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O médico e o mundo da tecnologia

Não é mais novidade o fato de que a ciência evoluiu em velocidade exponencial nos últimos 100 anos, proporcionando um progresso no conhecimento muitíssimo mais significativo do que o obtido até então, nos prováveis 150.000 anos da nossa espécie. Pouco se conhece sobre o que aconteceu no período anterior à Antiguidade (4.000 a.C. até aproximadamente 450 d.C.), quando os alicerces básicos - a escrita e a matemática - foram desenvolvidos, proporcionando a compilação do conhecimento e o progresso do pensamento. Mas foi apenas no século XVI que teve início a formalização da ciência como uma atividade acadêmica que impunha a pesquisa racional para novos conhecimentos e a sua confirmação matemática. Mesmo assim, é incrível imaginar que foi apenas no século XIX que Darwin formulou a teoria do processo evolutivo, pois, até então, acreditava-se que tudo era imutável no campo da biologia.

Na evolução desse processo, os últimos 50 anos foram expressivos. Minha geração foi testemunha da incrível velocidade com que tudo se transformava ao nosso redor: comunicação, transporte, integração dos povos, diminuição das distâncias e disseminação da informação. É claro que a medicina incorporou toda essa mudança, melhorando muito a nossa compreensão em relação à fisiologia e à fisiopatologia, e, ao mesmo tempo, refinando de maneira impressionante os métodos diagnósticos e as opções de tratamento clínico e cirúrgico. Levando em conta apenas o período em que exerci a otorrinolaringologia, foi imperativo que eu me adaptasse ao incrível avanço da genética, dos métodos de investigação por imagem, das técnicas cirúrgicas com microscópio e endoscópio e, mais recentemente, a ensaiar a cirurgia robótica que ainda é incipiente na otologia, mas é realidade para alguns casos de tumores da faringe e laringe.

Entretanto, apesar de todas essas extraordinárias mudanças, podemos dizer que ainda não houve tempo para a mudança da essência do Homem Moderno. Nossos medos, incertezas e a eterna busca da compreensão de onde estamos e para o que viemos ainda não estão resolvidos de forma definitiva, de modo que o cenário atual ainda permite a susceptibilidade a crenças de diversos matizes. Mesmo com todo esse novo conhecimento ainda há espaço para intolerância, fanatismo religioso e político, segregacionismo, guerra e outras mazelas do nosso cotidiano.

Como médicos, devemos sempre ter sempre em mente que esses medos e incertezas próprios da nossa espécie se exacerbam quando alguém adoece. É incrível como a informação de um diagnóstico, mesmo o mais corriqueiro, pode ser recebida de modo absolutamente diferente entre as pessoas, contribuindo para mudanças positivas ou muito negativas no estado físico e mental de uma pessoa já, de alguma forma, debilitada. De nada adianta todo o arsenal de que dispomos se perdermos a visão humana da nossa intervenção. Por conta desses temores e incertezas, a obtenção cuidadosa dos dados relativos à doença, a nossa velha anamnese, é um exercício na arte de compreender o próximo. Assim como é fundamental o conceito de que a tecnologia não dispensa a relação humana no exercício da medicina, também é lógico e fundamental mantermos o conceito de que a tecnologia não substitui o raciocínio clínico. Isso se reflete principalmente na formulação das hipóteses diagnósticas e na seleção dos exames complementares, que devem ser baseados no nosso conhecimento sobre a expressão clínica e o entendimento fisiopatológico das diversas doenças da nossa especialidade.

Infelizmente, tem sido cada vez mais frequente o pensamento de que seria mais eficiente e rápido solicitar um número incontável de exames e depois pensar no diagnóstico. Além de inverter a lógica da nossa ação, essa conduta expõe o paciente a riscos, como irradiação e estresses desnecessários, além de aumentar drasticamente as despesas relacionadas ao diagnóstico, o que leva à contrarreação por parte das seguradoras e da máquina pública na contenção de gastos.

Dessa forma, acho que devemos comemorar entusiasticamente as novidades do conhecimento e incorporar as novas formas de diagnóstico e tratamento, mas é essencial mantermos a nossa melhor postura como médico: alguém que busca, com eficiência e humanidade, ajudar o próximo elucidando o seu problema e direcionando da melhor forma possível o tratamento de suas doenças.

Acredito que as boas escolas de medicina e os bons serviços de residência em otorrinolaringologia ainda ensinam baseados nesses princípios, e aconselho a todos que não se esqueçam disso, pois, nesse novo mundo tecnológico, até na Wikipedia está escrito: "O papel do médico e o significado da palavra variam significativamente ao redor do mundo, mas, como compreensão geral, a ética médica requer que médicos demonstrem consideração, compaixão e benevolência frente a seus pacientes."

Portanto, no exercício da medicina, tecnologia e humanismo caminham sempre juntos.

  • Como citar este artigo: Cruz OLM. The physician and the world of technology. Braz J Otorhinolaryngol. 2015;81:455-6.

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    Sep-Oct 2015
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