Open-access A história como forma de compreender as dificuldades de aprendizagem em matemática

History as a way of understanding and justifying learning difficulties in mathematics

Resumo

A matemática escolar é normalmente associada a um conjunto de procedimentos formais que tem relação com o raciocínio dedutivo, a linguagem algébrica e a abstração. Não negamos a importância destes para o desenvolvimento matemático, porém, são estes mesmos elementos que podem gerar dificuldades de aprendizagem em matemática, já que, em muitas situações, os estudantes não compreendem os sentidos dos conceitos que estão aprendendo. A história nos mostra que muitos conceitos matemáticos surgiram de situações vividas e necessidades vivenciadas por distintas culturas ao longo do tempo. Contudo, a história é apresentada a partir de um olhar colonial e, por isso, tem contribuído para manter uma forma muito específica de se ensinar esta disciplina, colaborando para tornar a matemática distante e pouco significativa para os estudantes. Discutimos como a história da matemática tem reconfigurado e apagado distintas formas de saberes e fazeres - aqui exemplificadas através do mito do surgimento da matemática na Grécia antiga e do pensamento numérico dos palicures - construindo uma ideia de universalidade e a impossibilidade de aceitação de outros conhecimentos fora do cânone. Para este debate, mobilizamos conceitos como helenofilia, helenomania, colonialismo, colonialidade, decolonialidade, monoculturas da mente, educação problematizadora e pedagogia decolonial. O intuito deste artigo é trazer uma reflexão de como a história da matemática tem sido apresentada e, por isso, contribuído para manter uma forma muito específica de se ensinar esta disciplina, colaborando para tornar a matemática distante e pouco significativa para os estudantes.

Helenomania; Decolonialidade; Monoculturas da Mente; Educação Problematizadora; Pedagogia Decolonial

Abstract

School mathematics is usually associated with a set of formal procedures related to deductive reasoning, algebraic language, and abstraction. We do not deny the importance these characteristics have for mathematical development. However, they are the same elements that can generate learning difficulties in mathematics since, in many situations, students do not understand the meanings of the concepts they are learning. History shows us that many mathematical concepts emerged from situations and needs experienced by different cultures over time. However, history is presented from a colonial point of view and, therefore, has contributed to maintaining a very specific way of teaching this discipline, collaborating to make mathematics distant and of little significance for students. We discuss how the history of mathematics has reconfigured and erased different ways of knowing and doing - here exemplified through the myth of the emergence of mathematics in ancient Greece and the numerical thinking of the palicures - building an idea of universality and the impossibility of accepting other types of knowledge outside the canon. For this debate, we mobilize concepts such as hellenophilia, hellenomania, colonialism, coloniality, decoloniality, monocultures of the mind, problem-posing education, and decolonial pedagogy. The purpose of this article is to reflect on how the history of mathematics has been presented and, therefore, contributed to maintaining a particular way of teaching this subject, helping to make mathematics distant and of little significance to students.

Hellenomania; Decoloniality; Monocultures of the Mind; Problem-posing Education; Decolonial Pedagogy

1 Introdução

Quando, em uma conversa, mencionamos a palavra matemática, boa parte da sociedade demonstra certo incômodo, o que reflete, pelo menos em parte, as dificuldades enfrentadas para compreender seus conceitos e para relacionar suas ideias com fenômenos e acontecimentos do nosso cotidiano ( Oliveira, 2020 ; Paulos, 1990 ).

Boaler (2018 , p. xv) afirma que a “[...] crença - de que a matemática é um “dom” que algumas pessoas têm e outras não - é responsável por grande parte do generalizado fracasso em matemática no mundo”. Explorar as causas desse “fracasso” não é tarefa simples, pois envolve uma série de fatores internos à matemática - como, por exemplo, o raciocínio dedutivo, a linguagem algébrica e a abstração ( Gómez-Granell, 1997 ) - e externos - como as concepções estereotipadas acerca dessa disciplina, documentos curriculares, aspectos afetivo/emocionais dos estudantes, formação de professores e infraestrutura escolar.

Neste texto, buscamos questionar a forma como a história da matemática é contada, sob uma ótica eurocêntrica, e os impactos de seus apagamentos na aprendizagem da matemática. Neste sentido, corroboramos com Tamayo-Osorio (2017) , quando afirma que é necessário

[...] questionar essa naturalização e neutralidade da Matemática ao inverter e deslocar as ordens dessas imagens que nos aprisionam, que tem-se perpetuado com a colonialidade do saber , provocando uma fragmentação dos conhecimentos, ao mesmo tempo, que se legitima uma dominação epistêmica, que, se organiza na base da hegemonia da concepção de conhecimento Matemático eurocêntrico. Tal concepção moderna de conhecimento Matemático, não só, se perpetua como efeito da escolarização, mas ao mesmo tempo, inspira a organização curricular e a própria escola ( Tamayo-Osorio, 2017 , p. 41, grifos da autora).

Neste artigo, em primeiro lugar, discute-se a ideia de “mito” do surgimento dessa área de conhecimento na antiga Grécia ( Høyrup, 1996 ; Roque, 2012 ) e alguns apontamentos relacionados ao desenvolvimento da matemática entre os séculos IX e XIV no Magrebe – região noroeste da África que inclui os atuais Marrocos, Argélia, Tunísia, Mauritânia, Líbia e Saara Ocidental ( Djebbar, 1995 ). Estes aspectos trazem à tona como foi desenvolvida a ideia de uma matemática única , centrada no método axiomático euclidiano, mas que silenciou um conjunto de estudos desenvolvidos pelos povos muçulmanos e que levavam em consideração saberes provenientes de atividades práticas e cotidianas. Os conceitos de helenofilia e helenomania (Harloe; Momigliano, 2018; Pingree, 1992 ) serão abordados como forma de debater mais profundamente o fenômeno apresentado. Como pretendemos mostrar, a crença que destaca os gregos na produção matemática é a mesma que desvaloriza contribuições de povos originários de outras regiões.

Percebe-se que, devido a influências socioculturais, a dita matemática eurocêntrica ocupou (e ainda ocupa) um lugar de centralidade no ambiente acadêmico e nas escolas. Esse pensamento monocultural já enraizado acaba por silenciar diferentes formas de se pensar matematicamente sobre o mundo, inclusive, como será elucidado, aquelas que os estudantes trazem de suas vidas e de seus antepassados. Como exemplo, apresentamos um dos diversos conhecimentos matemáticos de povos originários sul-americanos que, na maioria das vezes, não são considerados parte da matemática, já que não atende aos requisitos formais daquela matemática única . O ponto apresentado trata do conhecimento numérico dos palicures, indígenas que vivem na região do Rio Oiapoque no estado do Amapá e na Guiana Francesa ( Aikhenvald; Green, 1998 ; Green, 2001 ; Passes, 2006 ).

Para aprofundar a discussão, serão explorados os conceitos de colonialismo, colonialidade ( Restrepo; Rojas, 2010 ; Walsh, 2012 ) e monoculturas da mente ( Shiva, 2003 ), ideias que demonstram os impactos dos silenciamentos causados pelo pensamento monocultural como forma de domínio do conhecimento eurocentrado.

Por fim, discutimos algumas possibilidades didáticas relativas ao ensino de matemática, valorizando um processo educacional decolonial na medida em que se revisita a história eurocentrada e possibilita reflexões matemáticas diversificadas sobre o mundo ao nosso redor. Apresentamos ideias que fomentam a diversidade sociocultural como possibilidade para auxiliar no processo de desmistificação de um conhecimento matemático universal e que geram mais significado para o que os estudantes aprendem na escola. Para isso, mobilizamos autores como Candau (2017) , D’Ambrosio (2002), Freire (1974) , Walsh (2017) e Walsh, Oliveira e Candau (2018).

De forma sucinta, este artigo tem como objetivo trazer uma reflexão de como a história da matemática tem sido apresentada e, por isso, contribuído para manter uma forma muito específica de se ensinar esta disciplina, colaborando para tornar a matemática distante e pouco significativa para os estudantes. Consideramos que a matemática que vemos na escola é somente uma das formas de pensar matematicamente sobre o mundo. Defende-se aqui que valorizar a diversidade de conhecimentos matemáticos sempre presente na sociedade de forma diversa é uma forma de propiciar uma formação crítica dos nossos estudantes na medida em que ela traz sentido para os conceitos que estão sendo ensinados.

Neste artigo, a valorização da diversidade de conhecimentos matemáticos parte do princípio que há “distintas maneiras de fazer [práticas] e de saber [teorias], que caracterizam uma cultura” (D’Ambrosio, 2002, p. 17, colchetes do autor) e estas fazem parte de seus conhecimentos compartilhados e comportamentos compatibilizados. Alguns destes saberes e fazeres “privilegiam comparar, classificar, quantificar, medir, explicar, generalizar, inferir e, de algum modo, avaliar. Falamos então de um saber/fazer matemático na busca de explicações e de maneiras de lidar com o ambiente imediato e remoto” (D’Ambrosio, 2002, p. 22). Esses saberes e fazeres são contextualizados, respondem a fatores naturais e sociais produzidos no cotidiano de cada cultura. Desta forma, ao mencionarmos os termos saberes e fazeres, estamos nos referindo às ideias acima.

2 Saberes e fazeres matemáticos roubados: a supremacia da matemática grega e o apagamento da matemática islâmica

Parece haver, no senso comum, uma ideia cristalizada de que fora na Grécia Antiga onde todas os conhecimentos importantes desenvolvidos pela humanidade tiveram início. Desde configurações políticas até metodologias científicas, muitos aspectos da vida contemporânea parecem carregar heranças gregas diretas, apesar da ausência de evidências que confirmem isto (Harloe; Momigliano, 2018; Lima, 2019 ; Pingree, 1992 ; Høyrup, 1996 ).

Segundo Pingree (1992) , mesmo no campo acadêmico, espaço para refutação e crítica desta ideia, é possível encontrar produções que reforçam a pretensa grandeza do papel grego como berço do conhecimento. Em diversos compêndios acerca da história da matemática ( Boyer, 1974 ; Eves, 2011 ), nota-se uma maior atenção às produções gregas, seguidas das mesopotâmicas e egípcias, ignorando quase que por completo outros povos que certamente produziram conteúdos relacionados a matemática durante o mesmo período.

James (1988) aponta um exemplo desse silenciamento através de um conteúdo matemático bastante conhecido entre nós. Segundo o autor,

[...] a desonestidade no movimento de publicação de uma filosofia grega torna-se muito flagrante quando nos referimos, propositalmente, ao fato de chamar o teorema do Quadrado da Hipotenusa, o teorema de Pitágoras. Isso ocultou durante séculos a verdade do mundo, que deveria saber que os egípcios ensinaram Pitágoras e os gregos, a matemática que eles sabiam ( James, 1988 , p. 15, tradução nossa).

Para além do fato de que Pitágoras sequer existiu ( Roque, 2012 ), na verdade, a fórmula bastante conhecida hoje só foi desenvolvida muitos séculos depois, já que o simbolismo algébrico ainda não existia. Contudo, não podemos negar que diversos povos possuíam aplicações de conhecimentos que se assemelham a tal teorema, mesmo antes dos gregos.

Diante deste movimento de apagamento histórico de conhecimentos produzidos por inúmeros povos, acompanhado da posição de protagonismo, na narrativa predominante, ocupada pelos gregos antigos, sobretudo na que remonta a trajetória matemática, passamos a buscar evidências de como esse discurso de supervalorização teria surgido, além de elucidar como essa versão idealizada e anacrônica da história prejudica o reconhecimento da vasta produção matemática de autoria dos povos que não fazem parte deste cânone.

Quanto mais voltamos no tempo buscando compreender a história da matemática, mais complexo se torna realizar tais pesquisas justamente pela dificuldade de encontrar e de interpretar as poucas fontes existentes, já que muito do que conhecemos está atrelado ao desenvolvimento da escrita na Antiguidade ( Roque, 2012 ).

É nesse período que algumas civilizações se consolidaram, como os povos que se estabeleceram entre os rios Tigre e Eufrates, denominados mesopotâmicos, além dos egípcios e gregos, que habitavam regiões próximas. Contudo, provavelmente a produção de conhecimento desses povos se constituiu através de múltiplas trocas, dada a proximidade de seus territórios e as relações de dominação, disputa e colaboração estabelecidas ali. Todavia, egípcios e mesopotâmicos não recebem a mesma atenção dada aos vizinhos gregos nas obras de história da matemática - ou até mesmo no imaginário social, que constrói ideias sobre a produção de conhecimentos científicos em geral. Como pretendemos mostrar, a crença que destaca os gregos na produção matemática é a mesma que desvaloriza contribuições de povos originários de outras regiões.

Esse processo recebe diferentes nomes, como helenofilia e helenomania, a depender da reflexão teórica elaborada. Pingree (1992 , p. 555, tradução nossa) descreve o fenômeno como “[...] um excesso bárbaro que irrompe como uma doença de alma apaixonada e não de alma racional [...]”. Ao carregar o sufixo filia , o termo helenofilia remete-se a uma espécie de obsessão doentia pelos gregos. Os nomes adotados denunciam a incoerência que a idealização de uma superioridade da Grécia Antiga carrega, sendo fundamentada irracionalmente a partir de inúmeros equívocos, sem elementos históricos e materiais que justifiquem o papel de protagonismo exercido pelos gregos antigos na narrativa histórica, se sobrepondo a outros povos. Contudo, é importante ressaltar que a formação dessa ideia não foi iniciada pelos próprios gregos ou sequer na Antiguidade, mas mais recentemente.

Segundo Høyrup (1996) , as inconsistências geradoras desses apagamentos têm seu princípio na Baixa Idade Média, através de inúmeros personagens e obras matemáticas. Foi sob estas condições que Isidoro de Sevilha (560-636) contribuiu para a difusão da matemática como ferramenta importante para a compreensão e leitura do mundo a partir da perspectiva religiosa e, portanto, de interesse dos cristãos. Com isso, mesmo não tendo produzido conhecimentos que denominamos atualmente de matemática, “essa mensagem foi amplamente citada por estudiosos matematicamente interessados durante a Alta e Baixa Idade Média” ( Høyrup, 1996 , p. 104, tradução nossa), abrindo portas para que o conhecimento matemático pudesse encontrar continuidade através de estudiosos como Platão Tiburtinus (1110-1145), Domingo Gundissalvo (1115-1190) e Leonardo Fibonacci (1170-1250). Em parte, o trabalho desses autores estava relacionado a traduzir e compreender produções exportadas da Antiguidade grega, as quais tinham sido já traduzidas, comentadas e complementadas por matemáticos muçulmanos, isso porque os conhecimentos gregos não foram transferidos da Antiguidade para a Idade Média europeia através de um caminho direto e linear. Inúmeros processos de disputa, dominação e colaboração entre diferentes povos ocorreram antes que tais heranças gregas chegassem à Europa, dentre os quais destacam-se os processos de ascensão e expansão do Império Bizantino e do Império Otomano. Contudo, os muçulmanos também ascenderam e ocuparam grandes áreas do Oriente Médio, norte da África e regiões do sul da Europa. Seus califados tiveram grande importância, não somente política, mas também científica. Seus matemáticos foram relevantes agentes no processo de produção de conhecimentos nesta área do saber, assim como conservaram e modificaram importantes obras gregas, o que as tornou conhecimento de autoria islâmica ( Djebbar, 1995 ; Høyrup, 1996 ).

Paralelamente a essa forma de difamação cultural, praticada pela própria cultura ou por historiadores da ciência, está, digamos, a falsa afirmação de que o Islã medieval apenas preservou a ciência grega e a transmitiu como os muçulmanos a receberam para o ansioso Ocidente. De fato, cientistas árabes, valendo-se de fontes indianas, iranianas e sírias, bem como de seu próprio gênio, revisaram as ciências gregas, transformando-as nas ciências islâmicas que, historicamente, serviram de base principal para a pouca ciência que havia na Europa Ocidental nos séculos XII e seguintes e pelos espantosos desenvolvimentos ocorridos três e quatro séculos depois na Itália e na Europa Central ( Pingree, 1992 , p. 555, tradução nossa).

Todavia, as ricas contribuições islâmicas não recebem valorização aproximada a que a grega recebe no imaginário social. Segundo Høyrup (1996) , uma conexão direta entre os gregos Antigos e a Europa Ocidental foi forjada através de um mito que sustenta a história da matemática europeia, tida como a matemática universal .

De acordo com a sabedoria convencional, a matemática europeia (ou, na versão “forte”, simplesmente matemática) originou-se entre os gregos entre as épocas de Tales e de Euclides, foi emprestada e bem preservada pelos árabes no início da Idade Média e trazida de volta à sua autêntica terra natal pelos europeus nos séculos XII e XIII (ou, alternativamente, ficou adormecida em Bizâncio e foi trazida para a Itália por estudiosos em fuga na queda desta cidade). Desde então, segue sua carreira triunfantemente ( Høyrup, 1996 , p. 103, tradução nossa).

Embora nomes como Al-Farabi (872-950) e Al-Khwarizmi (780-850) sejam mencionados na historiografia tradicional, as contribuições islâmicas foram silenciadas durante a Alta Idade Média, quando muitos estudiosos europeus fizeram uso direto de obras e traduções árabes. Havia neste período forte debate sobre práticas pagãs, de maneira que se basear em fontes de conhecimentos árabes era altamente condenável. A tentativa de produzir uma matemática que fosse aceita pelos padrões europeus gerou um movimento de falsificação histórica ( Høyrup, 1996 ).

A participação islâmica na matemática desenvolvida nesse contexto não foi só omitida, mas também, em nossos termos, plagiada desonestamente, tendo conteúdos creditados a nomes que sequer produziram matemática, mas que possuíam credibilidade cristã, como Isidoro de Sevilha. Jordanus de Nemore (1225-1260) é citado por Høyrup (1996) como exemplo desta prática, demonstrando semelhanças entre seus trabalhos e produções muçulmanas de períodos anteriores.

A introdução das frações [com denominadores] diferentes equivale a uma genuína naturalização das frações contínuas ascendentes que foram amplamente utilizadas na matemática islâmica. Essa raiz do conceito, no entanto, está completamente camuflada: como única justificativa, Jordanus oferece uma extensa gama de exemplos referentes à metrologia latina conhecida por Isidoro [de Sevilha] (que é mencionado explicitamente), Rabanus Maurus e outras fontes tradicionais. Nenhum deles, deve-se observar, jamais discutiu as sequências metrológicas em termos de frações compostas. Mais uma vez, Jordanus aprecia a superioridade do conhecimento matemático dos muçulmanos e silenciosamente reconhece sua utilidade enquanto nega sua legitimidade. O que resulta de seu ato de naturalização é uma falsificação implícita da história que faz (seu tipo de) matemática latino-europeia uma continuação direta da matemática Antiga ( Høyrup, 1996 , p. 108, tradução nossa).

Esta prática foi uma das principais contribuintes para o processo que forja uma herança grega dada diretamente a Europa, não só excluindo outros povos que participaram da construção de conhecimentos fundamentais, como também usurpando produções fortemente difundidas e necessárias para o desenvolvimento científico atual.

A ponte entre a Europa e o passado grego talvez tenha surgido de forma pouco intencional, uma vez que o objetivo dos estudiosos no contexto medieval era apagar traços considerados pagãos, e não necessariamente valorizar forçosamente a conexão estabelecida com a Antiguidade. Por outro lado, na transição da Idade Média para a Modernidade, quando a corrente humanista passou a desafiar o poder da Igreja se opondo aos valores teocêntricos, a construção de uma herança direta entre a Grécia clássica e a Europa tornou-se o objetivo final, acentuando apagamentos de todos os elementos que se interpunham a esta idealização. “A ideia de que (algum tipo de) Europa tinha direitos especiais de herança em relação ao pensamento Antigo originou-se com os humanistas italianos” ( Høyrup, 1996 , p. 110, tradução nossa).

Regiomontanus (1436-1476) é citado por Høyrup (1996) como uma das principais figuras neste processo, dando crédito aos árabes, egípcios e babilônios apenas quando lhe convinha, mantendo a incoerente prática de negar a autoria muçulmana na composição de conteúdos matemáticos fundamentais, mesmo quando apresentam traços inegáveis deste fato, como no caso da álgebra - conteúdo amplamente explorado naquele período e nomeado a partir da língua árabe. “Há, portanto, uma tendência no texto de Regiomontanus de considerar justamente a matemática propriamente dita como um campo cultivado adequadamente apenas por gregos e latinos” ( Høyrup, 1996 , p. 111, tradução nossa). Para o autor, esta incoerência foi mantida por Regiomontanus como estratégia política, fazendo com que essa promoção da matemática pudesse ser viabilizada seguindo os valores sustentados pela elite da renascença.

Essa imagem da matemática discorda muito do conhecimento real de Regiomontanus para ter sido derivada empiricamente. Em primeiro lugar, antes de reconhecer a álgebra em Diofanto, ele deve ter conhecido não apenas o nome, mas a substância da álgebra árabe. Em segundo lugar, a atribuição de algorismo a um autor árabe com esse nome era tão familiar quanto a ideia de que os próprios numerais vieram dos indianos. Em terceiro lugar, Regiomontanus sabia perfeitamente estimar Jabir não apenas como um astrônomo e um retificador de Ptolomeu, mas também como um contribuinte para o campo das esféricas (que ele contava como geometria, cf. as referências a Menelau e Teodósio), uma vez que ele tomou emprestado dele livremente para seu próprio De triangulis . Ver a matemática propriamente dita como um negócio puramente greco-latino, mas a astronomia como greco-árabe-latina deve ter envolvido uma quantidade apreciável de ideias preconcebidas e pensamento duplo por parte do primeiro matemático realmente significativo afiliado à corrente humanista ( Høyrup, 1996 , p. 111-112, tradução nossa).

Outro matemático, Girolamo Cardano (1501-1576), reconheceu, ainda naquele período, a narrativa inconsistente que estava em construção.

Por duas razões, uma mente aberta e informada como a de Cardano era incapaz de perceber uma matemática (greco-)europeia específica em 1550. Em primeiro lugar: fora da Itália e da área alemã (incluindo a Holanda de Gemma Frisius), a matemática poderia, com algum direito, ser considerada uma disciplina morta há quase 200 anos. Apenas o Whetstone of Witte de Recorde (1557), o Livro de Algebra de [Pedro] Nunes (1567), o trabalho de Dee e Foix de Candale sobre os Elementos , incluindo o Praeface do primeiro (1570) e os livros suplementares estereométricos do último (1566/1578) inauguram uma era em que a matemática não era mais notavelmente menos comum na Europa do que a cultura humanista ou a cultura acadêmica em geral. Em segundo lugar: vários campos, principalmente a álgebra, mas também a ótica e a astronomia, ainda estavam tão próximos de conhecidos ancestrais islâmicos, tanto em seu estilo quanto no que eles realmente sabiam e eram capazes de realizar, que apenas os desonestos ou ignorantes poderiam ignorar esse fato ( Høyrup, 1996 , p. 113, tradução e colchetes nossos).

Enquanto essas figuras incitaram um pequeno debate sobre as pressupostas heranças europeias vindas diretamente da Grécia Antiga, outras se aproveitaram dessa expectativa popular para dar continuidade na tomada de influência na matemática. Høyrup (1996) denuncia que Petrus Ramus (1515-1572) ajudou a efetivar diretamente o mito em questão com o incentivo e financiamento da elite, referenciando gregos como precursores da geometria e aritmética, temas de origem egípcia e fenícia, respectivamente.

Desonesto e ignorante, Petrus Ramus tinha exatamente o suficiente de ambos, e bastante pregador para fazer a ignorância e a desonestidade servirem a seu propósito. Ele foi, assim, capaz de formular o mito da matemática greco-europeia de forma conclusiva em um momento em que ainda estava em visível desacordo com os fatos contemporâneos.

Em 1569, ele publicou sua Scholae mathematicae . Os três primeiros livros são dedicados a Catharina de Médici e pretendem persuadi-la a promover as profissões matemáticas de uma forma que todos teriam achado escandalosamente pródiga até o choque do Sputnik. Já a primeira página da carta dedicatória se refere duas vezes à Europa como uma totalidade coerente. No final, diz que a França, realmente, será a primeira, mas a Europa como um todo a beneficiária final do grandioso programa ( Høyrup, 1996 , p. 12, tradução nossa).

A reivindicação europeia sobre uma exclusiva ancestralidade grega se mostra um processo idealizado pela elite e forjado por estudiosos que, convenientemente fraudaram de inúmeras formas a história. Este processo de tornar realidade o sonho da elite europeia, primeiro formada pelo Clero e posteriormente por mecenas, ultrapassa o campo matemático e científico, o que contribui para sua persistência e intensidade no imaginário social, alimentando o enaltecimento da Grécia Antiga, apesar da ausência de evidências que justifiquem essa fixação.

Harloe e Momigliano (2018) confirmam as inconsistências desta exaltação em outros campos, além de trazer à tona prejuízos sociais causados por ela. As autoras apontam que a Grécia Antiga idealizada se trata de uma fantasia da Europa, constituída a partir da tentativa de inventar para si uma história pura, elevada e nostálgica. Os ideais ocidentais e cristãos da Europa se apossaram dessa narrativa que coloca os gregos clássicos como personagens centrais. A intensidade deste processo é enorme, fazendo com que os próprios gregos contemporâneos se vejam presos em um estereótipo que não lhes cabe. “[...] os ideais ocidentais da Antiguidade grega ‘clássica’ acarretavam a difamação, de maneiras mais ou menos sutis, dos gregos modernos como inferiores a seus ancestrais clássicos” (Harloe; Momigliano, 2018, p. 4, tradução nossa).

Essa estória , que busca conferir à Europa uma identidade de pureza e soberania, é causadora de uma série de anacronismos e equívocos históricos. Se inicialmente as evidências eram fraudadas, buscando corresponder a fixação explícita pelos gregos Antigos, atualmente, com o fenômeno já consolidado, a helenofilia opera de modo mais sutil. Pingree (1992) mapeia as consequências dessa obsessão, que parece gerar uma espécie de miopia social, mantendo como verdade uma história baseada em proposições falsas. As falácias geradas e sustentadas a partir da helenofilia seriam as seguintes:

A primeira delas é que os gregos inventaram a ciência; a segunda é que eles descobriram um caminho para a verdade, o método científico, que agora estamos seguindo com sucesso; a terceira é que as únicas ciências reais são aquelas que começaram na Grécia; e a quarta (e última?) é que a verdadeira definição de ciência é exatamente aquilo que os cientistas estão fazendo agora, seguindo um método ou métodos esboçados pelos gregos, mas nunca totalmente compreendidos ou utilizados por eles ( Pingree, 1992 , p. 555, tradução nossa).

Para o autor ( Pingree, 1992 ), o arranjo formado por estas falsas verdades gera uma série de consequências para todos os povos do globo, nos mais diversos períodos históricos, uma vez que a visão ocidental cumpre papel exclusivo como versão oficial da história. Durante e após o processo de colonialismo, a narrativa que concebeu a helenofilia, idealizada por e para a Europa, se perpetuou como universal.

É através dos anacronismos difundidos e persistentes atualmente, mesmo dispondo de evidências conflitantes, que este fenômeno se mantém. Sendo os números concebidos como uma linguagem, a tradução matemática das produções de outros períodos históricos com base nos conceitos matemáticos atuais é feita através de suposições por vezes arriscadas, uma vez que os registros matemáticos não costumam vir acompanhados das motivações sociais que impulsionaram seu desenvolvimento. A partir de definições contemporâneas, investigadores recorrem a vestígios históricos limitados e acabam por “enxergar” apenas o que querem ver na tentativa de reafirmar ideais preestabelecidos. “[...] surge apenas da atitude helenófila de que o que vale no passado é o que temos no presente” ( Pingree, 1992 , p. 562, tradução nossa).

Ao agir dessa forma, historiadores da matemática ignoram os fatores sociais, políticos e econômicos que compõem as possibilidades de produção de conhecimento, se negando a analisar de forma unificada elementos inseparáveis, resultando em uma história incompleta e carregada de pressupostos equivocados. A busca por compreender feitos matemáticos do passado, estabelecendo conexões com a realidade contemporânea sem a tentativa de compreender os processos sociais que moldaram a produção de conhecimento, permite que o mito europeu permaneça no trono da verdade.

Pingree (1992) afirma que é necessário que o pesquisador esteja disposto a renunciar a padrões contemporâneos e partir para buscas, aberto a várias possibilidades de se produzir ciência, a depender dos inúmeros arranjos culturais. Para ele, ciência é todo conjunto de argumentos que visa explicar um fenômeno, o que possibilita diversas formas de produção epistêmica sobre o mesmo objeto de estudo, chegando inclusive a resultados próximos mesmo traçando trajetórias diferentes.

Até agora tenho tentado desacreditar a helenofilia com base no fato de que ela torna os afetados por ela incapazes de imaginar muitas questões significativas que legitimamente deveriam ser abordadas pelos historiadores da ciência e que isso perverte seu julgamento. Muito do meu argumento tem sido baseado na percepção antropológica de que a ciência não é a apreensão de um conjunto externo de verdades das quais a humanidade está progressivamente adquirindo um maior conhecimento, mas sim que as ciências são produtos da cultura humana. Mas esse ponto de vista deve ser modificado por uma consideração ulterior, à qual aludi de tempos em tempos, pois fortalece os argumentos em favor da definição de ciência que propus. Essa consideração é que, como um simples fato histórico, as ideias científicas foram transmitidas por milênios de cultura para cultura, e transformadas por cada cultura receptora em algo novo ( Pingree, 1992 , p. 563, tradução nossa).

Fundamentados na concepção de que a produção das ideias científicas e matemáticas fazem parte da cultura humana, buscamos evidenciar que o processo de ensino e aprendizagem da matemática sofre influências de distorções e estereótipos propagados por uma cultura eurocêntrica dominante. Assim como os pesquisadores, os professores “ficarão cegos [...] por não compreenderem plenamente a fúria das possibilidades ou a força modeladora de fatores puramente culturais no curso que qualquer ciência toma” ( Pingree, 1992 , p. 558, tradução nossa).

3 Saberes e fazeres matemáticos inexistentes: o conhecimento numérico dos palicures

A cultura dominante europeia, ao descobrir e colonizar o Novo Mundo , denominou os que aqui viviam como selvagens, bárbaros, canibais e antropófagos. A princípio, esta prática pode ter surgido dos choques entre as diferentes culturas, mas posteriormente se tornou parte do discurso inerente ao processo de dominação que culminaria com a colonização. No diário de Cristóvão Colombo (1451-1506), algumas expressões já aparecem de forma evidente.

Colombo vai remeter à teratologia medieval em seu diário quando menciona ciclopes , cinocéfalos e antropófagos , ou pelo menos assim o interpretará a partir do que ele e seu tradutor de árabe e aramaico podiam entender do aruaque dos indígenas. Todas essas criaturas monstruosas descritas no diário de Colombo foram herdadas da tradição clássica greco-romana e acreditava-se que praguejavam nas fantásticas terras orientais da Líbia e da Ásia, nas muitas ilhas ocidentais e nas antípodas ( Chicangana-Bayona, 2017 , p. 16, grifos do autor).

As descrições amedrontadoras dos povos originários vão ganhar espaço no imaginário europeu ainda no final do século XV com a publicação de A Carta de Colombo anunciando a chegada às índias , cuja primeira edição foi publicada em Barcelona em 1493. “Não tardaria muito para que também começassem a surgir edições ilustradas” ( Chicangana-Bayona, 2017 , p. 18).

Outro texto que ajudou a difundir essa imagem (des)humanizada dos povos originários é Mundus Novus . Atribuído à Américo Vespúcio (1454-1512) e publicado em 1505 em Augsburgo, esse texto “é especial porque contém a primeira ilustração sobre canibalismo do Novo Mundo e uma das primeiras dos habitantes do Brasil ( Chicangana-Bayona, 2017 , p. 31).

A retratação dos nativos como selvagens continuou a inundar a Europa através de inúmeros escritos, um dos quais é bastante conhecido, As duas viagens ao Brasil de Hans Staden (1525-1576) publicada em 1557 em Marburgo. Na verdade, o título completo da obra é “A verdadeira história dos selvagens, nus e ferozes devoradores de homens, encontrados no novo mundo, a América, e desconhecidos antes e depois do nascimento de Cristo na terra de Hessen, até os últimos dois anos passados, quando o próprio Hans Staden de Homberg, em Hessen, os conheceu e agora os traz ao conhecimento do público por meio da impressão deste livro” (Staden, 1998).

Junto a essas obras, foram publicadas uma infinidade de imagens por indivíduos que, muitas vezes, sequer tinha vindo ao novo continente, mas se propunha a fazer isso tendo como base as cartas e relatos dos viajantes. Até mesmo os mapas incluíam os novos territórios ornamentando-os com monstros peludos, canibais devorando corpos humanos e partes humanas penduradas em árvores ( Chicangana-Bayona, 2017 ). Esse processo de construção de uma narrativa de inferioridade dos nativos foi tão forte que tem influências na mentalidade até os dias atuais.

[...] No século XX, o assunto recebeu um reforço ainda maior com o cinema e a televisão. Não é incomum que, ainda hoje, se mencione a captura de um explorador por parte de uma tribo canibal, cena comum em filmes e desenhos animados que retratam aventuras ocorridas na África ou na América. [...] A cena testemunharia a barbárie dos povos perdidos em terras distantes da civilização europeia. Trivializada pelos meios de comunicação, essa narrativa está inserida na ideologia colonial, ou seja, num conjunto de pressupostos, nem sempre verdadeiros, que reforçam a inferioridade dos povos africanos e ameríndios. [...] ( Raminelli, 2017 , p. 11).

Dessa forma, forjou-se uma história de silenciamentos que construiu e consolidou a percepção de que os povos originários que aqui viviam eram bárbaros, selvagens e incultos. E, talvez por isso mesmo, seus conhecimentos ainda têm sido pouco pesquisados.

Em relação aos conhecimentos matemáticos, a diversidade dos povos indígenas sul-americanos necessita de estudos mais detalhados. Contudo, como mostra Passes (2006 , p. 250), algumas pesquisas já apresentam alguns resultados sobre suas formas de quantificar.

[...] considerando a América do Sul nativa, os Kampa têm apenas três palavras-números, “um”, “dois” e “três”, segundo Green (2002b, s/d), que também mostram o uso freqüente do mesmo termo para “três” e “muitos”, um procedimento existente no latim (Koestler, 1964, p. 622). Na língua canela há apenas quatro termos genéricos: “sozinho”, “par”, “alguns”, “muitos” (ibid.). De forma semelhante, segundo Campbell (1989, p. 32) informa, os Wayãpi, vizinhos dos Pa’ikwené [outra forma como os palicures são denominados], também não têm palavras para números maiores do que quatro ( Passes, 2006 , p. 250, colchetes nossos).

Um interessante conhecimento numérico é o dos palicures, povos indígenas que atualmente vivem na região do Rio Oiapoque no estado do Amapá e na Guiana Francesa e que, segundo Aikhenvald e Green (1998 , p. 429), possuem “um dos mais ricos sistemas de dispositivos de classificação de substantivos do mundo”.

Eles têm termos para números de um a dez e cem e, pela construção gramática sobre essas bases com classificadores, podem ampliar a ordem numérica de dez a noventa e nove e estendê-la de cento e um a milhares. Do outro lado da escala, os Pa’ikwené também conhecem zero: yúma ( Passes, 2006 , p. 250).

Seu sistema numérico é decimal e aglutinativo ( Green, 2001 ), ou seja, cada “palavra-número” é formada por um radical “acrescido de uma multiplicidade de afixos, ou morfemas, designando/expressando conceitos básicos e também sofisticados” ( Passes, 2006 , p. 254). Além disso, “como uma palavra-número pode ser usada com uma variedade de classificadores, modificadores, afixos aritméticos, afixos sintáticos e, no caso do ‘um’, marcadores de concordância de gênero, muitos numerais pa’ikwené têm mais de duzentas formas correntes na conversação cotidiana” ( Passes, 2006 , p. 255).

Segundo Green (2001) e Passes (2006) , os afixos que se unem aos radicais da palavra um identificam vinte e uma classe de coisas organizadas segundo as seguintes cinco ideias matemáticas:

  • Unidades: onze classes de coisas tangíveis, animadas ou inanimadas. (i) coisas animadas, como pessoas, espíritos, animais, pássaros, peixes, lua, sol, estrelas e diversos fenômenos naturais. Há oito unidades relacionadas às coisas tangíveis inanimadas classificadas de acordo com o formato geométrico e a noção de tridimensionalidade: (ii) objetos redondos ou quadrados; (iii) objetos cilíndricos; (iv) objetos chatos; (v) objetos côncavos e objetos metálicos; (vi) objetos extensos (compridos); (vii) objetos extensos com extremidades; (viii) objetos irregulares; (ix) objetos irregulares em formato de folha. Duas unidades tangíveis se referem à partes do corpo: (x) mãos (cheias) e (xi) bocas cheias.

  • Conjuntos: seis classes de conjuntos de coisas, animadas ou inanimadas: (i) coisas inerentemente desconectadas, como rebanhos; (ii) coisas inerentemente conectadas, como um cacho de banana; (iii) coisas inerentemente desconectadas, mas que estão presos ou amarrados juntos, (iv) embrulhados juntos, (v) reunidos em um cesto ou (vi) em um pote.

  • Frações: duas classes para indicar (i) lados de um objeto ou (ii) parte ou pedaço de algo.

  • Abstrações: para se referir a coisas intangíveis, como doença, trabalho ou ação específica.

  • Séries: para indicar palavras relacionadas a tempo, conjunto de numerais ou como multiplicador.

Contudo, essas classes não são aplicadas a todas as palavras-número. Os números um e dois são os que mais possuem tais modificadores. Três e quatro possuem menos modificadores e, de cinco em diante, menos ainda ( Green, 2001 ; Passes, 2006 ).

Vejamos exemplos que demonstram a variedade de um pa’ikwené segundo os classificados acima mencionados (ver Quadro 1 ). Percebe-se que, de forma geral, o um tem como radical paha .

Quadro 1
– Variedades de um pa’ikwené

A seguir apresentamos mais alguns exemplos de palavras pa’ikwené referentes ao número um (ver Quadro 2 ).

Quadro 2
– Mais algumas possibilidades do um pa’ikwené

Para os palicures, o ato de quantificar e de medir não são ações abstratas, mas relacionadas a contingências existenciais e práticos.

Em Pa’ikwené (uma língua arawak), você pode usar números para descrever comportamento social, ações e estados de ser. Assim, você pode dizer de um homem retraído ou isolado que ele “um-izou” a si mesmo, Ig pahavwihwé , ou que dois indivíduos se “dois-aram” a si mesmos, Egkis piyanméhwé , ou seja, eles se casaram ( Passes, 2006 , p. 246).

Vejamos em mais detalhes esse exemplo:

a) Ig pahavwihwé: tradução literal, “Ele se um-zou”, ou seja, “Ele se retraiu/se isolou”. [Análise: Ig (ele singular) + paha (um) + –v (afixo para classes animadas) + –wi (afixo para masculino) + –h (que forma o verbo) + –w (afixo para reflexivo) + –é (sufixo para ação que completa).]

b) Egkis piyanméhwé: tradução literal, “Eles se dois-aram”, ou seja, “Eles se casaram”. [Análise: Eg (ela) + –kis (formador do plural) + pi– (dois) + –ya– (afixo de classe animada) + –nmé (dois) + –h– (que forma o verbo) + –w (afixo para reflexivo) + –é (afixo para ação que completa).] ( Passes, 2006 , p. 261).

De acordo com Launey (2003) , devido ao domínio europeu sobre o território dos palicures, sua população foi dizimada quase que totalmente. No último século, contudo, seu povo voltou a ter um aumento significativo. Entretanto, sua história não é contada, seus saberes e fazeres foram negligenciados de tal forma que praticamente figuram como não existentes .

Os palicures e sua forma matemática de lidar com o mundo ao seu redor é somente uma das inúmeras culturas de povos originários que foram criadas como inexistentes pelo domínio colonial europeu, fenômeno que exploramos conceitualmente em mais detalhes na próxima seção.

4 Saberes e fazeres matemáticos válidos e não válidos: a dualidade explicada a partir dos conceitos de colonialidade e mononulturas da mente

Na seção 2 deste artigo, mostramos como um mito foi construído para possibilitar o suposto desenvolvimento de uma matemática única silenciando e, até mesmo, plagiando conhecimentos desenvolvidos pelos muçulmanos. Na seção 3, apresentamos outra face do processo de dominação, o do apagamento de um conjunto de saberes dos palicures. Esta forma de dominação mais radical torna ainda mais possível o discurso de que há aquele que sabe e aquele que é inculto e ignorante. Consideramos que ambos os exemplos podem ser explorados teoricamente segundo uma série de conceitos, mas elencamos dois como principais - colonialidade e monoculturas da mente - que podem trazer importantes reflexões para a última seção deste artigo, onde propomos uma defesa da diversidade de conhecimentos matemáticos em sala de aula.

Para continuar a discussão, torna-se importante trazer à tona a distinção entre colonialismo e colonialidade.

O colonialismo se refere ao processo e aos aparatos de domínio político e militar que se desdobram para garantir a exploração do trabalho e das riquezas das colônias em benefício do colonizador [...] A colonialidade é um fenômeno histórico muito mais complexo que se estende até nosso presente e se refere a um padrão de poder que opera através da naturalização de hierarquias territoriais, raciais, culturais e epistêmicas, possibilitando a re-produção de relações de dominação [...] ( Restrepo; Rojas, 2010 , p. 15, tradução nossa).

O que é importante para o debate aqui proposto é justamente o fato de que o conceito de colonialidade trata de um padrão de poder que subjuga os dominados, inclusive, quanto aos seus conhecimentos, experiências e formas de vida. Mesmo após encerrada a colonização, “a colonialidade permanece vigente como esquema de pensamento e marco de ação que legitima as diferenças entre sociedades, sujeitos e conhecimentos” ( Restrepo; Rojas, 2010 , p. 16, tradução nossa). No caso das Américas, por exemplo,

[...] construiu-se uma temporalidade que implicava um antes e um depois . No antes estavam localizados todos aqueles que foram determinados como “outros” e presos desde então até hoje, ou seja, presos em um tempo imóvel que os deixou fora da história; nesse sentido, o pré foi construído, um impressionante prefixo definidor do que era anterior à modernidade. No depois, foram localizados aqueles que organizaram a estrutura de nossas sociedades, desestruturando suas cosmogonias, formas produtivas, sistemas alimentares, modos de se representar e se organizar, para impor sua lógica de existência [...] ( Achinte, 2017 , p. 444, grifos da autora, tradução nossa).

A colonialidade está intimamente ligada à dita modernidade, isso porque ao instituir alguém como moderno , consequentemente, há aquele que é dito não moderno ( Restrepo; Rojas, 2010 ).

[...] A colonialidade é o padrão de poder que emerge no contexto da colonização europeia nas Américas - ligada ao capitalismo mundial e ao controle, dominação e subordinação da população por meio da ideia de raça -, que posteriormente se naturaliza - na América mas também no planeta – como modelo de poder moderno e permanente. [...] ( Walsh, 2012 , p. 66, tradução nossa).

“A maior parte das narrativas históricas, sociológicas, culturais e filosóficas que circulam sobre a modernidade, mesmo em suas versões críticas, são resultado de abordagens eurocêntricas e intramodernas” ( Restrepo; Rojas, 2010 , p. 18, tradução nossa). Dessa forma, a ideia de modernidade aparece como um processo civilizatório que retroalimenta a colonialidade e continua legitimando intervenções e silenciamentos “sobre territórios, grupos humanos, conhecimentos, corporalidades, subjetividades e práticas, que em sua diferença são produzidas como não-modernas” ( Restrepo; Rojas, 2010 , p. 18, tradução nossa).

A produção da modernidade e manutenção da colonialidade decorre de uma narrativa etnocêntrica que considera “os modos de vida e concepções associados à formação cultural própria” como “intrinsecamente superiores aos de outras formações culturais” ( Restrepo; Rojas, 2010 , p. 135, tradução nossa). Além disso, a modernidade é reflexo do sociocentrismo que desclassifica e rechaça os costumes e ideologias de sociedades distintas à sua. O eurocentrismo é a combinação do etnocentrismo com o sociocentrismo que tem se colocado através da força física, mas também de formas mais sutis.

Segundo Walsh (2012) , a colonialidade pode ser vista através de quatro eixos, um dos quais é a colonialidade do poder, que

[...] refere-se ao estabelecimento de um sistema de classificação social baseado na categoria de "raça" como critério fundamental para a distribuição, dominação e exploração da população mundial nas fileiras, lugares e funções de a estrutura capitalista-global do trabalho, uma categoria que – ao mesmo tempo – altera todas as relações de dominação, incluindo as de classe, gênero, sexualidade etc. ( Walsh, 2012 , p. 67, tradução nossa).

A colonialidade do ser põe em dúvida o valor humano de certos grupos por sua cor ou suas raízes ancestrais. Esta forma de colonialidade exerce um papel de inferiorização, subalternização e desumanização do outro. Há ainda a colonialidade cosmogônica da mãe natureza e da vida que supõe uma dualidade natureza/sociedade isenta do mágico-espiritual. “A Mãe Natureza - a mãe de todos os seres - é quem estabelece e dá ordem e sentido ao universo e à vida, entrelaçando conhecimento, território, história, corpo, mente, espiritualidade e existência num quadro cosmológico, relacional e complementar de convivência” ( Walsh, 2012 , p. 68, tradução nossa).

Embora os eixos anteriormente mencionados tenham seu papel, o que mais nos interessa é o da colonialidade do saber entendida como “o posicionamento do eurocentrismo como ordem exclusiva da razão, do conhecimento e do pensamento, que exclui e desqualifica a existência e viabilidade de outras racionalidades epistêmicas e outros saberes que não sejam os dos homens brancos europeus ou europeizados” ( Walsh, 2012 , p. 67, tradução nossa). No ambiente acadêmico eurocentrado e nas narrativas modernistas,

[...] a noção de colonialidade do saber [...] se refere ao efeito de subalternização, folclorização ou invisibilização de uma multiplicidade de conhecimentos que não respondem às modalidades de produção de ‘conhecimento ocidental’ associadas à ciência convencional e ao discurso especialista ( Restrepo; Rojas, 2010 , p. 136, tradução nossa).

Além disso,

A colonialidade do saber implicaria uma espécie de arrogância epistêmica por parte daqueles que se imaginam modernos e se consideram detentores do meio mais adequado (ou mesmo o único) de acesso à verdade (seja ela teológica ou secularizada) e, portanto, supõem que eles possam manipular o mundo natural ou social de acordo com seus próprios interesses. Outras formas de conhecimento, geralmente associadas a populações não europeias, são descartadas como ignorância, menosprezadas, inferiorizadas ou, em certas ocasiões, apropriadas pelo aparato teológico, filosófico e científico europeu de produção de conhecimento. Daí o caráter repressivo da colonialidade do conhecimento em relação a outras modalidades de produção de conhecimento e outros sujeitos epistêmicos ( Restrepo; Rojas, 2010 , p. 137, tradução nossa, grifos dos autores).

Segundo Walsh, a colonialidade do saber

[...] opera hoje no discurso de muitos intelectuais ‘progressistas’ que se esforçam para desacreditar tanto as lógicas e racionalidades do saber que historicamente e ainda se encontram entre muitos povos e comunidades ancestrais, quanto as tentativas emergentes de construir e posicionar ‘pensamentos próprios’ de caráter decolonial, caracterizando ambos como fabricações fundamentalistas, essencialistas e racistas ( Walsh, 2012 , p. 67, tradução nossa).

“A subalternização e o apagamento dos conhecimentos matemáticoS e experiências dos colonizados reforçam a re-produção das relações de dominação, manifestando-se, assim, a colonialidade do saber ” ( Tamayo-Osorio, 2017 , p. 46, grifos da autora). Contudo, há diversos exemplos conhecimentos relacionados ao que denominamos moderno que foram inventados ou implementados em territórios coloniais para depois serem importados, plagiados e instrumentalizados na Europa, como se ali tivessem sido produzidos, como exemplificamos nas seções anteriores.

Adichie (2019) traz uma reflexão sobre os efeitos perversos do processo colonial na produção do que ela denomina “história única”, pensamento que perpetua a histórica contada pelos vencedores. Ao silenciar os colonizados, enraizou-se uma mentalidade preconceituosa dos povos originários. “A história única cria estereótipos, e o problema com os estereótipos não é que sejam mentira, mas que são incompletos. Eles fazem com que uma história se torne a única história” ( Adichie, 2019 , p. 14).

É impossível falar sobre a história única sem falar sobre poder. Existe uma palavra em igbo [uma língua falada na Nigéria] na qual sempre penso quando considero as estruturas de poder no mundo: nkali . É um substantivo que, em tradução livre, quer dizer ‘ser maior do que outro’. Assim como o mundo econômico e político, as histórias também são definidas pelo princípio de nkali: como elas são contadas, quem as conta, quando são contadas e quantas são contadas depende muito de poder. O poder é a habilidade não apenas de contar a história de outra pessoa, mas de fazer que ela seja sua história definitiva ( Adichie, 2019 , p. 12, colchetes nossos).

Contudo, a autora continua, “As histórias importam. Muitas histórias importam. As histórias foram usadas para espoliar e caluniar, mas também podem ser usadas para empoderar e humanizar. Elas podem despedaçar a dignidade de um povo, mas também podem reparar essa dignidade despedaçada” ( Adichie, 2019 , p. 16).

A colonialidade do saber, ao se impor como universal, retira de cena a história, o lugar e o sujeito. A colonialidade do saber empodera a cientifização a tal ponto que promove a ilusão de que o conhecimento é des-incorporado e des-localizado ( Restrepo; Rojas, 2010 ). Dessa forma, cria-se uma história linear baseada no conhecimento de quem a conta, como se este fosse desinteressado e descolado do mundo real. Contudo, insistimos que é necessário evidenciar

[...] a articulação de certas modalidades de conhecimentos produzidos e apropriados em certos lugares (os do centro e os da modernidade) com as relações de subordinação e inferiorização dos conhecimentos gestados em outros lugares (os da periferia e os da diferença colonial) em prol da dominação, exploração e sujeição destes últimos ( Restrepo; Rojas, 2010 , p. 140-141, tradução nossa).

Ao tratar das questões políticas e econômicas no âmbito da biodiversidade, Shiva (2003) nos apresenta o conceito de monoculturas da mente. Ao questionar a forma como o conhecimento sobre agricultura é controlado por poucos e de forma centralizada, a autora evidencia a descredibilização de outras formas de saberes e fazeres sobre a natureza e como essa postura “leva à vulnerabilidade e ao colapso social e ecológico” ( Shiva, 2003 , p. 16).

O desaparecimento do saber local por meio de sua interação com o saber ocidental dominante acontece em muitos planos, por meio de muitos processos. Primeiro fazem o saber local desaparecer simplesmente não o vendo, negando sua existência. Isso é muito fácil para o olhar distante do sistema dominante de globalização. Em geral, os sistemas ocidentais de saber são considerados universais. No entanto, o sistema dominante também é um sistema local, com sua base social em determinada cultura, classe e gênero. Não é universal em sentido epistemológico. É apenas a versão globalizada de uma tradição local extrema mente provinciana. Nascidos de uma cultura dominadora e colonizadora, os sistemas modernos de saber são, eles próprios, colonizadores ( Shiva, 2003 , p. 21).

A relação entre saber e poder é inerente a um sistema dominante que silencia e apaga outras formas de saber ( Restrepo; Rojas, 2010 ; Shiva, 2003 ). “A pretensão de universalidade, objetividade e neutralidade do ‘conhecimento ocidental’ é de onde se finca sua suposta superioridade epistêmica que inferioriza ou invisibiliza as formas de conceber e produzir conhecimentos diferentes” ( Restrepo; Rojas, 2010 , p. 138, tradução nossa).

Ao propagar a ideia de um saber universal, as tradições do mundo ocidental fazem uma colonização intelectual partindo do princípio de que

[...] ao contrário das crenças tradicionais, das crenças locais do mundo, que são construídas socialmente, pensava-se que o saber científico moderno era determinado sem a mediação social. Os cientistas, de acordo com um método científico abstrato, eram vistos como pessoas que faziam afirmações correspondentes às realidades de um mundo diretamente observável ( Shiva, 2003 , p. 23).

Esse conhecimento abstrato e desconectado de uma realidade sociocultural acaba por promover um desperdício epistemológico resultado da universalização de padrões forjados a partir da cultura dominante. Tendo o poder nas mãos, o eurocentrismo dita o que é considerado conhecimento válido, aplicável, útil e coerente, bem como o que está fora do aceitável, de forma arbitrária e injusta, desconsiderando as possibilidades de arranjos socioculturais específicos existentes em um mundo que está longe de ser homogêneo. Da mesma forma, em matemática podemos dizer que toda forma de conhecimento que não se utiliza ou não se baseia na linguagem e na estrutura de pensamento ocidental é descredibilizada e desconsiderada.

Segundo Fricker (2007) - ao discutir o conceito de injustiça epistêmica - o poder sobre o conhecimento interfere drasticamente em diversas esferas da sociedade. Uma das formas de interferência é a injustiça testemunhal, “que se produz quando os prejuízos levam um ouvinte outorgar as palavras de um falante um grau de menor de credibilidade” ( Fricker, 2007 , p. 22, tradução nossa). O que a colonialidade do saber tem feito - inclusive, em relação aos saberes e fazeres matemáticos - é justamente descredibilizar as palavras dos “outros”. Esse exercício de poder pode ocorrer tanto através de agentes sociais (indivíduos, grupos ou instituições) em relação a outros, como aquela que opera de forma estrutural ( Fricker, 2007 ). E é nesse sentido que o conceito de colonialidade do saber ganha força neste texto, já que em muitos casos, não há um agente concreto exercendo este poder. Quando se trata de conhecimento matemático, por exemplo, o pensamento cientifizado eurocêntrico se impôs em todos os níveis de ensino firmando a matemática como única possibilidade, não possibilitando a existência de matemáticas, no plural.

Sendo assim, devemos propor alternativas para o ensino de matemática de maneira que sejam consideradas as diferentes formas de saberes e de fazeres trazidas à escola pelos estudantes e pelos seus antepassados. Da mesma forma, devemos questionar a matemática que é ensinada como a única forma de pensar matematicamente o mundo ao nosso redor buscando entender os elementos históricos que construíram e enraizaram este discurso.

5 Saberes e fazeres matemáticos de fora da escola: uma defesa da diversidade de conhecimentos matemáticos em sala de aula

Conforme afirma Tamayo-Osorio (2017) ,

Vemos que tais imagens se expandiram por todos os continentes com a instituição escolar em temporalidades diferentes como decorrência dos processos de colonialidade aos que foram submetidos os estados nações colonizados, e, com este fenômeno, a colonialidade do saber se manifesta ao garantir a subalternização de conhecimentos na chamada ‘sociedade global’ e na chamada ‘sociedade do conhecimento’, que professam ‘verdades universais’ e que tem-se mostrado metodicamente organizados e sistemáticos, o que tem provocando a exclusão de epistemologias outras [...] ( Tamayo-Osorio, 2017 , p. 45, grifos da autora).

A escola, em muitos momentos, não abre espaço para os conhecimentos trazidos pelos estudantes impondo uma única forma de saber como a única possível. As demais, quando muito, são consideradas uma simplificação desse conhecimento superior. E, no caso da matemática, embora haja uma ampla gama de exemplos de conexões com a realidade e com situações cotidianas, o que se valoriza é uma matemática supostamente universal.

Não podemos negar que tenham havido iniciativas significativas nas últimas décadas (Matos; Giraldo; Quintaneiro, 2021). Contudo, na escola, os estudantes continuam, mesmo que de forma implícita, a aprender a falar “de si como os que não sabem e do ‘doutor’ que sabe e a quem devem escutar”. E, “[...] de tanto ouvirem de si mesmos, que são incapazes, que não sabem nada, que não podem saber, que são enfermos, indolentes, que não produzem em virtude de tudo isso, terminam por se convencerem de sua ‘incapacidade’” ( Freire, 1974 , p. 54).

Sabemos que o autor não tratava especificamente da matemática, mas seu olhar sobre a alfabetização nos traz uma reflexão importante. Consideramos que

[...] é possível relacionar esta temática com a aprendizagem da matemática. Ao aprender uma língua nova, dois aspectos devem ser levados em consideração: a sintaxe, como o conjunto das regras que determinam as diferentes possibilidades de associação das palavras para a formação de enunciados, e a semântica, que estuda o significado e a interpretação do significado das palavras, frases ou expressões em um determinado contexto (Oliveira, 2022a, p. 74)

Essa conexão entre aprendizagem da matemática e alfabetização, também proposta por Gómez-Granell (1997) , nos mostra que para além das regras, é preciso que as ideias e conceitos tenham sentido dentro de um determinado contexto. “Nesta perspectiva, a sintaxe se relacionaria com a linguagem, a simbologia e os aspectos formais da matemática, enquanto a semântica estaria relacionada aos sentidos e significados atribuídos aos conceitos presentes nas ideias matemáticas” (Oliveira, 2022a, p. 74).

Contudo, ainda hoje, a escola negligencia os conhecimentos dos estudantes como forma de dar sentido às ideias matemáticas. Mas, na perspectiva de Freire (1974) , a escolha dos conteúdos e as diferentes formas de ensinar deveriam levar em consideração a participação e a experiência dos educandos. Isso se justifica justamente porque, não há uma distinção entre o ato de conhecer e o que se conhece. Dessa forma, para o autor, a escola deveria considerar a inclusão de pelo menos duas posturas: (i) possibilitar que educandos e educadores, ambos, façam parte ativamente dos diferentes momentos do processo educativo; (ii) fomentar, no educando, a reflexão e a ação no mundo ao seu redor, mostrando a ele sua importância para a transformação da realidade.

Tendo estas duas características como princípios, denominadas, respectivamente, educação dialógica e educação libertadora, Freire (1974) propõe o conceito de educação problematizadora, que tem por base fomentar a participação real dos estudantes no processo educativo e nas transformações sociais. Para isso, é preciso que a escola valorize formas em que instigue e fomente os indivíduos a refletirem criticamente e aturem de forma ativa nas questões e problemáticas do mundo em que estão inseridos. Em outras palavras, torna-se essencial que os estudantes tenham consciência “como estão sendo no mundo com que e em que se acham” ( Freire, 1974 , p. 82, grifos do autor).

Consideramos que isso possibilitaria, por exemplo, revisitar a história que nos contam proporcionando, pelo menos em parte, a criação de condições de reparação histórica para aqueles que foram silenciados e eliminados durante o processo de dominação colonial. Consideramos que, ao termos condições de mostrar as conexões históricas que a matemática tem com os saberes e fazeres de diversas culturas, temos a possibilidade de dar sentido aos conteúdos ensinados nas escolas. Esse conhecimento da matemática é uma das formas de inserir os estudantes na realidade atual propiciando uma atuação cidadã no mundo. Ensinar a matemática de forma descontextualizada e desconexa daquilo que os estudantes sabem e fazem é desconsiderar a história dessa área de conhecimento, cujos conceitos surgiram justamente de suas conexões com os saberes e fazeres cotidianos de diversas culturas ao redor do mundo. A-histórico, anacrônico, universal, isolado e estático é um conjunto de adjetivos que não condizem com a história (da matemática) na medida em que apaga a diversidade cultural em que estamos inseridos.

A descredibilização dos conhecimentos dos estudantes é uma forma estrutural de injustiça testemunhal ( Fricker, 2007 ) já que, dessa forma, silencia-se justamente os sujeitos os quais queremos formar e que, como dissemos, em nossa concepção, deveriam participar de forma mais ativa nas demandas de seus processos formativos. Consideramos, que a prática de inferiorização dos saberes dos estudantes pode ser, pelo menos em parte, a justificativa das dificuldades de eles encontrarem sentido nas ideias matemáticas apresentadas na escola.

O problema perde o significado porque a resolução de problemas na escola tem objetivos que diferem daqueles que nos movem para resolver problemas de matemática fora da sala de aula. Perde o significado também porque na sala de aula não estamos preocupados com situações particulares, mas com regras gerais, que tendem a esvaziar o significado das situações. Perde também o significado porque o que interessa à professora não é o esforço de resolução de problemas por um aluno mas a aplicação de uma fórmula, de um algoritmo, de uma operação, predeterminados pelo capítulo em que o problema se insere ou pela série escolar que a criança frequenta (Carraher; Carraher; Schliemann, 1988, p. 22).

A história da matemática nos mostra que muitos dos conceitos e ideias matemáticas básicas que são ensinadas no decorrer do ensino fundamental e médio foram desenvolvidas em contextos práticos de resolução de problemas cotidianos de diversas culturas ao longo do tempo. Porém, o raciocínio dedutivo e axiomático e o advento do simbolismo propiciaram o desenvolvimento de uma matemática cada vez mais abstrata e independente de situações cotidianas.

A verdade é que não podemos minimizar a importância dos símbolos. Esta importância é reconhecida, por exemplo, pelo matemático americano Keith Devlin quando defende que “sem os símbolos algébricos, uma grande parte da Matemática simplesmente não existiria”. A linguagem algébrica cria a possibilidade de distanciamento em relação aos elementos semânticos que os símbolos representam. Deste modo, a simbologia algébrica e a respectiva sintaxe ganham vida própria e tornam-se poderosas ferramentas para a resolução de problemas. No entanto, esta grande potencialidade do simbolismo é também a sua grande fraqueza. Esta vida própria tem tendência a desligar-se dos referentes concretos iniciais e corre o sério risco de se tornar incompreensível para o aluno. É o que acontece quando se utiliza simbologia de modo abstracto, sem referentes significativos, transformando a Matemática num jogo de manipulação, pautado pela prática repetitiva de exercícios envolvendo expressões algébricas, ou quando se evidenciam apenas as propriedades das estruturas algébricas, nos mais diversos domínios [...] (Ponte; Branco; Matos, 2009, p. 8)

Se nas aulas de aula desconsiderarmos que a abstração e o simbolismo na matemática foi uma construção histórica conectada a uma infinidade de questões práticas, deixamos de significar os conteúdos que tanto poderiam ter sentido para os estudantes, mesmo que não sejam objetos de uso em seu cotidiano.

A matemática, vista a partir de uma concepção platônica, em que seus conhecimentos existem em um mundo das ideias, só reforça uma concepção a-histórica e desconectada de aspectos sociais e culturais. Quando muito, nos clássicos livros de história da matemática, aparece uma visão positivista em que as práticas matemáticas só são valorizadas quando deixadas para trás, como uma etapa anterior e inferior do desenvolvimento da matemática teórica atual. Deste modo, toda e qualquer cultura deveria alcançar esta forma de conhecimento superior em determinado momento (Oliveira, 2022a, p. 76).

A matemática é um dos sistemas de conhecimentos que deriva de um conjunto “de respostas que um grupo dá às pulsões de sobrevivência e de transcendência, inerentes à espécie humana. São os saberes e os fazeres de uma cultura” (D’Ambrosio, 2002, p. 37). Cada cultura produz sistemas de conhecimentos de acordo com suas necessidades de sobrevivência e transcendência, mas, devido ao processo colonial, a escola foi constituída em um lugar cativo para difusão de uma única forma de saber válido. A história difundida é que esse saber universal foi supostamente produzido pela humanidade, mas sem conexões com seus interesses. E, embora certamente tenha uma participação de muitas culturas e povos em seu desenvolvimento, o que percebemos no decorrer deste texto é que diversas culturas foram silenciadas no processo de dominação europeia. Como consequência dessa imposição, a diversidade de saberes e fazeres matemáticos históricos e atuais são apagados, impactando na forma como vemos, inclusive, os conhecimentos próprios dos estudantes.

Não se trata de ignorar nem rejeitar a matemática acadêmica [e escolar], simbolizada por Pitágoras. Por circunstâncias históricas, gostemos ou não, os povos que, a partir do século XVI, conquistaram e colonizaram todo o planeta, tiveram sucesso graças ao conhecimento e comportamento que se apoiava em Pitágoras e seus companheiros da bacia do Mediterrâneo. Hoje, é esse conhecimento e comportamento, incorporados na modernidade, que conduz nosso dia-a-dia. Não se trata de ignorar nem rejeitar conhecimento e comportamento modernos. Mas, sim, aprimorá-los, incorporando a ele valores de humanidade, sintetizados numa ética de respeito, solidariedade e cooperação (D’Ambrosio, 2002, p. 42-43, colchetes nossos).

Para repensar o papel da matemática na escola, nos baseamos no conceito de pedagogia decolonial que, segundo Walsh, Oliveira e Candau (2018, p. 5), é “entendida como a necessidade de ler o mundo para intervir na reinvenção da sociedade”. Os autores complementam:

É um trabalho de politização da ação pedagógica. Esta perspectiva é pensada a partir da ideia de uma práxis política contraposta a geopolítica hegemônica monocultural e monoracional, pois trata-se de visibilizar, enfrentar e transformar as estruturas e instituições que têm como horizonte de suas práticas e relações sociais a lógica epistêmica ocidental, a racialização do mundo e a manutenção da colonialidade (Walsh; Oliveira; Candau, 2018, p. 5).

A proposta da pedagogia decolonial é questionar os conhecimentos subordinados à colonialidade do saber e do poder através de experiências e vivências críticas e políticas de movimentos sociais e de culturas colonizadas.

Obviamente, pedagogia e o pedagógico aqui não se entendem no sentido instrumentalista de ensino e transmissão de conhecimento, nem se limitam ao campo da educação ou aos espaços escolares. Em vez disso, e como Paulo Freire disse uma vez, a pedagogia é entendida como uma metodologia essencial dentro e para as lutas sociais, políticas, ontológicas e epistêmicas pela libertação ( Walsh, 2017 , p. 29, tradução nossa).

Embora o conceito deva ser aplicado a diferentes espaços, aqui o enfatizamos como necessário para repensar as formas de se ensinar matemática na escola atual. Defendemos que a história pode ser um dos caminhos de reflexão sobre a construção do conhecimento matemático na escola a partir de questões socioculturais. Neste sentido, corroboramos com Oliveira e Alvim (2021) ao propor a abordagem histórica na aula de matemática a partir das três dimensões a seguir:

Dimensão epistemológica: trata da importância de abordar questões relacionadas à natureza do trabalho científico e matemático, que entendemos como os modos de se produzir e praticar as Ciências e a Matemática;

Dimensão sociocultural: aborda a relevância das questões sociais e culturais que influenciaram (e influenciam) o desenvolvimento do conhecimento científico e matemático ao longo da história;

Dimensão da práxis: apresenta a discussão sobre como a prática docente no Ensino de Ciências e de Matemática deve levar em consideração a realidade e os interesses dos alunos, tanto quanto a historicidade das Ciências, como forma de tornar os conteúdos compreensíveis e significativos, assim como gerar possibilidades de desenvolvimento de cidadania científica e matemática ( Oliveira; Alvim, 2021 , p. 744, grifos dos autores).

Cada uma destas dimensões tem os seguintes objetivos (ver Quadro 3 ):

Quadro 3
– Objetivos das três dimensões da abordagem histórica nas aulas de matemática

É preciso considerar que as três dimensões acima mencionadas precisam ser tratadas de forma indissociável já que, cada uma com sua especificidade, depende do que está proposto nas demais. Seguem alguns exemplos: Não é possível falar de como a prática da matemática se transformou ao longo da história (objetivo 2) sem evidenciar que tais transformações são decorrentes de influências sociais e culturais (objetivo 4). Por outro lado, promover a cidadania matemática (objetivo 9), ou seja, uma participação crítica e ativa na sociedade por meio da matemática pode ocorrer a partir do momento em que os estudantes compreendam aspectos próprios do fazer matemática (objetivo 1) e dos interesses que influenciam o desenvolvimento desta área de conhecimento (objetivo 6). Além disso, ao trabalhar a história da matemática, é possível propiciar uma visão integrada entre matemática e outras áreas do conhecimento (objetivo 3), o que pode ser feito através de temas interdisciplinares (objetivo 8).

Apresentamos, a seguir, propostas breves, mas exemplificadoras de como podemos propiciar uma aula de matemática em que as ideias sejam trabalhadas de forma integrada com seus contextos de produção e prática ao longo da história. Não se trata de propostas didáticas desenvolvidas, mas de caminhos possíveis - e passíveis de amplo debate - para as práticas pedagógicas que desenvolvemos comumente na escola. Em cada sugestão, as potencialidades para a sala de aula serão conectadas com os objetivos apresentados no Quadro 3 .

5.1 Palicures, conhecimento numérico e sistemas de contagem

Um dos tópicos já bastante consolidados nos documentos curriculares em que se pede uma correlação com a história são os sistemas de numeração. Contudo, como estamos submersos em uma história dominante da matemática, o pouco que conhecemos se refere, principalmente, à história dos sistemas de numeração desenvolvidos pelos egípcios, mesopotâmicos e romanos e o advento do sistema indo-arábico. Outras formas de conhecimento numérico têm sido pouco incorporadas em livros e materiais didáticos.

Dentre as potencialidades que uma aula de matemática pode usufruir ao incluir saberes numéricos dos povos originários, citamos as seguintes: mostrar para os estudantes a diversidade de formas de contagem que distintas culturas desenvolveram conforme suas necessidades (objetivo 5); além disso, em diversos casos, não foram produzidos registros escritos e, mesmo assim, foi transmitido oralmente um pensamento numérico que reflete, de alguma maneira, um sistema de numeração.

Ao apresentarmos, por exemplo, o pensamento numérico dos palicures, temos a possibilidade de construir os principais conceitos matemáticos presentes nos sistemas de numeração. Desta forma, as características presentes em um sistema escrito, como base e posição, podem ganhar em significado, já que os estudantes podem, por exemplo, comparar como é o funcionamento de sistemas de numeração diferentes.

Essas discussões colocam em par de igualdade diferentes culturas, mostrando como o seu desenvolvimento matemático estava ligado às suas necessidades e, para cada contexto, se produziram conhecimentos que satisfaziam seus problemas locais.

5.2 Oficina de tabletes: o conhecimento matemático dos mesopotâmicos

Embora o sistema mesopotâmico já seja relativamente conhecido, talvez ainda hajam potencialidades a serem exploradas para a aprendizagem matemática dos estudantes. O que normalmente se sugere é explorar o sistema de numeração dos mesopotâmicos para conhecer um pouco mais sobre a base sexagesimal, aprimorando o conhecimento dos estudantes sobre base e posição e, consequentemente, a compreensão dos sistema segundos-minutos-horas (unidades de medida de tempo) e segundos-minutos-graus (unidades de medida de ângulos).

Os mesopotâmicos nos deixaram um conjunto de tabletes matemáticos que, de forma geral, podem ser classificados nos seguintes tipos: listas e tabelas numéricas, textos de problemas - que exploram situações matemáticas provenientes do mundo empírico ou não - e rascunhos de solução de problemas - elaborados no contexto de educação escribal ( Gonçalves, 2014 ). Dentre os tabletes que contém listas e tabelas numéricas, estão os seguintes tipos:

  • Aritméticas: tabelas de recíprocos, de multiplicação, de quadrados, de raízes quadradas e de raízes cúbicas.

  • Metrológicas: tabelas de capacidades, de comprimentos, de superfícies (e de volumes), de pesos, de alturas (e de profundidades).

Sugerimos a leitura de textos de Gonçalves (2014 , 2022 ) que apresenta exemplos de cada um destes tipos de tabelas.

Para a sala de aula, Gonçalves (2014) sugere uma oficina de construção de tabletes de argila, propiciando uma aproximação com um suporte de escrita - a argila - e a forma de escrita bastante diferente daquela que estamos habituados (objetivo 2).

A cronologia da história do sistema de numeração mesopotâmico, apresentado por Roque (2012) , pode mostrar os passos para construção e consolidação de um sistema de numeração. Essa discussão pode levar para a sala de aula como são feitas as pesquisas por arqueólogos em sítios arqueológicos e os desafios de preservação e interpretação dos conteúdos de materiais encontrados nesses locais (objetivo 3).

5.3 O método gelosia para o cálculo da multiplicação

Nos primeiros anos de escolaridade, um dos tópicos abordados são os algoritmos para resolução das operações aritméticas. Através da história estes procedimentos podem ganhar ainda mais sentido apresentando para os estudantes que eles são somente uma das formas de resolução de problemas aritméticos. No caso da multiplicação, por exemplo, há o método gelosia, cujos princípios foram desenvolvidos e utilizados em diversas culturas, mas os primeiros indícios estão numa obra indiana do século XII de Bhaskara Akaria (1114-1185) e outra do século XII do magrebino Ibn al-Banna' (1256-1321) ( Chabert, 1999) .

O método gelosia divide o processo de multiplicação em etapas menores, o que pode facilitar a compreensão do algoritmo para aqueles estudantes que têm dificuldades de aprendizagem. Mas, esse processo deve partir do conhecimento que os alunos já possuem (objetivo 7).

Em sua obra Rabdologiae , John Napier (1550-1617), se utilizando da versatilidade do método, elaborou barras de calcular como forma de facilitar os cálculos de multiplicação com números grandes. Além disso, ele propôs o uso das barras para a realização de divisões, raízes quadradas e cúbicas, mostrando outras potencialidades para o uso do método ( Lanzarin, 2004 ). Uma possibilidade é realizar a construção destas barras, apresentar o método e discutindo cada uma de suas etapas ao mesmo tempo em que o relaciona com o algoritmo já conhecido entre nós. Essa atividade possibilita uma aproximação com o trabalho matemático na medida em que apresenta como são elaborados instrumentos para facilitar a execução de procedimentos matemáticos (objetivo 1) (Oliveira, 2022b; Oliveira; Martins, 2020 ).

5.4 Cubação da terra: os camponeses e o cálculo de área

Um dos problemas práticos que envolvem conhecimentos matemáticos é a distribuição de terras e o cálculo de suas áreas. O interessante é notar que este tipo de cálculo não é simples de ser realizado caso se queira um resultado bastante aprimorado. Equipamentos geodésicos, como os teodolitos, e o conhecimento do conceito de integral pode ser imprescindíveis para isso. Porém, métodos aproximados foram desenvolvidos desde a antiguidade em diferentes regiões.

No Brasil, por exemplo, camponeses que fazem parte do Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem Terra (MST) e que lutam pela Reforma Agrária produzem um conjunto de conhecimentos matemáticos ligados à medição de áreas de terras, já que, antes dos órgãos oficiais mensurarem o tamanho dos lotes destinados à cada família, eles realizam a demarcação dos espaços destinados à agrovila e à produção. A cubação da terra - como eles denominam a prática de medir a área das terras - é uma multiplicidade de processos distintos entre si e que são utilizados, muitas vezes, numa mesma comunidade ( Knijnik, 2005 ).

Essa diversidade de formas de medir áreas de terrenos pode servir como uma das maneiras de trabalhar o conteúdo em sala de aula apresentando também as questões sociais relativas a esse tema (objetivo 6). Pode-se, inclusive, pedir que os estudantes apresentem soluções diferentes para cálculos de áreas de uma mesma figura ou, então, sugerir diferentes figuras de mesma área, mas com perímetros diferentes. Isso acontece em situações em que há um valor de área previamente definido - por exemplo, para o plantio de uma determinada quantidade de sementes - e precisa-se definir o espaço que corresponde ao valor estipulado ( Knijnik, 2005 ).

Ao trabalhar diferentes formas de realizar o cálculo de áreas, é possível demonstrar que nem todo procedimento utilizado dá conta de resolver um problema em sua totalidade, já que em muitos casos, há limitações inerentes ao método adotado. Na cubação da terra, normalmente o valor resultante do cálculo da área difere daquele que é encontrado na área topográfica ( Knijnik, 2005 ).

5.5 Números pitagóricos e demonstrações do teorema de Pitágoras

Teoremas são, muitas vezes, motivos de dificuldades por partes dos estudantes, dado o seu caráter de generalização e abstração a respeito de um determinado problema. Um dos mais conhecidos é o teorema de Pitágoras , aqui destacado em itálico já que, como apresentamos anteriormente, o próprio Pitágoras pode não ter sequer existido. Além disso, o método de triplas pitagóricas desenvolvido na antiguidade não é um correlato exato do problema geométrico do teorema ( Roque, 2012 ) e muitos dos conhecimentos atribuídos aos gregos provém de outras regiões ( Gerdes, 2011 ; James, 1988 ).

Fato é que os pitagóricos existiram e uma de suas preocupações era o estudo da aritmética figurada. Em específico, eles se dedicaram ao estudo dos números figurados e as propriedades que podem ser obtidas de suas configurações visuais. Na época da escola pitagórica, uma aproximação para a demonstração do teorema de Pitágoras era um resultado mais aritmético do que geométrico: o problema era encontrar três números quadrados, denominados triplas, em que um deles é a soma dos outros dois. Contudo, o método produzido não possibilita encontrar todas as triplas de números que podem medir os lados de um triângulo retângulo, já que de lados de um triângulo admite números não naturais ( Roque, 2012 ).

Também é possível explorar o teorema a partir do estudo de temas geométricos utilizados em artesanatos, mesmo que ele apareça de forma implícita e indireta. Decoração de esculturas em madeira e metal, entrelaçamentos na produção de esteiras e de têxteis bordados de ráfia, pinturas em tecidos e vasos, desenhos na areia dos Cokwe, mosaicos dos Bakuba... Estes são alguns exemplos, segundo Gerdes (2011) , de onde podemos encontrar motivos decorativos que podem, de alguma maneira, refletir um conhecimento geométrico que pode ser associado ao teorema de Pitágoras .

Estes assuntos podem ser abordados em sala de aula como base para introduzir o pensamento algébrico nos anos iniciais do ensino fundamental ou, então, em anos de escolaridade mais avançados para correlacionar com o desenvolvimento de fórmulas gerais na álgebra (objetivo 1). Contudo, é necessário tomar cuidado com esse tipo de ligação já que, na antiguidade, não havia a álgebra e o simbolismo algébrico como utilizado atualmente. Na verdade, enfatizamos a importância da capacidade de percepção de padrões e propriedades que pode ser obtida em diferentes tipos de problemas aritméticos e geométricos e que serviu, em diversas culturas, para a produção de conhecimentos matemáticos diversos (objetivo 5). Aqui também há a possibilidade de vinculação do ensino de matemática através da arte (objetivo 3).

6 Considerações finais

O mito do surgimento da matemática na Grécia antiga e o apagamento do conhecimento numérico dos palicures servem de exemplo de que a forma como a matemática é vista esconde as raízes socioculturais do desenvolvimento de seus próprios conceitos e ideias. De fato, como apresentamos, uma narrativa foi construída em torno da Grécia antiga desconsiderando as contribuições para a matemática deixadas pelos magrebinos entre os séculos IX e XIV. Essa forma de apagamento evidencia como conhecimentos de algumas culturas são tomados e reconfigurados para serem colocados no padrão da dita matemática .

No segundo caso, o dos palicures, seus conhecimentos numéricos sequer fazem parte da história da matemática que nos é contada. Silenciamentos desse tipo excluem completamente uma cultura, seus saberes e fazeres. Neste caso, é criada uma não existência de maneira que ali não há absolutamente nada que se possa configurar como parte da matemática.

O processo de construção histórica colonial eurocentrada, conforme explicitado neste artigo, evidencia como se consolidou formas de descredibilização e de apagamentos de tudo aquilo que canonicamente não se encaixa na matemática, em sua estrutura e formalidade, seu raciocínio dedutivo e axiomático, seu simbolismo e abstração, sua universalidade.

Um dos impactos desses apagamentos implica justamente na forma como a matemática escolar se consolidou e nos modos como se dá os processos de ensino e de aprendizagem da disciplina. Embora haja experiências importantes, ainda hoje, a forma de se conceber a matemática na escola não pressupõe e nem possibilita o diálogo com outras maneiras de pensar alheias ao que o cânone considera. Deste modo, o artigo trouxe reflexões importantes sobre o fato de que há barreiras historicamente construídas a serem rompidas tornando-se necessário fazer uma revisita à história da humanidade, do conhecimento e da matemática, deixando evidente os apagamentos causados pelo processo de dominação colonial europeu e quais os impactos desse processo na forma como ensinamos matemática.

Esse olhar sobre a história da matemática deve também ser levado para a sala de aula. Os exemplos apresentados na última seção do artigo mostram que a história pode ser um dos caminhos de reflexão na sala de aula sobre a construção do conhecimento matemático a partir de questões socioculturais, tornando o ensino de matemática mais significativo para que os estudantes aprendam e apreendam as ideias e conteúdos matemáticos. As propostas apresentadas deixam claro que os conceitos matemáticos podem ser trabalhados de forma integrada com seus contextos de produção e prática ao longo da história.

“Ao (re)visitar a história temos a possibilidade de transformar nossas aulas de matemática em momentos de reflexão crítica sobre a sociedade atual e do passado, reforçando a historicidade envolvida nos conceitos e ideias da matemática” (Oliveira, 2022a, p. 79). Assim teremos a possibilidade de fomentar espaços que, em alguma medida, proporcionem a criação de condições de reparação histórica para aqueles que foram silenciados e eliminados durante o processo de dominação colonial.

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Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    16 Set 2024
  • Data do Fascículo
    2024

Histórico

  • Recebido
    01 Ago 2023
  • Aceito
    15 Mar 2024
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