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Ideário da morte no Ocidente: a bioética em uma perspectiva antropológica crítica

Resumo

A morte é simbólica, histórica e socialmente construída. Mais do que um processo biológico, é uma elaboração cultural, e discuti-la significa, portanto, entender suas representações e práticas. Embora seja atualmente entendida de forma negativa, nem sempre foi tida como tabu. Este artigo busca desvelar de que modo foi estabelecida a oposição entre a vida e a morte em proveito da vida como positividade e as consequências do banimento da ideia de finitude em prol de um mito de imortalidade. A partir de uma revisão da literatura sobre as concepções da morte no Ocidente, especificamente no Brasil, esta discussão propõe repensar a bioética como campo disciplinar que deve abarcar, para além de modelos dogmáticos e autoritários, valores morais plurais. Esta reflexão permite encarar a morte como constituinte da vida e, assim, arrostar a impossibilidade do nada, fim inexorável, como possibilidade infinda, em suas diversas acepções e seus diferentes sentidos.

Morte; Vida; Ocidente; Bioética

Abstract

Death is symbolically, historically and socially constructed. More than a biological process, death is a cultural elaboration, and discussing it means, therefore, to understand its representations and practices. Although it is currently understood negatively, it was not always considered a taboo. This article aims to unveil how the opposition between life and death favoring life as a positivity was established and what are the consequences of banishing the idea of finitude in favor of a myth of immortality. Through a literature review of the conceptions of death in the Western world, specifically in Brazil, this discussion proposes to rethink bioethics as a discipline that should include, besides dogmatic and authoritarian models, plural moral values. This reflection allows us to face death as a part of life and, thus, to confront the impossibility of nothingness, an inexorable end, as an endless possibility, in its various and different meanings.

Death; Life; Western world; Bioethics

Resumen

La muerte es simbólica, histórica y socialmente construida. Más que un proceso biológico, es una elaboración cultural, y discutirla significa, por lo tanto, entender sus representaciones y prácticas. Aunque ella sea actualmente entendida de forma negativa, no siempre fue considerada como tabú. Este artículo busca desvelar de qué modo se estableció la oposición entre la vida y la muerte en provecho de la vida como positividad y las consecuencias de la exclusión de la idea de finitud en favor de un mito de inmortalidad. A partir de una revisión de la literatura sobre las concepciones de la muerte en Occidente, específicamente en Brasil, esta discusión propone repensar la bioética como campo disciplinar que debe abarcar, además de modelos dogmáticos y autoritarios, valores morales plurales. Esta reflexión permite encarar la muerte como constituyente de la vida y, así, confrontar la imposibilidad de la nada, fin inexorable, como posibilidad sin fin, en sus diversas acepciones y sus diferentes sentidos.

Muerte; Vida; Mundo Occidental; Bioética

A construção do ideário da morte na sociedade ocidental

A morte não se resume ao fim da vida biológica, encerrando aspectos culturais, simbólicos, históricos e socialmente construídos. Abordá-la demanda compreender também de que modo os vivos interpretam-na e lidam com a ela. Este artigo visa a desvelar a construção do ideário da morte no “Ocidente”, sendo este termo entendido como operador textual, em uma terminologia derridiana, por não se tratar de categoria fechada, linear e fixa, mas de noção que abarca representações e práticas heterogêneas, algumas das quais aqui apresentadas.

Com este fim, foi feita uma revisão da literatura sobre as concepções da morte no Ocidente, especificamente no Brasil, propondo repensar a bioética como campo disciplinar que abarque, para além de modelos dogmáticos e autoritários, valores morais plurais. O intuito é, nesse contexto, permitir uma reapropriação da morte e o aprofundamento de questões correlatas, como aquelas concernentes ao processo saúde-doença ou aos limites da vida (eutanásia, aborto etc.).

Diniz 11. Diniz AS. A iconografia do medo: imagem, imaginário e memória da cólera no século XIX. In: Koury MGP, organizador. Imagem e memória: ensaios em antropologia visual. Rio de Janeiro: Garamond; 2001. p. 113-49. traça um breve histórico da relação com a morte e os mortos na sociedade ocidental. De acordo com esse autor, até o século XVIII não havia separação radical entre a vida e a morte, sendo esta assunto doméstico – uma “boa morte” significava estar cercado de entes queridos, com cerimônia aberta à comunidade e sepultamento na igreja ou em cemitério contíguo 22. Quinaglia SE. O presente de Prometeu: contribuição a uma antropologia da morte (e da vida) [dissertação]. Florianópolis: Universidade Federal de Santa Catarina; 2008..

A partir do século XIX, com o advento do Iluminismo e das revoluções burguesas – e, portanto, com o avanço do pensamento racional, a laicização das relações sociais e a secularização da vida cotidiana –, o óbito deixou de ser socialmente partilhado, chegando ao fim a morte solene, em família. Passou-se a morrer no hospital. Os mortos foram, assim, apartados dos vivos, confinados, por fim, na periferia das cidades. Se até esse século faziam parte da vida, passou a pairar sobre eles o silêncio civilizado, a indiferença aparente e a atitude racional e prática que visa a remover da vida o peso da morte 11. Diniz AS. A iconografia do medo: imagem, imaginário e memória da cólera no século XIX. In: Koury MGP, organizador. Imagem e memória: ensaios em antropologia visual. Rio de Janeiro: Garamond; 2001. p. 113-49.,22. Quinaglia SE. O presente de Prometeu: contribuição a uma antropologia da morte (e da vida) [dissertação]. Florianópolis: Universidade Federal de Santa Catarina; 2008..

De acordo com Rodrigues 33. Rodrigues JC. Tabu da morte. 2ª ed. Rio de Janeiro: Editora Fiocruz; 2006., da Antiguidade à Idade Média havia familiaridade entre vivos e mortos. No período medieval, o lugar dos mortos era também o dos vivos: o cemitério era o centro da vida social e, com a igreja, constituía praças públicas ou sítios que abarcavam o comércio, as proclamações e todos os modos de informação coletiva. Era espaço de passeios, brincadeiras e diversões. A morte era, pois, pública e comunitária 22. Quinaglia SE. O presente de Prometeu: contribuição a uma antropologia da morte (e da vida) [dissertação]. Florianópolis: Universidade Federal de Santa Catarina; 2008..

Ainda segundo a descrição minuciosa de Rodrigues 33. Rodrigues JC. Tabu da morte. 2ª ed. Rio de Janeiro: Editora Fiocruz; 2006., as pessoas frequentavam o cemitério sem se impressionar absolutamente, sem se incomodar com a proximidade das fossas comuns que ficavam escancaradas até que se enchessem, sem se perturbar com as exumações, misturando-se às cerimônias fúnebres que aconteciam no local. Tampouco a visão e o cheiro do cemitério impediam que ali se localizasse frequentemente o forno comunal de pão: a proximidade entre alimentos e cadáveres mal enterrados, exumados, expostos – que causaria extremo nojo aos contemporâneos – não comovia os medievais 22. Quinaglia SE. O presente de Prometeu: contribuição a uma antropologia da morte (e da vida) [dissertação]. Florianópolis: Universidade Federal de Santa Catarina; 2008..

O autor complementa: a convivência com a morte [incluía] a proximidade com a decomposição, seja de modo figurado, nas artes, seja de modo concreto, nas exumações ou nas sepulturas coletivas que permaneciam meio abertas até serem completadas. Nos cemitérios aconteciam as coisas públicas, até aproximadamente 1750: neles as pessoas iam passear, dançar, vender e comprar, lavar a roupa; neles se dava a justiça, se resolviam questões políticas da comunidade, se consumavam execuções, se faziam reuniões, representações teatrais e se deixava o gado pastar44. Rodrigues JC. Op. cit. p. 145..

Nesse período, até por volta do século XVI, a morte desempenhava importante papel nas artes, nas decorações religiosas e leigas, nos jogos e nas danças. Nessa atmosfera coexistiam o profano e o sagrado, a vida e a morte, cuja visão e iconografia eram essencialmente alegres e folclóricas, envolvendo uma espécie de grande festa comunitária e igualitária: reis, bispos, príncipes, burgueses, plebeus, todos eram iguais diante do fim 22. Quinaglia SE. O presente de Prometeu: contribuição a uma antropologia da morte (e da vida) [dissertação]. Florianópolis: Universidade Federal de Santa Catarina; 2008.,33. Rodrigues JC. Tabu da morte. 2ª ed. Rio de Janeiro: Editora Fiocruz; 2006..

A partir do século XVI, tais sentimentos começaram a se transformar. No século XVIII, traços das atividades econômicas que se desenvolviam no cemitério ainda perduravam, mas desapareceram definitivamente dele as feiras medievais. Representações de esqueletos e caveiras, frequentes sobretudo nos séculos XVII e XVIII, passaram a desempenhar função ideológica diversa daquela da visão e da iconografia medievais. Crânios e tíbias combinados a foices, relógios e enxadas de coveiros adquiriram caráter tétrico, compondo o imaginário macabro 22. Quinaglia SE. O presente de Prometeu: contribuição a uma antropologia da morte (e da vida) [dissertação]. Florianópolis: Universidade Federal de Santa Catarina; 2008.,33. Rodrigues JC. Tabu da morte. 2ª ed. Rio de Janeiro: Editora Fiocruz; 2006.. O memento mori passou a integrar a maioria dos retratos pintados durante o Iluminismo, relembrando a inexorabilidade da morte.

Nesse processo, a imagem da morte começava a se transfigurar em apodrecimento e decomposição, perdendo o caráter de julgamento, como será apontado a seguir, ou mesmo de sono. A repugnância a odores e emanações que acompanham práticas funerárias surgia também nesse período. O cemitério passava, então, a ser identificado como lugar de poluição 22. Quinaglia SE. O presente de Prometeu: contribuição a uma antropologia da morte (e da vida) [dissertação]. Florianópolis: Universidade Federal de Santa Catarina; 2008.,33. Rodrigues JC. Tabu da morte. 2ª ed. Rio de Janeiro: Editora Fiocruz; 2006..

Os túmulos individuais, comuns na Antiguidade, reapareceram entre os séculos XII e XVI. Tal individualização marcava mudanças profundas nas concepções da morte e da vida e expressava a tentativa de preservar as vidas dos mortos. Essas sepulturas individuais, bem como as inscrições funerárias e a representação da figura dos mortos na estatuária fúnebre, asseguravam sua permanência mediante uma sobrevivência simbólica. Máscaras, estátuas e pinturas também exemplificam tal processo de individualização 22. Quinaglia SE. O presente de Prometeu: contribuição a uma antropologia da morte (e da vida) [dissertação]. Florianópolis: Universidade Federal de Santa Catarina; 2008.,33. Rodrigues JC. Tabu da morte. 2ª ed. Rio de Janeiro: Editora Fiocruz; 2006..

Essa preocupação com o assinalamento dos jazigos se desenvolveu principalmente a partir do século XIV e passou a dominar o universo funerário a partir dos séculos XVII e XVIII. Tal desejo – e mais tarde obrigação – de dotar cada morto de uma sepultura, exigindo-se que os enterros ocorressem lado a lado, e não mais em superposição, começava a delinear a configuração do cemitério na contemporaneidade: uma multidão de túmulos individuais 22. Quinaglia SE. O presente de Prometeu: contribuição a uma antropologia da morte (e da vida) [dissertação]. Florianópolis: Universidade Federal de Santa Catarina; 2008.,33. Rodrigues JC. Tabu da morte. 2ª ed. Rio de Janeiro: Editora Fiocruz; 2006..

Assim, paulatinamente, os lugares de inumação e os monumentos funerários foram privatizados, e os destinatários das homenagens fúnebres, conservados por meio de suas lembranças. Tais práticas reverberariam também na contemporaneidade. Rodrigues 33. Rodrigues JC. Tabu da morte. 2ª ed. Rio de Janeiro: Editora Fiocruz; 2006. salienta, contudo, que a moldagem de retratos realistas dos cadáveres era em parte contemporânea e em parte imediatamente posterior à transformação dos corpos dos mortos em objetos interditados à visão. Paralelamente à individualização, disseminava-se o uso de caixões, que fechavam os cadáveres e subtraíam-nos aos olhares 22. Quinaglia SE. O presente de Prometeu: contribuição a uma antropologia da morte (e da vida) [dissertação]. Florianópolis: Universidade Federal de Santa Catarina; 2008..

De acordo com Michel Foucault 55. Foucault M. Microfísica do poder. 25ª ed. São Paulo: Paz e Terra; 2012., no final do século XVIII os túmulos foram individualizados não por razões teológico-religiosas de respeito aos mortos, mas por questões político-sanitárias de respeito aos vivos. A urbanização provocara angústia diante das cidades, oficinas, fábricas e população crescentes, além das epidemias e, portanto, dos cemitérios cada vez mais numerosos. Para manter a organização sanitária das cidades, desenvolveu-se uma medicina urbana de análise, controle e organização do espaço. Quanto aos mortos, era preciso reduzir o perigo nefasto que representavam. Assim, não somente o cemitério migrou para a periferia das cidades, como também os caixões se tornaram individuais, o que permitia esquadrinhar e classificar os mortos, higienizar o meio e, consequentemente, proteger os vivos.

Esse temor da morte começara a se manifestar nos séculos XII e XIII. Como assinalado, a morte assumia não mais uma imagem serena, mas uma concepção judiciária, estreitamente associada a um entendimento da vida como biografia particular. Apareceu à época o livro da vida, volume simbólico que contabilizava as ações boas e más das pessoas. Viver passava a ser uma preparação para morrer, quando as almas seriam pesadas e decidida sua salvação ou perdição eternas. Posteriormente, tal concepção também se modificaria e à imagem da morte seriam associados a impureza e o perigo 22. Quinaglia SE. O presente de Prometeu: contribuição a uma antropologia da morte (e da vida) [dissertação]. Florianópolis: Universidade Federal de Santa Catarina; 2008.,33. Rodrigues JC. Tabu da morte. 2ª ed. Rio de Janeiro: Editora Fiocruz; 2006..

A angústia diante do fim da vida proliferava-se com a mesma intensidade que a fabricação de relógios no decorrer dos séculos XVI e XVII 22. Quinaglia SE. O presente de Prometeu: contribuição a uma antropologia da morte (e da vida) [dissertação]. Florianópolis: Universidade Federal de Santa Catarina; 2008.,33. Rodrigues JC. Tabu da morte. 2ª ed. Rio de Janeiro: Editora Fiocruz; 2006.: [Restavam] apenas dois caminhos, duas estratégias de sobrevivência: controlar o futuro através da “vida eterna” ou então imobilizar o tempo através de tentativas simbólicas de conservação e de preservação dos mortos e de seus corpos. Ambas as estratégias [foram] utilizadas, na batalha ocidental-capitalista, para vencer a morte66. Rodrigues JC.Op. cit. p. 123-4..

Pode-se supor que da angústia individual diante da morte surgiram as ideias de acumulação material e de santificação por meio de investimentos, trabalho e lucro, o que Max Weber denominou “espírito do capitalismo” 33. Rodrigues JC. Tabu da morte. 2ª ed. Rio de Janeiro: Editora Fiocruz; 2006.. A conjunção do processo de individualização, das transformações da afetividade e do aparecimento da sepultura-signo significava, entre os séculos XVIII e XIX, a negação da morte e a preservação dos mortos 22. Quinaglia SE. O presente de Prometeu: contribuição a uma antropologia da morte (e da vida) [dissertação]. Florianópolis: Universidade Federal de Santa Catarina; 2008.,33. Rodrigues JC. Tabu da morte. 2ª ed. Rio de Janeiro: Editora Fiocruz; 2006..

Com a revolução científica, entre os séculos XVI e XVIII, a ciência apropriou-se do corpo humano, que passou a ser tido como objeto de análise. A ideia de que o ser humano podia dominar a natureza pela ciência estendeu-se à estratégia da medicina de controlar a morte e, portanto, prolongar a vida. A morte passou a ser considerada não um limite da vida, mas da medicina.

A partir do século XVIII, em um processo que culminou na segunda metade do século XIX e início do século XX, sobreveio a dramática encenação fúnebre, em que o desespero em relação à morte era demonstrado por gemidos, gritos, desmaios. Essa exaltação da afetividade estava associada à promoção dos mortos e da morte ao status de objeto belo. A estética fúnebre romântica que comportava tal beleza demonstrava a ambiguidade das representações e práticas funerárias, pois era contemporânea ao pavor da morte, e por isso significava rejeição da finitude. Essa beleza era, portanto, a dissimulação do medo 22. Quinaglia SE. O presente de Prometeu: contribuição a uma antropologia da morte (e da vida) [dissertação]. Florianópolis: Universidade Federal de Santa Catarina; 2008.,33. Rodrigues JC. Tabu da morte. 2ª ed. Rio de Janeiro: Editora Fiocruz; 2006..

A associação da cor preta à morte ocorreu ainda no século XVI e revelava o caráter sombrio que ela adquiriu. Ademais, o uso de uma cor específica para distinguir os enlutados correspondia, por um lado, à necessidade relativamente recente de separar o que está ligado à morte do que está ligado à vida e, por outro, à apropriação dos mortos pelos entes que lhes eram próximos. Quando vida e morte não se opunham e esta era vivenciada coletivamente, não havia sentido em tal discriminação 22. Quinaglia SE. O presente de Prometeu: contribuição a uma antropologia da morte (e da vida) [dissertação]. Florianópolis: Universidade Federal de Santa Catarina; 2008.,33. Rodrigues JC. Tabu da morte. 2ª ed. Rio de Janeiro: Editora Fiocruz; 2006..

Era comum, ainda, a presença de pessoas que durante os funerais ajudavam a transportar os defuntos até as sepulturas e a chorar sobre eles em troca de esmolas e/ou das capas, geralmente pretas, utilizadas nas cerimônias por aqueles mais próximos a esses falecidos. Resquícios dessa prática podem ser observados ainda hoje na “venda de água” nos cemitérios por crianças, adolescentes e adultos em troca de esmolas. “Vender água” é uma expressão êmica dos trabalhadores do Cemitério São Francisco de Assis, em Florianópolis (SC), que traduz o serviço de lavagem de túmulos. Tal tarefa combina-se à ajuda no transporte de materiais utilizados pelas pessoas que visitam os mortos e à vigilância dos veículos deixados nas imediações do cemitério 22. Quinaglia SE. O presente de Prometeu: contribuição a uma antropologia da morte (e da vida) [dissertação]. Florianópolis: Universidade Federal de Santa Catarina; 2008.,33. Rodrigues JC. Tabu da morte. 2ª ed. Rio de Janeiro: Editora Fiocruz; 2006..

A administração da necrópole contemporânea (limpeza, construção de vias de circulação, fornecimento de informações etc.), como já ocorria em relação à cidade, tornava-se função das autoridades públicas. O cemitério passava a ser objeto de planejamento urbano, apreensões ecológicas e preocupações estéticas. Ornar sepulturas com flores, objetos de arte, retratos e textos evocadores tornava-se cada vez mais usual 22. Quinaglia SE. O presente de Prometeu: contribuição a uma antropologia da morte (e da vida) [dissertação]. Florianópolis: Universidade Federal de Santa Catarina; 2008.,33. Rodrigues JC. Tabu da morte. 2ª ed. Rio de Janeiro: Editora Fiocruz; 2006..

Atualmente, algumas estratégias são usadas para deter o tempo e preservar os mortos: nos túmulos, flores naturais são amiúde substituídas por flores de plástico, que não morrem, e a vida é perpetuada em instantes captados por filmes e fotografias, algumas das quais identificam as sepulturas. Ademais, a vestimenta e a maquiagem nos corpos dos mortos buscam eliminar todo traço de morte. Depois de lavados, embalsamados, vestidos e maquiados, os cadáveres são fechados em caixões e ocultados em covas sob monumentos, que podem, ainda, ser dissimulados por muros ou plantas. O cemitério é um espaço ambíguo que faz desaparecer e ao mesmo tempo conservar 22. Quinaglia SE. O presente de Prometeu: contribuição a uma antropologia da morte (e da vida) [dissertação]. Florianópolis: Universidade Federal de Santa Catarina; 2008.,33. Rodrigues JC. Tabu da morte. 2ª ed. Rio de Janeiro: Editora Fiocruz; 2006..

O processo de laicização que atingiu os domínios da vida e da morte durante o século das luzes reverberava a separação entre o corpo e a alma, a transformação daquele em objeto, a apropriação da morte pela medicina, o desenvolvimento da ideologia higienista e a consequente separação entre o cemitério e a igreja e a cidade 22. Quinaglia SE. O presente de Prometeu: contribuição a uma antropologia da morte (e da vida) [dissertação]. Florianópolis: Universidade Federal de Santa Catarina; 2008.,33. Rodrigues JC. Tabu da morte. 2ª ed. Rio de Janeiro: Editora Fiocruz; 2006.. As concepções da morte e do morrer, antes vinculadas à magia e à religião, passaram a ser vinculadas à ciência.

Nos séculos XX e XXI, há o silenciamento da dor, a privatização e mesmo a diminuição da duração do luto, o desaparecimento do cortejo fúnebre, das condolências, das visitas e das últimas homenagens, a neutralização dos ritos funerários e a economia dos sentimentos e das emoções 22. Quinaglia SE. O presente de Prometeu: contribuição a uma antropologia da morte (e da vida) [dissertação]. Florianópolis: Universidade Federal de Santa Catarina; 2008.,33. Rodrigues JC. Tabu da morte. 2ª ed. Rio de Janeiro: Editora Fiocruz; 2006.. Deixou-se de morrer em casa, entre familiares, e passou-se a morrer no hospital, onde a ignorância obrigatória da morte impõe a médicos e familiares a dissimulação da gravidade do estado de saúde do indivíduo, que, doente, transforma-se em número. Ao mesmo tempo que se perde a humanidade, extingue-se a preparação para morrer, tanto para quem morre quanto para os que ficam 33. Rodrigues JC. Tabu da morte. 2ª ed. Rio de Janeiro: Editora Fiocruz; 2006..

A invenção do hospital como lugar que resguarda a morte é contemporânea do desenvolvimento da ideologia higienista: o hospital protege as famílias da doença, o doente das pressões emocionais e a sociedade da morte. Como anteposto, a morte deixa de ser natural e passa a ser vista como acontecimento acidental, falha humana ou atraso da ciência. Enquanto a imortalidade física não é alcançada, conquista-se a imortalidade simbólica 33. Rodrigues JC. Tabu da morte. 2ª ed. Rio de Janeiro: Editora Fiocruz; 2006.. As consequências desse prolongamento da vida a todo custo, que despreza as dimensões da existência além da biológica, deixam de ser mensuradas. Assim, para evitar a morte, passou-se a investir em medicina, previdência social, segurança, alimentação. A supressão da morte remete, portanto, não às sensibilidades individuais, mas à coerção social que passou a tratá-la como tabu 22. Quinaglia SE. O presente de Prometeu: contribuição a uma antropologia da morte (e da vida) [dissertação]. Florianópolis: Universidade Federal de Santa Catarina; 2008.,33. Rodrigues JC. Tabu da morte. 2ª ed. Rio de Janeiro: Editora Fiocruz; 2006..

Também Jean Baudrillard 77. Baudrillard J. A troca simbólica e a morte. São Paulo: Loyola; 1996. discorre a respeito da individualização e da negação da morte – a interiorização moderna da angústia causada pelo fim da vida. Para ele, a instituição da morte, tal como a da sobrevivência e da imortalidade, foi uma conquista tardia do racionalismo político de castas de sacerdotes e de Igrejas, que fundaram seu poder sobre a gestão dessa esfera imaginária da morte. Quanto ao desaparecimento da sobrevivência religiosa, tratou-se da conquista, mais tardia, de um racionalismo político de Estado, que fundou seu poder sobre a gestão da vida como sobrevivência objetiva – foi do imaginário da vida que aumentou o poder do Estado 22. Quinaglia SE. O presente de Prometeu: contribuição a uma antropologia da morte (e da vida) [dissertação]. Florianópolis: Universidade Federal de Santa Catarina; 2008..

A existência da Igreja, bem como do Estado, só foi possível ao se eliminar a exigência simbólica do grupo. Entrou em cena, então, a economia política imposta pela Igreja contra as comunidades e o cerimonial coletivo: a salvação pessoal por meio da fé e, posteriormente, pela acumulação de obras e perfeições. Ainda no século XV, a festa que foi a Dança da Morte, que demonstrava a igualdade de todos diante do fim, desafiava a ordem desigualitária do nascimento, da riqueza e do poder. Eis o último momento em que a morte pôde aparecer como fala coletiva 22. Quinaglia SE. O presente de Prometeu: contribuição a uma antropologia da morte (e da vida) [dissertação]. Florianópolis: Universidade Federal de Santa Catarina; 2008.,77. Baudrillard J. A troca simbólica e a morte. São Paulo: Loyola; 1996..

Já no século XVI, a figura moderna da morte generalizou-se. A Contrarreforma, os jogos fúnebres e obsessivos do Barroco e, especialmente, o protestantismo individualizaram as consciências perante Deus e aceleraram o processo de angústia individual diante do fim da vida. Dessa forma, com a desintegração das comunidades tradicionais, cristãs e feudais, pela razão burguesa e pelo sistema nascente da economia política, a morte deixou de ser socialmente partilhada. Passou a haver uma obsessão pela morte e a vontade de aboli-la por meio da acumulação do valor, particularmente do tempo como valor, na fantasia de um adiamento do fim, transformando-se no motor fundamental da racionalidade da política econômica 22. Quinaglia SE. O presente de Prometeu: contribuição a uma antropologia da morte (e da vida) [dissertação]. Florianópolis: Universidade Federal de Santa Catarina; 2008.,77. Baudrillard J. A troca simbólica e a morte. São Paulo: Loyola; 1996..

Ainda segundo Baudrillard 77. Baudrillard J. A troca simbólica e a morte. São Paulo: Loyola; 1996., houve historicamente na sociedade ocidental um esforço para dissociar a vida da morte. A abolição da morte ramificar-se-ia em todas as direções: na crença da sobrevivência e da eternidade para as religiões, na produção da verdade para a ciência, na produtividade e na acumulação para a economia.

Nenhuma outra sociedade conhece essa oposição entre a vida e a morte em proveito da vida como positividade. Ao analisar, ainda, a ordem dita primitiva, o autor mostra que, enquanto nós dessocializamos a morte ao lhe atribuir a imunidade da ciência e autonomizá-la como fatalidade individual, eles não a naturalizam, considerando-a uma relação social. Em outras palavras, nessas sociedades a definição de morte é social: inscreve-se em um ritual simbólico de troca entre os vivos e entre estes e os mortos. Essa reciprocidade entre a vida e a morte dá lugar em nossa sociedade a um sistema que, embora viva da produção da morte, a nega e entra em um processo de acumulação da vida como valor. Cessa, assim, a reversibilidade simbólica da morte. Para Baudrillard 77. Baudrillard J. A troca simbólica e a morte. São Paulo: Loyola; 1996., só o simbólico, que deixa a morte significar abertamente, dá fim à acumulação e possibilita a reversibilidade da vida na morte 22. Quinaglia SE. O presente de Prometeu: contribuição a uma antropologia da morte (e da vida) [dissertação]. Florianópolis: Universidade Federal de Santa Catarina; 2008..

Exemplo do trato da morte na ordem dita primitiva nos é dado por Lucien Lévy-Bruhl 88. Lévy-Bruhl L. La mentalité primitive. 4ª ed. Paris: Félix Alcan; 1925., segundo o qual na mentalidade considerada primitiva os seres estão envolvidos em uma rede que os organiza. A morte sobrevém de representações diversas, feiticeiros, espíritos de um morto ou outras forças, cuja origem é coletiva. Essas potências místicas fazem-se sentir tanto no indivíduo como no grupo social. O autor mostra, ainda, que os seres estão implicados com os objetos naquela rede. Assim, se um crocodilo devora um homem, esse animal é necessariamente o instrumento de um feiticeiro ou o próprio feiticeiro. Dessa representação coletiva participam, pois, feiticeiro e crocodilo identificados, este formador mesmo daquele 22. Quinaglia SE. O presente de Prometeu: contribuição a uma antropologia da morte (e da vida) [dissertação]. Florianópolis: Universidade Federal de Santa Catarina; 2008..

Por sua vez, Maurice Leenhardt 99. Leenhardt M. Do kamo: la personne et le mythe dans le monde mélanésien. Paris: Gallimard; 1971. evoca uma concepção de pessoa, enquanto posição na rede de relações sociais, próxima daquela trazida por Lévy-Bruhl 88. Lévy-Bruhl L. La mentalité primitive. 4ª ed. Paris: Félix Alcan; 1925.. O autor reporta que, para os canaque da Nova Caledônia, a pessoa é participativa, social, e só é conhecida pela relação que mantém com os outros. Aliás, além do ser humano, são kamo (ka, “o que”, e mo, “vivo”, “o que vive” ou, ainda, “o verdadeiramente humano”) animal, vegetal e personagem mítico, se compartilham certa humanidade 22. Quinaglia SE. O presente de Prometeu: contribuição a uma antropologia da morte (e da vida) [dissertação]. Florianópolis: Universidade Federal de Santa Catarina; 2008..

O melanésio tampouco distingue o vivente do morto. Deus, cadáver e mesmo vivente consistem no bao. O bao é eloquente em mostrar a tenuidade desse entreato que separa e ao mesmo tempo resguarda a vida da morte. Vida e morte não se opõem nessa realidade mítica. Viventes e bao mantêm-se em intercâmbio constante, e a morte não é encarada como aniquilamento do ser, não é confundida com o nada – não se morre na Melanésia 22. Quinaglia SE. O presente de Prometeu: contribuição a uma antropologia da morte (e da vida) [dissertação]. Florianópolis: Universidade Federal de Santa Catarina; 2008.,99. Leenhardt M. Do kamo: la personne et le mythe dans le monde mélanésien. Paris: Gallimard; 1971..

A própria língua desconhece um termo que traduza o verbo “morrer”. Ela, a morte, aparece como um estado negativo da vida e uma forma diferente da existência, que é, portanto, nos seus aspectos visível e invisível, perene aos olhos do canaque. Assim, a morte participa do personagem e de deus, do kamo e do bao22. Quinaglia SE. O presente de Prometeu: contribuição a uma antropologia da morte (e da vida) [dissertação]. Florianópolis: Universidade Federal de Santa Catarina; 2008.,99. Leenhardt M. Do kamo: la personne et le mythe dans le monde mélanésien. Paris: Gallimard; 1971..

Entre os araweté, para dar um (último) exemplo de uma sociedade ameríndia, a morte também exerce um papel fundamental. Subjaz a ela a concepção de pessoa desse povo tupi-guarani. Eduardo Viveiros de Castro 1010. Viveiros de Castro E. Araweté: os deuses canibais. Rio de Janeiro: Jorge Zahar; 1986. sustenta ser a morte o lugar em que a pessoa araweté se realiza – síntese disjuntiva. Vivos e mortos estão entrelaçados nessa sociedade, e a morte apresenta positividade, ou seja, é complexo produtivo 22. Quinaglia SE. O presente de Prometeu: contribuição a uma antropologia da morte (e da vida) [dissertação]. Florianópolis: Universidade Federal de Santa Catarina; 2008.,1111. Quinaglia SE, Codonho CG. As tecnologias con(tra)ceptivas a partir de noções de pessoa: (des)construindo as significações de morte e vida. Bagoas. 2013;7(9):235-44..

O destino da pessoa araweté é tornar-se outro. Isto é a pessoa nessa sociedade: um devir, uma potencialidade que se completa com a morte e a transformação em deus-canibal. Os Maï, os verdadeiros outros, criaram por exclusão a condição humana, superada pela morte em si e por si. O mito é também aqui manifestação de uma realidade. Os araweté contam que as almas de seus mortos, ao chegarem ao céu, são devoradas pelos deuses, que, em seguida, as ressuscitam, a partir dos ossos; elas tornam-se, então, como os deuses, imortais. A morte desvela, portanto, a concepção tupi-guarani de pessoa. Enquanto devir, a pessoa araweté não é. Ela é um “entre”. A alteridade é constitutiva do ser 22. Quinaglia SE. O presente de Prometeu: contribuição a uma antropologia da morte (e da vida) [dissertação]. Florianópolis: Universidade Federal de Santa Catarina; 2008.,1010. Viveiros de Castro E. Araweté: os deuses canibais. Rio de Janeiro: Jorge Zahar; 1986.,1111. Quinaglia SE, Codonho CG. As tecnologias con(tra)ceptivas a partir de noções de pessoa: (des)construindo as significações de morte e vida. Bagoas. 2013;7(9):235-44..

Segundo Edgar Morin 1212. Morin E. O homem e a morte. Lisboa: Publicações Europa-América; 1970., a recusa e o horror da morte revelam-se sobretudo nas sociedades em que a individualidade é afirmada. Quando, como nos exemplos elencados, o grupo social atua intimamente no indivíduo, dissolve-se sua presença traumática; quando, em contrapartida, o indivíduo afirma-se sobre a ou na sociedade, ela é temida. É por isso que, segundo esse autor, citando Frazer e Hocart, o medo da morte é menos pronunciado nos povos ditos arcaicos do que nas sociedades ditas evoluídas 22. Quinaglia SE. O presente de Prometeu: contribuição a uma antropologia da morte (e da vida) [dissertação]. Florianópolis: Universidade Federal de Santa Catarina; 2008..

Especificamente no Brasil, as atitudes diante da morte e dos mortos são traçadas por Koury 1313. Koury MGP. Apresentação. In: Freire MCB. O som do silêncio: isolamento e sociabilidade no trabalho de luto. Natal: Editora UFRN; 2006. p. 13-26.. Segundo esse autor, o processo de privatização da morte e do morrer instalou-se paulatinamente no país no século XIX e aprofundou-se nas últimas três décadas do século XX. Até os anos 1970, ainda era tradição velar e sofrer pelos mortos publicamente, mas, a partir de então, uma nova economia de afetos, caracterizada pelo controle das emoções, teria emergido na sociedade urbana brasileira 22. Quinaglia SE. O presente de Prometeu: contribuição a uma antropologia da morte (e da vida) [dissertação]. Florianópolis: Universidade Federal de Santa Catarina; 2008..

Koury 1313. Koury MGP. Apresentação. In: Freire MCB. O som do silêncio: isolamento e sociabilidade no trabalho de luto. Natal: Editora UFRN; 2006. p. 13-26. mostra que a morte e sua relação com o mundo dos vivos têm sido apreendidas por códigos mais individualistas e não mais por expressões de uma sociabilidade relacional características da década de 1980, como havia sugerido Roberto DaMatta 1414. DaMatta R. A casa e a rua: espaço, cidadania, mulher e morte no Brasil. 5ª ed. Rio de Janeiro: Rocco; 1997., para quem os sistemas modernos se preocupariam com a morte, enquanto os sistemas relacionais se preocupariam com os mortos. Naqueles, de sociedades individualistas, as práticas tentariam destruir os mortos, deles não devendo ficar nem mesmo uma memória, pois pensar sistematicamente nos falecidos e falar constantemente deles seria uma atitude classificada como patológica. DaMatta 1414. DaMatta R. A casa e a rua: espaço, cidadania, mulher e morte no Brasil. 5ª ed. Rio de Janeiro: Rocco; 1997. considera que o Brasil estaria incluído no segundo grupo 22. Quinaglia SE. O presente de Prometeu: contribuição a uma antropologia da morte (e da vida) [dissertação]. Florianópolis: Universidade Federal de Santa Catarina; 2008..

Contudo, Freire 1515. Freire MCB. O som do silêncio: isolamento e sociabilidade no trabalho de luto. Natal: Editora UFRN; 2006. demonstra que atualmente no país existe um distanciamento dos mortos – substitui-se o convívio familiar pela medicalização em hospitais e posterior sepultamento em locais afastados da cidade, reprova-se o luto público e economizam-se os sentimentos e as emoções. O Brasil estaria, assim, transitando para o grupo que DaMatta 1414. DaMatta R. A casa e a rua: espaço, cidadania, mulher e morte no Brasil. 5ª ed. Rio de Janeiro: Rocco; 1997. define como individualista 22. Quinaglia SE. O presente de Prometeu: contribuição a uma antropologia da morte (e da vida) [dissertação]. Florianópolis: Universidade Federal de Santa Catarina; 2008..

Essa autora assinala, ainda, o surgimento de cemitérios particulares concomitantemente à crescente especulação imobiliária ocorrida nos cemitérios públicos. Citando Maria Elizia Borges, Freire 1515. Freire MCB. O som do silêncio: isolamento e sociabilidade no trabalho de luto. Natal: Editora UFRN; 2006. afirma que os cemitérios brasileiros estão hoje lotados e são precariamente administrados – há falta de funcionários e de vigilância noturna e, portanto, constantes depredações, consequências de minguadas verbas necessárias à manutenção desses locais. A autora parte de uma pesquisa realizada no Morada da Paz, um cemitério particular localizado na cidade de Natal (RN), para mostrar tal processo 22. Quinaglia SE. O presente de Prometeu: contribuição a uma antropologia da morte (e da vida) [dissertação]. Florianópolis: Universidade Federal de Santa Catarina; 2008..

A despeito do surgimento dos cemitérios parques – como é o caso do local pesquisado –, que seriam, além de moradas dos mortos, ambientes de sociabilidade entre os vivos e que poderiam ser concebidos como resultado da formação de uma nova sensibilidade brasileira no século XXI, Freire 1515. Freire MCB. O som do silêncio: isolamento e sociabilidade no trabalho de luto. Natal: Editora UFRN; 2006. afirma que o caminho da individualização é a tônica de enfrentamento da morte no Brasil urbano de hoje. Segundo a autora, esses cemitérios são tão somente espaços societários especializados, destinados aos enlutados e criados pelo jogo mercadológico, que acabam por reafirmar o isolamento dos que sofrem a perda de um ente querido e o silenciamento da dor 22. Quinaglia SE. O presente de Prometeu: contribuição a uma antropologia da morte (e da vida) [dissertação]. Florianópolis: Universidade Federal de Santa Catarina; 2008..

Também em Florianópolis (SC) a higienização afastou do centro da cidade o já mencionado Cemitério São Francisco de Assis, mais conhecido como “Cemitério do Itacorubi” por localizar-se no bairro com o mesmo nome, exatamente na bifurcação que leva às praias do norte e do sul da ilha. Construída próximo à Companhia de Melhoramento da Capital (Comcap), ao lixão e a uma penitenciária, essa necrópole condensa o desajustamento e mesmo a imundície e a poluição a ela atribuídos pela sociedade circundante. O mesmo tabu que recai sobre a morte e os mortos incide sobre esse cemitério e, consequentemente, sobre seus trabalhadores 22. Quinaglia SE. O presente de Prometeu: contribuição a uma antropologia da morte (e da vida) [dissertação]. Florianópolis: Universidade Federal de Santa Catarina; 2008..

Sob a perspectiva da geografia, ao analisar a localização da morte na modelação do espaço urbano em Fortaleza (CE), Maria Clélia Lustosa Costa 1616. Costa MCL. Os cemitérios e a espacialização da morte. In: Almeida MG, Ratts AJP, organizadores. Geografia: leituras culturais. Goiânia: Alternativa; 2003. p. 237-60. sublinha a construção de cemitérios em terrenos elevados e sua arborização (para promover a circulação do ar), tal como acontece no Cemitério São Francisco de Assis, como medidas do discurso médico-higienista brasileiro 22. Quinaglia SE. O presente de Prometeu: contribuição a uma antropologia da morte (e da vida) [dissertação]. Florianópolis: Universidade Federal de Santa Catarina; 2008..

Os cemitérios são espaços simbólicos paradoxais que separam e, concomitantemente, abrigam a vida da morte. São lugares privilegiados para se refletir sobre a morte, como também, e sobretudo, sobre a vida. Como anteposto, discutir a morte consiste, em última instância, em repensar a própria vida.

Aliás, as concepções de morte e vida não são estanques e acabadas. Como mostrado, dependem do contexto simbólico, histórico e social em que são construídas. Tampouco a morte é necessariamente imbuída de negatividade, como igualmente abarcado. Atualmente, entre os eternos companheiros da morte 1717. Anjos A. O coveiro. In: Anjos A. Eu: poesias. Porto Alegre: Mercado Aberto; 1998., como os coveiros do Cemitério São Francisco de Assis, a morte, embora por alguns temida, é considerada um bem necessário – não um “mal necessário”, como quer a expressão corrente. Também é tida como uma passagem ou a personificação de alguém a quem se entregam os mortos e que lhes fornece proteção. É, ainda, considerada bonita 22. Quinaglia SE. O presente de Prometeu: contribuição a uma antropologia da morte (e da vida) [dissertação]. Florianópolis: Universidade Federal de Santa Catarina; 2008..

O banimento da ideia de morte em nome de um mito de imortalidade tem como efeito perverso a ignorância da própria condição humana. Ora, o que é a morte senão essa alteridade que a um só tempo nos aniquila e nos constitui? Ser humano é admitir a possibilidade de não-ser 1818. Quinaglia SE. Entre o fim e o princípio: a existência: ser não ser, eis a questão! Rev Ciênc Hum UFSC. 2009;43(2):589-97.. Nesse sentido, pode-se (e deve-se) questionar como lidamos com a morte. Quais são, por exemplo, as consequências do prolongamento da vida a todo custo, em nome da quantidade de um tempo pretensamente infindo e em detrimento da qualidade da morte e dos cuidados que o final da vida requer? Como, então, ressignificar a existência?

Este debate estende-se a discussões próprias da bioética, como o direito de morrer de forma digna, a realização de pesquisas com células-tronco e o direito ao aborto. Esse campo disciplinar suscita reflexões sobre os liames entre a vida e a morte mediante a constatação da existência de um pluralismo moral, que atenta para saberes e fazeres diversos concernentes à morte (e consequentemente à vida), a depender do contexto histórico e sociocultural considerado, tal como evocado ao longo deste texto. (Re)conhecer essa diversidade de concepções (de vida e morte) e de moralidades a elas associadas possibilita ressignificá-las.

A bioética em uma perspectiva antropológica crítica

As noções de morte (e também de vida) são, portanto, variáveis. Atentar para essa variabilidade, segundo conformações sociais e arranjos culturais existentes no Ocidente, em geral, e no Brasil, em particular, significa admitir a insuficiência de modelos dogmáticos e autoritários e a necessidade de discutir questões bioéticas a partir de diferentes moralidades que emergem de contextos específicos.

Esta análise permite refletir sobre os limites do principialismo, teoria baseada nos princípios da autonomia, beneficência, não-maleficência e justiça, que surgiu nos Estados Unidos em 1979 como proposta de mediação de conflitos morais e difundiu-se em outros países, como o Brasil. A despeito de sua importância, seu caráter pretensamente universal ignora realidades socioculturais diversas 1919. Diniz D, Guilhem D. O que é bioética. São Paulo: Brasiliense; 2008..

Ao colocar em perspectiva a vida e a morte em uma sociedade simbólica, histórica e socialmente variegada como o é a ocidental, e mais particularmente a brasileira, podem ocorrer deslocamentos entre aquilo que é ou não moralmente aceitável. Isso se reflete diretamente nas concepções socialmente construídas de legalidade e ilegalidade e na consequente (des)autorização na formulação de políticas públicas, especificamente nos casos abordados pela bioética. Diferentes moralidades fundamentam acepções distintas de morte e de vida e, por conseguinte, conformam ações estatais diversas. Essa abordagem permite entender o motivo de, por um lado, a eutanásia e o aborto serem permitidos em países como a Holanda e a Bélgica e, por outro, serem criminalizados no Brasil.

Ainda na área da saúde, esta discussão também provoca o entendimento do processo saúde-doença para além de fatores biológicos – que atestam que doenças são causadas por agentes etiológicos, como vírus e bactérias – ao abarcar dimensões sociais e culturais. São alguns desses entreatos que este estudo intentou percorrer.

No caso específico do Brasil, a reflexão proposta possibilita entrever a existência de valores múltiplos em uma sociedade diversificada, composta por populações ameríndias, quilombolas etc., com desigualdades étnico-raciais, além daquelas relacionadas, por exemplo, ao gênero e à classe. Essas populações também devem participar das decisões concernentes a elas, como aquelas atinentes à vida e à morte.

Nesse cenário, a antropologia torna-se um contraponto à teoria principialista por apresentar etnografias de diferentes moralidades, que, como anteposto, extrapolam os quatro princípios. Aliás, para recorrer a esses princípios seria necessário, antes, encontrar mecanismos de reparação social para que eles fossem garantidos, o que não ocorre em contextos de desigualdade como o brasileiro 1919. Diniz D, Guilhem D. O que é bioética. São Paulo: Brasiliense; 2008..

As demandas e os direitos de minorias no Brasil devem, portanto, fazer parte das discussões sobre a bioética em um sentido amplo, afinal, esse campo disciplinar deve atentar para a diversidade de valores que conformam o país. Dirimir conflitos éticos requer considerar moralidades não hegemônicas, e uma bioética social deve ser capaz de investigar as bases histórico-sociais desses problemas a partir de realidades concretas, não de princípios abstratos pretensamente universais 2020. Vidal S. Bioética y desarrollo humano: una visión desde América Latina. Rev Redbioética. 2010;1(1):81-123..

Nascer e morrer, interromper e prolongar a vida, mantê-la artificialmente, transplantar órgãos são questões permeadas por definições de vida e de morte não unívocas, como exposto neste trabalho. Uma perspectiva crítica ao principialismo que proponha, por exemplo, abordar direitos humanos, entre os quais o direito à saúde, deve contemplar as especificidades históricas, sociais, econômicas e culturais de indivíduos, comunidades e populações alvo de decisões ético-políticas. E é essa a perspectiva que este trabalho pretendeu invocar.

Especificamente sobre a tênue fronteira entre a vida e a morte, Claude Lévi-Strauss sustenta que, na verdade, tudo se passa como se a cultura e a sociedade surgissem entre os seres vivos como duas respostas complementares ao problema da morte: a sociedade para impedir que o animal saiba que ele é mortal, a cultura como reação do homem à consciência de que ele o é2121. Lévi-Strauss C. Paroles données. Paris: Plon; 1984..

De acordo com Zygmunt Bauman, é porque sabemos que devemos morrer que estamos tão ocupados produzindo vida. É porque estamos conscientes da mortalidade que preservamos o passado e criamos o futuro. A mortalidade é nossa sem perguntar – mas a imortalidade é algo que devemos nós mesmos construir. A imortalidade não é mera ausência de morte; é desafio e negação da morte. (…) Não haveria imortalidade sem mortalidade. Sem mortalidade, não haveria história, não haveria cultura – não haveria humanidade2222. Bauman Z. Mortality, immortality and other life strategies. Cambridge: Polity Press; 1992.. Finalmente, Edgar Morin 1212. Morin E. O homem e a morte. Lisboa: Publicações Europa-América; 1970. assevera que sociedade e cultura existem não apenas apesar da morte e contra ela, mas também pela morte, com a morte e na morte.

Destarte, refletir sobre a construção do ideário da morte na sociedade ocidental permite repensar a vida e encarar a morte não somente como fenecimento, mas como a possibilidade mais própria e insuperável da existência humana. Os apontamentos aqui apresentados suscitam uma reapropriação da(s) significação(ões) do morrer e do viver. Encarar a morte como constituinte da vida significa, assim, arrostar a impossibilidade do nada, fim inexorável, como possibilidade infinda, em suas diversas acepções e seus diferentes sentidos.

Referências

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Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    21 Fev 2019
  • Data do Fascículo
    Jan-Mar 2019

Histórico

  • Recebido
    31 Jul 2017
  • Revisado
    25 Maio 2018
  • Aceito
    15 Jun 2018
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