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Desigualdade, bioética e Direitos Humanos

Resumos

Este artigo tem como objetivo salientar o papel da Declaração Universal sobre Bioética e Direitos Humanos (DUBDH) como a recomendação teórico-normativa mais adequada na proposição de aportes reflexivos e prescritivos sobre o atual contexto de desigualdade, particularmente em saúde. O estudo envolveu revisão bibliográfica e documental acerca da desigualdade e seu desdobramento na esfera da saúde, bem como sobre a DUBDH. Verifica-se que a DUBDH fornece ferramentas que permitem a reflexão e a prescrição acerca da desigualdade, notadamente por meio do princípio da justiça e da cooperação internacional. O princípio da justiça clama aos Estados e instituições internacionais a adoção de políticas destinadas a reconfigurar a atual distribuição de recursos no mundo, e, na mesma linha, a cooperação internacional impele à conformação de modelos cooperativos que tomem em conta, prioritariamente, a desigualdade entre os países e grupos populacionais e, dessa forma, contribuam para o incremento da solidariedade entre os povos.

Desigualdade em saúde; Iniquidade social; Equidade em saúde; Justiça social; Direitos humanos; Bioética; Cooperação internacional


The aim of this article is to demonstrate that the Universal Declaration on Bioethics and Human Rights (UDBHR) constitutes an appropriate theoretical-normative tool for proposing reflexive and prescriptive contributions on the current context of inequality, particularly in health. The study involves bibliographical and documentary review concerning inequality and how it unfolds in the health area, as well as the UDBHR. It has been found that the UDBHR provides tools that make possible reflection and prescription regarding inequality, notably through the principles of justice and of international cooperation. The principle of justice convokes the States and international institutions to adopt policies aimed at reconfiguring the current system of distribution of resources in the world; and the principle of international cooperation lends impulse to the shaping of models of cooperation that give priority to inequality among the countries and population groups, and that contribute to growing solidarity among the peoples.

Health inequalities; Social inequity; Equity in health; Social justice; Human rights; Bioethics; International cooperation


Este artículo tiene como objetivo destacar el papel de la Declaración Universal sobre Bioética y Derechos Humanos (DUBDH) como la recomendación teórico-normativa más adecuada para proponer planteamientos reflexivos y prescriptivos en el actual contexto de la desigualdad, especialmente en la salud. Este estudio involucró revisión bibliográfica y documental sobre la desigualdad y su impacto en el sector de la salud; así como la DUBDH. Constatase que la DUBDH proporciona herramientas que permiten la reflexión y la prescripción sobre la desigualdad, especialmente a través del principio de la justicia y la cooperación internacional. El principio de justicia clama los estados y las instituciones internacionales para que adopten políticas destinadas a la reconfiguración de la actual distribución de los recursos en el mundo y la cooperación internacional impulsa la conformación de modelos de cooperación que tengan en cuenta principalmente la desigualdad entre países y grupos poblacionales y contribuyan para mayor solidaridad entre los pueblos.

Desigualdad en la salud; Inequidad social; Equidad en salud; Justicia social; Derechos humanos; Bioética; Cooperación internacional


A desigualdade de renda e de riqueza é reconhecida como uma das maiores ameaças sociais dos nossos tempos 1. Dorling D. Inequality and the 1%. London: Verso; 2014.. Segundo Piketty,a questão da desigualdade e da redistribuição está no cerne dos conflitos políticos 2. Piketty T. A economia da desigualdade. Rio de Janeiro: Intrínseca; 2014. p. 9.. Com efeito, trata-se de um dos problemas mais graves da contemporaneidade, e atinge países de alta, média e baixa renda, bem como repercute em diferentes âmbitos da vida das pessoas, como saúde, nutrição, educação, violência e mortalidade 3. Medeiros M, Souza PHGF, Castro FA. A estabilidade da desigualdade de renda no Brasil, 2006 a 2012: estimativa com dados do imposto de renda e pesquisas domiciliares. Ciênc Saúde Coletiva. [Internet]. 2015 [acesso 21 jan 2015];20(4):971-86. DOI: http://dx.doi.org/10.1590/1413-81232015204.00362014
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. A desigualdade refere-se ao acesso não equitativo a recursos, que provoca diferenças injustas entre indivíduos e grupos de pessoas, em nível nacional e internacional. No cenário atual, a desigualdade é uma questão global, intimamente conectada com o neoliberalismo e a globalização econômica. O movimento neoliberal e a globalização da economia, ampliados para os diferentes continentes a partir da década de 1980, trouxeram também novas configurações nas comunicações, na geopolítica das fronteiras e nas questões globais referentes à saúde, à educação e à bioética 1. Dorling D. Inequality and the 1%. London: Verso; 2014..

De acordo com Piketty 2. Piketty T. A economia da desigualdade. Rio de Janeiro: Intrínseca; 2014. p. 9. e Medeiros e colaboradores 3. Medeiros M, Souza PHGF, Castro FA. A estabilidade da desigualdade de renda no Brasil, 2006 a 2012: estimativa com dados do imposto de renda e pesquisas domiciliares. Ciênc Saúde Coletiva. [Internet]. 2015 [acesso 21 jan 2015];20(4):971-86. DOI: http://dx.doi.org/10.1590/1413-81232015204.00362014
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, Dreifuss, ao definir o conceito de desigualdade, refere que sob a denominação de “globalização” são agrupados diferentes fenômenos, além de um conjunto de processos pertencentes ao âmbito da economia, tais como pesquisa, financiamento, produção, administração, comercialização, que se espraia nas sociedades, se expressa na cultura e marca a política, condicionando a governança global. A globalização econômica também desencadeou outros fenômenos que modalizaram as formas de interação humana por meio de distintos processos sociais 4. Lee K. Globalization and health policy: A conceptual framework and research and policy agenda. In: Bambas A, Casas JA, Drayton H, Valdés A, editors. Health and human development in the new global economy: The contributions and perspectives of civil society in the Americas. Washington, DC: PAHO; 2000. p. 15-41., como a mobilidade de bens e pessoas e a expansão da internet 5. Buss P. Globalização, pobreza e saúde. Ciênc Saúde Coletiva. 2007;12(6):1575- 89.. Assim, por um lado, o mundo se revela cada vez mais diverso, plural e complexo, e, por outro, apresenta uma unidimensionalidade econômica 6. Beck B ¿Qué es la globalización? Falacias del globalismo, respuestas a la globalización. Barcelona:Paidós; 1998., caracterizada pela concentração financeira.

Há mais de uma década a economia globalizada encontra-se em crise, iniciada nos países de renda alta e com desdobramentos para os demais, e aprofundada a partir de 2008, em decorrência de desequilíbrios orçamentários e da falta de regulação dos mercados financeiros. Tal crise tem repercutido no cumprimento dos direitos sociais por parte dos Estados, uma vez que se verifica a supressão gradativa dos gastos sociais como medida de contenção de despesas e redução de investimentos. Outro efeito significativo da crise que impacta os direitos sociais é o aumento da concentração financeira entre os Estados e também entre as pessoas, criando um cenário de desigualdade social e de concentração de riqueza e poder nas mãos de 1% da população mundial, em detrimento dos 99% restantes. Em países como os Estados Unidos e o Reino Unido, após o choque inicial da crise de 2008, os ricos se tornaram super-ricos 1. Dorling D. Inequality and the 1%. London: Verso; 2014..

Uma série de protestos vem acontecendo no mundo, diante desse cenário de desigualdade4. Lee K. Globalization and health policy: A conceptual framework and research and policy agenda. In: Bambas A, Casas JA, Drayton H, Valdés A, editors. Health and human development in the new global economy: The contributions and perspectives of civil society in the Americas. Washington, DC: PAHO; 2000. p. 15-41.,5. Buss P. Globalização, pobreza e saúde. Ciênc Saúde Coletiva. 2007;12(6):1575- 89.. Pela perspectiva global, a maior parte dessas manifestações, ocorridas a partir de janeiro de 2006, teve como foco as questões de justiça econômica. Em 2006 foram realizados 59 grandes protestos em várias partes do globo, e apenas na primeira metade de 2013 registraram-se 113 eventos de dimensão semelhante. Tais protestos são prevalentes nos países de renda alta, visto que suas populações vêm se organizando para enfrentar os efeitos das desigualdades 1. Dorling D. Inequality and the 1%. London: Verso; 2014..

Observa-se, a partir da crise econômica, que mesmo os países ricos vêm perdendo sua capacidade de governança, de execução de políticas públicas que distribuam melhor a riqueza internamente e de promoção do desenvolvimento humano. Esse cenário de desigualdade torna-se ainda maior quando analisado com base em distintos contextos e categorias, como países de renda alta e renda baixa, grupos populacionais diferentes em gênero, idade, cor, etnias, entre outros.

Tratar a desigualdade sempre foi desafiante, na medida em que ela se dá tanto no espaço público, em Estados que utilizam modelos democráticos ou de regime centralizador, quanto nos espaços privados, como se verifica, por exemplo, em relação às mulheres, aos idosos, às populações discriminadas por cor e etnia. Há, no entanto, a tendência, sobretudo no mundo ocidental, de sustentar a ideia da igualdade como um princípio ético-jurídico, o qual passou a ser difundido principalmente após a adoção da Declaração Universal dos Direitos Humanos 7. Organização das Nações Unidas. Declaração Universal dos Direitos Humanos. Adotada e proclamada pela Resolução 217 A (III) da Assembleia Geral das Nações Unidas em 10 de dezembro de 1948. [Internet]. 1948 [acesso 18 jun 2015]. Disponível: http://www.direito.mppr.mp.br/arquivos/File/declaracaouniversal.pdf
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pela Organização das Nações Unidas (ONU), em 1948. Esse entendimento foi reafirmado na esfera da bioética, embora não sem polêmica 8. Oliveira AAS. Bioética e direitos humanos. São Paulo: Loyola; 2011., e aprofundado nos debates sobre equidade, como princípio adequado à reflexão acerca da desigualdade contemporânea na Declaração Universal sobre Bioética e Direitos Humanos (DUBDH) 9. Organização das Nações Unidas para a Educação, Ciência e Cultura. Declaração Universal sobre Bioética e Direitos Humanos. [Internet]. Paris/Lisboa: Unesco; 2006 [acesso 18 jun 2015]. Disponível: http://unesdoc.unesco.org/images/0014/001461/146180por.pdf
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, aprovada pela Organização das Nações Unidas para a Educação, Ciência e Cultura (Unesco), em 2005. Cortina, em 2010, ao questionar na introdução de sua obra “Ética sem moral” se a ordem moral é realidade ou ficção, pontua:Ficções, tudo ficções para ordenar, mediante leis necessárias, um mundo caótico no qual reinam o acaso e a contingência, um mundo no qual a desigualdade é a maior das evidências antropológicas1010 . Cortina A. Ética sem moral. São Paulo: Martins Fontes; 2010. p. 11..

Considerando a desigualdade, particularmente no âmbito da saúde, problematiza-se o modo pelo qual a bioética vem contribuindo para a reflexão e prescrição acerca desse tema. Contudo, não se revela adequado tratar a bioética como um campo do saber normativo homogêneo, especialmente quando se considera a pluralidade de correntes bioéticas. Assim, optou-se, neste artigo, por empregar como base teórica para analisar a desigualdade, a partir da perspectiva global, a dimensão normativa da bioética, particularmente a DUBDH.

A escolha da DUBDH como referencial teórico-normativo deu-se em virtude de ser um documento que, apesar de ter suscitado debates e polêmicas iniciais sobre sua necessidade e recomendações, conseguiu avançar em conceitos como o da saúde, bem como viabilizar consensos universais acerca de temáticas bioéticas. Sendo assim, este artigo tem como objetivo ressaltar a importância da DUBDH como propiciadora de ferramentas teórico-normativas adequadas, na medida em que apresenta aportes reflexivos e prescritivos sobre o atual contexto de desigualdade, especialmente em saúde. Para tanto, os passos metodológicos adotados neste estudo envolveram revisão bibliográfica e documental a respeito do tema da desigualdade, notadamente o relatório da Oxford Committee for Famine Relief (Oxfam) de 2015 1111 . Oxford Committee for Famine Relief. Wealth: Having it all and wanting more. [Internet]. 2015 [acesso 22 jan 2015]. Disponível: http://www.oxfam.org/sites/www.oxfam.org/files/file_attachments/ib-wealth-having-all-wanting-more-190115-en.pdf
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, e sobre seu desdobramento na esfera da saúde, na qual o marco teórico de referência consiste nos estudos desenvolvidos por Daniels 1212 . Daniels N. Just health: Meeting health needs fairly. New York: Cambridge University Press; 2008. e Labonté e Schrecker 1313 . Labonté R, Schrecker T. The state of global health in a radically unequal world: Patterns and prospects. In: Benatar S, Brock G. Global health and global health ethics, editors. Cambridge, UK/New York: Cambridge University Press; 2012. p. 24-36.. Quanto à DUBDH, serviram de base as pesquisas que enfocam o princípio da justiça e a cooperação internacional, bem como os trabalhos de outros autores 1414 . Garrafa V, Porto D. Intervention bioethics: A proposal for peripheral countries in a context of power and injustice. Bioethics. 2003;17(5-6):399-416.

15 . Schramm RF. Bioética da proteção: ferramenta válida para enfrentar problemas morais na era da globalização. Rev. bioét. (Impr.). 2008;16(1):11-23.
-1616 . Fortes PAC. A equidade no sistema de saúde na visão de bioeticistas brasileiros. Rev Assoc Med Bras. 2010;56(1):47-50. que vêm se debruçando sobre esses princípios a partir de dados referentes às dimensões econômicas e sociais na atualidade 1717 . Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada. Objetivos de desenvolvimento do milênio: Relatório Nacional de Acompanhamento. Brasília: Ipea; 2010 [acesso 21 jan 2015]. Disponível: http://www.pnud.org.br/Docs/5_RelatorioNacionalAcompanhamentoODM.pdf
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18 . Carin B, Bates-Eamer N.Poast 2015 Goals, Targets and Indicators: Conference report; 10-11 abr 2012; Paris. [Internet]. Ontario, Canada: Centre for International Governance Innovation; 2012 [acesso 21 jan 2015]. Disponível: http://www.cigionline.org/publications/2012/10/post-2015-development-agenda-goalstargets-and-indicators
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-1919 . The World We Want. Health in the post-2015 agenda: Report of the Global Thematic Consultation on Health; apr 2013; Gaborone, Botswana. [Internet]. 2013 [acesso 21 jan 2015]. Disponível: http://www.worldwewant2015.org/file/337378/download/366802
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A desigualdade em geral – e, notadamente, a de renda e a de riqueza – impacta as temáticas bioéticas, de modo que, no exame das questões morais, os bioeticistas devem contemplá-la a partir de suas variadas facetas. No mesmo sentido, instrumentais da bioética podem contribuir para a reflexão sobre a desigualdade, particularmente na esfera da saúde. Desse modo, este artigo se estrutura em três partes, com o fito de abordar as temáticas da desigualdade, bem como sua especificidade na área da saúde e sua conexão com a bioética.

A primeira parte expõe o panorama global da desigualdade econômica e social, a fim de apresentar o quadro contemporâneo da distribuição de riqueza e poder. A segunda versa sobre a desigualdade na esfera da saúde, demonstrando sua repercussão, em termos econômicos, social e de poder, na saúde das populações, e, por fim, toma-se como tema a DUBDH e, em particular, o emprego dos princípios aludidos como ferramenta para a reflexão e a prescrição acerca da desigualdade atual, priorizando a abordagem da saúde.

O panorama global das desigualdades

Dados disponíveis sobre questões econômicas e sociais revelam que o mundo contemporâneo permanece extremamente desigual. Na dimensão econômica, o estudo da Oxfam 1111 . Oxford Committee for Famine Relief. Wealth: Having it all and wanting more. [Internet]. 2015 [acesso 22 jan 2015]. Disponível: http://www.oxfam.org/sites/www.oxfam.org/files/file_attachments/ib-wealth-having-all-wanting-more-190115-en.pdf
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mostra que a concentração da riqueza atingiu cifras alarmantes, principalmente depois da crise econômica instalada na década passada. Prova disso é que, em 2010, as 388 pessoas mais ricas do mundo passaram a deter um montante patrimonial equivalente ao de 3,5 bilhões de pessoas (48% da população mundial). As 80 pessoas mais ricas do mundo possuíam, naquela ocasião, patrimônio igual à metade da população mais pobre do planeta. Mais grave ainda é a previsão de que tal cenário deve piorar; esses 80 mais ricos, que já tiveram suas fortunas aumentadas entre os anos de 2010 e 2014, passarão a concentrar 50% de toda a riqueza mundial em 2016.

Para Dorling 2020 . Dorling, D. Op.cit. p. 1., ao fazer referência às considerações de Shiller sobre os efeitos danosos da voracidade dos super-ricos, esses são superiores aos da crise de 2008. Os super-ricos contribuem para o incremento da desigualdade não apenas apropriando-se cada vez mais da riqueza mundial, mas também promovendo a ideia de que essa voracidade é aceitável, já que possuem meios de comunicação próprios, como jornais e canais de televisão, que lhes servem acriticamente 1. Dorling D. Inequality and the 1%. London: Verso; 2014.. Note-se que, dos bilionários da lista, aqueles que atuam na área farmacêutica e de cuidados em saúde tiveram o maior aumento de suas fortunas entre 2013 e 2014.

No entanto, o debate sobre a desigualdade não é novo, como revela Piketty 2121 . Piketty T. O capital no século XXI. Rio de Janeiro: Intrínseca; 2014.. De acordo com o autor, a concentração da riqueza e a desigualdade pouco mudaram desde o início dos registros históricos na França e Inglaterra a partir do século XIX, e, mesmo tendo havido declínio na concentração da riqueza no final daquele século e no início do século XX, essa concentração voltou a crescer com a globalização financeira, a partir das décadas de 1970 e 1980. Ressalte-se a tendência, verificada no Reino Unido, mas que pode ser ampliada para outros países, de que, apesar de haver maior igualdade entre os 99% menos ricos da população, o mesmo não se pode afirmar quando são comparados com o 1% mais rico, cuja riqueza vem aumentando, ao passo que os 99% vêm empobrecendo 1. Dorling D. Inequality and the 1%. London: Verso; 2014..

Em que pese o esforço da comunidade internacional em formular políticas voltadas para a promoção do desenvolvimento econômico e social global, como demonstram osObjetivos de Desenvolvimento do Milênio (ODM), aprovados pela Assembleia Geral da ONU no ano 2000, verifica-se que, diante da crise econômica iniciada nessa mesma década, alguns setores não conseguiram avançar na direção do cumprimento dos objetivos, em razão de variados fatores, entre eles a retomada do crescimento da desigualdade econômico-financeira 1111 . Oxford Committee for Famine Relief. Wealth: Having it all and wanting more. [Internet]. 2015 [acesso 22 jan 2015]. Disponível: http://www.oxfam.org/sites/www.oxfam.org/files/file_attachments/ib-wealth-having-all-wanting-more-190115-en.pdf
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,1717 . Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada. Objetivos de desenvolvimento do milênio: Relatório Nacional de Acompanhamento. Brasília: Ipea; 2010 [acesso 21 jan 2015]. Disponível: http://www.pnud.org.br/Docs/5_RelatorioNacionalAcompanhamentoODM.pdf
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18 . Carin B, Bates-Eamer N.Poast 2015 Goals, Targets and Indicators: Conference report; 10-11 abr 2012; Paris. [Internet]. Ontario, Canada: Centre for International Governance Innovation; 2012 [acesso 21 jan 2015]. Disponível: http://www.cigionline.org/publications/2012/10/post-2015-development-agenda-goalstargets-and-indicators
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-1919 . The World We Want. Health in the post-2015 agenda: Report of the Global Thematic Consultation on Health; apr 2013; Gaborone, Botswana. [Internet]. 2013 [acesso 21 jan 2015]. Disponível: http://www.worldwewant2015.org/file/337378/download/366802
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,2121 . Piketty T. O capital no século XXI. Rio de Janeiro: Intrínseca; 2014.. Cabe observar que o debate ocorrido na elaboração dos ODM sobre a aplicação do princípio da justiça com vistas ao desenvolvimento humano das populações não vem sendo considerado na discussão das medidas de enfrentamento da crise econômica, que se resumem na contenção dos gastos sociais e no equilíbrio financeiro dos países. Tais medidas, na verdade, têm sido executadas conforme as mesmas velhas fórmulas, subtraindo políticas e ações redistributivas e revertendo a meta de alcançar ambiente mais igualitário 2222 . España. Real Decreto-ley 16, de 20 de abril de 2012. De medidas urgentes para garantizar la sostenibilidad del Sistema Nacional de Salud y mejorar la calidad y seguridad de sus prestaciones. Boletín Oficial del Estado. [Internet]. 24 abr 2012 [acesso jan 2015];(98):31278-312. Disponível: http://www.boe.es/buscar/pdf/2012/BOE-A-2012-5403-consolidado.pdf
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A repercussão mais imediata da crise econômica revela-se no aumento do desemprego e na perda da renda familiar. Contudo, impacta, igualmente, as políticas públicas sociais, na medida em que os Estados vêm adotando medidas como a contenção de despesas e diminuição dos investimentos, cujos efeitos se fazem sentir na manutenção dos sistemas universalistas de saúde e educação, consagrados como políticas equitativas de enfrentamento das desigualdades 2323 . Abellãn Perpiñám JM, editor. El sistema público en España y sus comunidades autónomas: sostenibilidad y reformas. Bilbao: Fundación BBVA; 2013.. Exemplo desse impacto se dá no Reino Unido, onde os serviços de saúde são universais, e a série de reduções dos gastos sociais, com a consequente redução das visitas de assistentes sociais a idosos, culminou no aumento da mortalidade entre os indivíduos desse grupo etário 1. Dorling D. Inequality and the 1%. London: Verso; 2014..

Ao analisar as variáveis da desigualdade de diversos países, desagregadas por raça, gênero, idade, entre outros indicadores, comprova-se que, além da concentração da riqueza pela minoria, há também a discriminação como consequência de um padrão relacionado aos atributos do homem branco e em idade produtiva, cujo grupo demográfico geralmente apresenta melhores indicadores 2424 . Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada. Diretoria de Estudos e Políticas Sociais. Políticas sociais: acompanhamento e análise: anexo estatístico. [Internet]. 2014 [acesso 21 jan 2015];(22). Disponível: http://www.ipea.gov.br/portal/images/stories/PDFs/politicas_sociais/140930_bps22_anexo.pdf
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,2525 . São Paulo (Estado). Fundação Sistema Estadual de Análise de Dados (Sead). Portal de Estatísticas do Estado de São Paulo. Indicadores de desigualdade Racial – IDR. [Internet]. [acesso 28 jan 2015]. Disponível: http://produtos.seade.gov.br/produtos/idr
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. Quanto à América Latina em especial, importa frisar que se trata da região mais desigual do mundo, onde a distribuição da riqueza vem atrelada a uma estrutura social fortemente hierarquizada, produto não apenas de sua história, mas também da dinâmica econômica global 2626 . Delgadillo Ramírez D. Pobreza y desigualdad en la cooperación internacional. Observatorio de Cooperación Internacional para el Desarrollo en México. [Internet]. 2009 [acesso 26 abr 2015]. Disponível: http://www.academia.edu/1854174/Pobreza_y_desigualdad_en_la_Cooperaci%C3%B3n_Internacional
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No Brasil, Medeiros e colaboradores demonstram que a desigualdade apresenta elevados níveis, quase metade de toda a renda do país concentra-se nos 5% mais ricos e um quarto da renda, no 1% mais rico: O milésimo mais rico acumula mais renda que toda a metade mais pobre da população 3. Medeiros M, Souza PHGF, Castro FA. A estabilidade da desigualdade de renda no Brasil, 2006 a 2012: estimativa com dados do imposto de renda e pesquisas domiciliares. Ciênc Saúde Coletiva. [Internet]. 2015 [acesso 21 jan 2015];20(4):971-86. DOI: http://dx.doi.org/10.1590/1413-81232015204.00362014
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. Portanto, no Brasil constata-se tendência semelhante à verificada no Reino Unido; ou seja, embora tenha havido mudança na base da distribuição entre os 99% mais pobres, permanece a concentração entre o 1% mais rico. Da mesma forma, embora a renda no Brasil tenha crescido, a repartição do incremento foi desigual, apenas cerca de um décimo de todo o crescimento foi para as mãos da população mais pobre do país. Metade do crescimento coube aos 5% mais ricos, 28% ao 1% mais rico 3. Medeiros M, Souza PHGF, Castro FA. A estabilidade da desigualdade de renda no Brasil, 2006 a 2012: estimativa com dados do imposto de renda e pesquisas domiciliares. Ciênc Saúde Coletiva. [Internet]. 2015 [acesso 21 jan 2015];20(4):971-86. DOI: http://dx.doi.org/10.1590/1413-81232015204.00362014
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Ressalte-se o reconhecimento de importantes iniciativas para a universalização do acesso a serviços de saúde e ao ensino fundamental. Contudo, mesmo em tais esferas persistem desigualdades significativas, como, por exemplo, a existência de maior número de anos de estudo na faixa etária a partir dos 15 anos, nas famílias de maior renda, entre os de cor branca, sexo feminino, que vivem em áreas urbanas das regiões mais desenvolvidas do país; enquanto pardos, negros, entre outros apresentavam os piores indicadores em qualquer região geográfica do país, tanto em área urbana quanto rural 2727 . Castro JA. Evolução e desigualdade na educação brasileira. Educ Soc. [Internet]. 2009 [acesso 29 jan 2015];30(108). Disponível: http://www.scielo.br/scielo.php?pid=S0101-73302009000300003&script=sci_arttext
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A dimensão econômica é central no debate sobre a interface entre bioética e desigualdade, pois está ligada à sobrevivência dos seres humanos, que vivem em sociedades de regime econômico globalizado e patrimônio concentrado, embora preconizadoras da igualdade como direito humano 7. Organização das Nações Unidas. Declaração Universal dos Direitos Humanos. Adotada e proclamada pela Resolução 217 A (III) da Assembleia Geral das Nações Unidas em 10 de dezembro de 1948. [Internet]. 1948 [acesso 18 jun 2015]. Disponível: http://www.direito.mppr.mp.br/arquivos/File/declaracaouniversal.pdf
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,9. Organização das Nações Unidas para a Educação, Ciência e Cultura. Declaração Universal sobre Bioética e Direitos Humanos. [Internet]. Paris/Lisboa: Unesco; 2006 [acesso 18 jun 2015]. Disponível: http://unesdoc.unesco.org/images/0014/001461/146180por.pdf
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. Durante o século passado e início deste, com a elaboração e difusão da DUBDH e de correntes bioéticas socialmente engajadas, ganha força o debate sobre o princípio da justiça e medidas relacionadas ao princípio da cooperação internacional, cujo foco recai na urgência de maior aporte de recursos, por parte das sociedades, às pessoas mais necessitadas, com o objetivo de alcançar um horizonte mais igualitário no mundo 9. Organização das Nações Unidas para a Educação, Ciência e Cultura. Declaração Universal sobre Bioética e Direitos Humanos. [Internet]. Paris/Lisboa: Unesco; 2006 [acesso 18 jun 2015]. Disponível: http://unesdoc.unesco.org/images/0014/001461/146180por.pdf
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,1414 . Garrafa V, Porto D. Intervention bioethics: A proposal for peripheral countries in a context of power and injustice. Bioethics. 2003;17(5-6):399-416..

No que tange a outros tipos de desigualdade, a de gênero ainda se revela um grave problema mundial. O Brasil parece acompanhar um fenômeno que também ocorre nos países mais desenvolvidos, onde as mulheres têm apresentado melhor condição de saúde e maior número de anos de estudo, inclusive de nível superior, o que não tem se refletido no mercado de trabalho, conforme revelou Craide 2828 . Craide S. Brasil piora em ranking mundial de desigualdade de gênero. Agência Brasil. [Internet]. 28 out 2014 [acesso 29 jan 2015]. Disponível: http://agenciabrasil.ebc.com.br/direitos-humanos/noticia/2014-10/brasil-cai-em-ranking-que-analisa-diferencas-entre-homens-e
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, ao mencionar os levantamentos apresentados no Fórum Social Mundial de 2014 pelo Global Gender Report 2014. Não obstante a significativa melhoria apresentada por alguns países, na maioria compreendida nesse relatório, as mulheres ainda ocupam menos cargos diretivos e/ou executivos e ganham salários mais baixos que os homens, mesmo em postos de direção.

No mesmo sentido, a desigualdade relativa à raça no Brasil, particularmente das populações negra e indígena, é fato sobre o qual se deve lançar luz, pois são esses grupos – e, nos estratos urbanos, especialmente os negros – que ainda apresentam os piores indicadores de analfabetismo, saúde e renda, entre outros, mostrando que, a despeito de melhorias decorrentes das políticas públicas, tais avanços não foram suficientes para reverter a desigualdade em relação à população branca 2929 . Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada. Situação social da população negra. [Internet]. Brasília: Ipea; 2014 [acesso 10 fev 2015]. Disponível: http://www.ipea.gov.br/portal/images/stories/PDFs/livros/livros/livro_situacao-social-populacao-negra.pdf
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O cenário da desigualdade em saúde na contemporaneidade

As disparidades nas condições de saúde dos indivíduos e grupos populacionais, em larga dimensão, são conectadas com a distribuição desigual em nível global dos recursos necessários para a saúde 1313 . Labonté R, Schrecker T. The state of global health in a radically unequal world: Patterns and prospects. In: Benatar S, Brock G. Global health and global health ethics, editors. Cambridge, UK/New York: Cambridge University Press; 2012. p. 24-36.. Daniels 3030 . Daniels N. Op.cit. p. 334., referindo-se aos estudos de Pogge, enfatiza que 18 milhões de mortes evitáveis e prematuras estão associadas à pobreza global. As correlações entre a desigualdade de renda, de riqueza e de outras espécies, e as condições de saúde dos indivíduos e de grupos populacionais vêm sendo expostas tanto na literatura especializada quanto em documentos produzidos por organismos internacionais. Para dar um exemplo da segunda abordagem, a Organização Pan-Americana de Saúde (Opas), com intensa participação da delegação brasileira, elaborou em 2014 um documento sobre saúde para os debates sobre desenvolvimento sustentável baseado na Conferência das Nações Unidas no Rio de Janeiro em 2012, no qual se reconheceu que a saúde é condição prévia, um resultado e um indicador das três dimensões do desenvolvimento sustentável: a econômica, a social e a ambiental 3131 . Organização Pan-Americana de Saúde. Desenvolvimento sustentável e saúde: tendências dos indicadores e desigualdades no Brasil. Brasília: Opas/OMS; 2014 [acesso 6 fev 2015]. (Série Desenvolvimento Sustentável e Saúde 1). Disponível: http://www.paho.org/bra/images/stories/Documentos2/perfil%20do%20brasil_desenvolvimento%20sustentavel.pdf?ua=1
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. Quanto à literatura especializada, tem-se como escopo a apresentação de modelos de interconexão entre desigualdade e saúde, que inicialmente serão abordados a partir da perspectiva global e, em seguida, serão trazidos alguns dados referentes a cenários nacionais.

Primeiramente, Dorling 1. Dorling D. Inequality and the 1%. London: Verso; 2014. assinala a forte conexão entre desigualdade de riqueza e expectativa de vida. Por exemplo, a expectativa de vida em Suazilândia é metade da verificada no Japão 1212 . Daniels N. Just health: Meeting health needs fairly. New York: Cambridge University Press; 2008.. A expectativa de vida ao nascer avançou significativamente, mas tal progresso apresenta variação, como na comparação entre os canadenses, que ao nascer podem esperar viver 80 anos, e as populações de países de renda baixa, cuja expectativa de vida ao nascer é estimada em 59 anos, em média. Na Zâmbia, um dos países mais afetados pela epidemia de aids, a expectativa de vida ao nascer caiu de 50 anos, na década de 1980, para 45 anos, em 2009 1313 . Labonté R, Schrecker T. The state of global health in a radically unequal world: Patterns and prospects. In: Benatar S, Brock G. Global health and global health ethics, editors. Cambridge, UK/New York: Cambridge University Press; 2012. p. 24-36..

Na esfera da desigualdade global referente à saúde infantil, uma criança nascida em Angola tem 73 vezes mais chance de morrer antes dos 5 anos do que uma nascida na Noruega 1212 . Daniels N. Just health: Meeting health needs fairly. New York: Cambridge University Press; 2008.. Ainda, quanto à mortalidade de crianças com menos de 5 anos, aquelas entre os 20% mais pobres de cinco países em desenvolvimento apresentam, no mínimo, duas vezes mais chance de morrer antes dos 5 anos e, em algumas situações, até três vezes mais, quando a comparação é feita com as crianças entre os 20% mais ricos 1313 . Labonté R, Schrecker T. The state of global health in a radically unequal world: Patterns and prospects. In: Benatar S, Brock G. Global health and global health ethics, editors. Cambridge, UK/New York: Cambridge University Press; 2012. p. 24-36.. Na região da América Latina, a desnutrição afeta 16% das crianças 3232 . Kliksberg B, Sen A. As pessoas em primeiro lugar: a ética do desenvolvimento e os problemas do mundo globalizado. São Paulo: Companhia das Letras; 2007..

Quanto à mortalidade materna, a desigualdade é expressiva. Complicações decorrentes da gravidez e do parto matam mais de 500 mil mulheres a cada ano, situação essa quase inexistente nos países de renda alta. Por exemplo, o risco de uma mulher no Canadá, de morrer de complicações decorrentes da gravidez é de 1 em 11 mil; para uma mulher na Nigéria, um dos países mais pobres do mundo, é de 1 em 7 1212 . Daniels N. Just health: Meeting health needs fairly. New York: Cambridge University Press; 2008.. Uma gestante na África subsaariana tem 100 vezes mais chance de morrer durante o parto, se comparada com as dos países industrializados 1313 . Labonté R, Schrecker T. The state of global health in a radically unequal world: Patterns and prospects. In: Benatar S, Brock G. Global health and global health ethics, editors. Cambridge, UK/New York: Cambridge University Press; 2012. p. 24-36..

Desigualdades concernentes às prevalências de doença são dramáticas. A África subsaariana, por exemplo, tem aproximadamente dois terços da população mundial infectada com o vírus HIV, e estima-se que das 2 milhões de mortes decorrentes da Aids, 1,4 milhão ocorreu nessa região do globo. Malária e tuberculose foram praticamente extintas nos países de renda alta, enquanto nessa região ainda matam quase 1 milhão e 1,7 milhão de pessoas, respectivamente. Também se constatam outras desigualdades em saúde entre grupos populacionais nos países de renda alta, média e baixa. Entre as 49,4 milhões de mortes ocorridas nos países de renda média e baixa em 2002, 21% se deu entre crianças com menos de 5 anos, enquanto nos países de renda alta, entre as 7,9 milhões de mortes, apenas 1% ocorreu nesse grupo etário 1313 . Labonté R, Schrecker T. The state of global health in a radically unequal world: Patterns and prospects. In: Benatar S, Brock G. Global health and global health ethics, editors. Cambridge, UK/New York: Cambridge University Press; 2012. p. 24-36..

A desigualdade de riqueza e de poder no campo da saúde envolve as atividades das companhias farmacêuticas e de cuidados em saúde, que despendem milhões de dólares todos os anos para criar ambiência favorável nos países em que atuam, o que, obviamente, conduz à desoneração fiscal e à aprovação de leis que as beneficiam. Durante 2013, o setor farmacêutico e de cuidados em saúde gastou mais de 487 milhões de dólares em atividade de lobby nos Estados Unidos, parte desse montante foi utilizada em marketing para influenciar prescritores e mais de 260 milhões, em financiamento de campanhas eleitorais.

Dos 90 bilionários do setor farmacêutico e de cuidados em saúde, 22 são estadunidenses e 20, europeus. O setor gasta no mínimo 50 milhões de dólares anualmente em lobby na Europa. Os milhões gastos com essa prática consistem em aplicações calculadas, diante das quais a expectativa das companhias é que essas quantias sejam revertidas em políticas e leis que as beneficiem, mesmo que indiretamente, compensando, assim, o investimento. A desoneração fiscal, maior objetivo das companhias, impacta o orçamento dos países, resultando em menos recurso para a saúde pública 1111 . Oxford Committee for Famine Relief. Wealth: Having it all and wanting more. [Internet]. 2015 [acesso 22 jan 2015]. Disponível: http://www.oxfam.org/sites/www.oxfam.org/files/file_attachments/ib-wealth-having-all-wanting-more-190115-en.pdf
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A repercussão da desigualdade na esfera da saúde ocorre não apenas nos países de renda média ou baixa. No Reino Unido, por exemplo, os homens que morrem nas cidades de Kensington e Chelsea são, em média, 14 anos mais velhos que os que morrem em Glasgow. Para as mulheres, esse intervalo é de 12 anos. Se os mais ricos são comparados com os mais pobres, o gap é incrementado. Também na Inglaterra, após a crise de 2008, a dieta dos adultos e das crianças mais pobres foi radicalmente alterada: alimentos mais baratos, energéticos e potencialmente viciantes, contendo gordura saturada e açúcar, passaram a ser mais consumidos, em detrimento de vegetais frescos e frutas. A diminuição da renda das famílias impacta danosamente as dietas mais saudáveis 1. Dorling D. Inequality and the 1%. London: Verso; 2014..

Nos Estados Unidos, a desigualdade socioeconômica e racial é a questão mais importante em termos de saúde pública. As evidências da correlação entre os indicadores do status socioeconômico e de saúde vêm se expandindo. A despeito do aumento do gasto em saúde per capita pelo governo dos Estados Unidos, seus indicadores não apresentam melhoras, pois será necessário investir séria e pesadamente na redução da desigualdade social, a fim de que a condição de saúde da população mais pobre e negra melhore. Quanto à desigualdade de gênero, a expectativa de vida das mulheres nos Estados Unidos estagnou ou vêm diminuindo em quase todos os estados desde 1985; em alguns condados, as mulheres estão morrendo mais jovens do que suas mães 1. Dorling D. Inequality and the 1%. London: Verso; 2014..

Nas Américas, verificam-se disparidades abissais entre países mais ricos e países mais pobres quanto à mortalidade materna. Por exemplo, no Canadá, a razão de mortalidade materna é de 4,8 (em 100 mil hab.), no Brasil é de 61,6 e no Haiti, de 157,0; a razão de mortalidade infantil no Canadá é de 4,8 (em 100 mil hab.), no Brasil é de 14,6 e no Haiti, de 59,0 3333 . Pan American Health Organization. Health situation in the Americas: 20 years basic health indicators. [Internet]. Washington, DC: PAHO/WHO; 2014 [acesso 20 abr 2015]. Disponível: http://www.paho.org/hq/index.php?option=com_docman&task=doc_view&gid=27299&Itemid=270&lang=en
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. Na esfera latino-americana, a desigualdade em saúde reflete as desigualdades de diversas ordens que se manifestam na região. De acordo com Kliksberg 3232 . Kliksberg B, Sen A. As pessoas em primeiro lugar: a ética do desenvolvimento e os problemas do mundo globalizado. São Paulo: Companhia das Letras; 2007., todos os países da América Latina superam as médias internacionais dos coeficientes de Gini, que mensuram a desigualdade de distribuição de renda. Pelo prisma da saúde, a desigualdade é um problema de amplas proporções e alta gravidade, uma espécie de problema quase irredutível 3434 . Kliksberg B, Sen A. Op. cit. p. 156..

Com o objetivo de ilustrar a desigualdade em saúde no Brasil, destaca-se a questão da saúde da criança. Embora se verifiquem progressos nesse campo, a mortalidade de crianças menores de 5 anos ainda é sete vezes maior que em países com os menores coeficientes, e a prevalência de déficit de altura é três vezes maior que a encontrada em populações bem nutridas 3535 . Victora CG, Aquino EML, Leal MC, Monteiro CA, Barros FC, Szwarcwald CL. Saúde de mães e crianças no Brasil: progressos e desafios. The Lancet. [Internet]. 2011 [acesso jan 2015];377(9780):1863-76. p. 1864. DOI: 10.1016/S0140-6736(11)60138-4
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. Particularmente no que tange à desigualdade entre regiões, na Região Norte, a taxa de mortalidade na infância, a maior do país, é de 25,0 (em 100 mil hab.); na Região Sul, a menor, é de 13,5. Por fim, registre-se a desigualdade racial, expressa pela taxa de óbito por agressão: 28,2 (em 100 mil hab.) entre brancos e 72,1 entre negros, considerando adolescentes e jovens 3636 . Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE). Síntese de indicadores sociais: uma análise das condições de vida da população brasileira 2013. [Internet]. Rio de Janeiro: IBGE; 2013 [acesso 20 mar 2015]. Tabela 6.1 - Taxa de mortalidade na infância e taxa de mortalidade infantil, segundo as grandes regiões e as unidades da federação – 2010. Disponível: ftp://ftp.ibge.gov.br/Indicadores_Sociais/Sintese_de_Indicadores_Sociais_2013/pdf/saude_pdf.pdf
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Por se tratar de um grave problema contemporâneo, que se espraia por diversas partes do globo, a desigualdade em saúde será examinada, em seguida, pelo olhar da DUBDH, considerando particularmente o princípio bioético da justiça e a importância da cooperação internacional.

A Declaração Universal sobre Bioética e Direitos Humanos e a desigualdade global

Ao discorrerem sobre a emergência do campo do conhecimento direito global da saúde, Gostin e Taylor 3737 . Gostin LG, Taylor AL. Global health law: A definition and grand challenges. Public Health Ethics. 2008;1(1):53-63. delineiam o quadro atual da globalização da saúde pública. A globalização da contemporaneidade traz profundo impacto à saúde das populações em todos os lugares do planeta, com repercussões nunca antes vistas na saúde pública global. Com efeito, a globalização econômica lesa a capacidade dos países, notadamente os mais pobres, de sustentar seus sistemas de saúde, uma vez que o comércio internacional e as normas de propriedade intelectual afetam seu poder de assegurar o acesso a medicamentos e vacinas essenciais. Além disso, a concorrência desleal do mercado privado provoca o deslocamento de profissionais de saúde das áreas pobres do planeta para os países ricos. Diante desse quadro, a proteção da saúde das populações escapa da ação unilateral dos Estados, impondo, assim, o empoderamento da comunidade internacional, de atores estatais e não estatais, a fim de se instituir mecanismos aptos a concretizar essa proteção.

O esboço da Declaração Universal sobre Bioética e Direitos Humanosfoi apresentado, após dois anos de intensos debates, à Assembleia Geral da Unesco em outubro de 2005, na qual foi finalmente aprovada por aclamação3838 . Ten Have HAMJ. Introduction. In: Ten Have HAMJ, Jean MS, editors. The Unesco Universal Declaration in Bioethics and Human Rights: Background, principles and application. Paris: Unesco; 2009. p. 17-55.. Quanto ao texto da DUBDH, a versão adotada estrutura-se em seis partes: preâmbulo, “Disposições gerais”, “Princípios”, “Aplicação dos princípios”, “Promoção da Declaração” e “Disposições finais”, contendo ao todo 28 artigos 9. Organização das Nações Unidas para a Educação, Ciência e Cultura. Declaração Universal sobre Bioética e Direitos Humanos. [Internet]. Paris/Lisboa: Unesco; 2006 [acesso 18 jun 2015]. Disponível: http://unesdoc.unesco.org/images/0014/001461/146180por.pdf
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O conteúdo da DUBDH fundamenta-se em quinze princípios substantivos. Assim, a Unesco, ao produzir um instrumento cujos dispositivos configuram princípios, mantém uma forma de construção que propicia tanto a maturação das concepções ético-jurídicas permeadoras da norma, quanto a negociação, sem imposição de regras imperativas 3939 . Stefani PD. La Dichiarazione Universale sulla Bioetica e i Diritti Umani. In: Turoldo F, a cura di. La globalizzazione della bioetica. Padova: Lanza; 2007. p. 105-40.. Haja vista o conteúdo principiológico do documento, pode-se afirmar que sua maior empresa foi ter estabelecido um marco de princípios e critérios em relação aos quais os Estados poderão legislar sobre temáticas bioéticas 4040 . Jean MS. Le CIB et le processus d’élaboration de la Déclaration universelle sur la bioéthique et les droits de l’homme. In: Byk C, directeur. Bioéthique et droit international. Paris: NexisLexis; 2007. p. 15-21.. Com efeito, a DUBDH tem como objetivo nodal a fixação de princípios gerais de caráter ético em um texto “aberto”, o que se revela positivo porquanto possibilita interpretação e aplicação conjugadas com normas nacionais e internacionais integrantes da bioética normativa e do direito internacional dos direitos humanos 4040 . Jean MS. Le CIB et le processus d’élaboration de la Déclaration universelle sur la bioéthique et les droits de l’homme. In: Byk C, directeur. Bioéthique et droit international. Paris: NexisLexis; 2007. p. 15-21..

Ao ser considerada expressão normativa da bioética global, na medida em que fornece instrumentos éticos de elaboração de políticas públicas, a DUBDH revela grande valia no enfrentamento das questões relacionadas à desigualdade mundial. O fenômeno da globalização, além de ter acarretado alteração nos modos de circulação econômica, de pessoas e de informações, também se reflete na esfera bioética, até porque aglobalização não é apenas um problema econômico, mas também um problema normativo e ético 4141 . Sánchez YG. Los principios de autonomía, igualdad y no discriminación en la Declaración Universal sobre Bioética y Derechos Humanos. In: Espiell HG, Sanchez YG, coordinadores. La Declaración Universal sobre Bioética y Derechos Humanos de la Unesco. Granada: Comares; 2006. p. 271-308. p.272.. A percepção de que existem de fato questões, tais como a desigualdade, que atravessam fronteiras – isto é, que não dizem respeito a apenas um país –, aliada à consequente compreensão de que o meio de lidar com elas também implica medidas internacionais, conduz à construção da noção de bioética global, ou seja, uma abordagem global para da bioética 3838 . Ten Have HAMJ. Introduction. In: Ten Have HAMJ, Jean MS, editors. The Unesco Universal Declaration in Bioethics and Human Rights: Background, principles and application. Paris: Unesco; 2009. p. 17-55..

O mundo, cada vez mais interdependente, impõe a busca de soluções harmônicas entre os Estados; portanto, conclui Espiell 4242 . Espiell HG. Ética, bioética y derecho. Bogotá: Themis; 2005., um enfoque universal é necessário, e a DUBDH mostra-se útil nesse sentido, pois conforma uma série de princípios que atravessam as bordas nacionais. Desse modo, o documento, como exteriorização da globalização da bioética, revela-se importante para evidenciar a interconexão das questões globais, como no caso em que populações com piores índices em saúde têm suas oportunidades reduzidas, ao passo que a pobreza incrementa as chances de adoecimento, estabelecendo, assim, um círculo vicioso 4343 . Widdows H. Global ethics: An introduction. Durham: Acumen; 2011..

A DUBDH – notadamente por meio do princípio da justiça, constante de seu artigo 10, e da cooperação internacional, prevista no artigo 13 – também se constitui em instrumento de governança global capaz de concorrer para impulsionar os atores da comunidade internacional na direção de políticas públicas endereçadas ao combate à desigualdade como fenômeno complexo e abrangente, transmitido de geração para geração. Nesse sentido, a desigualdade exige o enfrentamento de um conjunto de questões, como o preconceito relativo a cor, gênero e etnia, entre outros, as quais se imbricam com a pobreza e a distribuição da renda 4444 . Vita A. O liberalismo igualitário: sociedade democrática e justiça internacional. São Paulo: Martins Fontes; 2008. p. 232..

Tratando-se do princípio da justiça e de sua conexão com a desigualdade na esfera global, pode-se sustentar que a DUBDH ampara obrigações morais distributivas por parte dos Estados, as quais se encontram ancoradas na concepção de que o valor primordial da sociedade internacional é o florescimento das vidas individuais 4545 . Vita A. Op. cit. p. 233.. Sendo assim, o princípio da justiça constante da DUBDH pode ser compreendido, de acordo com a denominação de Vita, como princípio de justiça distributiva internacional, cujo objeto são as desigualdades produzidas pela estrutura institucional global. Com efeito, o princípio da justiça estabelecido na DUBDH prescreve obrigações com o desiderato de corrigir as desigualdades acarretadas pela iniquidade distributiva de arranjos institucionais dos quais os povos ricos são os maiores beneficiários 4646 . Vita A. Op. cit. p. 242..

Por consequência, aqueles que detêm poder na comunidade internacional e modulam os arranjos distributivos internacionais devem considerar a desigualdade como questão moral e tornar a distribuição mais ajustada às exigências da justiça. Sendo assim, o princípio da justiça contido na DUBDH apregoa queuma sociedade internacional justa deveria priorizar o bem-estar dos menos privilegiados em uma escala global 4747 . Vita A. Op. cit. p. 250.. A DUBDH, por meio do princípio da justiça, ampara a concepção de que qualquer desvantagem entre as pessoas que independa de suas escolhas é injusta.

Exemplifica essa proposição a ideia de que, se ninguém escolhe onde nasce, portanto é injusto que uma criança nascida na Suazilândia tenha a metade da expectativa de vida de uma criança nascida no Japão 1212 . Daniels N. Just health: Meeting health needs fairly. New York: Cambridge University Press; 2008.. Do ponto de vista da DUBDH, a corrente distribuição global de recursos, particularmente em saúde, é injusta 4343 . Widdows H. Global ethics: An introduction. Durham: Acumen; 2011., impondo, por conseguinte, um reconhecimento ético aos Estados, que devem arregimentar meios para promover a justa redistribuição de recursos.

Com base na perspectiva do princípio da cooperação internacional entre os Estados, a DUBDH explicita uma recomendação para que haja cooperação entre eles, notadamente entre os de renda alta e os de renda baixa. O enfrentamento global dos problemas concernentes à desigualdade sem a cooperação científica, econômica, social ou política dos países de alta renda revela-se eticamente inconcebível na atualidade3737 . Gostin LG, Taylor AL. Global health law: A definition and grand challenges. Public Health Ethics. 2008;1(1):53-63.. Conforme pontuam Santana e Garrafa acerca da inserção da cooperação internacional na DUBDH, tal temática foi contemplada em variados dispositivos que se aplicam às políticas e planos governamentais envolvendo os setores de saúde de dois ou mais países, seja no seu preâmbulo ou no próprio corpo da mesma 4848 . Santana JP, Garrafa V. Cooperação em saúde na perspectiva bioética. Ciênc Saúde Coletiva. 2013;18(1):129-37. p. 135..

A cooperação internacional pode ser de vários tipos: humanitário, militar, científico, tecnológico e técnico 4949 . Brasil. Ministério das Relações Exteriores. Agência Brasileira de Cooperação. Sistema de Informações Gerenciais de Acompanhamento de Projetos. [Internet]. [acesso 26 abr 2015]. Disponível: http://www.abc.gov.br/sigap/ct.aspx
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. Contudo, independentemente do tipo, a essência dessa cooperação está na ideia de interdependência entre os Estados e na solidariedade das relações internacionais. Sendo assim, o princípio da cooperação internacional contido na DUBDH há que ser interpretado como um comando que propugna o desenvolvimento humano, a atenção específica a grupos vulneráveis, a consecução do desenvolvimento sustentável 5050 . Sánchez YG. Cooperación internacional y bioética. Biblioteca Jurídica Virtual del Instituto de Investigaciones Jurídicas de la UNAM. [Internet]. [acesso 24 abr 2015]. Disponível: http://biblio.juridicas.unam.mx/libros/6/2673/20.pdf
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e a redução da desigualdade global.

Nesse sentido, tal princípio expresso na DUBDH estipula, aos Estados e instituições internacionais, obrigações focadas em medidas de redução das desigualdades, uma vez que essa é indispensável para alcançar um grau de distribuição mais justo. Uma das formas de reduzir a desigualdade está na diminuição dos gravames sobre a renda derivada do trabalho e dos salários e no aumento dos gravames em relação ao patrimônio, conforme sugere Piketty em entrevista a Skoknic 5151 . Skoknic F. Piketty: “La desigualdad pude llevar a la captura de las instituciones políticas” [entrevista]. Ciper. Actualidad y Entrevistas. [Internet]. 14 jan 2015 [acesso 24 abr 2015]. Disponível: http://ciperchile.cl/2015/01/14/piketty-la-desigualdad-puede-llevar-a-la-captura-de-las-instituciones-politicas
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, gerada não pela instituição de um tributo global sobre o patrimônio, mas sim pelo incremento e qualificação da cooperação internacional em torno da administração fiscal.

Aos dilemas e questões bioéticas postas globalmente, há que responder por meio da adoção de parâmetros éticos internacionais. O fenômeno da globalização, os problemas transfronteiriços, a fragilidade dos instrumentos normativos dos Estados para lidar com eles, bem como a urgência de efetivar a cooperação internacional, impelem ao reconhecimento de que uma pauta valorativa universal para a bioética global é essencial quando se objetiva a proteção da pessoa humana. É nesse ponto que se encaixa a DUBDH, visto que, ao consistir em um conjunto de normas de conteúdo ético, aceito na comunidade internacional, se revela como o melhor parâmetro axiológico universal a ser adotado na bioética global. A DUBDH é o exemplo de normativa universal alicerçada em uma perspectiva cosmopolita. Ou seja, cada pessoa humana detém uma dimensão universal; e, na condição de cidadã do mundo, é titular de direitos por ser membro da comunidade internacional.

É tarefa dos bioeticistas ocupados da desigualdade global que assola as sociedades contemporâneas engajar-se não apenas em debates teóricos sobre as obrigações morais dos países e das instituições internacionais concernentes à redistribuição de recursos e à redução da desigualdade, mas também na proposição de políticas e medidas concretas com esse propósito, correlacionando às desigualdades que permeiam conflitos relativos à cor, gênero, etnia, religião, entre outros. A DUBDH agrega consistência teórico-normativa aos discursos que sustentam a existência de uma obrigação moral de reduzir a desigualdade global, a marginalização e a exclusão social.

Considerações finais

A bioética, seja brasileira ou global, não deve esquivar-se de um dos maiores problemas da atualidade: a desigualdade, que se espraia pelos países e contamina as sociedades e as relações interpessoais. É tarefa primordial do bioeticista que se inquieta com temáticas transnacionais e sociais tomar em conta as desigualdades de renda, de riqueza, de gênero, de cor, entre outras, que afetam diretamente não só as condições de vida das pessoas, mas também sua saúde. Em suma, a desigualdade é, acima de tudo, uma questão ética. Nesse sentido, a DUBDH – que neste ano de 2015 completa dez anos desde a sua aprovação pela Assembleia da Unesco de 2005 – fornece ferramentas teórico-normativas que permitem a reflexão e a prescrição acerca da desigualdade, notadamente pela aplicação do princípio da justiça e da cooperação internacional. O princípio da justiça clama aos Estados e instituições internacionais a adoção de políticas destinadas a reconfigurar a atual distribuição de recursos no mundo, e, convergentemente, o princípio da cooperação internacional impele à conformação de modelos que tomem em conta, prioritariamente, a desigualdade entre os países e grupos populacionais e, dessa forma, contribuam para o incremento da solidariedade entre os povos.

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Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    May-Aug 2015

Histórico

  • Recebido
    2 Mar 2015
  • Revisado
    22 Maio 2015
  • Aceito
    8 Jun 2015
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