as preferências e valores do paciente e da família para que se tenha ferramentas para buscar a melhor decisão. O cenário ideal é que a decisão envolvendo pacientes pediátricos seja tomada pelo compartilhamento de responsabilidades entre equipe de saúde e pais, com a participação da criança sempre que seu desenvolvimento permitir, visando alcançar a melhor qualidade de vida possível apesar das limitações determinadas pela doença.

Não podemos negligenciar o fato de que são os pais, e não a equipe de saúde, os mais afetados pelas decisões médicas de fim de vida e suas consequências: quando decisões são tomadas para retirar o suporte artificial de vida, são os pais que viverão com sua dor. É justificável que sua opinião predomine em situações como essas, sendo necessária intervenção apenas quando a escolha dos pais possa provocar sérios danos ao paciente 3131. Shah SK, Rosenberg AR, Diekema DS. Charlie Gard and the limits of best interests. Jama Pediatr. 2017;171(10):937-8..

Neste último caso, não sendo possível a resolução do conflito por meio do diálogo, torna-se necessário remeter a discussão a outras instâncias, que, preferencialmente, devem ser: a comissão de bioética da instituição, a comissão de ética, a diretoria clínica, o Conselho Regional de Medicina, o Conselho Federal de Medicina ou uma instituição de mediação privada. O acionamento do Ministério Público na área da Infância e da Adolescência e/ou eventual ajuizamento de ação judicial devem ser vistos como último recurso na solução do conflito.

Certamente, remeter decisões médicas a esferas que transcendem a família e a equipe assistencial gera grave ruptura da relação de confiança, acarretando insatisfação para todas as partes envolvidas. Ao ponderar sobre a pertinência de adotar essa via de resolução do conflito, acrescente-se também o risco de provocar danos ainda maiores ao paciente e à família, associados ao tempo necessário para a resolução do caso, bem como ao estresse e desgaste emocional relacionados ao conflito.

Quando a situação envolve decisões de retirada de suporte de vida, como no caso de Charlie Gard, o prolongamento do processo decisório com tantas apelações em diferentes instâncias jurídicas pode ter causado sofrimento intenso e fútil ao bebê, submetido a procedimentos sabidamente dolorosos aplicados a pacientes em terapia intensiva. Além disso, no caso em pauta, esse prolongamento também gerou muito sofrimento emocional à família, principalmente aos pais, que, além de terem que lidar com a doença e morte do filho, viram-se expostos pela mídia, julgados e pressionados pela opinião pública.

Após longo processo, Chris Gard e Connie Yates concordaram que o filho já não se beneficiaria do tratamento com reposição de nucleosídeos, mas pediram que a retirada do suporte artificial de vida fosse feita após a transferência do bebê para casa. Não ficou claro o argumento do hospital que impedia a transferência, mas Charlie foi privado de conhecer sua casa, e seus pais foram impedidos de levá-lo para morrer em seu lar. Apesar de parecer senso comum, a posição sustentada pelas autoras funda-se nos princípios basilares dos cuidados paliativos, que se preocupam não só com o paciente, mas com o bem-estar psicofísico família.

Deste modo, como não havia qualquer indício de que transferir Charlie para casa fosse piorar seu quadro e como essa era a vontade da família, que mesmo confrontada continuou sustentando-a – inclusive do ponto de vista financeiro –, entende-se que essa postura do hospital contraria a abordagem paliativista.

A ocorrência de mais esse fato cria grande chance de que essa família sofra processo de luto complicado. É fundamental que, pelo menos durante a elaboração do luto, a família possa ser efetivamente priorizada e cuidada pela equipe de saúde.

O caso Charlie Gard sob a ótica do ordenamento jurídico brasileiro

No Brasil, assim como na Inglaterra, não há legislação específica para casos como o de Charlie Gard. Contudo, a Constituição Federal 3232. Brasil. Constituição da República Federativa do Brasil. Presidência da República [Internet]. 5 out 1988 [acesso 23 out 2017]. cap. VII, art. 227. Disponível https://goo.gl/hteHMT
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, ao tratar do direito de crianças e adolescentes, privilegiou o princípio do melhor interesse. Do ponto de vista conceitual, esse princípio é corolário da doutrina da proteção integral, ou seja, da necessidade de proteger sujeitos vulneráveis de todas as possíveis situações que possam infligir dano.

Historicamente, esse princípio advém do preceito anglo-saxão best interests of the child. Todavia, Tânia da Silva Pereira 3333. Pereira TS. O melhor interesse da criança. In: Pereira TS, coordenadora. O melhor interesse da criança: um debate interdisciplinar. Rio de Janeiro: Renovar; 1999. p. 467-94. afirma que enquanto este trata a proteção da criança de forma qualitativa, aquele se preocupa mais com a proteção quantitativa, ou seja, do maior número de direitos possível.

A Constituição 3232. Brasil. Constituição da República Federativa do Brasil. Presidência da República [Internet]. 5 out 1988 [acesso 23 out 2017]. cap. VII, art. 227. Disponível https://goo.gl/hteHMT
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elenca vários direitos da criança e do adolescente: direito a vida, saúde, alimentação, educação, lazer, profissionalização, cultura, dignidade, respeito, liberdade e convivência familiar e comunitária. Contudo, não foi exaustiva a ponto de tratar das questões relativas aos cuidados médicos. Analisando o caso Charlie Gard à luz do ordenamento jurídico brasileiro, poder-se-ia indagar se, diante do direito constitucional à vida e do dever de cuidado dos pais para com os filhos menores, não deveria prevalecer a vontade dos pais e ser realizada a suplementação de nucleosídeos.

Entretanto, atualmente, o direito à vida adquire nova leitura diante da cláusula geral de tutela da dignidade humana, ou seja, a vida que se protege na Constituição não é a vida meramente biológica, mas sim vida digna, o que permite a discussão acerca do que seria vida digna para Charlie Gard. Pensando que o tratamento experimental desejado pelos pais de Charlie não tem qualquer comprovação científica de sucesso, é possível afirmar que o menor não tinha chances de viver dignamente: era portador de doença incurável e terminal, e o melhor seria permitir que ele morresse com dignidade.

Porém, no Brasil, não há qualquer tratamento normativo para a morte digna, que tem sido reconhecida como direito por algumas decisões judiciais, inexistindo norma jurídica sobre o tema. Tal circunstância gera grande insegurança jurídica para todos os atores que lidam com a terminalidade – paciente, família, equipe e instituição de saúde.

O Código Civil brasileiro dispõe em seu artigo 15 que ninguém pode ser constrangido a submeter-se, com risco de vida, a tratamento médico ou a intervenção cirúrgica3434. Brasil. Lei nº 10.406, de 10 de janeiro de 2002. Institui o Código Civil [Internet]. 11 jan 2002 [acesso 17 jun 2017]. Cap. II. Disponível: https://goo.gl/qLvMFg
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. A redação desse dispositivo tem sido muito criticada pela doutrina por possibilitar diferentes interpretações entre operadores do direito.

Diaulas Costa Ribeiro sugere que a melhor interpretação para esse artigo deve ser que ninguém, nem com risco de vida, será constrangido a tratamento ou a intervenção cirúrgica, em respeito à sua autonomia3535. Ribeiro DC. Autonomia: viver a própria vida e morrer a própria morte. Cad Saúde Pública. [Internet]. 2006 [acesso 23 out 2017];22(8):1749-54. p. 1750. Disponível: https://goo.gl/7Ui65k
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. Mas, na análise do caso Charlie Gard, essa leitura não ajudaria, uma vez que o paciente não tem autonomia.

As disposições do Código Civil sobre autoridade parental, assim como as disposições do Estatuto da Criança e do Adolescente 3636. Brasil. Lei nº 8.069, de 13 de julho de 1990. Dispõe sobre o Estatuto da Criança e do Adolescente e dá outras providências [Internet]. 16 jul 1990 [acesso 17 jun 2017]. Disponível: http://bit.ly/1MzlCIG
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, também não resolvem cabalmente a questão, uma vez que não tratam diretamente da tomada de decisões médicas. Desse modo, está-se diante do que Dworkin chama hard case3737. Dworkin R. Levando os direitos a sério. São Paulo: Martins Fontes; 2007., sendo necessária a integração das normas jurídicas existentes a fim de resolver a questão.

Para a solução desse caso de acordo com o ordenamento jurídico brasileiro, entende-se que há dois direitos antagônicos: o direito à morte digna de Charlie e o direito ao exercício da autoridade parental pelos pais, consubstanciado no dever de cuidado. Diante desse choque de direitos, as cortes inglesa e europeia decidiram pelo direito à morte digna em detrimento da autoridade parental. Enquanto para alguns essa solução, a retirada do suporte artificial que mantinha Charlie vivo, parece ter sido a mais acertada, resguardando a ele o direito à morte digna, para outros a autoridade dos pais deveria ter sido respeitada, uma vez que, a princípio, são eles quem sabem o que é melhor para seus filhos e cabe a eles o dever do cuidado.

É necessário, portanto, ampliar os fóruns de discussão para que possamos refletir sobre essas questões de forma abrangente e sejamos capazes de evoluir como sociedade em busca não apenas ao direito de viver com dignidade, mas sobretudo de mantê-la até o final da vida.

Considerações finais

O caso Charlie Gard apresenta verdadeiro dilema bioético, de modo que não há única resposta possível. O que se pretendeu neste artigo foi explorar as diferentes perspectivas e aprofundar a discussão sobre a tomada de decisão em pediatria.

Percebeu-se que a abordagem humanista da relação médico-paciente-família, sobretudo em situações relacionadas a cuidados de pacientes com doenças progressivas e incuráveis, deve ser levada em conta por todos os agentes envolvidos no tratamento. Isso objetiva evitar a judicialização de decisões médicas, com a qual se corre sério risco de provocar intenso sofrimento a todas as partes envolvidas, uma vez que as relações entre médico-paciente-família são pautadas por nuances pouco acessíveis aos julgadores.

É fundamental que, a partir do aprimoramento das técnicas de comunicação e da capacidade de atuar com empatia e compaixão, a equipe de saúde seja capaz de resolver mais conflitos, buscando consenso com a família sem que seja necessária intervenção jurídica. Espera-se que esse seja o legado de Charlie.

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Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    Jan-Apr 2018

Histórico

  • Recebido
    22 Set 2017
  • Revisado
    21 Nov 2017
  • Aceito
    23 Nov 2017
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