Open-access Hiperglicemia no Perioperatório de Transplante de Fígado: Uma Revisão de Escopo

RESUMO

Objetivos:  Encontrar evidências sobre a influência da hiperglicemia no perioperatório de transplante de fígado.

Métodos:  Trata-se de uma revisão de escopo na base de dados PubMed, BVS e Web of Science. Foram utilizados os descritores: “Liver transplantation”, “Hyperglycemia” e “Blood Sugar Control” com o operador booleano “AND”, e selecionados artigos de relevância para o tema. Inicialmente, foram selecionados 139 artigos, todos publicados nos últimos 20 anos, em português e inglês. Após análise, 10 artigos corresponderam ao objetivo proposto.

Resultados:  Na comparação entre controle rigoroso e controle convencional da glicose em pacientes submetidos a transplante de fígado, a média de glicemia intraoperatória foi de 143,3 mg/dL no grupo convencional e 130,7 mg/dL no grupo de controle rigoroso, que recebeu mais insulina. A permanência na unidade de terapia intensiva foi similar, com média de 3 dias, mas a sobrevida melhorou significativamente com glicemia intraoperatória média ≤ 120 mg/dL. Pacientes com síndrome pós-reperfusão necessitaram mais frequentemente de infusão de insulina. O diabetes mellitus de início recente e a bacteremia precoce foram mais frequentes no grupo com síndrome pós-reperfusão. Níveis de AST e ALT foram mais elevados em pacientes hiperglicêmicos. As taxas de infecção do sítio cirúrgico correlacionaram-se com a hiperglicemia pós-operatória, sendo 20% para glicemia < 200 mg/dL. Pacientes com glicose pós-operatória < 200 mg/dL. Os pacientes com diabetes apresentaram glicemia pré-operatória mais alta que pacientes sem diabetes, com redução gradual após o transplante de fígado, enquanto os pacientes sem diabetes tiveram um pico nos dias 2 e 3 antes de retornarem aos níveis basais. Níveis elevados de glicose após 48–72 h pós-transplante foram associados a maior mortalidade e pior resposta ao tratamento com insulina na primeira semana.

Conclusão:  O controle rigoroso da glicemia em pacientes submetidos a transplante de fígado resultou em uma glicemia intraoperatória mais baixa e uma sobrevida significativamente melhor para aqueles com glicemia ≤ 120 mg/dL, além de menores taxas de infecção, rejeição e mortalidade, especialmente em pacientes sem diabetes.

Descritores
Hiperglicemia; Transplante de Fígado; Controle Glicêmico

ABSTRACT

Objectives:  To find evidence on the influence of hyperglycemia in the perioperative period of liver transplantation.

Methods:  This is a scoping review of the PubMed, VHL, and Web of Science databases. The following descriptors were used: “Liver transplantation,” “Hyperglycemia,” and “Blood Sugar Control,” with the Boolean operator “AND,” and articles of relevance to the topic were selected. Initially, 139 articles were selected, all published in the last 20 years, in Portuguese and English. After analysis, 10 articles corresponded to the proposed objective.

Results:  In comparing strict control and conventional glucose control in patients undergoing liver transplantation, the average intraoperative glycemia was 143.3 mg/dL in the conventional group and 130.7 mg/dL in the strict control group, which received more insulin. The intensive care unit stay was similar with a mean of 3 days, but survival improved significantly with mean intraoperative glycemia ≤ 120 mg/dL. Patients with postreperfusion syndrome required insulin infusion more often. New-onset diabetes mellitus and early bacteremia were more frequent in the postreperfusion syndrome group. AST and ALT levels were higher in hyperglycemic patients. Surgical site infection rates correlated with postoperative hyperglycemia, with 20% for glycemia < 200 mg/dL. Patients with postoperative glucose < 200 mg/dL. Patients with diabetes had higher preoperative glycemia than patients without diabetes, with a gradual reduction after liver transplantation, whereas patients without diabetes had a peak on days 2 and 3 before returning to baseline levels. High glucose levels 48–72 h post-transplant were associated with higher mortality and a worse response to insulin treatment in the first week.

Conclusion:  Strict glycemic control in patients undergoing liver transplantation resulted in lower intraoperative glycemia and significantly better survival for those with glycemia ≤ 120 mg/dL, as well as lower rates of infection, rejection, and mortality, especially in patients without diabetes.

Descriptors
Hyperglycemia; Liver Transplantation; Glycemic Control

INTRODUÇÃO

Durante o transplante de fígado (TxF), a hiperglicemia é uma complicação comum, com incidência entre 6,7% e 94%, sendo que 45,9% dos receptores desenvolvem hiperglicemia grave com valor acima de 241,2 mg/dL na fase neo-hepática1. Essa instabilidade glicêmica resulta de estresse cirúrgico, corticosteroides, soluções fluidas contendo glicose, transfusões sanguíneas, vasopressores e início da gliconeogênese após a reperfusão do novo enxerto2. A síndrome pós-reperfusão (SPR) causa grave deterioração circulatória e metabólica durante a reperfusão do enxerto hepático após a retirada do clampeamento da veia porta, contribuindo para o desenvolvimento de hiperglicemia e afetando negativamente a recuperação pós-operatória desses pacientes3. Isso acontece devido à hiperglicemia intensificar a coestimulação e a apresentação de antígenos, agravar o dano isquêmico e a resposta inflamatória associada à reperfusão, aumentar a produção de citocinas e a expressão de moléculas de adesão, além de ativar células dendríticas.4

A cirrose hepática e o diabetes mellitus (DM) são condições clínicas intimamente relacionadas. Quando coexistente com a cirrose, o diabetes é denominado diabetes hepatogênico (DH), diferindo do DM tipo 2. O DH apresenta início mais tardio, ausência de história familiar de DM, menor índice de massa corporal, menor frequência de complicações diabéticas, como a retinopatia, a doença cardiovascular e renal, além da resistência à insulina. As causas comuns de morte por DH estão relacionadas à doença hepática5. Os pacientes com doença hepática terminal frequentemente apresentam comprometimento do metabolismo da glicose, manifestando-se como intolerância à glicose ou DM6. Nos pacientes da lista de espera para o TxF, o diabetes está presente em até 65% deles. Durante o TxF, o estado glicêmico desses pacientes tende a piorar devido ao seu estado diabetogênico intrínseco. No pós-transplante, a prevalência de diabetes é cerca de 38%4. A hiperglicemia é uma complicação frequente, associada ao maior risco de rejeição do enxerto e a diversas complicações pós-TxF, como infecção, lesão renal aguda, diabetes de início recente, malignidades e aumento do risco cardiovascular, característico da síndrome metabólica7. Embora o controle glicêmico seja essencial nesse contexto, faltam diretrizes fundamentadas em evidências para o manejo adequado da hiperglicemia, e ainda não é claro o impacto do grau de controle glicêmico sobre a falha do enxerto e o desenvolvimento de complicações.

Portanto, o objetivo desta revisão de escopo foi encontrar na literatura evidências sobre os efeitos e o manejo da hiperglicemia no perioperatório de TxF.

MÉTODOS

Trata-se de uma revisão de escopo (scoping study ou scoping review), a qual é definida como um tipo de estudo que busca explorar os principais conceitos do tema em questão, averiguar a dimensão, o alcance e a natureza do estudo, condensando e publicando os dados de forma a expor as lacunas de pesquisa existentes. Essa revisão foi construída a partir da estrutura metodológica do Joanna Briggs Institute (JBI) e do Checklist PRISMA para Revisões de Escopo (PRISMA-ScR), que estabelecem as seguintes etapas: 1) definir e alinhar os objetivos e a questão de pesquisa; 2) desenvolver e alinhar os critérios de inclusão com os objetivos e as questões; 3) descrever a abordagem planejada para busca, seleção, extração de dados e apresentação de evidências; 4) busca de evidências; 5) seleção das evidências; 6) extração das evidências; 7) análise das evidências; 8) apresentação das evidências; e 9) resumo das evidências sobre o propósito da revisão, conclusões e observações de quaisquer implicações das descobertas.8,9

Em vista disso, foi formulada a pergunta norteadora de acordo com a estratégia PCC, que representa um mnemônico para identificar a População, o Conceito e o Contexto. Dessa maneira, a seguinte questão de pesquisa foi desenvolvida: quais as implicações da hiperglicemia no perioperatório de pacientes submetidos ao TxF?

A busca bibliográfica foi realizada de forma sistematizada nas seguintes bases de dados: PubMed, Web of Science e Biblioteca Virtual de Saúde (BVS), sendo nesta última encontrados artigos científicos da Medline. Foram utilizados os seguintes descritores validados pelo Descritores em Ciências da Saúde (DeCS): “Liver transplantation”, “Hyperglycemia” e “Blood Sugar Control”. Os descritores foram permutados pelo operador booleano “AND” e houve restrição de lapso temporal, sendo selecionados todos os artigos dos últimos 20 anos. A utilização dos descritores em inglês se deve ao funcionamento das bases de dados e pela maioria dos artigos indexados estarem disponíveis na língua inglesa fazendo com que a busca com os descritores em português limite os resultados apenas a artigos que disponibilizam a versão em português e inglês.

Na PubMed, BVS e Web of Science foram utilizados os descritores e as buscas ficaram ampliadas a todos os campos, sendo encontrados 89, 48 e 2 artigos, respectivamente. Ao final, foram totalizados 139 artigos. Devido à limitação de tempo, outras fontes manuais não foram utilizadas.

Para a seleção sistematizada dos artigos, foi utilizada a ferramenta Rayyan, considerando-se a estratégia de busca do PRISMA Statement 2020 de acordo com as diretrizes CARE para Revisões Sistemática do Equator Network (Fig. 1).10

Figura 1
Triagem dos artigos com o fluxograma PRISMA Statement 2020 para revisões sistemáticas.

Na triagem dos artigos foram aplicados critérios de inclusão e exclusão. Foram excluídos os artigos duplicados, em chinês ou espanhol, com baixo nível de evidência, como revisões, relatos de caso, resumos e capítulos de livro, além daqueles que não abordavam o tema da pesquisa sobre a hiperglicemia no perioperatório de TxF. Com isso, a prioridade da busca foi considerar apenas artigos científicos que descrevessem a resistência à insulina na doença hepática, a correlação do DM com o TxF, as alterações glicêmicas durante a ressecção hepática e o TxF e a associação das alterações glicêmicas com complicações pós-cirúrgicas.

Ao final, os artigos que se enquadram na temática foram analisados e incluídos em uma tabela de extração de dados com informações que contribuíram para responder a questão e os objetivos da pesquisa. Os resultados foram descritos na Tabela 1.

Tabela 1
Tabela de extração dos artigos incluídos na revisão de escopo.

RESULTADOS

Nesta revisão de escopo foram analisados dez estudos, incluindo três estudos prospectivos, cinco estudos retrospectivos, um estudo transversal comparativo e um estudo observacional. Esses estudos forneceram uma base diversificada e abrangente de dados, permitindo uma compreensão mais aprofundada da temática investigada.

Comparação entre controle intensivo e controle convencional da glicemia

Em um estudo prospectivo randomizado comparando os pacientes submetidos a TxF, o grupo convencional apresentou média de glicemia intraoperatória de 143,3 mg/dL, enquanto o grupo de controle rigoroso apresentou 130,7 mg/dL. O grupo rigoroso recebeu mais insulina. No grupo convencional, sete pacientes tiveram ao menos um episódio de hipoglicemia, enquanto no grupo rigoroso, treze pacientes tiveram um episódio. A sobrevida dos pacientes não diferiu entre os grupos convencional e restrito: em 1 ano foi cerca de 88%; em 3 anos, 86% versus 84%; e em 5 anos, 82% versus 78%, respectivamente. A sobrevida do enxerto também não mostrou diferença significativa entre os grupos convencional e rigoroso, sendo em 1 ano em média 88% versus 84%; em 3 anos, 82% versus 76%; e em 5 anos, 78% versus 70%, respectivamente. A permanência pós-operatória na unidade de terapia intensiva foi semelhante em ambos os grupos, com média de 3 dias. Não houve diferença significativa nas complicações pós-cirúrgicas, incluindo fístula biliar, reoperação por sangramento, insuficiência renal, necessidade de diálise, infecções bacterianas, fúngicas e de ferida. No entanto, a sobrevida melhorou significativamente em pacientes com glicemia intraoperatória média ≤ 120 mg/dL.2

Em um estudo transversal comparativo, 176 pacientes de TxF foram incluídos no grupo de tratamento intensivo e 178 no grupo de tratamento convencional. A taxa de rejeição após 3 meses foi significativamente menor em pacientes com diabetes tratados com o protocolo intensivo em comparação ao protocolo convencional, sem diferenças observadas entre os protocolos nos pacientes sem diabetes. A taxa de rejeição caiu de 26,5% para 5,5% em pacientes com diabetes, enquanto aumentou nos sem diabetes de 3,5% para 4,2%. A sobrevida do enxerto em 3 meses revelou uma interação significativa entre o tratamento e a presença de diabetes. Durante o controle convencional, o grau de rejeição foi: 31,8% leves, 45,5% moderadas e 22,7% graves. Durante o período de controle glicêmico intensivo, o grau de rejeição foi cerca de 10% moderado e 90% grave. Após 5 anos, a taxa de rejeição também foi menor em pacientes com diabetes no protocolo intensivo representando cerca de 39,7% para 21,8% do protocolo convencional, sem mudanças nos sem diabetes que apresentaram no intensivo 12,2% e 15,8% no convencional.16

O risco de mortalidade foi avaliado em 3 meses e 5 anos após o transplante. A mortalidade em 3 meses foi de 1,7% no grupo de controle glicêmico intensivo e 3,9% no grupo convencional. Em 5 anos, a mortalidade foi de 2,9% no grupo intensivo e 5,6% no convencional. Ao analisar pacientes com diabetes, a mortalidade em 5 anos foi de 1,8% no grupo intensivo e 7,9% no grupo convencional. Entre os pacientes sem diabetes, não houve diferença entre os grupos, com 1,7% de mortalidade em ambos.16

O número de eventos hipoglicêmicos leves foi significativamente maior no grupo de tratamento intensivo em comparação ao grupo convencional, com uma média de 0,76 casos por paciente sem diabetes no tratamento intensivo e 0,05 não convencional. Para pacientes com diabetes, a média foi de 1,17 no grupo intensivo e 0,15 no grupo convencional. Com relação aos eventos hipoglicêmicos graves, as diferenças entre os grupos também foram significativas, com uma média de 0,13 casos por paciente sem diabetes no tratamento intensivo e 0,01 no convencional, e 0,37 para pacientes com diabetes não intensivo versus 0,03 não convencional.16

Em um estudo retrospectivo com 184 pacientes submetidos a TxF, 60 pacientes tiveram controle glicêmico intraoperatório rigoroso, enquanto 124 pacientes foram mal controlados. O grupo de controle rigoroso teve concentrações médias de glicose mais baixas, sendo cerca de 135 mg/dL versus 183 mg/dL do grupo com controle inadequado, apesar de receber menos insulina, sendo 13 versus 24 unidades, respectivamente. O grupo com controle rigoroso apresentou menos infecções nos primeiros 30 dias pós-operatórios do que o grupo com controle inadequado, representando 30% versus 48%, respectivamente. Não houve diferenças significativas em rejeição celular aguda em 18% versus 12%, trombose da artéria hepática em 0% versus 2%, complicações biliares em 15% versus 19% e necessidade de retransplante em 3% versus 2%, entre os grupos estritamente controlado e o mal controlado, respectivamente. A sobrevida foi melhor no grupo de controle rigoroso do que no grupo mal controlado, sendo em 1 ano cerca de 91,2% versus 78,1% e 2 anos com 85,9% versus 72,7%, respectivamente.11

Implicações da SPR na glicemia

Com relação à repercussão da SPR na glicemia, em um estudo retrospectivo, pacientes submetidos a TxF foram divididos em um grupo com SPR e um grupo sem SPR. Os níveis de glicose e peptídeo C aumentaram durante as fases cirúrgicas em ambos os grupos, mas na fase neo-hepática foram significativamente maiores no grupo SPR. Pacientes com SPR necessitaram de infusão de insulina mais frequentemente. A incidência de níveis de peptídeo C > 2,0 ng/mL e de picos de glicose > 200 mg/dL na fase neo-hepática foi maior no grupo SPR do que no grupo sem SPR, sendo cerca de 70,1% versus 54,6% e 84,5% versus 59,8%, respectivamente. Entre o 2º e o 7º dia de pós-operatório, a incidência de picos de glicose > 200 mg/dL também foi maior no grupo com SPR. O DM de início recente e a bacteremia precoce foram mais frequentes no grupo com SPR.3

Efeitos do diabetes pré-existente ao TxF

Em um estudo com 91 pacientes com cirrose hepática submetidos a TxF, pacientes com glicose plasmática de jejum (GPJ) e pós-prandial ≥ 250 mg/dL foram tratados com insulina. Trinta pacientes com diagnóstico de DM antes do TxF tiveram uma taxa de sobrevida em 5 anos menor em comparação ao grupo controle com 61 pacientes. Vinte e cinco pacientes foram tratados com insulina e também apresentaram sobrevida limítrofe significativamente pior em comparação ao grupo-controle com 66 pacientes. A taxa de sobrevivência de 32 pacientes com glicemia ≥ 200 mg/dL em 120 min de teste de tolerância à glicose não diferiu significativamente dos 21 pacientes com tolerância à glicose prejudicada e dos 7 pacientes com glicemia normal, sendo as taxas de sobrevivência em 5 anos de 65%, 63% e 70%, respectivamente. A taxa de sobrevivência dos 41 pacientes com GPJ ≤ 90 mg/dL não diferiu significativamente do grupo controle com 50 pacientes, sendo as taxas de sobrevivência em 5 anos de 65% e 69%, respectivamente. A taxa de sobrevivência de 32 pacientes com HbA1c ≥ 5% também não diferiu significativamente do grupo-controle com 59 pacientes, sendo as taxas de sobrevivência em 5 anos de 64% e 70%, respectivamente.15

Os 41 pacientes com GPJ elevada ≥100 mg/dL apresentaram taxas de sobrevida em 5 anos mais baixas do que o grupo-controle, sendo cerca de 52% versus 78%, respectivamente. A análise comparativa entre 32 pacientes com GPJ muito alta ≥ 111 mg/dL, 19 com GPJ moderada 100–110 mg/dL e 50 com GPJ normal < 100 mg/dL mostrou diferenças significativas no prognóstico pós-TxF, com taxas de sobrevida em 5 anos de 75%, 59% e 42%, respectivamente. A prevalência de doenças vasculares, incluindo microangiopatia trombótica, trombose de veia porta, isquemia mesentérica não oclusiva e acidente vascular cerebral, foi maior entre os pacientes com GPJ elevada.15

Em um estudo retrospectivo com 133 pacientes submetidos a TxF, 35% tinham histórico de diabetes, 44% apresentaram episódios de rejeição, 58% tiveram infecções, 28% precisaram de ventilação prolongada e 64% necessitaram de reospitalização. A sobrevida do paciente e do enxerto em um ano foi de 90% e 88%, respectivamente. Pacientes com glicose pós-operatória < 200 mg/dL tiveram menor taxa de rejeição em comparação com aqueles com > 200 mg/dL, sendo que 60% dos pacientes com diabetes preexistente estavam no grupo > 200 mg/dL, contra 28% no grupo < 200 mg/dL. Ventilação prolongada ocorreu mais frequentemente em pacientes com glicose < 200 mg/dL. Pacientes com rejeição pós-transplante tiveram mais infecções apresentando cerca de 1,89 versus 1,19 e mais dias de reospitalização sendo em média 11,12 versus 5,75 quando comparados àqueles sem rejeição, respectivamente.12

Em um estudo observacional com 632 pacientes submetidos a TxF, 20% tinham histórico de diabetes. A taxa de sobrevivência foi de 85% em 1 ano e 65% em 10 anos. Pacientes com diabetes apresentavam níveis mais altos de glicose pré-operatória comparados aos sem diabetes. Após o TxF, os níveis de glicose diminuíram gradualmente nos pacientes com diabetes, enquanto aumentaram até um pico nos dias 2 e 3 nos sem diabetes, antes de retornarem aos níveis basais. Pacientes com diabetes eram mais velhos, tinham menor necessidade de transfusões e pontuações no modelo de receptor para doença hepática terminal (MELD) mais baixas. As taxas de sobrevivência em 1 e 10 anos foram similares entre os pacientes com diabetes, sendo cerca de 89% e 68% e cerca de 86% e 65% entre os sem diabetes. Entre os pacientes sem diabetes, a mortalidade aumentou significativamente em indivíduos mais velhos, com etiologia maligna, maior necessidade de transfusão e maior tempo de nutrição parenteral. Níveis elevados de glicose após 48 a 72 h pós-TxF foram associados a maior mortalidade e pior resposta ao tratamento com insulina na primeira semana.18

Alterações glicêmicas em receptores de TxF conforme o tipo de doador

Em um estudo prospectivo com 436 pacientes submetidos ao TxF, os enxertos foram provenientes de três tipos de doadores: 381 após morte cerebral, 29 após morte cardíaca e 26 com polineuropatia amiloidótica familiar (PAF). Observou-se um aumento significativo nos níveis de glicose após a reperfusão em todos os grupos, como os maiores níveis e percentuais de elevação nos receptores de doadores com PAF, e os menores nos receptores de doadores após morte cardíaca. O nível de glicose até o final da cirurgia diminuiu em todos os grupos, sendo significativo apenas nos receptores de doadores após morte cerebral que foi de 220 para 197 mg/dL. Os níveis de glicose na fase anepática e após a reperfusão foram preditores independentes de sua redução, com os maiores níveis associados ao melhor controle glicêmico ao término da cirurgia.14

A incidência geral de disfunção precoce do enxerto (DPE) foi de 26%, com 114 casos de DPE entre os 436 TxF. Por tipo de doador, a incidência foi de 24% para doadores após morte cerebral, 58% para doadores após morte cardíaca e 23% para doadores com PAF. O aumento nos níveis de glicose após a reperfusão foi semelhante entre receptores com e sem DPE em todos os grupos de doadores. Em receptores de doadores após morte cerebral, o controle glicêmico inadequado (glicose final maior que a após a reperfusão) foi associado a maior incidência de DPE apresentando cerca de 31% do que aqueles com bom controle glicêmico, com aproximadamente 19%. Nos receptores com DPE, os níveis de glicose não diminuíram após a reperfusão, enquanto reduziram em 11% naqueles sem DPE.14

Uma análise conjunta das amostras de tecido hepático antes e após a refusão mostrou um aumento significativo de todos os marcadores imunológicos como interferon-gama (IFN-γ), interleucina 1 beta (IL-1β) e IL-6. No entanto, ao separar as amostras com base nos níveis de glicose após a reperfusão em < ou > 180 mg/dL, enxertos com glicemia > 180 mg/dL não apresentaram aumento significativo de IL-1β. Observa-se uma tendência de aumento de IFN-γ e IL-6 com níveis de glicose mais baixos após a reperfusão. A expressão do gene da caspase-3 não apresentou alterações após a reperfusão, mas receptores com níveis menores de glicose apresentaram maiores níveis de caspase-3 nas amostras do tecido do doador.14

Hiperglicemia de início recente em pacientes pós-TxF

Em um estudo de coorte retrospectivo com 164 pacientes submetidos a TxF, 94% apresentaram hiperglicemia pós-TxF: 154 com pelo menos um valor acima de 140 mg/dL e 140 com média de glicemia > 140 mg/dL. A média da glicemia na admissão na unidade de terapia intensiva foi de 182 mg/dL, com 30% do tempo nas primeiras 48 h acima de 140 mg/dL. A hiperglicemia não foi associada a maior risco de rejeição, infecção ou maior tempo de internação. Em pacientes com diabetes, não houve maior risco de infecção ou diferença no tempo de internação sendo cerca de 20,7 dias versus 19 dias em comparação aos sem diabetes.13

No entanto, em um estudo retrospectivo com uma coorte de 3.339 pacientes submetidos ao TxF, 42,4% apresentaram hiperglicemia de início recente e resultados diferentes em comparação ao estudo anterior. Esses receptores demonstraram uma incidência significativamente maior de complicações pós-transplante, incluindo complicações do enxerto hepático e do rim, rejeição aguda, estenose biliar e colangite, em comparação com pacientes sem hiperglicemia de início recente. Entre os 21,1% receptores com níveis de GPJ extremamente altos (acima de 0 ≥ 11,1 mmol/L), é observada maior incidência de complicações graves, especialmente infecção, com cerca de 38,7% versus 11,3%, e recorrência de carcinoma hepatocelular, em média por 19,3% versus 11,4%, em relação aos receptores sem hiperglicemia, respectivamente. Além disso, esses pacientes tiveram uma sobrevida global e livre de tumor significativamente menor.17

O grupo com hiperglicemia de início recente apresentou características específicas do doador e do receptor em comparação ao grupo sem hiperglicemia, incluindo maior incompatibilidade ABO, maior tempo de isquemia, classificação mais elevada no MELD e maior uso de terapia de manutenção com corticosteroides. A hepatite aguda usando tratamento de pulso de esteroides no primeiro mês pós-transplante ocorreu em apenas oito pacientes, não sendo considerada um fator de risco relevante. Os fatores de risco independentes para hiperglicemia de início recente foram identificados como tempo de isquemia quente do doador > 10 min, tempo de isquemia fria > 10 h, tempo anepático > 60 min, classificação MELD do receptor > 30, ascite moderada e uso maior de corticosteroides. O bolus intraoperatório de corticosteroides foi um fator independente protetor contra a hiperglicemia de início recente.17

Durante a primeira semana pós-transplante, a função inicial foi considerada ruim em 16,6% dos pacientes, o que elevou significativamente o risco de hiperglicemia de início recente. Fatores de risco independentes, como tempo de isquemia fria prolongado e alta classificação MELD, aumentaram independentemente do risco de função inicial ruim. A GPJ correlacionou-se significativamente com os níveis séricos de alanina aminotransferase (ALT) e gama-glutamiltranspeptidase (GGT) no 7º dia pós-transplante. Pacientes com hiperglicemia de início recente apresentaram níveis de ALT e GGT significativamente mais elevados em comparação aos pacientes sem hiperglicemia de início recente. Para prever a prevalência de hiperglicemia de início recente, a ALT demonstrou sensibilidade de 64% e especificidade de 61% com um ponto de corte de 280 U/L. Não houve diferença significativa nos níveis de bilirrubina total e AST entre os grupos com e sem hiperglicemia de início recente.17

DISCUSSÃO

Diabetes mellitus e TxF

Um estudo observou que o uso de medicamentos para DM e altos níveis de GPJ em pacientes pré-TxF influenciaram negativamente a taxa de sobrevivência pós-transplante. A GPJ ≥ 100 mg/dL reduziu significativamente a sobrevivência, independentemente do tratamento prévio para DM. O estudo recomenda manter a GPJ entre 90 e 100 mg/dL em pacientes com cirrose pré-TxF.15

No estudo, a mortalidade foi semelhante entre pacientes com GPJ alta e normal, mas a doença vascular foi uma causa de morte mais proeminente entre aqueles com GPJ alta15. Outro estudo indicou que o risco de eventos vasculares, incluindo doença cardiovascular, aumenta em pacientes com DM19, e a calcificação da artéria coronária em pacientes com cirrose foi associada a altos níveis de GPJ20. Em pacientes com fibrose cística e diabetes, complicações microvasculares ocorrem com hiperglicemia em jejum21. Além disso, a angiopatia trombótica foi associada à modificação oxidativa do fator de von Willebrand em pacientes com diabetes.22

A elevação da GPJ indica maior anormalidade no controle glicêmico em comparação com a hiperglicemia pós-prandial no DM2. A disfunção das células β começa no pré-diabetes e o TxF não a melhora, mas pode reduzir a resistência à insulina23. Glicemia elevada em pacientes pré-TxF reduz significativamente a sobrevida pós-transplante comparado a pacientes com glicemia normal. Independentemente dos critérios de diabetes, a GPJ elevada no pré-TxF pode indicar estágio avançado de DM, com maior prevalência de doença vascular grave em comparação com pacientes de glicemia normal após o TxF.15

Um estudo observacional identificou que os perfis de glicose plasmática na primeira semana pós-TxF diferem entre pacientes com e sem DM prévio. Níveis elevados de glicose estão associados a maior risco de mortalidade em pacientes sem diabetes, mas não em pacientes com diabetes. Isso acontece porque pacientes com diabetes toleram valores glicêmicos mais altos sem impacto na mortalidade, possivelmente devido a fatores protetores desconhecidos contra a hiperglicemia de estresse. Na primeira semana pós-TxF, pacientes com diabetes apresentam perfis de glicose distintos dos sem diabetes: os com diabetes iniciam com glicose plasmática elevada no primeiro dia, que diminui após 48 h. Os sem diabetes começam com glicose mais baixa, aumentando até 48 a 72 h antes de diminuir. Essa diferença ocorre sob infusão contínua de insulina. Assim, a glicemia elevada em pacientes com diabetes não afeta a mortalidade, possivelmente devido à adaptação crônica à hiperglicemia, que atenua os efeitos nocivos em situações de estresse18. Outro estudo mostrou que pacientes sem diabetes com maiores níveis de hemoglobina glicada, indicando pior controle da doença, também toleram melhor a hiperglicemia.24

Alterações glicêmicas durante o TxF

Durante o TxF, as concentrações de glicose no sangue aumentam abruptamente de 110 para 204 mg/dL na fase pré-anepática e para 384 mg/dL na fase neo-hepática. Apesar do aumento concomitante das concentrações de insulina, a hiperinsulinemia não controla efetivamente a hiperglicemia na fase neo-hepática, possivelmente devido à resistência periférica à insulina exacerbada pela hepatectomia. Em pacientes com insuficiência renal, o risco de hipoglicemia aumenta devido à supressão da liberação renal de glicose e à diminuição do armazenamento de glicogênio25. A hiperinsulinemia observada nesses pacientes é decorrente da redução da depuração renal e dos efeitos da toxina urêmica no fígado. A subnutrição e a perda muscular podem agravar a diminuição dos estoques de glicogênio hepático e a capacidade gliconeogênica. Além disso, a acidose limita a capacidade do fígado de compensar a normoglicemia.6

Em um estudo, os pacientes com diabetes antes do transplante apresentaram mais eventos de hiperglicemia durante a hospitalização. O tratamento intensivo com insulina proporcionou um controle glicêmico superior ao uso de insulina em escala móvel. Apesar das metas glicêmicas benéficas durante o manejo, o número de níveis graves de hipoglicemia foi relativamente baixo. Observamos menores taxas de rejeição do enxerto no grupo submetido ao tratamento intensivo com insulina. Vários mecanismos explicam o aumento do risco de rejeição relacionado à hiperglicemia, como a maior produção de citocinas como o fator de necrose tumoral-alfa (TNF-α), IL-1, IL-6, IL-12, moléculas de adesão, células dendríticas e expressão alterada de moléculas do complexo principal de histocompatibilidade (MHC) classe I e II, o que intensifica a resposta imune contra o enxerto. Além disso, a hiperglicemia agrava o dano isquêmico e a ocorrência inflamatória pós-reperfusão, aparentemente mediada por uma adesão exagerada de leucócitos ao endotélio.16

A administração de corticosteroides pode agravar a resistência à insulina preexistente e aumentar a liberação de hormônios contrarreguladores, como glucagon, adrenalina, noradrenalina, hormônio do crescimento e cortisol. A infusão de drogas vasoativas, como epinefrina, norepinefrina e dopamina, também contribui para o aumento dos níveis de glicose no sangue. Outras fontes de glicose incluem transfusões sanguíneas e a glicose hepática liberada pelo enxerto, especialmente durante o reaquecimento e após a perfusão. O aumento abrupto da hiperglicemia na fase neo-hepática é principalmente causado pelo influxo de glicose do fígado enxertado.6

Na SPR, o aumento dos fatores de estresse agrava a resistência à insulina, medida pelo peptídeo C, resultando em níveis glicêmicos superiores a 200 mg/dL na fase neo-hepática e na primeira semana pós-operatória. A hiperglicemia na fase neo-hepática foi aproximadamente três vezes mais frequente em pacientes com SPR do que em pacientes sem SPR. O estresse associado à SPR compromete o controle glicêmico, aumentando a necessidade de infusão exógena de insulina durante a cirurgia.6

Em um estudo retrospectivo, a SPR foi identificada como um fator independente que compromete o controle glicêmico intraoperatório, resultando em significativa insensibilidade à insulina e hipersecreção pancreática de insulina. Embora o mecanismo exato da SPR relacionada à hiperglicemia seja incerto, a isquemia-reperfusão em enxertos e pacientes provoca alterações bioquímicas e celulares que geram citocinas pró-inflamatórias e radicais livres, além de ativar o sistema complemento. Essas alterações levam a uma resposta inflamatória mediada por interações entre neutrófilos e plaquetas, resultando em inchaço endotelial, vasoconstrição, sedimentação de leucócitos e hemoconcentração. A produção de mediadores inflamatórios pode exacerbar a SPR, provocando uma resposta inflamatória local intensa que contribui para a ativação da gliconeogênese hepática e resistência periférica à insulina.3

O aumento nos níveis de glicose após a reperfusão variou significativamente entre enxertos de doadores após morte cardíaca representando cerca de 12% e doadores por PAF com cerca de 96%. Os enxertos de doadores após morte cardíaca, que apresentam níveis menores de glicose, sofrem de isquemia quente antes da recuperação, o que leva a uma depleção mais acentuada de glicogênio em comparação à isquemia fria sendo aproximadamente 0,15% e 5,5%, respectivamente. Essa depleção intensa de glicogênio durante a isquemia quente pode explicar os níveis mais baixos de glicose após a reperfusão nesses receptores. Em contraste, os receptores de PAF, que não passam por isquemia quente, retêm mais glicogênio, resultando em níveis mais elevados de glicose após a reperfusão. Dado que a taxa de disfunção do enxerto é maior em doadores após morte cardíaca, chegando em média a 58% comparado ao PAF com 23%, sugere-se uma possível relação entre os níveis de glicose pós-reperfusão e a função hepática. Reforçando essa ideia, os níveis de glicose foram menores em receptores de doadores após morte cerebral com DPE em comparação a doadores sem DPE.14

Os marcadores inflamatórios aumentaram após a reperfusão do enxerto, com maior elevação observada nos enxertos com níveis menores de glicose, indicando que a hiperglicemia transitória não exacerba a lesão inflamatória. Níveis mais altos de caspase-3 nas primeiras biópsias desses enxertos indicam uma condição mais comprometida. Sabe-se que o dano apoptótico pós-isquemia-reperfusão desempenha um papel crucial na falência de órgãos, tornando a caspase-3 um marcador confiável da condição celular.14

Alterações glicêmicas e complicações pós-cirúrgicas

Em um estudo com 184 pacientes submetidos ao TxF, a taxa geral de infecção nos primeiros 30 dias pós-transplante foi significativamente maior no grupo com hiperglicemia mal controlada com 48% em comparação com o grupo de glicemia bem controlada < 150 mg/dL com 30%11. Em outro estudo com 680 pacientes, a hiperglicemia grave ≥ 200 mg/dL mais que dobrou o risco de infecção do sítio cirúrgico no período pós-transplante imediato.26

A hiperglicemia afeta negativamente os principais componentes do sistema imunológico. Ela suprime as respostas inflamatórias precoces, altera a expressão de moléculas de adesão, prejudica a ativação do complemento, desregula a produção endotelial de óxido nítrico e aumenta níveis de pró-inflamatórios, como as citocinas IL-1β, IL-18 e TNF-α. Além disso, a hiperglicemia enfraquece a fagocitose dos macrófagos e reduz a adesão, a quimiotaxia e a produção de espécies reativas de oxigênio pelos neutrófilos, além de interferir na glicosilação de proteínas imunológicas e colágeno.6

A hiperglicemia após o TxF está associada ao aumento da resposta inflamatória relacionada à isquemia-reperfusão, mediada pela adesão exacerbada de leucócitos ao endotélio. Além disso, a hiperglicemia pós-operatória reflete resistência à insulina, associada a níveis elevados de TNF-α e IL-1, IL-6 e IL-12, que promovem inflamação sistêmica e podem intensificar a resposta imune contra o enxerto. Níveis elevados de glicemia também aumentam a expressão das MHCs I e II, potencializando a ativação da resposta imune inata4. Valores de glicose > 150 mg/dL foram associados a maior risco de infecção nos 30 dias pós-cirurgia e maior mortalidade em um ano.13

A hiperglicemia aumenta a produção de espécies reativas de oxigênio nas células endoteliais, com o superóxido gerado pela cadeia de transporte de elétrons mitocondrial ligando a glicose elevada ao dano endotelial. Além disso, a hiperglicemia está associada à vasodilatação prejudicada, redução da enzima óxido nítrico sintetase induzível e a diminuição dos níveis circulantes de óxido nítrico. Elevadas concentrações de glicose no sangue também eliminam o precondicionamento isquêmico e amplificam as lesões de reperfusão no fígado, potencializando a lesão isquemia-reperfusão e contribuindo para a redução da sobrevida do enxerto e do paciente. Além disso, uma vez que a captação de glicose não dependente de insulina no fígado é diretamente proporcional às concentrações de glicose no sangue, a sobrecarga intracelular de glicose pode induzir efeitos tóxicos diretos no fígado transplantado ou a hiperglicemia intraoperatória pode refletir um enxerto hepático disfuncional, resultando em hiperglicemia mal controlada apesar da terapia com insulina.11

A hiperglicemia de início recente pode aumentar significativamente o risco de complicações pós-transplante, como falha do enxerto, rejeição aguda e estenose biliar. Os resultados indicaram que níveis elevados de GPJ estão associados a um risco maior de complicações, provavelmente de forma dependente da concentração. Níveis extremamente altos de GPJ ≥ 11,1 mmol/L no primeiro mês pós-transplante não apenas aumentaram o risco de complicações, mas também reduziram as taxas de sobrevida global e livre de tumor. Embora o mecanismo subjacente ainda não seja claro, o controle glicêmico rigoroso com terapia intensiva de insulina imediata é essencial no período inicial após o TxF.17

Todas as fases de isquemia durante o TxF, tempo de isquemia fria, tempo anepático e especialmente o tempo de isquemia quente do enxerto foram identificadas como fatores independentes para o desenvolvimento de hiperglicemia de início recente. Esses resultados destacam o papel da lesão isquêmica do enxerto, que induz resistência à insulina hepática por meio da ativação de vias pró-inflamatórias. Além do tempo isquêmico prolongado, outros fatores de risco independentes incluem escore MELD elevado, ascite moderada e uso contínuo de corticosteroides pós-transplante. Dados os efeitos adversos dos corticosteroides, um protocolo sem corticosteroides, incluindo apenas uma dose intraoperatória em bolus, é fortemente recomendado27. A alta pontuação MELD, combinada com tempo de isquemia prolongada, também foi recentemente associada à disfunção do enxerto, um fator de risco para hiperglicemia pós-transplante.17

Este estudo retrospectivo evidenciou uma estreita relação entre os marcadores de lesão hepática e a hiperglicemia de início recente na fase inicial após o TxF. Níveis elevados de ALT e GGT foram correlacionados com a GPJ em receptores de fígado. Esses marcadores são usados como potenciais biomarcadores para o metabolismo da glicose, refletindo resistência sistêmica e hepática à insulina, além da secreção de insulina. Essa descoberta ressalta o papel central e o valor preditivo da função do enxerto na homeostase da glicose após o TxF. Assim, uma pior qualidade do enxerto e a função inicial comprometida podem contribuir para a ocorrência de hiperglicemia de início recente, que, por sua vez, pode atuar como um marcador substituto para a qualidade do enxerto ou um indicativo da má condição do receptor.17

CONSIDERAÇÕES FINAIS

O controle rigoroso da glicemia em pacientes submetidos a TxF resultou em uma média de glicemia intraoperatória mais baixa e uma sobrevida significativamente melhor para aqueles com glicemia ≤ 120 mg/dL. Pacientes com SPR apresentaram maiores necessidades de insulina e maior incidência de complicações metabólicas. A hiperglicemia pós-operatória esteve associada a taxas elevadas de infecção do sítio cirúrgico, rejeição e mortalidade, especialmente em pacientes sem diabetes. A gestão eficaz da glicemia no perioperatório é crucial para melhorar os resultados clínicos nesses pacientes.

AGRADECIMENTOS

Não aplicável.

  • FINANCIAMENTO
    Não aplicável.

DISPONIBILIDADE DE DADOS DE PESQUISA

Todos os conjuntos de dados foram gerados ou analisados no estudo em curso.

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Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    09 Maio 2025
  • Data do Fascículo
    2025

Histórico

  • Recebido
    03 Fev 2025
  • Aceito
    31 Mar 2025
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