Open-access O Papel da Urina-1 e Microscopia Urinária no Diagnóstico da Injúria Renal Aguda no Transplante Hepático

RESUMO

Introdução:  A injúria renal aguda (IRA) é uma complicação comum na unidade de terapia intensiva. A urina-1 (U-1) é uma ferramenta frequentemente esquecida para avaliar IRA e, além disso, não existe um consenso baseado em evidências sobre seu uso. O objetivo do estudo foi investigar o papel da U-1 e da microscopia urinária (MU) no diagnóstico da IRA grave e a necessidade de terapia de substituição renal (TSR) em pacientes submetidos ao transplante hepático (TH).

Métodos:  Nossa hipótese foi determinar se os parâmetros urinários disponíveis, U-1 e MU, estão associados ao diagnóstico da IRA grave e à necessidade de TSR. Avaliamos U-1 e MU em 6 horas após o TH. O critério utilizado para o diagnóstico da IRA foi o Kidney Disease Improving Global Outcomes (KDIGO), baseado apenas na creatinina sérica em 1 semana.

Resultados:  Oitenta e sete pacientes desenvolveram IRA na 1ª semana após o TH. O diagnóstico de IRA grave (KDIGO 2 e 3) foi encontrado em 59 pacientes. Seis horas após o TH, as variáveis na U-1 foram preditoras de IRA grave, com área sob a curva [area under the curve (AUC)]: 0,65 para proteínas, 0,68 para leucócitos e 0,63 para eritrócitos. Na determinação de TSR, essas variáveis tiveram melhor desempenho com AUC: 0,72 para proteínas, 0,69 para leucócitos e 0,68 para eritrócitos. Os grupos não IRA e IRA apresentaram distribuição semelhante na MU.

Conclusão:  Parâmetros simples e usuais na prática clínica, como proteinúria, eritrocitúria e leucocitúria, podem ser ferramentas valiosas para o diagnóstico da IRA grave e da necessidade de TSR.

Descritores
Injúria Renal Aguda; Biomarcadores; Transplante Hepático; Diálise

ABSTRACT

Introdução:  Acute kidney injury (AKI) is a common complication in the intensive care unit. Urine-1 (U-1) is a frequently overlooked tool for assessing AKI; moreover, there is no evidence-based consensus on its use. This study aimed to investigate the role of U-1 and urinary microscopy (UM) in diagnosing severe AKI and the need for renal replacement therapy (RRT) in patients undergoing liver transplantation (LT).

Métodos:  Our hypothesis was to determine whether the urinary parameters available in U-1 and UM are associated with the diagnosis of severe AKI and the need for RRT. We evaluated U-1 and UM 6 hours after LTx. The criterion for diagnosing AKI was based on Kidney Disease Improving Global Outcomes (KDIGO) guidelines, relying solely on serum creatinine levels within one week.

Resultados:  Eighty-seven patients developed AKI in the first week after LT. The diagnosis of severe AKI (KDIGO 2 and 3) was found in 59 patients. Six hours after LT, the variables in U-1 were predictors of severe AKI, with the area under the curve (AUC) of 0.65 for proteins, 0.68 for leukocytes, and 0.63 for erythrocytes. In determining RRT, these variables performed better with AUC: 0.72 for proteins, 0.69 for leukocytes, and 0.68 for erythrocytes. The non-AKI and AKI groups showed a similar distribution in UM.

Conclusão:  Simple and commonly used parameters in clinical practice, such as proteinuria, erythrocyturia, and leukocyturia, can be valuable tools for diagnosing severe AKI and the need for RRT.

Descriptors
Acute Kidney Injury; Biomarkers; Liver Transplant; Renal dialysis

INTRODUÇÃO

A injúria renal aguda (IRA) é uma complicação comum em diversos cenários, em especial nas unidades de terapia intensiva (UTI), atingindo uma alta incidência de 50%1. A sobrevida após o diagnóstico da IRA é baixa, e a mortalidade atinge 80% nos pacientes com necessidade de terapia de substituição renal (TSR)2-5.

A etiologia da IRA no ambiente da UTI é multifatorial, portanto, avaliá-la em um ambiente heterogêneo é um desafio6. Por essa razão, muitos estudos utilizam cirurgias de grande porte para essa análise. O cenário do transplante hepático (TH) é validado para o diagnóstico de IRA devido à alta incidência no intra e pós-operatório (PO)7.

O diagnóstico da IRA é baseado no critério Kidney Disease Improving Global Outcomes (KDIGO), conforme alterações nos parâmetros da creatinina sérica (sCr) e no débito urinário (DU)8. No entanto, ambos os parâmetros atuais de diagnóstico, sCr e DU, apresentam limitações em pacientes cirróticos, devido a fatores como desnutrição, perda de massa muscular e acúmulo de fluidos. Essas limitações podem resultar na subestimação dos valores de sCr, retardando o diagnóstico adequado da condição. Além disso, o DU pode ser preservado mesmo na presença de oligúria, e o uso de diuréticos é comum nesses pacientes, o que torna o DU um parâmetro menos confiável para avaliação. É importante ressaltar que o diagnóstico não fornece informações detalhadas sobre o tipo, a intensidade e a localização da lesão renal.

Embora existam diversos biomarcadores que podem auxiliar no diagnóstico da IRA, a maioria é restrita a pesquisas e não está disponível na prática clínica, além de frequentemente ser onerosa. Portanto, explorar melhor os recursos disponíveis na prática clínica, como o exame de urina tipo I (U-1) e a microscopia urinária (MU) – testes laboratoriais utilizados na medicina há milhares de anos – parece uma abordagem promissora.

A U-1 e a MU são exames que podem fornecer informações valiosas, sendo consideradas uma “janela para o trato urinário”. Além de serem de fácil obtenção, esses exames são relativamente simples, de baixo custo e não invasivos. A U-1 geralmente inclui características físicas (volume, aspecto, cheiro, cor, densidade e pH), químicas (pesquisa de proteínas, açúcares, corpos cetônicos, bilirrubina, urobilinogênio, ureia, creatinina e ácido úrico) e exame microscópico do sedimento urinário9.

Vários estudos destacaram alterações da função renal com a doença do coronavírus 2019 (COVID-19), no sedimento urinário, proteinúria e hematúria, sugerindo a presença de um reservatório renal para o vírus. A proteinúria foi comumente observada durante a infecção por síndrome respiratória aguda grave do coronavírus 2 [severe acute respiratory syndrome coronavirus 2 (SARS-CoV-2)] e é relatada em 7 a 63% dos casos10-13. Cheng et al.11 relataram hematúria em 26,7% dos pacientes.

A hipótese do estudo é avaliar se parâmetros urinários disponíveis na U-1 e MU poderiam ser ferramentas úteis no diagnóstico da IRA grave e na necessidade de TSR em pacientes submetidos ao TH.

MÉTODOS

O Comitê de Ética da Universidade de São Paulo aprovou o estudo sob o número de protocolo CAAE: 06636513.4.0000.0068. Todas as atividades clínicas e de pesquisa relatadas são consistentes com os Princípios da Declaração de Istambul e a Declaração de Helsinque. O protocolo está registrado em Ensaios Clínicos e está disponível em https://clinicaltrials.gov pelo identificador NCT 02095431. Os pacientes foram incluídos no estudo após obtenção do Termo de Consentimento Livre e Esclarecido (TCLE), de acordo com as diretrizes do Comitê de Ética da instituição.

Pacientes

Durante 24 meses, de junho de 2013 a junho de 2015, 189 TH foram realizados; 139 destinatários eram elegíveis para o estudo e 100 foram incluídos no estudo. A Fig. 1 mostra os motivos da não inclusão. Durante esse período, todos os pacientes submetidos ao TH com mais de 18 anos foram selecionados. Os pacientes foram incluídos no estudo após a obtenção do TCLE, de acordo com as orientações do Comitê de Ética da instituição. Os critérios de exclusão incluíram o seguinte: necessidade de diálise pré-operatória, segundo transplante de fígado, transplante combinado, doença renal crônica estágio 5 ou transplante de rim anterior.

Os pacientes foram divididos em seis categorias, de acordo com a etiologia da doença hepática terminal (DHT): hepatite B ou C, cirrose, cirrose alcoólica, cirrose criptogênica, hepatite aguda e causas diversas. O grupo diverso incluiu pacientes com esteatohepatite não alcoólica, hepatite autoimune, hemocromatose, síndrome de Budd-Chiari, atresia biliar, doença de Wilson, colangite esclerosante primária, doença policística, cirrose biliar e carcinoma hepatocelular.

Registramos a função renal basal e a história de comorbidades a partir de registros médicos eletrônicos. As seguintes variáveis perioperatórias foram incluídas: características principais do paciente, acompanhamento clínico na 1ª semana após o TH, dados sobre a necessidade de TSR e desfechos.

O model for end-stage liver disease (MELD) funcional foi calculado conforme a bilirrubina sérica, razão normalizada internacional [international normalized ratio (INR)] e sCr, usando a pontuação da fórmula MELD = 0,957 × Log (creatinina mg/dL) + 0,378 × Log (bilirrubina mg/dL) + 1,120 × Log (INR ) + 0,643 × 10. O liver transplantation MELD é a soma do valor do MELD funcional com o ponto em situações especiais de prioridade de transplante14.

Amostras de urina foram coletadas 6 horas após a cirurgia. Registramos os sinais vitais, o processo de atendimento e os resultados laboratoriais diariamente por 7 dias após o TH.

Desfechos clínicos

O desfecho primário foi o desenvolvimento de IRA durante a 1ª semana de TH. A função renal basal foi definida como o valor mais baixo nos últimos 3 meses e foi utilizada para avaliar a recuperação renal. O diagnóstico de IRA foi baseado no KDIGO8. Consideramos a sCr de referência como o valor mais baixo na semana anterior ao transplante de fígado e esse valor foi utilizado para determinar o diagnóstico de IRA. O estágio de IRA foi definido de acordo com KDIGO: estágio 1 (1,5-1,9 vezes sCr de referência ou aumento ≥ 0,3 mg/dL até 48 horas), estágio 2 (2,0-2,9 vezes sCr de referência), estágio 3 (3,0 vezes sCr de referência ou aumento > 4,0 mg/dL). O grupo de IRA grave foi categorizado como KDIGO 2 ou 3.

A sCr foi medida pelo método cinético automático. A diurese foi coletada no frasco de urina com o volume mínimo ideal de 10 mL. A urina foi coletada em pacientes que tinham cateter vesical de demora e volume de diurese suficiente para realizar a análise. Toda a coleta de urina foi realizada de urina recente. O transporte foi realizado no Gelóx até o Laboratório Central, imediatamente após a coleta. Para a análise da MU, foi utilizada a técnica de microscopia óptica comum (campo claro/contraste de fase), no analisador de microscopia de campo claro da Olympus, modelo CX41. Os materiais utilizados foram tubo cônico do kit de coleta de urina, lâminas, lamínulas de vidro, ponteiras descartáveis e micropipetas automáticas de 50 µL. As leituras da MU foram cegadas para o diagnóstico de IRA. Foi utilizado o sistema de pontuação urinária por Perazella et al.15 para subsequente análise. A classificação do escore adaptada para este estudo ficou: 0 (ausente ou presença de cilindro hialino), 1 (raros cilindros granulosos) e 2 (alguns e numerosos cilindros granulares, presença de cilindros hemáticos, leucocitários ou epiteliais).

Todos os investigadores responsáveis pela microscopia e análise da U-1 estavam cegos em relação à história clínica e aos resultados dos pacientes. Para garantir a imparcialidade, utilizamos identificadores anônimos para cada paciente, o que impediu qualquer viés decorrente da identificação direta dos casos. Além disso, a análise dos dados foi realizada de forma independente, sem a participação dos pesquisadores que conduziram a coleta das informações, assegurando, assim, a manutenção do cegamento ao longo de todo o estudo.

Análise estatística

O cálculo da amostra foi realizado conforme o objetivo principal do estudo, considerando que a incidência do diagnóstico de IRA após o TH é de cerca de 70%. Com poder estatístico de 80% e erro alfa de 0,05, foi determinado que seriam necessários 101 pacientes para o estudo. As variáveis categóricas foram expressas em número (%), as variáveis contínuas foram expressas como médias e desvios-padrão, e as variáveis não paramétricas foram expressas como mediana e percentis de 25-75. A distribuição gaussiana foi determinada pelo teste de Shapiro-Wilk. Para a correlação (análise) da variável contínua com distribuição normal, utilizou-se o teste t ou teste de Pearson e, para variáveis contínuas com distribuição não normal, utilizamos o teste de Mann-Whitney (Wilcoxon rank) ou o teste de Spearman. Os dados categóricos foram comparados utilizando-se qui-quadrado ou teste exato de Fisher. Os valores de p < 0,05 foram considerados com significância estatística.

Para calcular a sensibilidade e a especificidade para as medições dos biomarcadores em valores de corte variáveis, foi gerada uma curva de característica de operação de receptor convencional [receiver operating characteristic (ROC)]; a área sob a curva [area under the curve (AUC)] foi calculada para quantificar a precisão dos biomarcadores para predição da IRA, da gravidade e da necessidade de TSR. O intervalo de confiança (IC) de 95% foi demonstrado nos resultados. As análises foram realizadas no software estatístico SPSS (Statistical Package for Social Sciences) versão 20 (Chicago, IL, USA).

RESULTADOS

Características do paciente e evolução da IRA

As características demográficas e clínicas dos pacientes são apresentadas na Tabela 1. As comorbidades mais comuns foram hipertensão e diabetes. As principais razões para disfunção hepática foram: hepatite C (46), cirrose alcoólica (13) e cirrose criptogênica (11). Oitenta e sete pacientes desenvolveram IRA na 1ª semana após o TH. A classificação segundo o KDIGO foi 0 (13), 1 (28), 2 (23) e 3 (36). O diagnóstico de IRA grave (KDIGO 2 e 3) foi encontrado em 59 pacientes. Os pacientes com IRA grave eram mais jovens e apresentavam maior MELD funcional; não houve diferenças entre os grupos na análise univariada em relação às características basais, doença hepática, doador e comorbidades. A necessidade de TSR ocorreu em 34 pacientes na 1ª semana após o TH. A mortalidade em 60 dias foi de 21% (21).

Tabela 1
Características clínicas e demográficas do grupo.

Avaliação da U-1

Seis horas após o TH, as variáveis na urina (proteínas, leucócitos e eritrócitos) foram expressas em maior número nos grupos de IRA grave e de necessidade de TSR, conforme observado na Fig. 1 e Tabela 2. A proteinúria apresentou AUC de 0,65 (IC 0,52-0,77; p = 0,04) na IRA grave e 0,72 (IC 0,60-0,85; p = 0,002) para TSR. A leucocitúria teve AUC de 0,68 (IC 0,56-0,80; p = 0,009) na IRA grave e 0,69 (IC 0,56-0,82; p = 0,009) para TSR. A presença de eritrócitos na urina demonstrou, respectivamente na IRA grave e necessidade de TSR, AUC de 0,63 (IC 0,50-0,76; p = 0,05) e AUC de 0,68 (IC 0,56-0,81; p = 0,01) (Fig. 2).

Figura 1
Diagrama de caixa de algumas variáveis na urina: densidade, eritrócitos, leucócitos e proteínas entre os grupos de IRA grave 6 horas após a cirurgia.
Figura 2
Curva ROC AUC para IRA grave à direita e para necessidade de TSR à esquerda.
Tabela 2
Variáveis da U-1 com distribuição paramétrica, expressas em média e DP 6 horas após o TH.

Na avaliação das variáveis categóricas, como pigmentos biliares, corpos cetônicos, células epiteliais, cilindros granulares e cristais, observou-se uma proporção maior em poucos e principalmente numerosos no grupo com IRA grave. No entanto, não houve diferença estatística significativa entre os grupos de IRA grave, conforme a Tabela 3, assim como para necessidade de TSR. Os cristais urinários demonstraram tendência com p = 0,06, mas, na avaliação da AUC, apresentaram 0,60 (IC 0,48-0,74; p = 0,12).

Tabela 3
Variáveis categóricas da U-1 expressas em número absoluto e porcentagem 6 horas após o TH.

DISCUSSÃO

A U-1 é uma ferramenta frequentemente esquecida na avaliação da IRA. Além disso, não existe consenso baseado em evidências sobre seu uso, e os poucos estudos publicados concentram-se na análise do sedimento urinário e na infecção do trato urinário15-16. Este artigo revela uma predição do diagnóstico de IRA grave, por meio da U-1, com ênfase na proteinúria, leucocitúria e eritrocitúria.

O diagnóstico de IRA em pacientes cirróticos é particularmente desafiador devido a fatores como alterações no estado volêmico, desnutrição e o uso de diuréticos, que podem influenciar os níveis de sCr. Embora diversos biomarcadores tenham sido investigados para auxiliar nesse diagnóstico, sua aplicação na prática clínica ainda é limitada. Portanto, os achados relacionados aos parâmetros da U-1 merecem uma exploração mais aprofundada.

Estudos recentes17-19 conduzidos em vigência da disfunção renal associada ao SARS-CoV-2 revelaram achados como proteinúria e hematúria. Além da glomerulopatia, ambas foram associadas ao aumento da mortalidade hospitalar11. Na fisiopatologia do SARS-CoV-2, sabemos que há um aumento da ativação da angiotensina II, levando à endocitose de nefrina, aumentando a permeabilidade glomerular e, consequentemente, aumentando a perda de proteína20.

Nosso estudo revelou a presença de proteinúria maior em pacientes com IRA grave, de 0,44 (DP 0,40) versus 0,23 (DP 0,27) sem IRA grave (p = 0,03), com AUC de 0,65 (IC 0,52-0,77). Também houve maior expressão de proteinúria em pacientes com necessidade de TSR: 0,57 (DP 0,49) versus 0,24 (DP 0,30) sem necessidade de TSR (p < 0,001), com AUC de 0,72 (IC 0,60-0,85). Reconhecemos que a AUC obtida em nosso estudo indica uma precisão preditiva moderada. É fundamental que essa medida seja considerada em conjunto com o contexto clínico da IRA. Essa abordagem integrativa permitirá uma interpretação mais robusta dos resultados e sua aplicação na prática clínica.

Em uma coorte prospectiva incluindo 701 pacientes com COVID-19, o segundo achado mais frequente depois da proteinúria (presente em 43,9%) foi a hematúria, observada em 26,7% dos pacientes11. O mesmo estudo reportou que ambos os parâmetros foram preditores independentes de mortalidade: odds ratio (OR) para IRA grave de 1,80 (0,81-4,00) para proteinúria 1; 4,84 (2,00-11,70) para proteinúria 2 +∼ 3; hematúria 1 + com OR de 2,99 (1,39-6,42); 5,56 (2,58-12,01) para hematúria 2 +∼ 311. Como reportado, a hematúria foi associada à IRA grave e à necessidade de TSR neste artigo.

A hematúria é um achado comum em várias glomerulopatias (doença glomerular), sendo mais frequente na nefropatia por IgA, síndrome de Alport e doença da membrana basal fina. Cerca de 25% dos pacientes com IRA associada à hematúria macroscópica não recuperam a função renal basal21. Nesse contexto patológico, a hemoglobina, o heme ou o ferro liberados dos glóbulos vermelhos no espaço urinário podem causar lesão celular tubular direta, estresse oxidativo, produção de citocinas pró-inflamatórias e recrutamento subsequente de monócitos/macrófagos22. Este ciclo nos deixa em dúvida se a hematúria é uma causa ou consequência da inflamação renal; de qualquer forma, os resultados não são favoráveis. Na presença de eritrócitos na urina, nosso estudo demonstrou, respectivamente, AUC de 0,63 (IC 0,50-0,76; p = 0,05) e AUC de 0,68 (IC 0,56-0,81; p = 0,01) na IRA grave e na necessidade de TSR.

Nosso estudo em pacientes submetidos ao TH revelou a presença de leucocitúria. No estudo de Gala et al.23, a leucocitúria estava presente em 15 (IC 9-23) dos pacientes.

A nefrite intersticial aguda representa 10 a 30% de todos os casos de lesão renal aguda comprovada por biópsia24. Sabemos que a biópsia é um procedimento invasivo que não está sempre disponível e demanda riscos ao paciente. Portanto, um marcador substituto poderia informar esse estado de inflamação de forma não invasiva seria o ideal. A leucocitúria pode ser encontrada no estado inflamatório no tecido epitelial tubular quando é infiltrado por leucócitos e monócitos, iniciando um processo de reparação que pode progredir para fibrose25,26.

Estudos prévios demonstraram que a presença de cilindros epiteliais renais pode ser útil no diagnóstico diferencial da IRA, de transitória para persistente27-31. Em 2009, Perazella et al.15 propuseram uma escala de sedimento urinário para avaliar o diagnóstico diferencial de IRA. Nosso estudo utilizou essa classificação. Apesar de os cilindros estádio 2 serem mais frequentes nos pacientes com IRA grave, não alcançaram diferenças significativas.

No cenário da sepse32, estudo utilizando parâmetros U-1 e MU demonstrou que a MU foi mais útil, pois é menos afetada por estado de hidratação e medicamentos. Entretanto, resultados promissores com a U-1 foram encontrados 6 horas após o TH neste estudo, em um período no qual a sobrecarga volêmica é alta. A utilização de drogas imunossupressoras com nefrotoxicidade, como inibidores da calcineurina, também já foi registrada nesse período.

Este estudo apresenta pontos fortes. Embora não tenha sido multicêntrico, inclui a maior coorte de pacientes com TH publicada na literatura. A análise prospectiva permitiu a coleta consistente dos dados, e o diagnóstico de IRA foi realizado em um período de 7 dias, enquanto a maioria dos estudos limita essa avaliação a 48 horas. Essa abordagem ao longo de 1 semana proporciona uma visão mais realista do diagnóstico de IRA e reduz a probabilidade de um diagnóstico subclínico.

Entretanto, este estudo também tem limitações. Similar a outras investigações33,34, nosso grupo incluiu casos graves de IRA, o que limita a avaliação da capacidade dos biomarcadores nos estágios iniciais da doença. A falta de um desenho multicêntrico ressalta a necessidade de validação em diferentes contextos clínicos. Para estudos futuros, sugerimos a inclusão de outros biomarcadores que possam complementar os preditores urinários, bem como a realização de períodos de coleta mais extensos. É importante explorar etapas de implementação dos achados, como a convocação de nefrologistas para avaliação precoce e a consideração de intervenções, como o início da TSR ou ajustes no regime de imunossupressão. Essas abordagens podem proporcionar uma avaliação mais abrangente e precisa da IRA.

CONCLUSÃO

A utilização dos parâmetros urinários obtidos por meio do exame de U-1 revelou uma associação significativa entre IRA grave e a necessidade de TSR com os parâmetros da proteinúria, eritrocitúria e leucocitúria coletados após o TH. Em contrapartida, os dados da MU não demonstraram utilidade para a identificação de IRA grave e TSR. Portanto, recomendamos a inclusão da coleta de U-1 nos protocolos padrão de monitoramento para pacientes submetidos ao TH que estejam em risco de desenvolver IRA.

AGRADECIMENTOS

Não se aplica.

  • FINANCIAMENTO
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Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    03 Fev 2025
  • Data do Fascículo
    2025

Histórico

  • Recebido
    04 Out 2024
  • Aceito
    11 Dez 2024
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