RESUMO
Introdução: O transplante ortotópico de fígado (TOF) é a principal terapia para doença hepática terminal. No Brasil, a realização de transplantes aumentou significativamente nas últimas décadas, com melhorias nos desfechos a longo prazo. Este estudo analisa a sobrevida de pacientes submetidos a TOF ao longo de 20 anos em um centro de referência.
Métodos: Foram revisados os prontuários de 848 pacientes transplantados entre fevereiro de 1995 e dezembro de 2017. Aplicaram-se critérios de exclusão, incluindo pacientes com sobrevida inferior a 6 meses, visando minimizar o impacto de complicações precoces no desfecho de longo prazo. Dessa forma, 174 pacientes foram incluídos. As variáveis analisadas envolveram dados do receptor, doador, enxerto, procedimento cirúrgico e evolução pós-operatória. A sobrevida foi avaliada por Kaplan–Meier.
Resultados: Dos 174 pacientes analisados, 98 (56,3%) mantiveram seguimento ambulatorial e 76 (43,7%) evoluíram a óbito. A média de idade no transplante foi de 47 anos, e 75% dos receptores eram do sexo masculino. As principais indicações foram hepatite viral (59,8%) e carcinoma hepatocelular (11,6%). A média do escore MELD foi 18. A principal causa de morte foi evento cardiovascular (36,4%), seguido de recidiva da doença hepática (22,1%) e neoplasias (15,6%). O tempo médio de sobrevida foi de 223 meses entre os pacientes vivos e 112 meses entre os óbitos (p < 0,0001). Maior tempo de isquemia fria, insuficiência renal pós-operatória, diabetes e maior tempo de internação em UTI foram fatores associados a pior sobrevida. Pacientes mais jovens apresentaram sobrevida significativamente superior (p = 0,00007).
Conclusão: A análise de 20 anos mostrou que o TOF apresenta boa sobrevida a longo prazo, mas fatores como diabetes, disfunção renal e tempo prolongado de isquemia fria impactam negativamente os desfechos. Eventos cardiovasculares e recidiva da doença hepática foram as principais causas de mortalidade.
Descritores
Transplante de Fígado; Sobrevida; Insuficiência Hepática; Doença Hepática Crônica; Mortalidade Hospitalar; Fatores Prognósticos
ABSTRACT
Introduction: Orthotopic liver transplantation (OLT) is the primary therapy for end-stage liver disease. In Brazil, the number of liver transplants has significantly increased over the past decades, improving long-term outcomes. This study analyzes the long-term survival of patients who underwent OLT over 20 years at a reference transplant center.
Methods: Medical records of 848 patients who underwent OLT between February 1995 and December 2017 were reviewed. Exclusion criteria included patients with survival below six months to minimize the impact of early postoperative complications on long-term outcomes. Thus, 174 patients were included. The analyzed variables involved the recipient, donor, graft, surgical procedure, and postoperative evolution. Survival was assessed using Kaplan–Meier analysis.
Results: Among the 174 analyzed patients, 98 (56.3%) remained in outpatient follow-up, while 76 (43.7%) died. The mean age at transplantation was 47 years, and 75% of recipients were male. The main indications were viral hepatitis (59.8%) and hepatocellular carcinoma (11.6%). The mean MELD score was 18. The leading cause of death was cardiovascular events (36.4%), followed by liver disease recurrence (22.1%) and malignancies (15.6%). The mean survival time was 223 months for surviving patients and 112 months for deceased patients (p 0.0001). Longer cold ischemia time, postoperative renal dysfunction, diabetes, and prolonged stay in the intensive care unit were associated with worse survival. Younger patients had significantly longer survival (p = 0.00007).
Conclusion: The 20-year analysis demonstrated that OLT provides good long-term survival; however, factors such as diabetes, renal dysfunction, and prolonged cold ischemia time negatively impact the outcomes. Cardiovascular events and recurrence of liver disease were the leading causes of mortality.
Descriptors
Liver Transplantation; Survivorship; Hepatic Insufficiency; Chronic Liver Disease; Hospital Mortality; Prognostic Factors
INTRODUÇÃO
O transplante ortotópico de fígado (TOF) é uma terapia bem estabelecida para a insuficiência hepática em estágio terminal, proporcionando maior sobrevida e qualidade de vida aos receptores. Os avanços nas técnicas cirúrgicas, no manejo perioperatório e na imunossupressão aumentaram significativamente a longevidade dos receptores de transplante de fígado. No entanto, as complicações de longo prazo, como disfunção do enxerto, recorrência de doença hepática, eventos cardiovasculares e neoplasias malignas, continuam sendo grandes desafios.
O Brasil tem um dos maiores programas públicos de transplante de órgãos do mundo, com a maioria dos transplantes de fígado realizados no âmbito do Sistema Único de Saúde (SUS). Apesar do progresso significativo, a sobrevida a longo prazo em populações brasileiras continua pouco explorada, e a identificação de fatores preditivos de mortalidade é crucial para otimizar os resultados pós-transplante. Estudos internacionais indicam que a idade do receptor, o tempo de isquemia fria, o diabetes, a disfunção renal e a permanência prolongada na unidade de terapia intensiva (UTI) podem afetar negativamente a sobrevivência1-3. Porém, há uma falta de dados nacionais que avaliem essas variáveis em um período de acompanhamento prolongado.
Este estudo analisa a sobrevida de longo prazo de pacientes submetidos a TOF durante 20 anos em um centro de transplante de referência, com o objetivo de identificar fatores de risco associados à mortalidade e avaliar a qualidade de vida do paciente durante o acompanhamento tardio. A compreensão desses fatores pode ajudar na tomada de decisões clínicas e melhorar as estratégias de gerenciamento pós-transplante.
MÉTODOS
O protocolo científico do estudo realizado foi aprovado pelo Comitê de Ética em Pesquisa da Universidade Estadual de Campinas. O comitê entende que o termo de consentimento livre e esclarecido não foi necessário, pois o estudo envolve um levantamento de registros clínicos.
Os registros médicos de 848 pacientes que foram submetidos a TOF de fevereiro de 1995 a dezembro de 2017 foram revisados e analisados. Todas as cirurgias foram realizadas pela mesma equipe cirúrgica. A coleta de órgãos de doadores falecidos seguiu o protocolo de nossa técnica cirúrgica padrão; os órgãos foram preservados com as soluções HTK e IGL-1.
As técnicas utilizadas na cirurgia de implante hepático foram a hepatectomia total com preservação da veia cava inferior (técnica piggyback) ou a técnica convencional padrão, ambas sem bypass venovenoso. A técnica escolhida foi baseada no critério do cirurgião na avaliação intraoperatória.
Foi realizada uma análise retrospectiva descritiva com base nos dados médicos daqueles que se submeteram ao TOF, do banco de dados de registros médicos eletrônicos do Hospital de Clínicas da Universidade de Campinas (HC-Unicamp), localizado na cidade de Campinas, estado de São Paulo, Brasil. As informações foram coletadas durante o acompanhamento pós-operatório.
Foram excluídos os pacientes com menos de 18 anos de idade ou com uma taxa de sobrevivência (TS) inferior a 6 meses. A exclusão desses casos baseou-se no fato de que a mortalidade precoce geralmente está associada a complicações cirúrgicas e pós-operatórias imediatas, que não foram o foco do presente estudo.
A análise abrangeu os seguintes aspectos:
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Receptor do órgão: no dia anterior ao TOF, foram avaliados a idade, o sexo, o índice de massa corporal (IMC), o modelo para doença hepática terminal (MELD), a glicemia, o sódio sérico, a causa da doença subjacente e a creatinina.
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Doador falecido: antes da coleta de órgãos, foram avaliados o sódio sérico, a idade e o sexo.
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Órgão doado (enxerto): foram medidos o tempo total de isquemia fria e a disfunção do órgão. Foram considerados doadores com critérios expandidos aqueles que atendiam a pelo menos uma das seguintes condições: idade > 60 anos, presença de comorbidades como diabetes ou hipertensão, esteatose hepática moderada ou grave (> 30%) ou permanência prolongada na UTI antes da retirada do órgão.
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Procedimento cirúrgico: a técnica realizada na cirurgia foi considerada.
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Resultados pós-operatórios: foram considerados o tempo de permanência na UTI, o tempo de sobrevida, a função renal e o estado global do paciente 6 meses e 10 anos após o TOF.
Além disso, a avaliação de critérios clínicos, como obesidade, insuficiência renal e níveis de glicose, foi realizada no pré-operatório e durante o acompanhamento de longo prazo, o que nos permitiu determinar seu impacto no prognóstico pós-transplante.
O estudo também teve como objetivo avaliar a sobrevivência do enxerto; no entanto, devido a limitações na coleta de dados, essa análise não foi incluída na versão inicial do manuscrito. Então, incorporamos uma avaliação da sobrevivência do enxerto, que será detalhada na seção Resultados.
A TS foi avaliada usando o gráfico de Kaplan–Meier e testes não paramétricos como o qui-quadrado e o modelo de risco de Cox. O questionário Liver Disease Quality of Life (LDQOL) e o Short Form Health Survey (SF-36) foram usados para avaliar a qualidade de vida dos pacientes pós-transplante em 6 meses e 10 anos depois do procedimento. Valores de p < 0,05 foram considerados significativos (Statistical 11.0, NY, EUA).
RESULTADOS
Após a aplicação dos critérios de exclusão, 174 pacientes submetidos a transplante de fígado no HC-Unicamp entre 1995 e 2017 foram incluídos na análise final. Entre eles, 98 pacientes (56,3%) sobreviveram e foram acompanhados em nível ambulatorial, enquanto 76 pacientes (43,7%) morreram durante o período analisado.
Com relação aos registros médicos do receptor, a idade média no momento do transplante era de 47 anos. Os pacientes do sexo masculino corresponderam a 75% dos casos. A obesidade estava presente em 14% dos pacientes, com um IMC médio de 25. As principais indicações para o transplante foram hepatite viral (59,8%) e cirrose relacionada ao álcool (11,6%), seguidas por carcinoma hepatocelular (CHC) (11,6%).
Os valores médios de MELD, CTP e sódio sérico foram 18 (variação: 8–31), 10 (variação: 6–15) e 136 mEq/L (variação: 113–147 mEq/L), respectivamente.
As principais causas de morte cerebral de doadores foram lesão cerebral traumática (43%) e acidente vascular cerebral (35%), com predominância de doadores do sexo masculino (65%). O tempo médio de isquemia fria foi de 690 min (variação: 360–1.200 min), o que corresponde a 6 a 20 h. Foi observada esteatose leve ou moderada em 27% dos fígados de doadores, enquanto 48% dos doadores atenderam aos critérios expandidos, conforme definidos pela classificação da Rede Unida para o Compartilhamento de Órgãos. O nível médio de glicose do doador foi de 95 mg/dL (variação: 62–291 mg/dL).
A média de permanência na UTI foi de 6 dias (variação: 2–240 dias). Os pacientes precisaram de uma média de 4 transfusões de glóbulos vermelhos (variação: 0–27 unidades) por transplante. A função renal foi avaliada por meio da depuração de creatinina antes e depois do transplante, com valores médios de 103 mL/min (variação: 39–165 mL/min) pré-transplante e 69 mL/min (variação: 30–165 mL/min) pós-transplante.
A análise de longo prazo revelou que a principal causa de morte foram eventos cardiovasculares (36,4%), seguidos por recorrência de doença hepática (22,1%), neoplasias (15,6%) e infecções (14,3%) (Fig. 1).
Valor cumulativo das causas de morte por ano de 76 pacientes acompanhados entre 1995 e 2007.
A TS média foi de 223 meses para pacientes ainda em acompanhamento e 112 meses para pacientes falecidos (p = 0,0001). A Fig. 2 ilustra a TS geral.
Taxa de sobrevida global após transplante de fígado em 174 pacientes acompanhados entre 1995 e 2007.
A idade mais jovem do receptor afetou significativamente os resultados de sobrevivência (p = 0,00007). Além disso, o aumento do tempo de isquemia fria, a piora da depuração de creatinina após o transplante, o diabetes e a permanência prolongada na UTI foram identificados como fatores de risco significativos para a mortalidade.
Com relação à etiologia da doença hepática que leva ao transplante (Fig. 3), os pacientes com CHC tiveram maior mortalidade em comparação com aqueles com hepatite viral. Contudo os casos relacionados à hepatite viral demonstraram TSs pós-transplante semelhantes aos casos de cirrose relacionada ao álcool. As TSs mais altas foram observadas em pacientes com cirrose criptogênica.
Proporção de sobrevivência cumulativa com relação à causa que levou ao transplante de fígado.
A análise de sobrevida do enxerto foi incluída para resolver lacunas anteriores no estudo (Fig. 4). Os pacientes com depuração de creatinina pós-transplante abaixo de 30 mL/min apresentaram TSs significativamente menores em comparação com aqueles com depuração de creatinina acima de 30 mL/min.
Foi observada uma associação estatisticamente significativa entre isquemia fria prolongada e redução da sobrevida (razão de risco [hazard ratio — HR] 1,004; intervalo de confiança [IC] de 95% 1,002–1,006; p < 0,0001), obesidade (HR 5,825; IC 95% 2,000–16,969; p = 0,0012), permanência prolongada na UTI (HR 1,014; IC 95% 1,003–1,024; p = 0,0112), falha de enxerto grau III (HR 3,027; IC 95% = 1,278–7,166; p = 0,0118) e função renal prejudicada pós-transplante (HR 1,035; IC 95%= 1,016–1,054; p = 0,0001).
Com relação à qualidade de vida, aplicamos duas ferramentas de avaliação clínica: o SF-36 e o questionário LDQOL. Os resultados, agora ampliados, indicam que os distúrbios do sono e a disfunção sexual foram os problemas mais relatados entre os pacientes masculinos e femininos, potencialmente influenciados por fatores emocionais e físicos.
Pontuações SF-36 (a) e LDQOL (b). As colunas azuis são homens e as colunas vermelhas são mulheres.
DISCUSSÃO
O estudo retrospectivo realizado por Wong et al. usaram o banco de dados da Rede Unida para o Compartilhamento de Órgãos de 2014 a 2019, com 51.329 adultos, para um estudo de coorte para avaliar as tendências na etiologia da doença hepática entre adultos registrados nas listas de espera para transplante de fígado (TF) nos Estados Unidos. O estudo constatou que a esteatoepatite não alcoólica (NASH) e a doença hepática alcoólica (DHA) se tornaram as etiologias mais comuns de doença hepática entre os inscritos na lista de espera de TF sem CHC, e a NASH está se tornando uma das principais indicações em pacientes com CHC4. No presente estudo, a maioria dos TFs foi realizada devido a hepatite viral (59,8%), álcool (11,6%) e CHC (11,6%).
Complicações precoces podem ser mencionadas, como complicações vasculares (por exemplo, trombose da artéria hepática e/ou da veia porta; geralmente no período pós-operatório inicial); complicações biliares (por exemplo, estenose, vazamento biliar, colangite, disfunção do esfíncter de Oddi e cálculo renal; geralmente de 6 a 12 meses após o transplante); malignidade pós-transplante (por exemplo, tumores hepáticos primários recorrentes, como hepatocelular ou colangiocarcinoma; tumores associados à imunossupressão, como sarcoma de Kaposi e cânceres de pele não melanóticos; metástases e distúrbio linfoproliferativo pós-transplante). Especificamente, Lima et al. mostraram que o baixo Índice Normalizado Internacional do receptor antes da operação, o diâmetro do ducto biliar < 3 mm e a antigenemia positiva para o citomegalovírus ou a manifestação da doença estão correlacionados com complicações biliares5. O presente estudo excluiu os primeiros seis meses de mortalidade; portanto, os autores não observaram um número relativamente grande de pacientes com dados pós-operatórios precoces relativos a complicações iniciais.
Os dados atuais mostraram que o tempo prolongado de isquemia fria, o tempo de permanência na UTI e a idade média do paciente estão relacionados ao aumento da mortalidade, em concordância com outros estudos. No entanto, os resultados mostraram um ganho considerável de sobrevivência nos anos ativos na última década, em comparação com os primeiros 10 anos analisados. Provavelmente, a melhora da TS ao longo dos anos é secundária a vários fatores, incluindo melhor seleção de pacientes, avanços nas técnicas cirúrgicas e de anestesia, cuidados perioperatórios aprimorados, antibióticos e imunossupressão.
Em um estudo em três centros clínicos baseado no banco de dados de transplante de fígado do norte-americano National Institute of Diabetes and Digestive and Kidney Diseases entre abril de 1990 e junho de 1994, com 798 pacientes e um acompanhamento médio de 10 anos, 327 morreram, principalmente por causas hepáticas (28%), e aproximadamente 2/3 de todas as mortes ocorreram após o primeiro ano pós-transplante. Hepatite C, retransplante, diabetes pós-TF, hipertensão e insuficiência renal foram fatores de risco significativos para morte relacionada ao fígado com falência do enxerto. Outras causas importantes foram malignidade (22%), eventos cardiovasculares (11%), infecção (9%) e insuficiência renal (6%). Os fatores de risco para morte geral > 1 ano (univariada) foram: sexo masculino, idade/década, diabetes pré-TF, diabetes pós-TF, hipertensão pós-TF, insuficiência renal pós-TF, retransplante > 1 ano, malignidade pré-TF, DHA e doença hepática metabólica, com riscos semelhantes observados para morte > 5 anos. Diferentemente da literatura apresentada, a maior taxa de mortalidade encontrada neste estudo após o TOF foi relacionada a eventos cardiovasculares, representando 36% de todas as mortes, enquanto a maior mortalidade nos EUA e no Reino Unido continuou sendo a malignidade, seja ela primária, metastática ou recorrente6. Por outro lado, a malignidade foi alocada em segundo lugar entre as causas de morte no presente estudo, o que nos leva a questionar se os resultados discordantes estão associados a fatores populacionais, aspectos da atenção primária à saúde ou mesmo às características biomoleculares das neoplasias hepáticas dos pacientes.
Nitski et al. mostraram variáveis preditivas para mortalidade relacionada ao enxerto, como o vírus da hepatite C como indicação para TF, idade do doador, rejeição após o transplante, diabetes pós-TF, hipertensão e insuficiência adrenal
No Brasil, um estudo prospectivo acompanhou 252 pacientes de transplante de fígado durante um ano e encontrou uma TS de 30 dias de 79,76%, com um escore MELD médio de 21,17. Para pacientes com escores MELD de até 12 em todos os três índices (n = 172), a TS de 30 dias foi de 87,79%, enquanto foi de 36,36% para aqueles com escores acima de 12. Esse limite de 12 pontos é clinicamente útil para prever os resultados pós-transplante8. No presente estudo, o escore MELD médio foi de 18, o que pode ser responsável por melhores resultados no pós-operatório imediato.
Infelizmente, a maioria dos transplantes de fígado no Brasil, como neste estudo, é realizada com transplante de fígado de doador falecido (TFDF), principalmente devido às barreiras da cultura ocidental. O transplante de fígado com doador vivo (TFDV) tem sido culturalmente bem aceito no Brasil na população pediátrica. Países asiáticos e europeus realizam o TFDV há mais de duas décadas. Por exemplo, desde o primeiro TFDV em junho de 1990 até abril de 2020, quase 2.000 TFs foram realizados na Universidade de Kyoto; apenas 80 (4%) foram TFDF. Assim como em outras instituições japonesas, a grande maioria dos TFs (96%) são de TFDVs. Um artigo japonês recente mostrou uma TS de mais de 95% em um ano de acompanhamento. O autor mostrou o protocolo da instituição para esses resultados: o enxerto esquerdo teve uma taxa de complicações menor do que a dos doadores do enxerto do lobo direito(18,8% v. 44.2%; p < 0.001); modulação da pressão da veia porta com esplenectomia, ligadura de shunt e outros procedimentos baseados na pressão portal; hepatectomia de doador vivo assistida por laparoscopia; critérios ampliados para TFDV para CHC (critérios de Kyoto); diagnóstico e tratamento imediato de infecções e discriminação de infecção de rejeição com procalcitonina (PCT), níveis de corte de 0,5 e 2,0 ng/mL podem ser úteis para diagnosticar bacteremia ou sua ausência, associados à higiene das mãos com precauções de contato e suporte nutricional.9
O aumento da potência dos agentes imunossupressores resultou em redução significativa das taxas de rejeição resistente a esteroides e perda de enxerto relacionada à rejeição. Após a introdução dos inibidores de calcineurina (CNI), eles logo se tornaram a primeira linha de medicamentos de imunossupressão na maioria dos centros de TF, tanto na Europa quanto nos EUA. Atualmente, os presentes autores e a maioria dos centros de transplante brasileiros reduzem gradualmente os glicocorticoides após a indução da imunossupressão e usam CNI, principalmente tacrolimo, em longo prazo, associado ao MPA (inibidor da inosina monofosfato desidrogenase) como agente poupador de CNI, para evitar a nefrotoxicidade2,10. Casos especiais, como doença autoimune e rejeição de enxerto, podem exigir a otimização da medicação, como azatioprina e outros medicamentos imunossupressores, respectivamente11-13. Os resultados apresentados não demonstraram um impacto significativo na mortalidade geral durante o período analisado em relação à terapia imunossupressora. Esses dados podem ser justificados pelo fato de o mesmo protocolo de imunossupressão padrão ter sido usado na instituição nos últimos 20 anos. Isso também levanta a hipótese de que a alta mortalidade por vírus da hepatite C e malignidade pode estar associada a taxas de imunossupressão mais intensas que não apenas impediram a rejeição do enxerto, mas também proporcionaram um ambiente favorável para linhagens neoplásicas hepatoespecíficas. Em estudos anteriores, os níveis mínimos de sirolimo e tacrolimo no conjunto de dados da University Health Network foram variáveis importantes para a mortalidade relacionada ao câncer.11-13
Os receptores de transplante de fígado apresentam melhorias notáveis na TS e na qualidade de vida pós-transplante em comparação com sua condição pré-operatória. No entanto, eles ainda enfrentam taxas de morbidade e mortalidade mais altas do que a população em geral, em grande parte devido à terapia imunossupressora por toda a vida e seus efeitos adversos10,14. O uso prolongado de imunossupressores está associado ao aumento dos riscos de diabetes, hipertensão, dislipidemia, disfunção renal e cânceres. Um estudo multicêntrico nórdico que comparou a sobrevida entre os receptores de TF (n = 299) e uma população geral equivalente revelou que os receptores de transplante que viveram além do primeiro ano pós-operatório tiveram um risco 2,4 vezes maior de morte e um risco 5,8 vezes maior de morte prematura (antes dos 75 anos)15. Notavelmente, quatro das cinco mortes estavam relacionadas à terapia imunossupressora, incluindo malignidades, doenças cardiovasculares e infecções. Neste estudo, a análise de longo prazo indicou que as causas relacionadas à imunossupressão foram responsáveis por três dos quatro principais fatores de mortalidade: eventos cardiovasculares (36,4%), neoplasias (15,6%) e infecções (14,3%).
Estudos retrospectivos de centros individuais examinaram os preditores de complicações de longo prazo em pacientes com TF em nível populacional. Nos transplantes de fígado, fatores como sexo masculino, idade avançada do receptor, diabetes pós-transplante, hipertensão, disfunção renal, biomarcadores de fibrose, raça caucasiana, doença hepática gordurosa não alcoólica como motivo do transplante, idade do doador e tipo de enxerto (falecido vs. vivo) foram identificados como influenciadores de resultados. Este artigo teve como objetivo principal validar algoritmos de aprendizado de máquina que pudessem fornecer aos receptores de TF estimativas de sobrevida de 1 e 5 anos para as quatro principais causas de mortalidade — problemas cardiovasculares, falha do enxerto, malignidades e infecções — em qualquer momento pós-transplante. As descobertas sugerem que o aprendizado de máquina poderia melhorar o gerenciamento pós-transplante, especialmente em áreas com diretrizes clínicas limitadas devido à falta de pesquisas definitivas.16-19
Neste estudo, a função renal foi estimada antes e depois do transplante por meio da depuração de creatinina, mostrando níveis médios de 103 mL/min antes do transplante e 69 mL/min depois do transplante. Esse declínio pode aumentar o risco de mortalidade cardiovascular, já que estudos anteriores associaram os níveis de creatinina sérica 12 meses pós-TF com eventos cardiovasculares de longo prazo e risco de mortalidade.16,20,21
Por fim, os receptores de TF mais jovens, com média de cerca de 40 anos, apresentaram melhor sobrevida global, semelhante aos achados do Reino Unido e dos EUA. Em uma comparação feita por Gil et al. entre os receptores de TF de meia-idade e idosos (> 70 anos), o risco de mortalidade foi aproximadamente quatro vezes maior nos receptores com mais de 70 anos (odds ratio [OR] 4,1; IC 95% 2,21–7,58) e quase três vezes maior quando ajustado para doença hepática e complicações perioperatórias (OR 2,92; IC 95% 1,37–6,24). Além disso, os custos associados ao TF aumentaram com a idade do receptor, ressaltando a necessidade de cautela ao considerar o TF em pacientes idosos22. Uma revisão sistemática e uma metanálise corroboraram ainda mais esses achados, mostrando um aumento da mortalidade associado à idade mais avançada do receptor (HR 2,07, IC 95% 1,71–2,50, p = 0,40)23. No Brasil, os pacientes com mais de 70 anos de idade devem receber aprovação da Câmara Técnica Estadual antes de se submeterem ao TF.
CONCLUSÃO
O TOF provou ser uma terapia eficaz para doença hepática em estágio terminal e CHC, proporcionando uma excelente TS cumulativa. As taxas devem ser melhores no futuro, pois a eficiência da medicação ainda está melhorando em relação ao tratamento da hepatite viral e à detecção precoce do CHC. Os fatores de risco estabelecidos para morte em pacientes submetidos a transplante de fígado foram isquemia fria prolongada do enxerto, maior tempo de permanência na UTI, presença de diabetes no receptor e disfunção renal. Os eventos cardiovasculares e a recorrência da doença hepática subjacente foram citados como as principais causas de morte na análise de longo prazo.
AGRADECIMENTOS
Agradecemos à Faculdade de Ciências Médicas da Universidade Estadual de Campinas pelo apoio institucional no desenvolvimento deste trabalho, bem como ao Departamento de Transplante Hepático da Unicamp pelo suporte técnico e científico essencial para a realização da pesquisa.
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FINANCIAMENTO
Não aplicável.
DISPONIBILIDADE DE DADOS DE PESQUISA
Todos os conjuntos de dados foram gerados ou analisados no presente estudo.
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Editado por
-
Editora de Seção:
Edna Frasson de Souza Montero https://orcid.org/0000-0003-1437-1219
Datas de Publicação
-
Publicação nesta coleção
09 Jun 2025 -
Data do Fascículo
2025
Histórico
-
Recebido
24 Out 2024 -
Aceito
11 Mar 2025