RESUMO
Introdução: O transplante de fígado pioneiro no mundo ocorreu em 1º de março de 1963. No Brasil, a iniciativa para esse procedimento ocorreu em 1968, no Hospital das Clínicas da Universidade de São Paulo. O transplante hepático (TxH) só deve ser indicado quando estiverem esgotados os métodos terapêuticos convencionais, sendo a probabilidade de sobrevida e a qualidade de vida maiores com a realização do procedimento.
Objetivos: Analisar estatística e econometricamente a reinserção no mercado de trabalho de pacientes pós-TxH acompanhados em uma unidade de transplante de fígado do estado de Pernambuco que realizaram o procedimento no período de 2012 a 2021.
Métodos: Realizou-se um estudo descritivo, transversal, com abordagem quantitativa, na Unidade de Transplante de Fígado (UTF) do Hospital Universitário Oswaldo Cruz (HUOC). Foram utilizados os seguintes critérios de inclusão: idade a partir de 18 anos, pacientes que estavam inseridos no mercado de trabalho antes do TxH e trabalhadores do mesmo setor não submetidos ao procedimento. Para a análise dos dados coletados, foi utilizada a técnica estatística difference-in-differences, event study, visto que a terapêutica do grupo tratado ocorreu em ocasiões diferentes no período pesquisado. Nesse determinado período, os indivíduos que ainda não receberam o tratamento cirúrgico se comportam como grupo-controle daqueles que já foram submetidos ao TxH.
Resultados: O TxH reduziu em 20% as chances de empregabilidade dos pacientes acompanhados na UTF do HUOC, apesar do aumento da sobrevida desses pacientes após o procedimento.
Conclusão: O estudo concluiu que a alta taxa de desemprego entre a população transplantada indica que esses indivíduos estão mais predispostos à empregabilidade informal, ocasionando maior tendência a doenças infectocontagiosas e menor índice de escolaridade, devido à menor oportunidade de aprimoramento profissional.
Descritores
Transplante de Fígado; Hepatopatias; Atenção à Saúde; Qualidade de Vida; Mercado de Trabalho
ABSTRACT
Introduction: The world's pioneering liver transplant occurred on March 1, 1963. In Brazil, the initiative for this procedure took place in 1968 at the Hospital das Clínicas, Universidade de São Paulo. Liver transplantation should only be indicated when conventional therapeutic methods have been exhausted, with the probability of survival and quality of life being greater with the procedure.
Objectives: To statistically and econometrically analyze the reintegration into the labor market of post-liver transplant patients followed in a liver transplant unit in the state of Pernambuco who underwent the procedure from 2012 to 2021.
Methods: A descriptive, cross-sectional study with a quantitative approach was carried out at the Unidade de Transplante de Fígado (UTF), Hospital Universitário Oswaldo Cruz (HUOC). The following inclusion criteria were used: age over 18 years, patients who were in the labor market before liver transplantation, and workers in the same sector who did not undergo the procedure. To analyze the collected data, the difference-in-differences statistical technique, event study, was used, since the treatment of the treated group occurred on different occasions within the researched period. During this period, individuals who had not yet received surgical treatment acted as a control group for those who had already undergone liver transplantation.
Results: Liver transplantation reduced the chances of employability of patients followed up at the UTF/HUOC by 20%, despite the increased survival of these patients after the procedure.
Conclusion: The study concluded that the high unemployment rate among the transplanted population indicates that these individuals are more predisposed to informal employment, causing a greater tendency to infectious diseases and a lower level of education due to less opportunity for professional improvement.
Descriptors
Liver Transplant; Liver Diseases; Health Care; Quality of Life; Labor Market
INTRODUÇÃO
O transplante de fígado pioneiro no mundo ocorreu em 1º de março de 1963. No Brasil, a iniciativa para esse procedimento ocorreu em 1968, no Hospital das Clínicas da Universidade de São Paulo (USP). Em 1985, o programa de transplante hepático (TxH) foi reiniciado na USP sob o comando do professor Silvano Raia, tornando-se o Brasil, em 1989, referência em transplantes mundiais após a publicação, pela Lancet, da primeira descrição de TxH, utilizando enxertos de doadores vivos, realizada pelos professores Sérgio Mies e Silvano Raia1.
O primeiro TxH do Norte e Nordeste do Brasil ocorreu em 19932. Porém, apenas a partir de agosto de 1999, um grupo de especialistas, em parceria com o Hospital Universitário Oswaldo Cruz (HUOC), iniciou um programa de transplante de fígado com capacidade para atender a uma parcela da demanda regional. Embora haja muito empenho em aumentar o número de cirurgias, há muitos óbitos entre pacientes que aguardam o procedimento cirúrgico, visto que o número de doadores de órgãos sólidos não é suficiente para atender à demanda3.
No estado de Pernambuco (PE), em geral, 2.911 pessoas estão na fila de espera pelo transplante de um órgão. A fila de transplante renal é a que tem mais potenciais receptores, com 1.591, seguida da de córnea (1.114), de TxH (149) e de cardíaco (12). De janeiro a junho de 2023, foram realizados 727 transplantes em PE, ficando o estado em 7º lugar em número de transplantes entre as unidades federativas4.
O TxH é considerado o tratamento mais indicado para pacientes com doença hepática crônica, em estágio terminal, possibilitando aumento da sobrevida desses indivíduos5. Devido aos avanços médicos, o transplante de órgãos e tecidos é, atualmente, tido como terapêutica segura e eficiente no tratamento de doenças terminais, possibilitando melhoria na qualidade e na expectativa de vida6.
O comprometimento da doença hepática indica quando é necessário o transplante do órgão. Em indivíduos adultos, as recomendações mais comuns são: hepatite B ou C crônica, doença hepática alcoólica, cirrose biliar primária, colangite esclerosante e hepatite autoimune7. Nos casos infantis, normalmente, a indicação de TxH está relacionada a hepatopatias agudas irreversíveis ou crônicas em estágio terminal8.
Associado a isso, os pacientes que estão em filas de espera de transplante se deparam com sentimentos frustrantes que produzem redução da sua autoestima, depressão, ansiedade, descrédito, entre outros, implicando comportamento reacional do próprio paciente e familiares diante da patologia. Após o transplante, há outros enfrentamentos, visto que a mudança de rotina, envolvendo acompanhamento médico habitual, realização de exames, riscos de novos procedimentos cirúrgicos, complicações pós-transplante, terapia imunossupressora, entre outros, também afetam a qualidade de vida9.
Apesar de todas essas implicações, o transplante foi destacado não apenas como estratégia curativa, mas também como meio de prolongar a sobrevida e melhorar a qualidade de vida dos pacientes submetidos a esse procedimento10. Sendo assim, é válido defender que o TxH favorece a melhoria da qualidade de vida dos pacientes em estágio terminal da doença hepática crônica, repercutindo positivamente em todas as dimensões do indivíduo, sendo essas biológicas, psicológicas e sociais11.
Nessa perspectiva, percebe-se que a dificuldade de empregabilidade dos indivíduos transplantados não é algo óbvio e, até então, não houve um levantamento criterioso nessa direção.
Mesmo que, intuitivamente, se espere haver redução na empregabilidade dessa parcela da população, a mensuração desse quantitativo é importante, pois embasará estudiosos da área e o desenho de políticas públicas.
Assim, a pesquisa objetiva avaliar a reinserção no mercado de trabalho de pacientes pós-TxH acompanhados em uma unidade de transplante de fígado do estado de PE, no período de 2012 a 2021, tendo como pergunta norteadora: “qual o efeito do transplante hepático sobre a reinserção do indivíduo/paciente no mercado de trabalho?”, ao traçar o perfil do paciente transplantado e posteriormente estimando os efeitos dessa terapêutica sobre a empregabilidade.
MÉTODOS
Realizou-se um estudo descritivo, transversal, com abordagem quantitativa, na Unidade de Transplante de Fígado (UTF) do HUOC, referência nas regiões Norte e Nordeste, considerada a segunda maior/melhor equipe médica de TxH do Brasil em número de transplantes bem-sucedidos.
O tamanho da população considerou o número de pacientes submetidos ao TxH nos últimos 10 anos (2012-2021), que estão vivos, com 18 anos ou mais, além de terem o registro do nome, data de nascimento e Cadastro de Pessoa Física (CPF) nas planilhas e/ou prontuários utilizados na coleta de dados. Foi realizado o cálculo para a amostra finita, com coeficiente de confiança de 95% e erro amostral de 5%.
Foram utilizados os seguintes critérios de inclusão: ter 18 anos ou mais, estar inserido no mercado de trabalho antes do TxH e não ter sido submetido a esse procedimento. Foram excluídos os pacientes que foram a óbito pós-TxH imediato e mediato, ou seja, até 24 horas da cirurgia e de 24 horas a 7 dias, respectivamente, além daqueles com menos de 18 anos.
A coleta de dados foi realizada de junho a novembro de 2023, com aplicação de um instrumento sucinto produzido pela pesquisadora, contendo os seguintes aspectos: nome, data de nascimento, sexo, data do TxH, Cartão Nacional de Saúde (CNS) do Sistema Único de Saúde (SUS), CPF, registro hospitalar, profissão/ocupação pré-TxH, local/instituição onde foi realizado o procedimento, data do óbito, se aplicável, e se o paciente já havia sido submetido a mais de um TxH e quantos teriam sido.
O instrumento elaborado pela autora foi utilizado para coleta de dados do prontuário do paciente, ou seja, dados secundários. Para análise dos dados coletados, foi utilizada a técnica estatística difference-in-differences (DID), visando imitar um desenho de pesquisa experimental usando dados de estudos observacionais, estudando o efeito diferencial de um tratamento em um “grupo de tratamento” versus um “grupo de controle” em um experimento natural.
A técnica estatística DID utilizada, por sua vez, é um event study de DID, ou seja, é um DID dinâmico, visto que a terapêutica do grupo tratado ocorreu em ocasiões diferentes no período pesquisado, o que contribuiu para a homogeneização da base de dados. Nesse determinado período, os indivíduos que ainda não receberam o tratamento cirúrgico se comportam como grupo-controle daqueles que já foram submetidos ao TxH.
Foi rastreada a reinserção no mercado de trabalho dos pacientes transplantados através da Relação Anual de Informações Sociais (RAIS), visando fazer uma análise comparativa da empregabilidade do indivíduo antes do TxH e a recolocação no mercado de trabalho do indivíduo após o procedimento.
Este estudo foi desenvolvido de acordo com os preceitos éticos nacionais e internacionais, conforme a Norma Operacional 001/2013, Resolução 466/12 e Resolução 510/10 do Comitê de Ética em Pesquisa (CEP)/Conselho Nacional de Saúde (CONEP)/Ministério da Saúde (MS) envolvendo seres humanos, com parecer favorável do CEP da Universidade Federal de Pernambuco (UFPE) – Plataforma Brasil e do HUOC/Pronto-Socorro Cardiológico Universitário de Pernambuco Professor Luiz Tavares (PROCAPE).
Os riscos que a pesquisa incorre aos seres humanos são os de má interpretação quanto às informações coletadas, visto que a partir do CPF do usuário/paciente, teremos acesso à RAIS visando verificar a empregabilidade do indivíduo, além do questionário sociodemográfico e clínico utilizado para descrever o perfil sucinto da população transplantada. Quanto aos benefícios, tem-se que o conhecimento sobre essa problemática poderá vislumbrar a possibilidade de criação de um estatuto de proteção aos transplantados.
RESULTADOS
As informações foram consolidadas conforme os dados coletados na UTF por ano de ocorrência. A Tabela 1 descreve o número de TxHs realizados pela equipe médica da UTF nos hospitais credenciados pelo MS para realização do procedimento: HUOC, Hospital Jayme da Fonte (HJF) e Instituto de Medicina Integral Professor Fernando Figueira (IMIP), em PE, e Hospital Nossa Senhora das Neves (HNSN), no estado da Paraíba.
A Tabela 2 descreve o número de pacientes que realizaram o TxH no período de 2012 a 2021, sendo retiradas as duplicações ou triplicações de nomes que realizaram mais de um procedimento no mesmo ano.
Para a descrição da situação vital dos pacientes, foi considerada a data da coleta de dados, no período de junho a novembro de 2023. Foi observado que a taxa de prevalência de vivos é mais significativa nos anos iniciais do período descrito para estudo, que correspondem a 2012 a 2014, além do ano de 2017, alcançando valores acima de 40% dos pacientes transplantados.
Quanto aos óbitos, percebe-se a prevalência maior nos anos de 2012 a 2017, alcançando taxas próximas ou superiores a 30%, dado que também pode estar relacionado à diminuição da sobrevida dos pacientes transplantados após 5 anos do procedimento1, segundo demonstra a Tabela 2.
No que tange os pacientes em que não há informação quanto à situação de vida ou morte após o transplante, percebe-se uma prevalência maior no período de 2018 a 2021, podendo esse fato estar relacionado à perda de seguimento desses pacientes, ou seja, ao abandono do tratamento/acompanhamento pós-TxH. Essa questão pode estar relacionada a vários fatores, entre esses: a dificuldade de liberação do dia/turno de trabalho, quando há vínculo trabalhista celetista ou informal, para acompanhamento multiprofissional de saúde após o TxH, relatado por pacientes a alguns profissionais da UTF.
Por fim, percebe-se uma prevalência geral de mais vivos (38,6%) do que óbitos (32%) entre os pacientes que realizaram o TxH ao longo dos 10 anos pesquisados, sem considerar aqueles que perderam o seguimento, o que demonstra que o TxH é um procedimento necessário quando não há mais possibilidade de tratamento convencional, a fim de prolongar a sobrevida e trazer melhoria na qualidade de vida dos pacientes5.
Ao analisar os pacientes transplantados em relação ao sexo, observa-se uma predominância masculina na proporção de 2/3. Esse dado pode estar associado a hábitos de vida que contribuem para o desenvolvimento de doenças hepáticas, levando à necessidade do TxH, como o alcoolismo crônico, um dos principais fatores de risco para a cirrose hepática10.
Segundo estudos sobre alcoolismo, no futuro, a prevalência dos transtornos relacionados ao abuso de álcool entre homens e mulheres poderá convergir, porém, atualmente, a dependência alcoólica ainda é maior entre os homens (8,6%) em relação às mulheres (1,7%), em nível mundial11.
Quanto ao número de pacientes acompanhados pela UTF/HUOC que realizaram TxHs de 2012 a 2021, percebeu-se que a maior parte dos pacientes realizou o TxH uma única vez; porém, há uma parcela (7,4%) que realizou o procedimento duas, três ou até quatro vezes. Na maioria dos casos, houve necessidade de retransplante devido à rejeição crônica do órgão recebido.
Quanto ao número de TxHs realizados pela equipe da UTF em cada hospital credenciado de 2012 a 2021, observou-se que a maior parte dos transplantes realizados nesse período ocorreu no HJF.
Com relação à faixa etária dos pacientes que realizaram o TxH de 2012 a 2021 acompanhados pela UTF/HUOC, percebeu-se que a predominância está na faixa dos 50 aos 69 anos, correspondendo a aproximadamente 47,4%. Isso se deve ao fato de essa população já estar em fase de maior risco de desenvolver comorbidades, tanto devido a fatores relacionados aos hábitos de vida quanto a complicações de doenças crônicas não transmissíveis10.
O número de pacientes que realizaram o TxH de 2012 a 2021, acompanhados pela UTF/HUOC e registrados com nome, data de nascimento e/ou CPF, é um dado relevante para a pesquisa sobre empregabilidade formal na RAIS. Desse modo, na construção do gráfico de empregabilidade pré- e pós-TxH, considerou-se a população com 18 anos ou mais, permitindo traçar um perfil desses indivíduos em relação ao mercado de trabalho.
Quanto à maioridade civil, tem-se 750 pacientes com 18 anos ou mais, correspondendo a 75,2% da população pesquisada.
Ao avaliar o número de pacientes com 18 anos ou mais e com registro de óbito no pós-operatório imediato (até 24 horas) e pós-operatório mediato (24 horas a 7 dias), acompanhados pela UTF/HUOC e que realizaram o TxH de 2012 a 2021, verifica-se que a população de pacientes transplantados nesse período totalizou 998 pacientes. Desses, 750 tinham 18 anos ou mais na data do transplante, e excluindo aqueles que foram a óbito no pós-operatório imediato e no pós-operatório mediato, encontram-se 709 pacientes habilitados para pesquisa na RAIS, visando verificar a empregabilidade antes e após o TxH.
Dentre os 750 pacientes com mais de 18 anos, apenas 369 foram encontrados com registros na RAIS, correspondendo a 49,2 % da amostra, conforme apresentado na Tabela 3.
Perfil dos pacientes encontrados na RAIS (49,2%) que eram acompanhados pela UTF/HUOC e realizaram o TxH de 2012 a 2021.
Quanto à faixa salarial dos pacientes transplantados encontrados na RAIS, houve variação de R$ 3.090,00 a R$ 38.548,56, com desvio-padrão (DP) de R$ 3.990,66, ou seja, a maioria dos salários variou em torno desse último valor. Sobre gênero/sexo, houve caracterização em feminino ou masculino, não havendo ou não tendo sido cadastrado nenhum indivíduo intersexo ou sem informação quanto ao gênero.
O grau de instrução apresentou o mínimo de 1 ano de estudo e o máximo de 11 anos, indicando que havia pacientes empregados, celetistas ou estatutários com um nível mínimo de formação educacional.
A idade mínima dos pacientes transplantados pesquisados na RAIS foi de 18 anos, visto que essa é a idade em que o indivíduo adquire a maioridade civil e pode ser empregado formalmente. A idade máxima foi de 77 anos, demonstrando que havia idosos ainda incluídos no mercado de trabalho, mesmo com problemas de saúde que poderiam dificultar o exercício de uma atividade laborativa.
O tempo de vida pós-TxH, variou de 0 a 10 anos entre os pacientes cadastrados na RAIS, com média de 6 anos e DP de um pouco superior a 3 anos.
O tempo de empregabilidade dos pacientes antes da realização do TxH variou de 0,1 a 497,45 meses, correspondendo a 3 dias e 41,45 anos, com média de 111 meses e DP de 123 meses, equivalendo, respectivamente, a 9,25 anos e 10,25 anos.
Quanto à idade do indivíduo no momento do procedimento terapêutico cirúrgico, variou de 20 a 73 anos, sendo observada uma espera média de 2 anos desde o cadastro na fila até o dia do TxH.
A Tabela 3 demonstra, ainda, que dos 750 pacientes com 18 anos ou mais que realizaram o TxH, 369 foram encontrados registrados na RAIS, correspondendo a 49,2% da amostra. Essa taxa não é próxima de 100%, pois cerca de metade desse percentual (50,8%) corresponde a pacientes com empregos informais, desempregados ou sem ocupação e que não estão à procura de trabalho. Todavia, como o objetivo da pesquisa é verificar a empregabilidade dos pacientes após o procedimento terapêutico cirúrgico, essa informação se torna pouco significativa.
Por fim, pôde-se concluir que 80% da amostra retornou ao mercado de trabalho após o procedimento cirúrgico e período de recuperação, visto que houve uma queda de 20% na empregabilidade formal desses indivíduos na fase posterior à terapêutica cirúrgica.
DISCUSSÃO
Diante da complexidade envolvida na avaliação da reinserção no mercado de trabalho dos pacientes submetidos ao TxH, a causalidade surge como uma preocupação central, sendo necessário incorporar a inferência causal como parte desse processo12.
Partindo desse pressuposto, o paradigma da inferência causal utilizado nesta análise permite melhor explicar as relações observadas de causa e efeito no processo de transplante de fígado, ao verificar, simultaneamente, o valor do tratamento e do não tratamento na mesma unidade13.
Nesse sentido, a Fig. 1 demonstra a porcentagem de empregabilidade dos pacientes submetidos ao TxH, por semestres, antes e após o procedimento cirúrgico.
Em estatística, a regressão não linear, utilizada neste estudo, é uma maneira de análise de regressão em que dados observacionais são modelados por uma função que é uma combinação não linear dos parâmetros do modelo e depende de uma ou mais variáveis independentes. Os dados são ajustados por um método de aproximações sucessivas14. Sendo assim, assume-se que a curva mais bem ajustada seja a que minimiza a soma dos quadrados dos resíduos15.
Um dos principais problemas enfrentados na regressão é a heteroscedasticidade16. No entanto, pode-se considerar que a heterogeneidade é algo aceitável como regra, não a exceção, devendo, desta forma, optar por considerar a homoscedasticidade. Todavia, o problema está na propagação dos coeficientes. Tem-se, assim, que a solução para essas heteroscedasticidades é o erro-padrão “robusto”.
Sendo assim, podemos concluir que o TxH reduziu em 20% as chances de empregabilidade dos pacientes acompanhados na UTF do HUOC, visto que, ao verificar o impacto da intervenção cirúrgica, a randomização poderia não ser viável por dificuldades logísticas, questões éticas ou políticas, ou porque a intervenção já ocorreu. Dessa forma, esse problema poderia ser corrigido, havendo vários pontos no tempo, principalmente dados anteriores e posteriores à intervenção17 (Fig. 2).
Pode-se observar, na Fig. 1, que as chances de empregabilidade dos pacientes que não receberam o TxH são similares, tendo uma diminuição após o tratamento cirúrgico. Consensualmente, o desenho do DID dinâmico é apresentado em uma configuração de dois períodos de tempo, ou seja, pré- e pós-intervenção, e dois grupos, tratado e controle. Sendo assim, o event study apresenta o conceito de “tendências paralelas”.
Os coeficientes de avanço (leads, em inglês) representam o efeito adiantado da política e são exemplos de testes mais usuais nesse tipo de desenho. Algebricamente, tem-se:
em que Treated é uma variável binária que assume valor 1 para observações do grupo de tratamento e 0, caso contrário. Post é uma dummy que representa a dimensão temporal da intervenção, tomando valor 1 para todas as observações após o evento. O coeficiente de interesse, por sua vez, é β, que capta o efeito causal do evento sobre Y e advém da interação entre Treated e Post. Colocando de outra maneira, β pode assumir a seguinte forma:
Nessa perspectiva, será estimada uma análise de evento, como extensão do DID, para captar o efeito dinâmico da política. Além disso, a partir dessa, será possível realizar o teste de tendências paralelas pré-evento, de modo a verificar a validade do modelo. Porém, é válido considerar que, no desenho de pesquisa utilizado neste trabalho, a variável Post se refere ao período pós-transplante para cada indivíduo.
A estimativa, por sua vez, é geralmente realizada com erros-padrão agrupados no nível do grupo. Além do que, um dos períodos de tempo deve ser descartado para evitar a multicolinearidade perfeita (problema comum em regressões, no qual as variáveis independentes têm relações lineares exatas ou aproximadamente exatas), como ocorre na maioria das configurações de efeitos fixos, visto que, na maioria dos estudos de caso, o intervalo de tempo -1 é usado como referência abandonada18.
Apesar de a análise de regressão e técnica estatística utilizadas terem sido bastante significativas no estudo em questão, é válido salientar que essa diminuição no percentual de empregabilidade após o procedimento cirúrgico pode não estar relacionada apenas diretamente ao TxH, propriamente dito, mas à débil condição clínica do indivíduo antes do procedimento terapêutico que pode ter contribuído para que o período de reabilitação fosse mais laborioso, postergando, dessa forma, o retorno do paciente ao mercado de trabalho.
Levando em consideração que o principal objetivo do TxH é o aumento da sobrevida do indivíduo, na perspectiva de melhoria da qualidade de vida e retorno às atividades cotidianas, como a atividade laborativa, a análise de regressão estatística mostra que esse procedimento terapêutico é eficaz; porém, a aceitação desses pacientes pelo mercado de trabalho, no período de 2 anos posteriores ao procedimento cirúrgico, não é satisfatória, seja pela debilidade do paciente ou pela discriminação/preconceito em empregar um indivíduo transplantado que precisará frequentar consultas periódicas para acompanhamento clínico de sua condição de saúde19.
CONCLUSÃO
A partir da análise regressiva do estudo desenvolvido, foi possível verificar uma redução de 20% da empregabilidade formal entre os pacientes transplantados. Esse percentual é considerado uma alta taxa quando comparado ao percentual de desempregados entre a população ativa, que variou de 7 a 14% de 2012 a 2021, período do estudo20. Cientificamente, essa alta taxa de desemprego entre a população transplantada indica que esses indivíduos estão mais predispostos à empregabilidade informal, o que pode ocasionar maior tendência a doenças infectocontagiosas e menor índice de escolaridade, levando a menos chances de aprimoramento profissional.
No que tange à prevalência dos TxHs, verificou-se que essa terapêutica foi realizada, em sua maioria, na faixa etária de indivíduos de 50 a 69 anos, população que tem uma condição clínica comprometida, na grande parte dos casos, e visto que a doença hepática estaria relacionada a outras comorbidades, como hipertensão e diabetes. Também pode-se concluir que a reinserção no mercado de trabalho de pessoas nessa faixa etária seria ainda mais desafiadora, ao passo que, estatisticamente, as regiões do Brasil com maiores taxas de empregabilidade de 40 a 59 anos e população idosa são as regiões Sudeste e Sul, em detrimento às regiões Norte, Nordeste e Centro-Oeste21.
Quanto ao tempo de vida pós-transplante, variou de 0 a 10 anos, média de 6 anos e DP de um pouco mais de 3 anos, formalmente empregados antes do procedimento terapêutico cirúrgico, verificando-se um período de sobrevida significativo para esses indivíduos, possibilitando, dessa forma, condições possíveis de retorno ao mercado de trabalho, o que foi verificado em 80% dos casos.
No que tange à contribuição previdenciária desses pacientes antes da realização do TxH, observou-se um período médio de 10 anos, correspondendo a dois terços do tempo mínimo de contribuição para a Previdência Social.
Vê-se, nesse sentido, a saúde pública como um eixo orientador para maior esclarecimento da população quanto às doenças que podem levar a um TxH, não se restringindo, apenas, ao abuso de bebida alcoólica, mas também a doenças virais, como as hepatites em suas diversas formas de transmissão, outrossim, a dietas gordurosas que podem desencadear uma insuficiência hepática. Visto que, por mais que o TxH seja uma terapêutica de sucesso, é necessário considerar que também é o tratamento de última instância, e que o paciente transplantado poderá desenvolver rejeição ao órgão, além da expectativa na fila de espera por um doador compatível.
AGRADECIMENTOS
Não se aplica.
-
FINANCIAMENTO
Não se aplica.
DISPONIBILIDADE DE DADOS DE PESQUISA
Dados disponíveis mediante solicitação.
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Editado por
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Editora de Seção
Ilka de Fátima Santana F. Boin https://orcid.org/0000-0002-1165-2149
Datas de Publicação
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Publicação nesta coleção
17 Mar 2025 -
Data do Fascículo
2025
Histórico
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Recebido
15 Dez 2024 -
Aceito
08 Fev 2025