Open-access Segurança do paciente e os direitos do usuário

Resumo

Desde a publicação da Portaria 529/2013 do Ministério da Saúde, que trouxe a discussão sobre segurança do paciente, têm aumentado o interesse e as experiências relacionadas ao tema. Com o Programa Nacional de Segurança do Paciente, que obriga todo hospital brasileiro a ter Núcleo de Segurança de Paciente, procura-se melhorar a qualidade da assistência no Brasil a partir da postura preventiva. No entanto, este artigo ressalta a ausência de proteção e respeito aos direitos do usuário no âmbito deste programa. Para tanto, foram analisados os seguintes tópicos: manifestações teóricas que revelam a pertinência da participação como propulsora de melhores resultados, os direitos que justificariam essa participação e as possibilidades para torná-la recorrente no sistema de saúde.

Sistemas de saúde; Segurança do paciente; Direitos do paciente

Abstract

Since the publication of the Ministry of Health Ordinance no. 529/2013 that brought the discussion on patient safety, there has been an increase in interest and experience in relation to the topic. The Programa Nacional de Segurança do Paciente (National Program on Patient Safety) – which requires each Brazilian hospital to have a Patient Safety Center responsible for its implementation – there has been an effort to work on the issue of quality of care in Brazil, based on a preventive stance. This article highlights the lack of protection and respect for patients’ rights under this program. In order to do so, the following were analized: the theoretical corpus that reveal the pertinence of the users’ participation as a factor that can boost the results of the Patient Safety Program; some of the rights of the patients that would justify such participation; some possibilities for this participation to become a recurring practice in the health system.

Health systems; Patient safety; Patient rights

Resumen

Desde la publicación de la Resolución 529/2013 del Ministerio de Salud, que introdujo el debate sobre la seguridad del paciente, han aumentado el interés y las experiencias con relación al tema. Con el Programa Nacional de Seguridad del Paciente, que obliga a todo hospital brasileño a tener un Núcleo de Seguridad del Paciente, se busca mejorar la calidad de la asistencia en Brasil, a partir de una postura preventiva. No obstante, este artículo destaca la falta de protección y respeto a los derechos del usuario en el ámbito de este programa. Para ello, se analizaron los siguientes tópicos: manifestaciones teóricas que revelan la pertinencia de la participación como propulsora de mejores resultados, los derechos que justificarían esa participación y las posibilidades de hacerla recurrente en el sistema de salud.

Sistemas de salud; Seguridad del paciente; Derechos del paciente

Atento à recomendação da Organização Mundial da Saúde (OMS) em resolução aprovada na 55ª e continuada na 57ª Assembleia Mundial de Saúde, o Brasil instituiu o Programa Nacional de Segurança do Paciente (PNSP). O programa foi criado pela Portaria 529/20131 do Ministério da Saúde (MS) e colocado em vigor pela Portaria de Consolidação 5/2017, que trata, no Capítulo VIII (artigos 157 a 166), da consolidação das normas sobre as ações e os serviços de saúde do Sistema Único de Saúde2. O objetivo geral da iniciativa foi mitigar o risco de eventos adversos mediante qualificação do cuidado em saúde em todos os estabelecimentos de saúde do território nacional (artigo 2º)1.

Dentre os objetivos da portaria, expostos em seu artigo 3º, inciso II, está o de envolver os pacientes e familiares nas ações de segurança1. Contudo, esse ponto específico, que será tratado neste artigo como “engajamento do paciente”, não foi esmiuçado no texto nem em regulamentações posteriores. A prática observada no programa, já em fase de implementação, está muito mais ligada a questões de segurança física, inclusive em consonância com o rol disposto no art. 7º, inciso I do mesmo documento1.

Não há aqui qualquer intenção de opor “engajamento” e “segurança física”. Ao contrário, a ideia é vislumbrar a hipótese de que o respeito aos direitos do paciente faça parte dos pontos de atenção elencados pela portaria. Afinal, quando define “evento adverso”, o documento dá sentido aberto ao conceito de “dano”, indicando que pode ser “físico, social ou psicológico”. Desta forma, o desrespeito a qualquer direito básico do usuário (privacidade ou autonomia, por exemplo) constitui violação e, portanto, deve ser refutado pelo Direito1.

Em outras palavras, não se deve fazer qualquer valorização a priori. Ou seja, por exemplo, uma infecção decorrente da higienização incorreta das mãos não é mais ou menos grave do que a violação de algum direito, como o de privacidade ou autonomia. Evidentemente, isso depende exclusivamente dos valores do próprio paciente, não cabendo ao sistema estabelecer essa hierarquização. Portanto, a segurança deve ser priorizada nos dois casos: tanto para que o doente não sofra com infecções quanto para que não tenha direitos violados por falhas de procedimentos.

Este artigo sugere que a violação aos direitos do usuário deveria fazer parte da lista de pontos de atenção do PNSP, de modo a fomentar um trabalho que julgamos essencial para os hospitais brasileiros. Para tanto, inicialmente espera-se demonstrar que várias fontes bibliográficas e relatos de experiências práticas partem da premissa de que a participação do usuário contribui para melhores resultados na implantação de programas deste calibre. E não há possibilidade de alcançar atuação legítima e plena sem respeitar seus direitos básicos.

Depois, serão abordados brevemente os direitos do usuário no Brasil, buscando-se demonstrar que a atenção nada mais significa do que o cumprimento dos preceitos da própria Constituição de 19883. Ou seja, o respeito a esses direitos é obrigação constitucional e legal. Por fim, serão analisadas as possibilidades de envolvimento do usuário no programa para demonstrar as conclusões alcançadas.

Cabe observar que é utilizada aqui a expressão “direito do usuário” por ser este um termo mais amplo do que paciente. Para fins deste artigo, considera-se “paciente” a pessoa que recebe diretamente os cuidados de saúde, e “usuários”, todos aqueles que, além do próprio paciente, são afetados pelos serviços de saúde. Mais do que tentar responder de forma definitiva a questão posta, o objetivo deste artigo é estimular a discussão, contribuindo para a argumentação, compartilhando ideias e, quem sabe, ajudando a mudar um pouco a realidade social do país.

Evidências de que a participação do paciente é importante

Desde a resolução aprovada pela OMS, o engajamento é visto como passo importante para programas de saúde voltados à segurança. A própria OMS, no documento “Por que o engajamento do paciente se tornou prioridade?”, informa que o tema “pacientes pela segurança dos pacientes” é um dos seis campos de atuação de programas de segurança, que devem ser concebidos para destacar a centralidade do ponto de vista do usuário nas atividades essenciais. O texto destaca que o paciente e aqueles que estão próximos dele observam certas coisas que os profissionais da saúde, bastante ocupados, não observam4. Afinal, não são raros os relatos de familiares que, por exemplo, percebem com muito mais celeridade e certeza reações a medicamentos com grande potencial de dano à saúde.

Deve-se incentivar a participação do usuário não somente no sentido de lembrar aos profissionais de saúde fatos que podem passar desapercebidos, mas também de criar espaços para discutir com os pacientes falhas ou erros a fim de que não se repitam. Validar, em vez de silenciar, a manifestação do usuário pode impedir que ele, na qualidade de vítima, assuma posição de conflito – é preciso que atue como colaborador para a evolução do sistema, o que é um grande anseio dos próprios usuários.

O trabalho intitulado “Documento de referência para o Programa Nacional de Segurança do Paciente (PNSP)”5, produzido pelo MS em parceria com a Fundação Oswaldo Cruz e a Agência Nacional de Vigilância Sanitária (Anvisa), elenca outros programas que contribuem com o PNSP. Dentre eles, a Política Nacional de Humanização (PNH), que tem como foco o estímulo à participação dos usuários “em pé de igualdade” com os profissionais no que diz respeito à produção da saúde. Mais à frente, o “Documento de referência para o PNSP”5 traz o seguinte apontamento:

Segundo Lucian Leape, o princípio orientador dessa abordagem é que os eventos adversos não são causados por más pessoas, mas por sistemas que foram mal desenhados e produzem resultados ruins. Esse conceito está transformando o foco anterior sobre o erro individual pelo foco nos defeitos do sistema. Embora o principal foco sobre a segurança do paciente venha sendo a implementação de práticas seguras, torna-se cada vez mais evidente que atingir um alto nível de segurança nas organizações de Saúde requer muito mais. Para tanto, diversas correntes têm surgido. Uma delas é o reconhecimento da importância de maior engajamento dos pacientes no seu cuidado. Outra é a necessidade de transparência6.

Fica claro que o sistema e, por consequência, os hospitais deveriam promover a efetiva participação do usuário no que os formuladores da PNH chamam de “processo de produção de saúde”. Mas, como aponta Bronkart, os pacientes são o recurso mais subutilizado do sistema de saúde7.

O trabalho da Anvisa denominado “Assistência segura: uma reflexão teórica aplicada à prática”8 revela a notícia de que foi criado no Brasil o Projeto de Avaliação de Desempenho de Sistemas de Saúde (Proadess), com o objetivo de propor uma metodologia de avaliação de desempenho para o país9. Em consulta ao site desse programa, pode-se observar que o respeito aos direitos da pessoa é considerado como uma das dimensões de avaliação do sistema de saúde. Esse respeito é conceituado como parâmetro geral de conduta, segundo o qual a intervenção na área de saúde deve ser provida de modo a considerar as necessidades físicas, o estado emocional, os valores, os julgamentos e as decisões de cada indivíduo a respeito de sua própria condição de saúde10. Contudo, apesar da vontade premente de trabalhar esse indicador de desempenho, não são encontrados resultados referentes a ele nos relatórios do site.

No Capítulo 12 do documento da Anvisa8, encontram-se argumentos e relatos de experiências internacionais que reafirmam a importância da participação para os programas de segurança em saúde. Escrito por Gonçalves e Kawagoe, o capítulo destaca que:

O cuidado centrado no paciente engloba as qualidades de empatia, compaixão e capacidade de resposta às necessidades, valores e preferências expressas por cada paciente. Aplica-se a pacientes de todas as idades, e pode ser praticado em qualquer ambiente de cuidados à saúde. É fundamentado em parcerias mutuamente benéficas entre profissionais de saúde, pacientes e familiares.

O envolvimento dos familiares como parceiros críticos e ativos em todo o processo do cuidar é um componente essencial no cuidado centrado no paciente. A “família” é representada por aquelas pessoas que o paciente opta por chamar de família, em quem ele confia e tem uma boa relação, e não necessariamente aquela pessoa determinada pelo profissional de saúde11.

De forma bastante consistente, pode-se verificar a compreensão geral de que a participação do usuário é fundamental para sua segurança, fator de qualidade da assistência à saúde. A seguir, procura-se demonstrar que, mais do que conveniente, assegurar esse direito ao usuário é efetivamente obrigação constitucional e legal.

Direitos do paciente que justificam a participação

Infelizmente, o Brasil não tem código de saúde, mas vale destacar a iniciativa do MS de promulgar as portarias de consolidação em 2017. As normas referentes ao setor estão espalhadas em diversos títulos legais, todos evidentemente pautados e limitados pela Constituição de 1988, que consagra o direito à vida e à sua proteção, à dignidade humana, à autonomia e à liberdade individual, bases dos demais direitos. Logo em seu artigo 1º, consta a dignidade da pessoa humana como fundamento do Estado democrático de direito3.

Portanto, a Constituição prevê o respeito à dignidade pessoal do indivíduo, considerada, segundo Moraes, valor espiritual e moral inerente à pessoa, que se manifesta singularmente na autodeterminação consciente e responsável da própria vida e que traz consigo a pretensão ao respeito por parte das demais pessoas, constituindo-se um mínimo invulnerável que todo estatuto jurídico deve assegurar12. Dignidade essa que o ministro Barroso, em obra sobre o tema, busca retirar do rol do direito autônomo para considerá-la princípio jurídico com status constitucional:

Uma vez que a dignidade é tida como alicerce último de todos os direitos verdadeiramente fundamentais e como fonte de parte do seu conteúdo essencial, seria contraditório considerá-la como um direito em si, já que ela é parte de diferentes direitos. Além disso, se a dignidade fosse considerada um direito fundamental específico ela necessariamente iria ter que ser ponderada com outros direitos fundamentais, o que a colocaria em uma posição muito fraca do que ela teria caso fosse utilizada como um parâmetro externo para aferir soluções possíveis nos casos de colisões de direitos. Como um princípio constitucional, contudo, a dignidade humana pode precisar ser ponderada com outros princípios ou metas coletivas. Vale lembrar que ela normalmente deve prevalecer, mas nem sempre será esse o caso13.

Ligado a este preceito fundamental e materializando esta dignidade, vislumbra-se o princípio da autodeterminação, que possibilita o autogoverno ao dotar o indivíduo de capacidade para decidir sobre sua própria vida, devendo obviamente responsabilizar-se por suas escolhas. Silva, ao tratar do direito à liberdade, fala de uma coordenação consciente dos meios necessários à realização da felicidade pessoal14.

Estruturando ainda este conjunto de princípios que garantem a postura do Estado diante do indivíduo, limitando o primeiro e dando mais poder ao segundo, é preciso destacar que a Constituição3 (artigo 3º, IV; artigo 5º, caput, I, VIII, XLI, XLII) refere-se à proteção contra qualquer forma de discriminação (de raça ou etnia, sexualidade ou religião etc.), o que claramente reforça o direito ao acesso igualitário aos serviços de saúde. O dispositivo é reiterado pela Lei 8.080/199015 (considerada a Lei Orgânica da Saúde) e por outras legislações, como o Código de Ética Médica (CEM)16 e o Código Penal17.

O livre exercício da autonomia do indivíduo, uma das bases do princípio da dignidade humana, somente existirá se o usuário tiver acesso a informações necessárias para poder manifestar suas escolhas. No Brasil, todos têm o direito de receber informações sobre seu estado de saúde: as medidas médicas possíveis e recomendáveis ao caso, as consequências e efeitos colaterais de tratamentos etc.

No entanto, o acesso a esses dados é apenas a parte mais externa do exercício desse direito. De que valem essas informações se a letra do profissional for ilegível? O que acrescenta recebê-las em termos técnicos indecifráveis? O que significa ter contato com grande volume de dados, se os principais podem ser omitidos?

O pleno exercício do direito à informação requer comunicação compreensível e lealdade do médico ao enfermo. Não agir desse modo afasta o paciente do esperado protagonismo. Além disso, só depois de compreender o que está acontecendo será possível que o paciente manifeste sua intenção, aquilo que se denomina “consentimento informado”.

O direito à informação impõe processo dialógico que visa obter o consentimento informado (ou esclarecido). Nesse processo, o paciente recebe informações sobre sua patologia, procedimentos a serem realizados e possíveis efeitos e intercorrências normais, manifestando sua decisão somente depois de entender muito bem o tratamento proposto. Em nosso país, estes direitos estão previstos na Lei 8.078/199018 (art. 6º, III), no CEM16 e em outros textos normativos.

Evidentemente, a privacidade do paciente deve ser preservada, o que impõe ao sistema o dever de garantir o sigilo. Silva define como objeto da privacidade o conjunto de informação acerca do indivíduo que ele pode decidir manter sob seu exclusivo controle, ou comunicar, decidindo a quem, quando, onde e em que condições, sem a isso poder ser legalmente sujeito19.

E acrescenta: a doutrina sempre lembra que o juiz americano Cooly, em 1873, identificou a privacidade como o direito de ser deixado tranquilo, em paz, de estar só: right to be alone. O right of privacy compreende, decidiu a Corte Suprema dos Estados Unidos, o direito de toda pessoa tomar sozinha as decisões na esfera da sua vida privada19. O paciente tem ainda direito ao prontuário médico, sendo dever das instituições de saúde conservar esse documento em arquivo (digital ou físico); e as informações nele inseridas pertencerão exclusivamente a ele.

Há muitos outros direitos do paciente no Brasil, que não serão abordados neste artigo. Os direitos aqui tratados resumidamente representam bem a ideia nuclear do trabalho: permitir e incentivar a participação do usuário não é só conveniente, mas obrigação legal do sistema de saúde e profissionais. Entretanto, o “Documento de referência para o PNSP” constata cenário que, embora estranho, não parece desconhecido:

A maior parte dos pacientes não conhece seus direitos e os que conhecem muitas vezes não são compreendidos pelos profissionais da saúde. Parte dos profissionais da saúde reage mal quando pacientes indagam sobre qual o tipo de medicamento está sendo administrado, ou quando solicitam uma segunda opinião sobre seu diagnóstico. Raros são os estabelecimentos de saúde que preparam seus profissionais para informar ao paciente e seus familiares que um erro foi cometido.

Mesmo práticas regulamentadas pelo governo e recomendadas por conselhos profissionais e órgãos de classe são vistas pelos profissionais da saúde como “burocracia”. São exemplos o termo de consentimento informado e a obrigatoriedade de que tudo que seja relacionado ao cuidado deve ser escrito no prontuário. O prontuário do paciente ainda é visto como o “prontuário médico” pelos profissionais da Saúde e os estudos apontam uma baixa qualidade no seu preenchimento20.

Esta é a realidade com a qual deve-se conviver e trabalhar, e a partir da qual serão sugeridos caminhos para incentivar a participação do usuário no processo de saúde com o intuito de melhorar o sistema.

Possibilidade de participação dos usuários

Em primeiro lugar, vale relembrar as premissas trabalhadas até este ponto: 1) os teóricos formuladores do programa de segurança do paciente manifestam expressamente que a participação do usuário é fundamental para alcançar melhores resultados; 2) referido engajamento se dá principalmente por meio do protagonismo do paciente, que deve ser incentivado a contribuir com o processo de saúde, manifestando suas opiniões e escolhendo caminhos; e 3) este envolvimento é dever legal do sistema, posto ser expressão exata de direitos do paciente: à privacidade, ao acesso à informação, ao sigilo, à autonomia e à não discriminação – todos garantidores do princípio da dignidade humana.

Não obstante, no Brasil o pleno exercício deste protagonismo esbarra em um vício de origem, a falta de informação, uma vez que boa parte dos usuários e dos próprios profissionais da saúde não compreende ou simplesmente desconhece esses direitos básicos. Assim, é relevante que o assunto esteja presente nas discussões cotidianas, sendo parte do currículo das faculdades que formam profissionais da saúde. Os direitos do paciente devem ainda ser objeto de exposição nos hospitais, como previsto na Portaria do MS que instituiu a Carta dos Direitos dos Usuários da Saúde21.

Aqui vale uma ressalva: é preciso fazer crítica à estética da Carta dos Direitos21, uma vez que o aspecto visual do material é de difícil entendimento para a população em geral. Adaptá-lo de acordo com cada instituição e região do país seria medida salutar para facilitar sua compreensão. Outro fato importante é que não se encontra nas instituições de saúde, sejam públicas ou privadas, este texto afixado em local visível e de fácil acesso, o que demonstra a necessidade de atuar rapidamente sobre o problema, para abordagem mais amistosa do tema.

Os direitos do usuário deveriam também ser foco do PNSP no Brasil, o que obrigaria as instituições de saúde públicas e privadas a incluir o respeito a esses direitos em seus programas, junto com outros pontos como a higienização das mãos, as práticas seguras em cirurgias etc. Dessa forma, cada núcleo deveria cuidar do tema, como já têm feito com os demais itens do programa, estabelecendo conceitos internamente, desenhando protocolos e fluxos, esclarecendo e treinando os envolvidos, medindo inconformidades, fixando planos de ações corretivas e divulgando melhorias alcançadas.

Ponto de partida ideal seria o trabalho com o processo para obter o consentimento informado, privilegiando o diálogo e o repasse de informações de forma clara, honesta e leal, jogando por terra a noção de que o ato é mera burocracia. Assim, o respeito à dignidade e à autonomia do paciente seria mais plausível.

É preciso ainda treinar os profissionais para preencherem o prontuário de forma mais completa e compreensível, o que facilitaria o entendimento do documento e a interação com o usuário. Esse trabalho poderia ser realizado em parceria com a Comissão de Revisão de Prontuários, já obrigatória para todos os hospitais brasileiros por força da Resolução CFM 1.638/200222. Ainda assim, não se pode menosprezar o fator tempo, que dificulta sobremaneira esta atividade dos profissionais de saúde, sendo necessário discuti-lo de forma mais abrangente no setor da saúde.

E por que não inovar neste sentido? Permitir, por exemplo, que o paciente receba informações sobre seu estado em forma de infográfico quando possível, segundo modelo já muito usado no jornalismo. Esse esforço poderia ser feito por pessoal treinado do administrativo, ou pelo próprio sistema, o que liberaria os profissionais de saúde, que já têm tempo muito limitado.

Outra ideia: por que não incentivar o paciente a fazer anotações em seu próprio prontuário, revelando sua percepção sobre a doença que o aflige e seu estado psicológico? A antropologia médica tem demonstrado a importância desse tipo de interação, como mostra o artigo de Uchôa e Vidal:

Na perspectiva antropológica, o universo sociocultural do doente é visto não mais como obstáculo maior à efetividade dos programas e práticas terapêuticas, mas como o contexto onde se enraízam as concepções sobre as doenças, as explicações fornecidas e os comportamentos diante delas. Essa perspectiva reorienta a percepção dos aspectos relacionados à efetividade das intervenções em saúde. Se considerarmos que a efetividade de um programa de saúde depende da extensão em que a população aceita, utiliza e participa desse programa, essa efetividade parece, assim, ser dependente do conhecimento prévio das maneiras características de pensar e agir associadas à saúde nessa população e da habilidade do programa em integrar esse conhecimento23.

A Resolução CFM 1.821/200724 regulou o uso do prontuário eletrônico, firmando parceria com a Sociedade Brasileira de Informática em Saúde (SBIS) a fim de certificar sistemas operacionais para isso. É interessante notar que a certificação de prontuário eletrônico da SBIS fale da participação dos pacientes, objetivando garantir o direito de acesso online e/ou offline do sujeito da atenção ou [de] seu representante legal a todas as informações do RES [Registro Eletrônico de Saúde]25, além de permitir a incorporação no RES de informações dos sujeitos da atenção sobre “autocuidado”, ponto de vista pessoal sobre as questões de saúde, níveis de satisfação, expectativas e comentários, quando assim desejar [o paciente]26.

Essa talvez seja a forma mais profunda do que se denomina “empoderamento do paciente” (patient empowerment), o qual, segundo o já mencionado documento da Anvisa, é novo conceito aplicado nos cuidados em serviços de saúde, e está relacionado com a segurança do paciente27. Segundo o mesmo texto, a OMS define o empoderamento como “um processo pelo qual as pessoas adquirem um maior controle sobre as decisões e ações que afetam sua saúde”27. Além disso, é necessário estar atento também às informações sensíveis registradas em prontuário, para que se concilie amplo acesso a dados e preservação da privacidade do paciente.

É fundamental respeitar verdadeiramente os direitos do usuário, tratando-o como sujeito em vez de objeto, e cumprir o ideal do sistema de garantir a centralidade do paciente, atingindo melhores resultados no que concerne à segurança e à qualidade da assistência. Entretanto, pode-se ousar aprofundar ainda mais: por que não envolver os usuários na discussão de falhas e erros cometidos?

Apesar de não ser original, a ideia não parece sequer ser levada em conta pelo sistema. Os usuários anseiam por esse tipo de contribuição, como se pôde constatar pela leitura do já citado artigo “Por que o engajamento do paciente se tornou prioridade?”. No texto, os pacientes afirmam ter muito mais a oferecer do que simples depoimentos carregados de emoções a respeito dos danos evitáveis dos quais foram vítimas. (…) Nós, pacientes, e nossas famílias temos necessidades e carências logo que as coisas se tornam ruins. Assim, temos necessidade de que as pessoas nos digam que qualquer coisa de errado aconteceu, e nós queremos que estas mesmas pessoas que cuidam de nossa saúde estejam abertas e nos façam participar de pesquisas que objetivem encontrar as causas profundas do erro cometido4.

É patente a vontade e o espírito de colaboração. Entretanto, normalmente o sistema trata com arrogância as vítimas de erro, postura, ainda que silenciosa, calcada na certeza absurda de que o usuário não tem como colaborar, seja para aliviar o problema ou evitar que ele se repita. No artigo “Investigação e inovação em segurança do paciente”, Sousa, Uva e Serranheira concluem:

De acordo com vários autores, as “falhas” ao nível da segurança do doente podem ter diversas implicações, entre as quais se destacam: i) perda de confiança, por parte dos doentes, nas organizações de saúde e seus profissionais, com consequente degradação das relações entre estes e os utentes/doentes; ii) aumento dos custos, sociais e económicos, variando a sua dimensão na razão directa dos “danos” causados e da casuística dos mesmos; e iii) redução da possibilidade de alcançar os resultados (outcomes) esperados/desejados, com consequências directas na qualidade dos cuidados prestados28. (…) A segurança do doente é por isso, em si mesma, uma área de intervenção inovadora que, ao colocar no centro o doente e a sua família, obriga a reinventar o sistema de saúde (e a própria lógica de investigação) numa perspectiva cada vez mais baseada em aspectos de cidadania e de ganhos em saúde29.

Assim, a atual abordagem, além de desrespeitar preceito constitucional referente aos direitos do paciente, não valoriza ideais da segurança do paciente, colocando usuários em posição de desconfiança, em postura defensiva, o que em nada contribui para a boa evolução dos casos. O esperado é trazer o usuário para participar da resolução do problema, informando-o com clareza; isto, obviamente, a partir da aplicação de metodologia e protocolos próprios, como já acontece na França, com a Lei Kouchner30, por exemplo.

Considerações finais

Já há algum tempo defende-se conduta mais incisiva do sistema de saúde, e notadamente dos hospitais, para aplicar metodologias capazes de colocar o usuário no centro do sistema, na condição de sujeito, e não de objeto. Alcançar este ideal causaria verdadeira revolução no sistema de saúde, inclusive em relação a custos, uma vez que pacientes mais comprometidos – “engajados”, por assim dizer – com o próprio tratamento conseguiriam, junto com a equipe de saúde, resultados mais eficazes e menor probabilidade de reincidência.

Ademais, construir diálogos com o paciente e compartilhar decisões tem efeito libertador para o profissional da saúde, que, em tese, deixa de ser acusado unilateralmente. Na França, a Lei Kouchner30 apostou na participação ao instituir metodologia que privilegia a colaboração do usuário no processo, principalmente em caso de falhas ou erros.

Tivemos a oportunidade de fazer espécie de estágio na Comissão de Relação com os Usuários e da Qualidade do Atendimento (Commissions de Relations avec les Usagers et la Qualité du Prise en Charge) de um hospital francês (Hôpital Avicenne, na periferia de Paris). Embora haja muitas correções a serem feitas na aplicação da Lei Kouchner, vivenciamos experiências exitosas neste mesmo hospital: por exemplo, diversas reuniões entre familiares queixosos e profissionais, havendo a oportunidade de restabelecer a comunicação entre as partes e evitar reclamações judiciais.

No Brasil, o PNSP gerou impactos positivos nos últimos anos. Embora sua aplicação ainda esteja em fase inicial, acredita-se que este será um marco em termos de qualidade da saúde no país. A iniciativa, porém, poderia agregar ainda mais casos se houvesse maior clareza a respeito dos direitos do usuário, o que infelizmente ainda não ocorre. De qualquer modo, vislumbra-se ser esta a “porta de entrada” para aliar a busca pela qualidade com o respeito aos direitos constitucionais do paciente, ainda desconhecidos e, portanto, malcuidados no Brasil.

Espera-se que este artigo tenha cumprido o papel inicialmente proposto de, a partir de análise breve, despertar interesse em relação ao tema dos direitos do usuário. A expectativa é ajudar a impulsionar mudanças no regramento atual, tendo como ponto nuclear da segurança do paciente a preservação de seus direitos e a melhoria da realidade social do país.

Referências

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  • 29 Sousa P, Uva AS, Serranheira F. Investigação e inovação em segurança do doente. Rev Port Saúde Pública [Internet]. 2010 [acesso 5 dez 2018];(10): p. 94.
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    » https://bit.ly/2kTBN0K

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    01 Jul 2019
  • Data do Fascículo
    Apr-Jun 2019

Histórico

  • Recebido
    7 Fev 2018
  • Revisado
    19 Nov 2018
  • Aceito
    14 Dez 2018
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