Open-access Síndrome de Grisel com abscesso submandibular

Introdução

A síndrome de Grisel (SG) é a subluxação não traumática da articulação atlantoaxial descrita pela primeira vez por Pierre Grisel, em 1951, em dois pacientes com faringite.1 Subluxações traumáticas ou doenças ósseas subjacentes não são consideradas SG. Essa síndrome é observada principalmente na faixa etária pediátrica. Infecções do trato respiratório superior e procedimentos cirúrgicos otorrinolaringológicos comuns, como a adenotonsilectomia, são fatores predisponentes para a doença.2 O diagnóstico tardio pode causar sequelas neurológicas e necessidade de intervenções neurocirúrgicas, como artrodese posterior.2

Em caso de SG vista após infecções do trato respiratório, as manifestações incluem febre, torcicolo e dor durante movimentos da cabeça. Já a SG após adenotonsilectomia requer uma suspeita diagnóstica meticulosa, porque torcicolo e dor durante movimentos do pescoço podem ser atribuídos à dor pós-operatória, o que pode levar a um diagnóstico tardio.3 Uma vez que os corpos de C1 e C2 estão em contato íntimo com as áreas pré-vertebral e retrofaríngea, abscesso ou celulite nessas áreas também podem causar SG.4-6

Neste relato de caso, apresentamos um paciente pediátrico com SG acompanhada de abscesso cervical profundo submandibular. A importância do diagnóstico precoce com grande suspeita diagnóstica é discutida neste relato de caso, considerando a literatura atual. Que seja de nosso conhecimento, apresentamos o primeiro caso de síndrome de Grisel juntamente com abscesso submandibular.

Relato de caso

Um paciente de oito anos foi encaminhado à nossa clínica de otorrinolaringologia em centro terciário com queixa de trismo, febre, edema no pescoço e movimentos do pescoço limitados. Seu histórico médico mostrou que ele havia sido hospitalizado em outro hospital por infecção do trato respiratório superior com faringotonsilite e tratado com antibióticos intravenosos. Depois de dois dias de internação, piorou com edema submandibular esquerdo, trismo e movimentos do pescoço limitados.

Quando foi encaminhado ao nosso serviço, o paciente tinha um edema com cerca de 5 cm na região submandibular esquerda, trismo, febre de 38,3 °C e contagem de leucócitos de 15 × 103 µL. Tomografia computadorizada do pescoço revelou um abscesso submandibular e submental esquerdo de 4 × 2 cm, sem envolvimento da área pré-vertebral ou retrofaríngea (fig. 1).

Figura 1
Tomografia computadorizada do paciente (seta preta mostra o abscesso submandibular).

O abscesso submandibular foi drenado sob anestesia geral. Dois dias após a cirurgia, o edema de pescoço e o trismo diminuíram; a cabeça ainda estava inclinada para o lado esquerdo, com os movimentos do pescoço limitados e o queixo desviado para o lado direito (fig. 2). Suspeitou-se de SG e, quando a TC foi revisada mais uma vez, subluxação rotacional de C1 e C2 foi identificada, a qual não havia sido percebida anteriormente (fig. 3). O paciente foi submetido a exames de imagem por ressonância magnética e consulta no departamento de neurocirurgia. Os ligamentos transversais e laterais estavam intactos na RM, cujos resultados foram bem consistentes com a classificação de Fielding tipo I7 de SG.

Figura 2
Aparência clínica do paciente com a cabeça desviada para a esquerda e o queixo inclinado para a direita (deformidade cock-robin). O dreno colocado no campo cirúrgico durante a drenagem do abscesso também pode ser observado.
Figura 3
Em A, observa-se o corpo de C1 na tomografia computadorizada; B, tomografia computadorizada demonstra a subluxação rotacional atlantoaxial.

O Departamento de Neurocirurgia sugeriu o uso de colar cervical tipo Philadelphia por três semanas. Depois de duas semanas de tratamento com 1 g de sulbactam-ampicilina via intravenosa duas vezes ao dia, o paciente recebeu alta. Na primeira consulta de retorno, após um mês, ele estava bem, sem imobilidade no pescoço.

Discussão

A síndrome de Grisel é uma complicação rara de infecções das vias aéreas superiores ou cirurgias de cabeça e pescoço, diagnóstico sobre a qual os otorrinolaringologistas devem estar cientes, assim como seu tratamento.8 As causas mais comuns são as infecções, inclusive faringite, adenoidite, tonsilite, otite média ou cirurgias otorrinolaringológicas, como adenotonsilectomia, mastoidectomia, reparo de atresia coanal e excisão de tumores cervicais.2 A causa predominante difere na literatura. Na revisão de Karkos et al.,3 a maioria dos casos foi relatada como relacionada à infecção (48%); na série de Deichmueller et al.,8 a maioria dos casos (67%) estava relacionada com cirurgias otorrinolaringológicas.

Predominância de sexo ou lado ainda não foi relatada.9 A SG é uma doença da infância, porque as infecções das vias aéreas superiores são mais comuns, quando comparadas com os adultos. As crianças também têm maior tamanho da cabeça em relação ao tronco, músculos cervicais mais fracos, ligamentos mais flexíveis e superficiais e articulações C1-C2 mais horizontalmente posicionadas em comparação com os adultos, o que as torna propensas à subluxação atlantoaxial.2

A patogênese subjacente precisa da SG não é conhecida. Seja qual for a causa, essa doença resulta em hiperemia e relaxamento patológico dos ligamentos da articulação atlantoaxial.2 A hiperemia secundária à inflamação leva a descalcificações do saco tecal anterior do atlas e relaxamento do ligamento transverso anterior.10 A inflamação da articulação atlantoaxial com uma infecção nas proximidades, como um abscesso na área pré-vertebral com tuberculose,11 celulite5 ou abscesso retrofaríngeo,6 pode causar fraqueza na articulação e subsequente subluxação. Mas esse fenômeno não explica os casos de SG com infecções distantes menores, tais como faringite ou otite média.

Parke et al.12 identificaram as novas veias faringovertebrais que atravessam a parede posterior da faringe e a nasofaringe até o plexo periodontal e, posteriormente, as membranas atlanto-occipitais, em ambos os lados. Essas veias permitem que um derrame séptico hematogênico de uma infecção faríngea atinja a articulação atlantoaxial e cause subluxação.9 Battiata et al.9 propuseram uma hipótese de efeito duplo para explicar a patogênese da SG. Em sua hipótese, o primeiro efeito é o relaxamento ligamentar cervical preexistente na linha basal geralmente observado na faixa etária pediátrica. O segundo é o processo inflamatório, que causa espasmo muscular cervical e subsequente subluxação, pela transmissão de mediadores inflamatórios para a musculatura cervical e articulação atlantoaxial pelo plexo faringovertebral.

Para o nosso paciente, a história prévia de infecção faringotonsilar foi a causa relevante do abscesso submandibular. Também se considerou a possibilidade de que a principal causa da SG fosse a própria faringotonsilite, em vez do abscesso submandibular. Além do derrame inflamatório metastático primário, espasmo muscular secundário à inflamação também pode causar a subluxação da articulação.6

Os sinais e sintomas clínicos da SG incluem rigidez na nuca, dor na tentativa de posicionamento e disfagia. A maioria dos pacientes apresenta febre. A cabeça é inclinada para o lado da subluxação, enquanto o queixo direciona-se para o lado oposto, o que é chamado de deformidade cock-robin. 13 Espasmo do músculo esternocleidomastóideo (ECM) e torcicolo são frequentes. O sinal de Sudeck é a palpação do processo espinhoso de C2 deslocado para o mesmo lado em direção à cabeça9 e é visto principalmente em casos de SG.

Nosso paciente também apresentava a deformidade cock-robin. Rigidez e dor na nuca são sintomas não específicos, se SG ocorrer após uma adenoamigdalectomia esses sintomas podem ser atribuídos à dor pós-operatória, o que pode causar atraso no diagnóstico.3 No caso de um abscesso submandibular, como no nosso caso, inchaço e rigidez no pescoço podem esconder uma SG subjacente. Edema das fáscias do pescoço pode mascarar o espasmo muscular do ECM e o torcicolo.

Na condução do nosso caso, desconhecíamos a presença de SG à primeira admissão e os sintomas de inchaço do pescoço, trismo e dor foram atribuídos ao diagnóstico primário de abscesso cervical profundo. Assim, drenamos o abscesso cervical sob anestesia geral, sem uso de colar. Embora não tenha ocorrido complicação, a manipulação cirúrgica ou extensão do pescoço durante a intubação traqueal poderia ter resultado em uma complicação perigosa, como a compressão da medula espinhal e sequelas neurológicas.

Fielding et al.7 propuseram um sistema de classificação para a escolha de opções de tratamento na SG. A maioria dos autores aconselha repouso no leito, relaxantes musculares, anti-inflamatórios não esteroides e imobilização do pescoço com colares cervicais macios para casos Tipo I e II.13 Opções mais agressivas, tais como imobilização com halo-gesso ou halo-colete, tração cervical, procedimentos cirúrgicos, inclusive artrodese e fusão cervical C1-C2, são opções para casos Tipo III e IV.11

O reconhecimento precoce da SG é importante, pois o diagnóstico tardio pode levar à subluxação não redutível, devido à fibrose rotacional atlantoaxial, cuja melhoria é possível através de tratamento cirúrgico, e não com opções de tratamento conservador.2 Nosso caso era SG tipo I e foi tratado com sucesso com imobilização do pescoço com colar cervical macio. Complicações neurológicas podem ocorrer em até 15% dos casos de SG, com consequências extremas, inclusive quadriplegia e morte súbita. Os tipos III e IV têm maior risco de sequela neurológica.13

Conclusão

Este primeiro relato de SG acompanhada de abscesso submandibular deve ser lembrado em pacientes admitidos com queixa de trismo, dor e rigidez no pescoço. Apesar de o abscesso submandibular ser considerado um fator causal, esses sintomas não específicos podem mascarar uma síndrome de Grisel subjacente. Exames pré-operatórios de tomografia computadorizada do pescoço devem ser avaliados com cuidado, para que essa doença rara não seja desconsiderada.

  • Como citar este artigo: Ismi O, Ozalp H, Hamzaoglu V, Bucioglu H, Vayısoglu Y, Gorur K. Grisel's syndrome accompanying a submandibular abscess. Braz J Otorhinolaryngol. 2020;86:658-661.
  • A revisão por pares é da responsabilidade da Associação Brasileira de Otorrinolaringologia e Cirurgia Cérvico-Facial.

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Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    09 Nov 2020
  • Data do Fascículo
    Sep-Oct 2020

Histórico

  • Recebido
    1 Abr 2016
  • Aceito
    30 Jul 2016
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