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Para compreender o sofrimento humano

Resumo

Durante o século XX, aumentou o conhecimento sobre dores, sobretudo em nível neurofisiológico, nomeadamente dores neuropáticas. Essa ampliação do saber e a proliferação de medicação analgésica – associadas ao enorme investimento na pesquisa bioquímica em detrimento da formação de qualidades comunicativas e cuidadoras dos profissionais de saúde, em especial dos médicos – desvalorizaram, porém, a relação médico-doente, ignorando por vezes a complexidade do sofrimento humano para muito além da dor. Vários investigadores têm sublinhado a necessidade de se (re)valorizar o sofrimento na educação de cuidadores de saúde, do nível formal ao informal. Reconhecer as potencialidades que o sofrimento pode trazer ao aprofundamento da identidade pessoal, salientando o papel das comunidades para a compreensão dessas experiências humanas, são os principais propósitos deste artigo.

Dor; Estresse fisiológico-Estresse psicológico; Cuidadores

Abstract

In the twentieth century the knowledge regarding pain, especially at the neurophysiological level, and in particular neuropathic pain, has increased. But more knowledge and analgesic medication devalued the doctor-patient relationship, sometimes ignoring the complexity of human suffering, far beyond pain. This is associated with a huge investment in biochemical research at the expense of training health professionals, especially doctors, in communication and caring skills. Several researchers have highlighted the need to (re) evaluate suffering in the formal and informal training of caregivers. The main purpose of this article is to recognize the potential that suffering can bring to the development of personal identity, stressing the role of communities in understanding these human experiences.

Pain; Stress; Training; Caregivers

Resumen

En el siglo XX, se incrementó el conocimiento del dolor, especialmente a nivel neurofisiológico, como en relación con el dolor neuropático. Más conocimiento y medicamentos para el dolor devaluaron, sin embargo, la relación médico-paciente, ignorando a veces la complejidad del sufrimiento humano, mucho más allá (y mucho más frente a) el dolor. Tal relación se asocia con una gran inversión en la investigación bioquímica a expensas de la formación de cualidades comunicativas y cuidadoras de los profesionales de la salud, especialmente los médicos. Varios investigadores han puesto de relieve la necesidad de (re)valorar el sufrimiento en la educación de los cuidadores de salud, al nivel formal e informal. Reconocer las potencialidades que el sufrimiento puede lograr en la profundización de la identidad personal, haciendo hincapié en el papel de las comunidades en la comprensión de estas experiencias humanas, son los principales propósitos de este artículo.

Dolor; Estrés fisiológico-Estrés psicológico; Cuidadores

É muito usual identificarmos dor com sofrimento, ainda que, em termos rigorosos, se tratem de realidades distintas. Enquanto a dor possui sempre suporte fisiologicamente detectável, no sofrimento muitas vezes não é assim. Saunders 11. Saunders C, Summers DH, Teller N, editores. Hospice: the living idea. Philadelphia: Saunders; 1981. (nos anos 1960) propôs o conceito de “dor total”, mas as concepções mais contemporâneas de sofrimento são ainda mais completas do que a da fundadora do movimento Hospice. Isso se deve, sobretudo, às inovações tecnológicas que permitiram compreender melhor, por exemplo, mecanismos fisiológicos produtores da dor. Empreendemos esta pesquisa para 1) refletir sobre a possibilidade de existir descontinuidade ôntica entre dor e sofrimento, 2) contribuir para melhor compreensão dessas vivências humanas, e 3) melhor embasar a formação de cuidadores de saúde mais perspicazes e compassivos.

Da dor

A definição de dor mais comum na prática clínica identifica-a, de modo mais ou menos consciencializado, como sinal fornecido por tecidos corporais alterados. A dor existe sempre como manifestação de alterações fisiológicas, cuja causa técnicas auxiliares de diagnóstico usualmente identificam. A maior parte das vezes em que isso não acontece, é dito às pessoas que se queixam de dor que ela não decorre de acontecimento no seu corpo, mas de “fatores psicológicos” 22. Munson P. Stricken: Voices from the hidden epidemic of chronic fatigue syndrome. New York: Haworth Press; 2000..

Esse aparente diagnóstico manifesta outra crença difundida entre profissionais de saúde: o que é do nível psicológico não existe, é imaginado, é apenas mental, ou seja, a mente não é de ordem fisiológica, não vive imersa num corpo. O pressuposto aqui encontrado é o da divisão mente-corpo; essa crença (frequentemente não consciencializada) desmerece situações nas quais há dor sem disfunção detectável, como no caso de dores fantasma, aperto no coração etc. Dada a impossibilidade de serem avaliadas como dores viscerais ou somáticas, são por vezes enunciadas como mentais ou psicológicas pelos profissionais de saúde, desvalorizando-as por não serem (nessa linha de raciocínio) de ordem fisiológica. Diante desse tipo de diagnóstico, os usuários comumente realizam essa mesma leitura. Muitos não efetuam consultas adicionais; outros são enviados para psiquiatras, onde costumam ser avaliados apenas em nível cerebral 33. Coutinho JF, Fernandes SV, Soares JM, Maia L, Gonçalves OF, Sampaio A. Default mode network dissociation in depressive and anxiety states. Brain Imaging Behav. 2016;10(1):147-57., ainda que o funcionamento neurológico abranja todo o corpo humano 44. Damásio A. The feeling of what happens: body and emotion in the making of consciousness. Nova York: Harcourt-Brace; 1999.-55. Varela FJ, Thompson E, Rosch E. The embodied mind. Cambridge: MIT; 1992..

Definição

Atentos aos problemas que esse tipo de crença sobre a dor acarreta, a Associação Internacional de Estudo da Dor (cuja sigla em inglês é Iasp) definiu dor, há quase 20 anos, como experiência sensorial e emocional desagradável associada a dano tecidular atual ou potencial, ou descrita em termos de tal dano 66. Portugal. Ministério da Saúde. Programa Nacional de Controlo da Dor. Lisboa: Ministério da Saúde; 2008. p. 6.. Assume-se que a dor possui dimensão profundamente subjetiva, por tratar-se de vivência.

O paradigma que impera nos cuidados de saúde formal é o biomédico, sendo uma de suas caraterísticas a produção de conhecimento descritivo e objetivável. Essa definição continua a vincular dor apenas a sua dimensão disfuncional em nível fisiológico, não colocando como hipótese haver dores de foro não fisiológico, tout court. Admite essa existência apenas enquanto a ciência não possui instrumentos/conhecimento para identificar a causa linear de todo tipo de dor. É curioso que a argumentação desse raciocínio se vincule à linguagem aristotélica (potencial ou atual). Porém a inclusão pela Iasp da dimensão emocional na definição de dor representa mudança, permitindo que esse aspecto, de pendor fortemente subjetivo, se alie à dimensão fisiológica presente (e tradicional) na definição de dor.

Quando não é possível identificar causa para uma queixa de dor, será mais sensato admitir ignorância que implicitamente avaliar essa percepção como irreal, apelidando de “psicológica” ou “somática”. A classe médica, por vezes, impõe aos doentes de tal modo suas representações e significados sobre o sofrimento, que os enfermos acabam optando pelas soluções que derivam desses pressupostos, e para as quais são pressionados. É um imaginário de origem tecnocientífica que determina a atual percepção da dor e do sofrimento e explica muitos dos nossos comportamentos, como no caso daquelas mulheres que, a partir de testes genéticos de cancro, optam pela solução mais radical, não escapando, afinal, a novas formas de sofrer 77. Cantista M. A dor e o sofrimento. Porto: Campo das Letras; 2001. p. 217..

Sejam quais forem as causas da dor, elas ocorrem num corpo em que o sistema nervoso tem papel muito importante. Estudo europeu sobre dor crônica 88. Fricker J. Pain in Europe: a 2003 report. [Internet]. Cambridge: Mundipharma; 2003 [acesso 27 jan 2015]. Disponível: http://bit.ly/1UMyzW0
http://bit.ly/1UMyzW0...
, realizado com cerca de 46 mil pessoas de dez países, constatou que um em cada cinco adultos sofre de dores crônicas, que se prolongam em média por sete anos, podendo atingir vinte anos ou mais. Em outro estudo 11. Saunders C, Summers DH, Teller N, editores. Hospice: the living idea. Philadelphia: Saunders; 1981., 40% dos doentes crônicos assinalam o impacto da dor nas suas vidas cotidianas. Muitos desses doentes não foram avaliados ou diagnosticados, nem suas dores foram convenientemente monitoradas.

Escalas de dor

Existem algumas escalas para classificar a dor, ainda que se reconheça que nenhuma é totalmente fiável. As analógicas com rostos são utilizadas com crianças e adultos que não se exprimem verbalmente. As analógicas de tipo visual mostram usualmente uma linha horizontal de 100 milímetros em uma régua, representando a intensidade da dor sentida por numeração de 0 a 10. São utilizadas, sobretudo, para prescrição medicamentosa, mas podem ser também recurso fundamental para diagnóstico, por exemplo, no âmbito da fisioterapia.

Outro tipo de instrumento para classificar a dor – o mais completo, no nosso entender – é o inquérito de McGill-Melzack, que tem sido muito apreciado por tentar avaliar a dor tanto na qualidade quanto na intensidade. As categorias estão distribuídas em vários itens, possibilitando escolha bastante variada por parte do doente: algumas se referem à sintomatologia sensorial, outras à dimensão afetiva, e outras a alguns aspectos particulares. A linguagem utilizada remete ao vocabulário usualmente utilizado por doentes, em vez de se vincular a nomenclatura técnica 99. Le Breton D. Compreender a dor. Lisboa: Estrela Polar; 1995..

Classificação

A dor pode ser considerada aguda ou crônica (no que diz respeito à intensidade); a primeira é forma de alerta do organismo, diante de agressão mecânica, química ou térmica; a segunda provoca desequilíbrios orgânicos, diminuindo progressivamente as capacidades funcionais das pessoas. A tipologia fisiológica mais comum inclui dor somática, visceral e neuropática. Na primeira temos dores resultantes de danos no “exterior” do corpo, enquanto a dor visceral remete a dores internas aos órgãos (a sintomatologia clássica são as cólicas abdominais). Ambas são da ordem nociceptiva: experiência sensorial que ocorre quando neurônios sensoriais periféricos específicos (nociceptores) respondem a estímulos nocivos, usualmente agudos. Já dores neuropáticas resultam de disfunções no próprio sistema nervoso. O seu funcionamento só começou a ser compreendido no final do século passado 1010. Groopman J. The anatomy of hope. Nova York: Random House; 2004.. Frequentemente, em situações crônicas, a dor não se localiza na zona da lesão, mas na estrutura nervosa que está afetada (nervos, medula, cérebro, por exemplo), não diminuindo com analgésicos usuais.

Se McGill-Melzack classificam a dor como sensorial, afetiva, ajuizadora, Saunders distingue dor de dor total. A primeira diz respeito à dimensão fisiológica, a outra, aos domínios psicológicos, sociais e espirituais associados à primeira 1111. Pfizer. Programa educacional: compreender e diagnosticar a dor neuropática: dossier de formação. Lisboa: Pfizer; s/d.. Essa autora verificou que grande parte do sofrimento dos doentes com câncer resultava de conexão entre dor aguda de tipo fisiológico e questões relacionais do próprio doente consigo e com outros (especialmente família e entidades consideradas transcendentes).

Muito do que atormenta essas pessoas refere-se a culpa, frustração e impotência perante situações que viveram no passado ou que gostariam de viver no futuro. Assegurar que aqueles que amam se encontram bem e que possuem meios para continuar vivendo bem no futuro é outra das grandes preocupações, assim como o possível propósito ou sentido de sua dor, ou seu direito, ou não, à eternidade. Essa temática pode ser abordada em detalhes pelo estudo dos estágios enunciados por Kübler-Ross 1212. Kübler-Ross E. Sobre a morte e o morrer. São Paulo: Martins Fontes; 1969., entre outros autores posteriores.

A definição de Saunders foi inovadora para sua época e muito importante, pois abriu caminho aos cuidados paliativos. Todavia, sua visão se enraíza epistemologicamente ainda na perspectiva dualista do paradigma mecanicista, ao qual pertence a perspectiva biomédica. Com efeito, a dimensão fisiológica não só é indissociável dos outros tipos de dores, como pressupõe, paradoxalmente, que o todo (a dor total) é igual à soma das partes (vários tipos de dores), hipótese fundamental do mecanicismo moderno 1313. Rorty R. Philosophy and the mirror of nature. Princeton: Princeton University Press; 1979..

As escalas de dor constituem tentativas de medição de experiência subjetiva, e quando não são manejadas por usuários, mas por profissionais de saúde (enfermeiros, usualmente), sua credibilidade diminui imensamente. Sua vertente quantificadora permitiu ainda a elaboração de protocolos analgésicos para cada item numérico das escalas, que costumam ser ineficazes nas doenças autoimunes, pois o tipo de dor a elas associado não diminui com a medicação protocolada para o nível e a intensidade assinalados pelos usuários 1414. Zelen M. Data analysis methods for inferring the natural history of chronic diseases. Natl Cancer Inst Monogr. 1971;34:275-82.. A maior parte das dores presentes com essas doenças (fibromialgia, lúpus etc.) é de tipo neuropático, podendo haver intensidade diferenciada em várias partes do corpo no momento em que as dores são avaliadas com escalas, por exemplo.

Assim, conforme a compreensão das dores neuropáticas aumenta, maior deveria ser a sensibilidade dos cuidadores profissionais para a subjetividade inerente a qualquer forma de dor. Saber escutar e conhecer bem o usuário, pelas suas narrativas, produz melhor conhecimento sobre a dor de um indivíduo do que qualquer forma de medição de dor 1515. Tavares JF. Medicina narrativa: Alice no país dos provérbios. Lisboa: Euromédice; 2014..

Do sofrimento

Diferentes culturas possuem diferentes concepções acerca do sofrimento. Por exemplo, a cultura budista o encara, e sua função, de forma integrada à vida quotidiana das pessoas. Na nossa cultura foram surgindo, ao longo dos tempos, variadas formas de entendimento sobre sofrimento e o modo de senti-lo. Mesmo que o abordemos numa época histórica precisa, como a atual, podemos encontrar mais de uma conotação; por exemplo, como mencionado, associa-se geralmente à dor.

Definição

Diante das múltiplas definições, optou-se pela definição clássica de sofrimento no mundo da saúde, enunciada por Cassell 1616. Cassell EJ. The nature of suffering and the goals of medicine. Oxford: Oxford University Press; 2004., pois permite elucidar determinadas experiências de sofrimento nem sempre avaliadas como tal. Assim, genericamente, sofrimento é um estado de aflição severa, associado a acontecimentos que ameaçam a integridade (manter-se intacto) de uma pessoa. Sofrimento exige consciência de si, envolve as emoções, tem efeitos nas relações pessoais da pessoa, e tem um impacto no corpo 1616. Cassell EJ. The nature of suffering and the goals of medicine. Oxford: Oxford University Press; 2004.. Essa situação existencial de aflição grave verifica-se naquilo que a pessoa identifica com seu interior, usualmente associado a emoções, como ansiedade, e a sentimentos, como tristeza, frustração, impotência etc. O fato de tratar-se de vivência interior torna possível que não seja sempre detectável por um observador.

O sofrimento surge sempre associado a eventos, sobretudo externos (outras pessoas, doença, desemprego, perda de ente querido etc.). É importante realçar, no entanto, que o estado de aflição severa é sentido interiormente; daí ser usual a hipótese de haver algum dano em órgão interno, como no coração, no fígado etc. Quando isso acontece, mesmo que exames auxiliares de diagnóstico nada identifiquem, profissionais de saúde devem ter muito cuidado antes de concluir que nada ali lhes diz respeito. Ainda que a causa do sofrimento possa ser considerada exterior, não se pode confundi-la com o efeito produzido (o sofrimento), tampouco reduzi-lo àquela única causa.

Dimensão holística do sofrimento

Grande parte do sofrimento do doente relaciona-se a outros fatores para além de seus problemas fisiológicos. Uma pessoa diagnosticada com doença sente-se fragilizada, ou pensa que deveria sentir-se assim; acredita que tem limitações de tipo fisiológico usualmente descritas por profissionais de saúde. Essa situação afeta o modo como se alimenta, se movimenta, interage consigo e com outros. Estados de humor menos positivos usualmente se manifestam em pessoas doentes, e, no que se refere a portadores de doenças crônicas, não é pequena a possibilidade de atingirem estados depressivos. É comum sentirem-se insuficientemente apoiados, não levados a sério etc.

O doente tem também preocupações de tipo comunitário que podem causar grande aflição, dado que sua ausência (temporária ou definitiva) acarreta dificuldades a sua família, à empresa em que trabalha, aos amigos que o apoiam etc. Os problemas vividos (ou postulados) pelo doente prendem-se às funções que ocupa socialmente, não somente a sua doença. Como exemplos, é possível que o enfermo seja o suporte emocional fundamental de alguém – como filho, companheiro, amigo, pai ou avó – ou que as despesas da casa dependam do salário do doente incapacitado de laborar.

Estar doente pode ainda obrigar a interrogações sobre o sentido da vida e da morte, do que fazemos aqui, bem como sobre o que deveríamos fazer; será que estamos em trânsito para outra dimensão ou essa é a última etapa de outras que nos precederam? Inquietações filosóficas que assaltam qualquer ser humano em momentos em que o fim passa a ser vislumbrado 1717. Frankl V. Psicoterapia e sentido da vida. São Paulo: Quadrante; 1973.

18. Lukas E. Histórias que curam… porque dão sentido à vida. Campinas: Verus; 2005.

19. Fauré C. Vivre le deuil au jour le jour. Paris: Albin Michel; 2012.

20. Delecroix V, Forest P. Le deuil: entre le chagrin et le néant. Paris: Philo; 2015.
-2121. Neimeyer RA, Burke LA, Mackay MM, Stringer J. Grief therapy and the reconstruction of meaning: from principles to practice. J Contemp Psychother. 2010;40:73-83., tal como nos lembra Tolstói: Mas que estou eu para aqui a arengar: Qual o fim da existência? Não pode ser. É impossível que a vida seja tão absurda e repulsiva. E se o é, para que morrer, e morrer entre sofrimentos? 2222. Tolstói L. A morte de Ivan Ilitch. Lisboa: Editora 34; 2006.

Tudo isso faz parte da aflição intensa que uma pessoa doente suporta, mas com a agravante de todas essas questões existirem pouco arrumadas categorialmente, vibrando ruidosamente dentro dela. Essa multiplicidade de anseios, tristezas, dores, frustração, cria usualmente desânimo, sensação de total impotência diante da própria vida e daquilo que lhe confere sentido: aqueles a quem amam reciprocamente. A sensação de desintegração interna é real e muitas vezes acompanhada de sensações viscerais. As pessoas, muitas vezes, descrevem que estão a “engolir a si próprias”, ou utilizam metáforas do mesmo tipo. Essa desidentidade manifesta-se fisicamente também pelo emagrecimento súbito e acentuado, pois o sofrimento corresponde por vezes a desistência de lutar, abandono dessa pessoa – que já não se reconhece como “eu” 2323. Le Breton D. Disparaître de soi. Paris: Métaillié; 2015.– ao seu destino: Como se acabasse de dar início a um processo de despersonalização, eu tinha-me transferido para um sujeito na terceira pessoa 2424. Pires JC. De profundis, valsa lenta. Lisboa: Círculo de Leitores; 1998. p. 30..

Muitas vezes, porém, o sofrimento ocorre sem qualquer ligação com doença fisiológica. Alguns fatores socialmente atribuídos ao sofrimento são luto pelos que amamos, impotência, abandono, tortura (emocional, por exemplo), desemprego, traição, isolamento, falta de abrigo, perda de memória e medo 1717. Frankl V. Psicoterapia e sentido da vida. São Paulo: Quadrante; 1973.

18. Lukas E. Histórias que curam… porque dão sentido à vida. Campinas: Verus; 2005.

19. Fauré C. Vivre le deuil au jour le jour. Paris: Albin Michel; 2012.

20. Delecroix V, Forest P. Le deuil: entre le chagrin et le néant. Paris: Philo; 2015.
-2121. Neimeyer RA, Burke LA, Mackay MM, Stringer J. Grief therapy and the reconstruction of meaning: from principles to practice. J Contemp Psychother. 2010;40:73-83.. Existem, contudo, muitas outras situações, como estar apaixonado por quem nos rejeita. Sendo o sofrimento experiência subjetiva, podemos viver em sofrimento situações que não causam qualquer tipo de aflição a outras pessoas: quem sofre o meu sofrimento sou eu só e mais ninguém 2525. Gedeão A. Obra completa. Lisboa: Relógio d’Água; 2004., lembra-nos António Gedeão. A especificidade subjetiva do sofrimento humano verifica-se também pela possibilidade de ocorrer a partir de qualquer dimensão, ainda que quem sofra seja a pessoa no seu todo.

Pessoa e sofrimento

Ao afirmarmos que quem sofre é a pessoa e não um corpo (ou órgãos, ou células de corpos), não identificamos uma pessoa com sua mente. Vivemos numa época fascinada com as capacidades mentais humanas e suas funções. A ciência do micro sonha em descobrir mecanismos que desvendariam caminhos e ordens mentais que no paradigma científico atual se crê estarem na base de toda a atividade humana. Mas essa é, mais uma vez, uma concepção mecanicista moderna que nos faz esquecer que a mente (seja lá isso o que for, pois não há unanimidade sobre o assunto) funciona num cérebro que habita um corpo.

Existem, obviamente (e como sempre aconteceu), cientistas que tentam demonstrar que essas crenças podem ser modificadas, mas são minoria, pois nos dias de hoje – como nos lembra Feyerabend 2626. Feyerabend P. Science in a free society. Londres: New Left Books; 1978. – ser cientista e se posicionar contra o paradigma dominante exige tanta coragem como no tempo de Galileu. Assim, alguns neurocientistas têm demonstrado que a consciência de si, necessária para a experiência do sofrimento (mas não para a da dor), emerge do funcionamento holístico do corpo humano 2727. Damásio A. Sentimento de si: o corpo, a emoção e a neurobiologia da consciência. Lisboa: Europa-América; 2000., no qual o cérebro imerge numa rede neural contínua 2828. Epstein R. Cognition, creativity, and behavior: selected essays. Westport: Praeger; 1996.. O sofrimento humano produz-se nessa rede, afetando todo o ser da pessoa acometida, ainda que possa incidir com mais força numa determinada dimensão (emocional, fisiológica, espiritual, ético-moral etc.) 2929. Cicurel R, Nicolelis M. O cérebro relativístico: como ele funciona e por que ele não pode ser simulado por uma máquina de Touring. São Paulo: Kios Press; 2015.. Cuidar de alguém em sofrimento implica se relacionar com todas as suas dimensões, e não apenas com a fisiológica, como no caso das dores nociceptivas.

Sofrimento e tempo

O sofrimento possui ligação peculiar com o tempo. Assim, a antecipação de experiência de dor (diante de diagnóstico de paramiloidose, por exemplo, em pessoa que já cuidou de um familiar morto devido a essa doença neurodegenerativa) pode causar sofrimento e raramente dor. Pode também antecipar experiências de sofrimento: “se a dor que tenho deriva de um câncer, vou morrer”. O fato de podermos sofrer pelo que iremos, supostamente, viver no futuro pode ser usado inversamente, ou seja, podemos diminuir o sofrimento utilizando a sua estreita ligação à dimensão pessoal. Assim, por exemplo, um doente terminal pode diminuir o seu sofrimento atual estabelecendo pequenas metas a curto prazo em que realiza ou vê acontecer determinados fatos; por exemplo, assegurar que os estudos dos seus filhos menores sejam pagos com dinheiro entregue para esse fim a alguém de confiança. É a noção de tempo que relaciona as imagens (…) e que lhes dá a luz e o tom que as datam e as tornas significantes. (…) Porque a memória, aprendi por mim, é indispensável para que o tempo não só possa ser medido como sentido 3030. Pires JC. Op. cit. p. 31..

Doenças crônicas

Até meados do século XX, a doença que mais matava na Europa era a tuberculose, mas com o sucesso antibacteriano conseguiu-se controlar sua expansão 3131. Mattson H, editor. Proceedings of the joint conference of the finnish Anti-Tuberculosis Association (1907-1977) and the Europe Region of the International Union against Tuberculosis, Hanasaari, June 13-17, 1977. Copenhagen: Munksgaard; 1978.,3232. Portugal. Direção-Geral da Saúde. Programa nacional de luta contra a Tuberculose: ponto da situação epidemiológica e de desempenho. [Internet]. 2013 [acesso 30 maio 2016]. Disponível: http://bit.ly/1XTdL3N
http://bit.ly/1XTdL3N...
. A partir dos anos 1950, as neoplasias começaram a aumentar em todo o mundo, com incidência epidemiológica crescente, até nossos dias. Em Portugal, as neoplasias são ultrapassadas pelas doenças de foro coronário – lá se verifica o êxito no controle das doenças infecciosas, bem como o aumento de tempo médio de vida daí decorrente. Existem ainda outras causas para essa situação, como modificações alimentares, a entrada das mulheres no mundo do trabalho remunerado, as alterações climáticas e demográficas etc.

Entre as consequências dessa mudança, assinalamos a necessidade de maior (e mais longo) contato clínico com pacientes: o número de doentes que um médico (em contexto hospitalar, por exemplo) diagnostica, medicamenta e nunca mais vê está diminuindo extraordinariamente em Portugal. Em contrapartida, existem cada vez mais pessoas que se sentem quase membros das famílias dos enfermeiros e médicos por quem são cuidados há anos.

Relação médico-paciente

A formação de cuidadores de saúde formais exige, pois, crescente atenção quanto à relação médico-paciente. Daí o movimento em todo o mundo de (re)inserir o estudo das humanidades na formação médica. Nesse sentido, órgãos estadunidenses e europeus determinaram que o princípio do bem-estar do enfermo está baseado na dedicação em servir o interesse do paciente. Altruísmo contribui para a confiança que é central à relação médico-doente. Forças de mercado, pressões sociais, e exigências administrativas não devem comprometer este princípio 3333. American College of Physicians. Medical professionalism in the new millenium: a physician charter. Ann Intern Med. 2002;136(3):243-6.. Outra questão que as doenças crônicas acarretam é a compreensão de que os cuidadores formais de saúde devem desenvolver humildade, que deveria ser estimulada nos anos de formação.

Grande número de doenças crônicas está catalogado como sendo de foro autoimune, sobre o que muito pouco se conhece. Para ampla variedade delas, o que a medicina oferece é de carácter paliativo, e não de tratamento. A reabilitação de pacientes (ainda que não total) não é suficientemente estimulada, contrariamente a outras doenças crônicas cujos mecanismos de funcionamento são mais claros, biologicamente falando (diabetes, doenças coronárias etc.).

A formação médica assenta, contudo, na dimensão curativa ou – quando curar não é possível – em manter os organismos vivos a todo custo. Essas situações ocorriam até então, sobretudo no que concerne a doentes terminais, mas as doenças crônicas vieram mudar essa situação. Diante desse quadro, a função dos médicos será, sobretudo, cuidar de pessoas que vivem quotidiano quase idêntico ao de não doentes, dado que muitos deles trabalham, desempenham funções familiares, utilizam seu tempo de ócio etc. – eles não estão doentes, são doentes 22. Munson P. Stricken: Voices from the hidden epidemic of chronic fatigue syndrome. New York: Haworth Press; 2000..

Formação

Como referido anteriormente, a formação médica usualmente não foca o treino de competências relevantes para a prática clínica com doentes crônicos por se alicerçar em crenças que impossibilitam tal investimento. Abordar-se-ão algumas, de foro epistemológico. Como se sabe, a medicina foi, até muito tarde, uma arte aliada ao saber escolástico próprio das universidades europeias, sobretudo mediterrâneas. Daí seu estatuto epistemológico de ciência aplicada 3434. Caraça J. O que é ciência. Coimbra: Quimera; 2001.. Le Breton apelida-a de ciência do corpo doente 99. Le Breton D. Compreender a dor. Lisboa: Estrela Polar; 1995., que nos remete diretamente a sua visão profundamente patogênica do ser humano, explicada e compreendida em função do paradigma mecanicista da física moderna.

A formação médica assenta na crença da causalidade linear, ou formal/eficiente, em termos aristotélicos 22. Munson P. Stricken: Voices from the hidden epidemic of chronic fatigue syndrome. New York: Haworth Press; 2000.. Como vimos, acredita-se ainda que a causa de um sinal, de uma sintomatologia, reside sempre numa disfunção em termos fisiológicos, em termos macro ou micro, por mais ínfimos que sejam. Daí que se sujeitem pacientes a exames contínuos, de crescente precisão, com certeza usualmente inabalável que essa causa única e fisiológica será encontrada 3535. Groopman J. How doctors think. Nova York: Houghton Mifflin; 2007..

Em vários tipos de doenças crônicas, porém, não se encontram quaisquer deformações estruturais nos órgãos suspeitos, mas no modo como esses órgãos desempenham sua esperada função orgânica. As de tipo autoimune muito usualmente apresentam sintomatologia tão diversificada, que se torna impossível assumir-se uma só causa orgânica. Ou se considera essa origem única existente no imaginário do paciente (ou de foro mental, como identificamos) ou se assume que deverá existir uma variedade de causas para a multiplicidade tipológica de mal-estar. Esse tipo de doença remete ainda para a possibilidade de causalidade circular, e, se isso não é compreendido, pode-se tomar causa por efeito e vice-versa.

Os médicos (cuja formação assenta na investigação laboratorial e científica) raramente assumem que são observadores em sua atuação profissional. Essa dificuldade existe por esse tipo de formação usualmente assentar na crença de que o conhecimento produzido corresponde à realidade (teoria da correspondência com o real, em termos epistemológicos), ainda que o doente não se identifique com ele 3535. Groopman J. How doctors think. Nova York: Houghton Mifflin; 2007.. Treinam-se profissionais de saúde que acreditam atuar sem crenças ou representações psicossocioespirituais, que creem que aquilo a que seus corpos foram sujeitados em sua existência não influencia o modo de cuidar dos outros.

Defende-se o maior autocontrole emocional possível e, de preferência, a inexistência de emoções perante o sofrimento humano. Sabemos que isso é impossível; o observador representa resultados (por ele avaliados) de suas interações com outros, e felizmente isso já é assumido em alguns manuais de apoio a cuidadores não formais, e mesmo formais 3636. Jacobs B. The emotional survival guide for caregivers: looking after yourself and your family while helping an aging parent. Nova York: Guilford Press; 2006.: Através de interações recorrentes com os seus próprios estados linguísticos, um sistema pode permanecer assim sempre em situação de interagir com as representações (…) das suas interações. Tal sistema é um observador 3737. Maturana H, Varela F. De maquinas y seres vivos. Santiago: Editorial Universitaria; 1972. p. 90..

Assim, a classe médica encontra-se em situação contraditória quanto a doenças crônicas. Se, por um lado, em nível da investigação científica, a bioquímica tem investido bastante nesse tipo de enfermidade, no que se refere ao cuidado de doentes crônicos há, porém, longo caminho a percorrer na formação médica e na prática clínica. É necessário que sejamos educados face à nossa vulnerabilidade e nosso sentimento de vulnerabilidade, é necessário que a educação tome como sua responsabilidade este aspecto 3838. Vigarello G. Entretien avec Éliane Rothier Bautzer sur l’évolution des pratiques de santé. Les Sciences de l’Éducation: pour l’ère nouvelle. 2003;36(2):23-34..

Cuidados e comunidade

Não caberia às comunidades nas quais os doentes crônicos vivem o cuidado desse mal-estar? Sim e não, pois muito do sofrimento dos doentes crônicos tem origem em seus relacionamentos comunitários. Quando do diagnóstico desse tipo de doenças, o enfermo é usualmente atingido por uma onda de solidariedade por parte de familiares e amigos. Tratando-se, no entanto, de doenças “em longo prazo”, com o tempo essa onda vai diminuindo; os cuidadores cansam das lamúrias (que também vão diminuindo diante da redução de pessoas que os procuram), familiarizam-se com as dificuldades motoras, alimentares etc., e pouco a pouco se esquecem que lidam com pessoas acometidas por aflições enormes, sendo a maior de todas a de não poder simplesmente ser como os outros. Enquanto doenças, como elas têm sido consideradas classicamente, estão confinadas ao corpo e às suas partes, a dolência de uma pessoa pode ser acompanhada por desordem em todo o sistema da pessoa – por exemplo, associados à família, ou até à comunidade 3939. Cassell E. Op. cit. p. 47..

Sofrimento crônico

Na maior parte das doenças, o sofrimento perdura menos que o tratamento que leva à cura; uma das razões mais importantes para o alívio do sofrimento deriva da analgesia que uma primeira consulta ao médico proporciona. Por contraposição, doenças crônicas acarretam sofrimento crescente conforme as pessoas vão se sentindo um fardo cada vez mais pesado na vida de seus cuidadores informais. Sua identidade está profundamente ligada à vida daqueles a quem amam reciprocamente. Sentir que lhes tolhem a vida, que os limitam com suas limitações, é algo que se torna dramático quando tal situação se revela definitiva.

Essas pessoas vivem usualmente sofrimento mesclado a culpa e medo de serem abandonadas. Quase inevitavelmente começam a pensar que o cuidador atua por obrigação e não por amor. Sobrecarregar quem os ama os divide em sua própria identidade. Essa situação acarreta dificuldades relacionais acrescidas, que se refletem, por exemplo, na vida sexual dos doentes crônicos, quer tenham dores, dificuldades motoras, insuficiências respiratórias, vasculares etc. No caso de mulheres, o sofrimento acentua-se facilmente dada a complexidade de fatores implicada em sua sexualidade.

Representações sociais

Em sociedades em que se valorizam pessoas com elevada emulação, que sejam admiradas pelos outros, quem se sente diminuído por seu sofrimento (físico, afetivo, espiritual etc.) sente-o aumentar exatamente por se considerar um fracasso para si próprio, para outros e até para entidades transcendentes em que acredita. Muitas pessoas vivem em contínuo duplo constrangimento 4040. Bateson G. Steps to an ecology of mind. Nova York: Ballantine Books; 1972., oscilando entre sentirem-se injustiçadas e não conseguirem ser como os outros (ou como acreditam que os outros sejam, sobretudo devido às imagens com que somos bombardeados pela mídia). Por razões desse tipo, o envelhecimento se tornou motivo de sofrimento para quase todos nós. Cada vez se torna mais difícil perceber a sabedoria existencial que a idade acarreta, focados como estamos na falta de vitalidade, produtividade, beleza estandardizada etc.

Não podemos subestimar o impacto dessas representações sociais nas pessoas. Com efeito, a vontade de ser reconhecido como normal, igual, está sempre presente, ainda que não de forma consciente. Assumi-la, compreendê-la criticamente e perceber os custos que implica devem fazer parte de uma educação para o sofrimento.

Grupos de risco

Existe, porém, um tipo de pessoas que vive potencialmente em sofrimento crônico: os “deficientes”. Referimo-nos a sofrimento usualmente sem dor, mas de imensa percepção de desintegração interior, de perda de si mesmo. Muitas pessoas inseridas nessa tipologia poderiam, e deveriam, ser usualmente convocadas como fonte de aprendizagem sobre sofrimento. Muitos outros grupos de pessoas constituem “grupos de risco” no que diz respeito a sofrimento crônico, nomeadamente todos aqueles que simbolizam o diferente, o estranho, a desordem (pessoas com deformidades físicas, cicatrizes, esgares e tiques incontroláveis, com mutilações etc.). Verifica-se, todavia, que também obesos e pessoas inseridas na tipologia de desordens alimentares, como anorexia e bulimia, constituem grupos de risco, bem como pessoas que nunca completaram um processo salutogênico (ainda que pleno de sofrimento) de luto, vivendo em luto patológico.

Para uma visão integradora da dor e do sofrimento na vida humana

Muito do sofrimento dos grupos aqui mencionados relaciona-se a dimensões fisiológicas e sociais, mas algo desse imenso sofrimento brota das próprias pessoas, do conflito de querer ser quem não são e de querer ser aceitas como são, como seres humanos com iguais direitos e deveres diante de outros. Obviamente que esse nível de sofrimento irrompe das condições físicas e sociais nas quais as pessoas vivem. Pode-se, no entanto, diminuir imensamente o sofrimento quando se aceita as condições nas quais se vive, tentando melhorá-las não em função de outros, mas valorizando sua situação específica. A importância da aceitação foi abordada por Kübler-Ross 1212. Kübler-Ross E. Sobre a morte e o morrer. São Paulo: Martins Fontes; 1969., entre outros.

O sofrimento de uma pessoa doente é muito variável, mesmo em termos ontogenéticos, pelas razões anunciadas. Quanto maior a intensidade com que se sente a dor, maior é, em princípio, o sofrimento percebido pela pessoa. Daí os doentes crônicos associarem muitas vezes de forma linear seu sofrimento à dor provocada pela doença 4141. Encarnação P, Oliveira CC, Martins T. Dor e sofrimento conceitos entrelaçados: perspectivas e desafios para os enfermeiros. Rev Cuidados Paliativos. 2015;2(2):22-31.. Quando questionados com pormenor sobre essa correlação, verificamos que muito do sofrimento se relaciona antes com falta de sentido interno de coerência (SOC – Sense of Coherence) e falha na criação/gestão de recursos de resistência (GRR), colocando as pessoas em processos desidentitários. A negação ou a raiva diante da doença não proporciona sofrimento ou desenvolvimento de SOC/GRR 4242. Encarnação P, Oliveira CC, Martins T. A generalized resistance resource: faith: a nursing view. Health Promot Int. 2015:1-4. DOI: 10.1093/heapro/dav114.
https://doi.org/10.1093/heapro/dav114...
. Muitas vezes, essa dificuldade é observada em cuidadores de doentes 4343. Oliveira CC, Costa AL. Viver o estado terminal de um familiar: leitura salutogénica de resultados de um estudo de caso. Saúde Soc. 2012;21(3):698-709.. O SOC refere-se à capacidade de atribuição de sentido na vida de cada um de nós, estruturando-nos diante das perturbações internas, ou (percepcionadas como) externas. Nem sempre quem mais sofre consegue reverter (lentamente) a situação em aprendizado; isso ocorre com pessoas que já atribuíram (e construíram) sentido no seu cotidiano, em outras vivências experienciadas anteriormente ao sofrimento em questão.

No entanto, encontramos em estudos outras pessoas que diante de doenças crônicas graves não veem acrescido seu sofrimento, pois integram em suas vidas as dores a elas associadas. Isso se verifica em pessoas que conseguem atribuir sentido (ou SOC) a suas vivências dolorosas 4444. Lindström B, Eriksson M. Contextualizing salutogenesis and Antonovsky in public health development. Health Promot Int. 2006;21(3):238-44..

Dimensão comunitária

Na teoria da autopoiesis 3737. Maturana H, Varela F. De maquinas y seres vivos. Santiago: Editorial Universitaria; 1972. p. 90., seres humanos são sistemas vivos de terceira ordem, significando que a dimensão comunitária é intrínseca a sua identidade biológica. Construir níveis complexos de significação autopoiética pressupõe, pois, a inclusão daqueles que amamos nessa construção. Com essas pessoas, constituímo-nos uns aos outros em torno de padrões auto-organizativos que nos fazem atribuir sentido e valor semelhante ao sofrimento. Para tal, ajudamo-nos uns aos outros a encontrar formas de resistir ao sofrimento, mas também de aceitá-lo, apoiando-nos nos recursos que as comunidades em que vivemos nos proporcionam 4545. Antonovsky A. The salutogenic model as a theory to guide health promotion. Health Promot Int. 1996;11(1):11-8.,4646. MacIntyre A. Dependent rational animals: why human beings need the virtues. Londres: Duckworth; 1999.. Os sistemas autopoiéticos podem interagir entre si, sem perder a sua identidade, enquanto as suas respectivas modalidades de autopoiesis constituam fonte de perturbações compensáveis 3737. Maturana H, Varela F. De maquinas y seres vivos. Santiago: Editorial Universitaria; 1972. p. 90..

Cuidar informalmente de alguém está no domínio das comunidades às quais se pertence. A valorização social dessa dimensão corre risco de se perder, devido às sociedades altamente competitivas nas quais vivemos, que vinculam pessoas quase exclusivamente ao mundo laboral 2323. Le Breton D. Disparaître de soi. Paris: Métaillié; 2015.. Cuidar de alguém que sofre exige paciência, humildade, compaixão, despojamento. Caso o sofrimento esteja associado a dores, poderá exigir também cuidados profissionais de técnicos de saúde, mas os cuidados informais permanecem insubstituíveis na recuperação da pessoa 4646. MacIntyre A. Dependent rational animals: why human beings need the virtues. Londres: Duckworth; 1999..

Considerações finais

Aprender com o sofrimento decorre de uma flexibilização lenta de padrões, que não pode levar a sua ruptura, sob risco de desagregação identitária. Daí a importância de formação de cuidadores que assuma a dimensão observacional, ou seja, a capacidade de lidar com suas representações mentais sobre as pessoas das quais cuida como se essas representações tivessem realidade ontológica, isto é, como se elas fossem o espelho daqueles de quem cuida. Mantendo isso em mente, os cuidadores tentarão compreender modos de pontuação da realidade tornados padrões de atribuição de significado no (ao) mundo dos sofredores (recorrendo às histórias de vida e a outro tipo de narrativas, por exemplo). Para tal, terão que estabelecer relações alicerçadas em empatia, humildade e confiança 4747. Henry M. Incarnation: une philosophie de la chair. Paris: Seuil; 2000.,4848. Machado J. Perspectiva antropológica do ensino da medicina. Acção Med. 2006;70(1):16-22.que possibilitem acoplamentos estruturais 3737. Maturana H, Varela F. De maquinas y seres vivos. Santiago: Editorial Universitaria; 1972. p. 90., quer com os doentes, quer com seus cuidadores informais.

Pode acontecer que pessoas doentes com dores não estejam em sofrimento, caso aceitem sua condição e com ela tenham aprendido a reforçar o sentido da vida. Somente as conhecendo como seres humanos, e não só como pacientes, poderemos identificar se há, ou não, sofrimento, e de que tipo se trata. Os cuidadores informais são imprescindíveis para tal, e qualquer profissional de saúde deveria ter treino comunicacional, antropológico e ético para saber identificar situações nas quais seus doentes precisam de ajuda para além de medicamentos e tratamentos, mais ou menos invasivos 4949. Oliveira CC. Suffering and salutogenesis. Health Promot Int. 2015;30(2):222-7.. É impossível (não meramente difícil, mas impossível) basear decisões clínicas sólidas unicamente na evidência científica porque, como toda a ciência, a evidência sobre generalidades e pacientes são indivíduos particulares, únicos 5050. Maturana H, Varela F. Op. cit. p. 67-8..

O quase domínio da dor no século passado criou a crença em muitos profissionais (e até no público em geral) de que o sofrimento humano se encontra também controlado. Porém, isso não aconteceu, devido inclusive à dimensão simbólica que o sofrimento possui para cada pessoa, para cada comunidade e até para uma cultura civilizacional 99. Le Breton D. Compreender a dor. Lisboa: Estrela Polar; 1995.. A criação de matérias da área humanística não garante, por si só, formação mais integral e humanizadora dos profissionais de saúde 5151. Oliveira CC, Feio A. A formação académica em medicina. Acção Med. 2014;1:11-27., por causa de vários fatores, como o poder do paradigma mecanicista biomédico na academia do dito mundo civilizado.

Estudos indicam que profissionais de saúde que tiveram formação nessa área a subestimaram de tal modo que, quando da sua prática clínica, não conseguem recordar que muito da formação de que sentem falta lhes foi oficialmente ministrado nas academias. O ideal do médico cinco estrelas 5252. World Health Organization. Developing protocols for change in medical education. Genebra: WHO; 1995. se encontra muito longe de ser atingido, e a epidemia de negligência médica em alguns países assim o demonstra 5353. Wachter RM, Shojania KG. Internal bleeding: the truth behind America’s terrifying epidemic of medical mistakes. Nova York: Rugged Land; 2004.. Os próprios profissionais, aliás, são vítimas de uma formação que os treina para serem autômatos sem emoções, conduzindo-os por vezes para o esgotamento em todos os níveis 5454. Mata DA, Ramos MA, Bansal N, Khan R, Guille C, Angelantonio E et al. Prevalence of depression and depressive symptoms among resident physicians: a systematic review and meta-analysis. Jama. 2015;314(22):2373-83.. Por fim, é necessário que cuidadores informais, além dos formais, lembrem que pode existir sofrimento sem dor 5555. Oliveira CC, Pellanda N, Reis A, Boettcher D. Aprendizagem e sofrimento: narrativas. Santa Cruz do Sul: Udunisc; 2012.

56. Derrida J. Chaque fois unique: la fin du monde. Paris: Galilée; 2003.
-5757. Fernandes I. O elefante verde ou a importância da medicina narrativa na prática clínica. Rev Ordem Med. 2014;30(153):76-81.. Viver desestruturado, sem identidade e sentido para a vida constitui perigo não só para as pessoas em causa, mas também para comunidades 2323. Le Breton D. Disparaître de soi. Paris: Métaillié; 2015..

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Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    May-Aug 2016

Histórico

  • Recebido
    24 Ago 2015
  • Revisado
    31 Maio 2016
  • Aceito
    10 Jun 2016
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