Open-access Compreensões do Professor de Matemática sobre Ensinar e Aprender com Realidade Aumentada

Mathematics Teacher's Understanding of Teaching and Learning with Augmented Reality

Resumo

O objetivo deste texto é apresentar modos de o professor da Educação Básica compreender o ensino e a aprendizagem de Matemática com Realidade Aumentada. Para tanto, discute-se parte dos dados de uma pesquisa de pós-doutorado, constituídos em um grupo de formação de professores. Nesse grupo, participaram quatro professores de Matemática de uma escola de tempo integral da rede pública do estado de São Paulo, Brasil. As ações no grupo seguiram uma prática conhecida como estudo de aula, com encontros semanais que se deram na escola em que os professores lecionam. Nesses encontros, foram planejadas, realizadas e discutidas aulas cujas tarefas de Matemática são exploradas com um aplicativo de Realidade Aumentada, o GeoGebra Calculadora 3D. A postura assumida para a condução das atividades da pesquisa e análise dos dados foi a qualitativa fenomenológica. Os encontros foram filmados e, posteriormente, transcritos para a constituição dos dados. Os resultados que se discute neste texto apontam que os professores entendem que o trabalho com Realidade Aumentada favorece a visualização, mas, principalmente a vivência da profundidade. No movimento do aluno que faz as explorações, abrem-se perspectivas que, na coexistência dos perfis, fundam a significação.

Educação Matemática; Formação de Professores; GeoGebra; Estudo de Aula

Abstract

The objective of this text is to present ways for Basic Education teachers to understand teaching and learning Mathematics with Augmented Reality. To this end, part of the data from a post-doctoral research, constituted in a teacher formation group, is discussed. In the group, four Mathematics teachers from a full-time public school in the state of São Paulo, Brazil, participated. The actions in the group followed a practice known as lesson study with weekly meetings that took place at the school where the teachers teach. In these meetings, classes were planned, carried out and discussed, whose Mathematics tasks are explored with an Augmented Reality application, GeoGebra Calculadora 3D. The stance taken to conduct research activities and data analysis was phenomenological qualitative. The meetings were filmed and later transcribed to create the data. The results discussed in this text indicate that teachers understand that working with Augmented Reality favors visualization, but mainly the experience of depth. In the movement of the student who carries out explorations, perspectives open up that, in the coexistence of profiles, found meaning.

Mathematics Education; Teacher formation; GeoGebra; Lesson Study

1 Introdução

A Matemática, ao longo de sua história, vem se apropriando de novas tecnologias e, ao mesmo tempo, contribuindo para o seu desenvolvimento. Em algum momento histórico, a régua e o compasso já foram inovações, o que também ocorreu com os softwares de Geometria Dinâmica que, especificamente para o ensino de Matemática, trouxeram novas abordagens. Atualmente, aplicativos de Geometria Dinâmica também estão disponíveis em dispositivos móveis – como smartphones e tablets – que, por estarem à mão, vêm transformando o modo pelo qual o ensino com tecnologia acontece nas escolas (Bairral; Henrique, 2021).

A popularização dos dispositivos móveis oportunizou o acesso a diversos tipos de aplicativos, dentre eles, os de Realidade Aumentada (RA), uma tecnologia que mistura “simultaneamente elementos do mundo real com objetos de computação gráfica, que por meio de técnicas de visão computacional e processamento de imagens, fazem uma fusão da cena do ambiente real, capturada pela câmera, com objetos virtuais” gerados pelos aplicativos (Ferreira, 2018, p. 35). Como resultado dessa mistura, os objetos virtuais podem ser vistos juntos aos objetos e pessoas do ambiente físico, permitindo interações simultâneas.

A RA já é utilizada há anos em áreas como engenharia, medicina, química etc. Na educação, sua presença é recente, conforme destacam Lopes et al. (2019), o que justifica muitos desafios e pesquisas ainda em desenvolvimento. No entanto, ainda segundo os autores, essa tecnologia pode favorecer abordagens de ensino inovadoras, tornando o ambiente mais dinâmico e interativo.

Em nosso caso, interessa-nos a maneira como a RA pode ser utilizada para explorar objetos matemáticos. Ainda, de modo mais específico, focamos o estudo dos objetos da Geometria Espacial – como poliedros e corpos redondos –, que têm sua interpretação limitada quando vistos em representações planas, como as dos livros didáticos (Ferreira, 2018). Com a RA, entende-se que são abertos novos horizontes de compreensão, uma vez que o “envolvimento [com o objeto explorado] se dá na totalidade do corpo-próprio do usuário naquele momento, já que o seu movimento corpóreo, por exemplo, se torna indispensável para que essas diferentes vistas sejam possíveis” (Schuster; Rosa, 2021, p. 134).

Desse modo, a RA é uma tecnologia na qual o “corpo-próprio se coloca em movimento para ver”, pois sendo espacial “tem um modo de direcionar-se que permite que os objetos venham ao seu encontro” (Paulo; Batista; Pereira, 2023, p. 240). Por serem recentes as pesquisas que focam os aplicativos de RA na educação, há pouca descrição e análise de práticas efetivamente realizadas em salas de aula, especialmente na Educação Básica. Nos estudos que temos realizado, procuramos compreender as práticas de ensinar Matemática com RA utilizando o aplicativo GeoGebra Calculadora 3D, que, para a fluência do texto, chamaremos simplesmente de GeoGebra AR.

Com foco nas práticas de ensinar Matemática, interessa-nos o modo pelo qual o conhecimento matemático vai se constituindo nas ações de ensinar e aprender. Nessas ações, o professor também merece atenção. Portanto, voltamos nossa atenção para o contexto da formação do professor, uma vez que a pouca familiaridade pode se tornar um empecilho para que eles consigam planejar e realizar tarefas com essa tecnologia em suas aulas (Lopes et al., 2019). O estudo de aula mostrou-se como uma abertura para discutir com um grupo de professores da Educação Básica o ensino e a aprendizagem de Matemática com RA. O trabalho no grupo foi desenvolvido no contexto de uma pesquisa de pós-doutorado1.

Na pesquisa, a interrogação que orientou a investigação foi: como o professor de Matemática da Educação Básica constitui conhecimento para ensinar sendo professor com tecnologia de Realidade Aumentada? Na impossibilidade de em um artigo dar conta do que na pesquisa se mostrou, optamos por trazer um recorte para explicitar os modos de o professor de Matemática da Educação Básica compreender o ensino e a aprendizagem de Matemática com RA. Considerando o contexto formativo, antes da discussão de parte dos resultados, apresentaremos nosso entendimento acerca do estudo de aula, para esclarecer como, no grupo, discutiu-se ensino e aprendizagem matemática com RA, e expor a postura metodológica assumida para a produção e análise dos dados.

2 A formação do professor como abertura para ensinar com Realidade Aumentada

Uma dificuldade a ser superada quando se busca trabalhar com tecnologias na Educação, conforme compreendemos com Rosa e Seidel (2014), é que as práticas de ensino com tecnologias na sala de aula, muitas vezes, são efetivadas sem articulação com os processos de ensino das disciplinas. Isto é, são tarefas isoladas que têm pouca ou nenhuma relação com os assuntos previstos no currículo escolar. Esse proceder afasta ou até mesmo torna dicotômicas as práticas com tecnologias do conhecimento que se deve aprender na escola (o que o professor elege baseado no currículo vigente). Para o professor, torna-se, então, um desafio ensinar os conteúdos com tecnologias.

Para enfrentar tal desafio, diversas ações para a formação do professor são propostas, especialmente em cursos de formação continuada. No entanto, Bezerra e Morelatti (2022, p. 26) afirmam que, por muito tempo, a formação continuada “foi pautada no modelo de racionalidade técnica, no qual havia espaços de aprendizagem profissional caracterizados, geralmente, por meio de cursos de reciclagem, treinamentos ou capacitações, que se propunham a ensinar novas técnicas e metodologias de ensino”. No contexto da formação para ensinar com tecnologia, tal concepção prevaleceu em cursos cujo objetivo era ensinar as funcionalidades específicas dos softwares disponíveis nas escolas.

Muitas vezes, a formação se restringia a dar instruções seguidas de exemplos de tarefas que poderiam ser reproduzidas nas aulas. Esse procedimento levou a reproduzir com as tecnologias “os mesmos procedimentos realizados em sala de aula” (Rosa; Seidel, 2014, p. 355). Ou seja, mudou-se o meio pelo qual as tarefas eram realizadas – do lápis e papel para os softwares –, mas os processos de ensino e aprendizagem permaneceram.

Nesse modo de compreender e conduzir a formação, mostra-se a preocupação com o ter e saber usar a tecnologia, o que não é suficiente para que o professor compreenda os modos pelos quais as tecnologias oportunizam a constituição de conhecimento dos alunos. Para que isso ocorra, é preciso promover situações em que professores e alunos possam se compreender com a tecnologia, indo “além do ter e do saber usar” (Mocrosky; Mondini; Orlovski, 2018, p. 42). Trata-se de uma transformação que não pode ser alcançada por meio de instruções dadas nos cursos de formação, uma vez que passa “pela mudança do próprio professor, por meio de seu desenvolvimento profissional” (Bezerra; Morelatti, 2022, p. 27).

Em uma concepção fenomenológica, temos defendido que a formação do professor envolve um movimento de forma/ação; “um movimento contínuo, porque histórico, que se realiza sendo-se professor/a, ao estar junto ao aluno, ao que e com o que se trabalha pedagogicamente” (Bicudo, 2014, p. 19). É contínuo porque não se inicia no processo de formação inicial ou continuada e não está pronto ou acabado com a conclusão dos cursos que possuem essa finalidade. Ele se dá nas experiências de produção de significados que são vividas ao longo da vida pela pessoa, seja nas atividades que envolvem a Matemática, vividas antes de seu processo de escolarização, seja nos estudos da Educação Básica e do Ensino Superior ou sendo professor, junto aos seus alunos, colegas de trabalho, gestores da escola etc. (Bicudo, 2018).

O professor está sempre produzindo ações que atuarão na forma almejada de ser professor – que é própria de cada um – ao mesmo tempo em que a forma também direciona tais ações, produzindo novas práticas e atitudes e transformando outras. Portanto, é um movimento “em que a ação e a forma estão sempre em marcha, dando-se mutuamente, ou seja, a formação de professores passa pelo desenvolvimento de experiências de produção de ser” (Mocrosky; Oslovski; Lidio, 2019, p. 225).

Bicudo (2003) enfatiza que a forma/ação traz significados complexos que abarcam os modos pelos quais o professor realiza suas práticas e os meios pelos quais ocorre a instrução. Além disso, conforme a autora, trata-se de um conceito histórico que engloba a mudança. Batista (2021) afirma que a mudança de postura que influencia forma e ação se mostrou como um dos modos pelos quais o professor de Matemática se percebe sendo professor com tecnologia.

No contexto de forma/ação com estudo de aula, as professoras e professores da pesquisa de Batista (2021) se dispuseram a analisar suas práticas com o software GeoGebra e, ao considerarem a forma que ensinavam com tecnologias, disseram que não havia um modo acabado de ser professor, sendo preciso se dispor a assumir mudanças e favorecer novas formas de ser professor com tecnologias.

Porém, é preciso ressaltar que, para efetivar uma mudança, o trabalho com tecnologias não pode ser visto como algo “mecânico ou técnico dissociado dos processos de ensino e de aprendizagem, e, sim, como meios que participam efetivamente da produção de conhecimento matemático” (Rosa; Seidel, 2014, p. 358). Isso significa oportunizar ações em que o professor compreenda modos de ser-com, pensar-com e saber-fazer-com a tecnologia (Rosa; Seidel, 2014), sendo ela parte do processo de raciocínio, das estratégias, da construção de conhecimento. Torna-se algo que modifica modos de ser, de pensar e de agir para ensinar Matemática. Não são meras ferramentas que podem ser substituídas sem que o objetivo da tarefa seja alterado, como um projetor que substitui a escrita na lousa.

Assim, para além de ter a tecnologia e saber reproduzir com a tecnologia tarefas feitas com outros recursos, é importante promover ações que possibilitem aos professores “conectar elementos teóricos da formação com a ação profissional por meio da reflexão crítica do e no processo” (Bezerra; Morelatti, 2022, p. 26). Em nossas pesquisas, o estudo de aula vem se mostrando como uma proposta na qual se discute a experiência vivida de ser professor com tecnologia e que se articula à compreensão de forma/ação que assumimos.

O estudo de aula, segundo Bezerra e Morelatti (2022), é uma prática de desenvolvimento profissional contínua, que se realiza por um longo período e é sustentada por práticas reflexivas, colaborativas e investigativas – acerca das próprias ações – que potencializam esse processo de desenvolvimento. Além disso, como se trata de um contexto formativo, pode-se dizer, por um lado, que “está centrada na prática pedagógica do professor, o que possibilita o aprofundamento teórico em várias vertentes, dentre elas, a de conhecimento matemático, didático, curricular, educacional, político e institucional” (Bezerra; Morelatti, 2022, p. 29). Por outro lado, seu aspecto diferencial é que todo esse processo que visa a formação do professor tem como foco a atividade do aluno – estratégias, raciocínio, dificuldades, erros etc. –. Esse foco é o que irá orientar as ações a serem realizadas pelo professor no estudo de aula (Ponte et al., 2015; Souza; Wrobel; Baldin, 2018).

No grupo constituído para o estudo de aula, o trabalho tem início com a identificação de um problema ou uma questão relativa à aprendizagem dos alunos. Definido o problema ou a questão, o grupo estuda os materiais de ensino, as orientações curriculares, as possíveis estratégias para abordar o tema e outras informações consideradas necessárias para iniciar o planejamento de uma aula. O grupo segue, então, para o planejamento, momento em que elabora detalhadamente um plano de aula para lidar a questão identificada. Na sequência, a aula é realizada por um dos professores (eleito pelo grupo) com sua turma de alunos e é observada pelos demais colegas. Os professores que observam a aula não interferem no modo como ela é lecionada pelo professor da turma, mas registram aspectos da experiência vivida que lhes chamam a atenção para que subsidiem as discussões posteriores do grupo. Por último, quando todos retornam ao grupo, há o espaço para a reflexão acerca das ações vividas na aula.

Dependendo dos conhecimentos constituídos e das necessidades identificadas durante a reflexão da aula, o grupo pode optar por reorganizar o plano elaborado, para que a aula seja novamente realizada com outras turmas de alunos e novamente discutida (Richit; Ponte; Gómez, 2022). Essas etapas constituem ciclos de trabalho que, uma vez concluídos, podem reiniciar, favorecendo a construção de novos conhecimentos.

A reflexão no estudo de aula, “mais do que apenas um processo através do qual os professores olham para experiências da sua prática passada, revendo episódios, emoções e acontecimentos [...] projeta-se também para a prática a desenvolver” (Quaresma; Ponte, 2019, p. 170). Isto é, constitui-se em um processo no qual a ação a ser feita e a reflexão acerca da experiência vivida se articulam em favor do desenvolvimento profissional do professor. Com isso, insere o professor no centro de sua atividade profissional – o planejamento da aula, sua realização e a reorganização das práticas – para que compreenda a aprendizagem dos alunos e, se possível, favorecê-la, a partir de suas vivências tematizadas no grupo (Hummes; Breda; Font, 2022).

Em nossa vivência com o grupo de professoras e professores de Matemática em estudo de aula, abriram-se possibilidades para compreender o ensinar e aprender Matemática com RA. A maneira pela qual se pode abordar um tema com RA, a vivência dos alunos, a forma de exploração e as tarefas foram elementos importantes para a discussão do grupo. Parte do que tem se mostrado na análise dessa experiência vivida é o que procuraremos compartilhar neste texto.

3 Aspectos Metodológicos

A postura que assumimos em nossas pesquisas é a qualitativa com orientação fenomenológica. Segundo Bicudo (2010, p. 29), a fenomenologia pode ser compreendida “como a articulação do sentido do que se mostra, ou como reflexão sobre o que se mostra” e o caráter qualitativo da pesquisa vem das vivências que são percebidas e expressas (Bicudo, 2011). Na pesquisa, buscou-se compreender, na vivência com o grupo, o sentido que os professores atribuem à forma de trabalhar os conteúdos de Matemática por meio da RA. O que se mostra, emergiu nos diálogos expressos pelos participantes, os quais foram registrados em áudio e, depois, transcritos para constituir os dados da pesquisa.

É importante destacar que o pesquisador fenomenólogo descreve a experiência vivida a partir dos diálogos e, ao fazer a análise, busca “‘ir às coisas mesmas’, só que agora [...] já [...] destacadas de um fundo delineado pela interrogação formulada pelo pesquisador e que dá norte à investigação” (Bicudo, 2010, p. 41).

O grupo constituído para a formação com estudo de aula realizou as atividades do mês de setembro de 2022 até novembro de 2023. São professores de Matemática de uma escola pública de tempo integral de um município do interior paulista. Teve início com cinco professores da escola, os quais nomearemos de Edith, Euclides, Luciana, Logan e Wanda. Entretanto, em 2023, com a aposentadoria do professor Euclides, a professora Tati juntou-se ao grupo e o professor Logan deixou de participar, em virtude de problemas pessoais. Então, no primeiro semestre de 2023, as integrantes do grupo foram Edith, Luciana, Tati e Wanda. A experiência vivida considera as ações realizadas com o grupo até final do 1º semestre de 2023.

Os encontros do estudo de aula eram semanais, com cerca de duas horas-aula de duração e aconteciam na escola em que as professoras lecionam. O aplicativo de RA eleito para o estudo foi o GeoGebra AR2, instalado em iPads adquiridos com recurso de um projeto financiado pela FAPESP3. No período discutido neste texto, o grupo realizou dois ciclos de estudo de aula: um no 2º semestre de 2022 e outro no 1º semestre de 2023, sobre conteúdos de Geometria Espacial.

No 1º ciclo, trabalharam com as turmas de 3º ano do Ensino Médio e do 9º ano do Ensino Fundamental. Elegeram o tema Classificação de poliedros e corpos redondos, especialmente visando o desenvolvimento das habilidades de “identificar propriedades comuns e diferenças entre figuras bidimensionais e tridimensionais, relacionando-as com as suas planificações” (SEDUC-SP, 2009, p. 81), para o 9º ano, e “relacionar diferentes poliedros ou corpos redondos com suas planificações”, para o 3º ano (SEDUC-SP, 2009, p. 87). Durante os encontros de planejamento desse ciclo, foram feitas explorações de algumas construções, visando a familiarização dos professores com a tecnologia.

Para o 2º ciclo, as professoras optaram por elaborar duas avaliações – uma para o Ensino Fundamental e outra para o Ensino Médio – com questões que envolviam as habilidades de Geometria Espacial previstas no material da Secretaria da Educação do Estado de São Paulo (SEDUC-SP). O resultado das avaliações foi fundamental para orientar a escolha do tema a ser estudado.

A análise dos resultados mostrou que os alunos do 3º ano do Ensino Médio não demonstravam ter desenvolvido a habilidade: i) “relacionar diferentes poliedros ou corpos redondos com suas planificações” (SEDUC-SP, 2009, p. 87), trabalhada no 1º ciclo com os estudantes do 3º ano de 2022, e ii) “resolver problemas que envolvam relações métricas fundamentais (comprimentos, áreas e volumes) de sólidos como o prisma, a pirâmide, o cilindro e o cone” (SEDUC-SP, 2009, p. 87). Com isso, as professoras optaram por trabalhar com a habilidade ii), pois as tarefas poderiam ser pensadas para as turmas de 3º ano e outras que apresentassem dificuldades semelhantes. Ademais, a aula planejada durante o 1º ciclo do estudo de aula foi retomada com esses alunos para o desenvolvimento da habilidade i).

Na Figura 1, são apresentadas duas construções em RA feitas pelo grupo: a primeira traz os poliedros e corpos redondos que foram explorados na tarefa do 1º ciclo; a segunda traz a projeção do cubo e sua forma planificada, considerados em uma das tarefas do 2º ciclo. De modo geral, as tarefas solicitavam explorações sobre a classificação de poliedros, os polígonos das faces, área das faces, quantidade de faces, vértices e arestas, volume etc. Ou seja, em termos de conteúdo, não se diferenciavam do que normalmente se vê no livro didático. Porém, o objetivo era ver as explorações feitas com o aplicativo para compreender a ideia matemática.

Figura 1
Exemplos de construções em RA exploradas nas aulas

Para a discussão pós-aula que aconteceria com as professoras, optamos por gravar, além da própria aula, as telas dos iPads em que os alunos realizaram as tarefas. Com essas gravações, foram elaborados pequenos vídeos com recorte das ações dos alunos para subsidiar as discussões. No entanto, tais gravações não foram objeto de análise na pesquisa e nem disponibilizadas fora do espaço de discussão do grupo.

Passaremos a explicitar as compreensões das professoras sobre o ensino e a aprendizagem de Matemática com RA conforme a análise realizada.

4 Discussão considerando-se a análise dos dados

Interpretamos, nos diálogos com as professoras, aspectos que apontam para os seus modos de compreender o ensino e a aprendizagem de Matemática com RA. Dentre eles, destacamos a visualização, o movimento que possibilita a investigação e o modo de compartilhar o percebido.

Relativamente à visualização, as professoras entendem que esse tipo de tecnologia (a RA) favorece o desenvolvimento dessa habilidade, uma vez que a exploração permite vivenciar a profundidade, o que não é evidente com outros recursos, como as imagens em livros didáticos, as construções no quadro ou em cadernos etc. Frequentemente, na exploração de objetos tridimensionais nas aulas de Matemática, mesmo que seja por meio de tecnologias, há uma restrição ao que pode ser visto na tela do computador ou de um aparelho mobile. O objeto construído (a figura reproduzida no aplicativo) – por exemplo, um paralelepípedo – possui largura e comprimento e, para que seja possível identificar a dimensão da profundidade, o aluno precisa recorrer a sua imaginação. Isso porque ele ainda está olhando para uma representação plana do paralelepípedo. Essa imaginação da profundidade é um desafio para o aluno.

Com a projeção da construção em RA, esse desafio pode ser mais facilmente superado, pois o aluno elege a perspectiva da qual quer olhar para o objeto. Ele percorre suas arestas, pode situar-se no interior desse paralelepípedo, em um de seus vértices, olhá-lo de fora, por baixo ou por cima, devendo, para isso, posicionar-se, isto é, mover-se para movimentar para si as faces, vértices e arestas do objeto explorado. Conforme pontua a professora Luciana:

Professora Luciana: Eu comentei isso com eles [...] falei da aula [com RA] que a gente tinha feito [...] falei: olha o desenho que eu fiz aqui [na lousa], a gente explora pouco, eles [alunos] vão passar para o caderno e fica aquele negócio ruim [de ver]. Agora, olha a amplitude que dá para vocês mexerem [com a RA] [...] as faces, vocês conseguem ver todas as faces, conseguem ver os vértices [...] olha agora quando vocês usam o recurso [RA], vocês entram dentro do sólido, vocês exploram, então dá exatamente para ver o que é vértice, o que é aresta.

(Diálogo da professora, 2023).

A professora considera que, com a RA, esse espaço de exploração se amplia, pois os alunos se voltam para esses objetos que coexistem no espaço físico e elegem a perspectiva segundo a qual irão explorar. Na Figura 2, trazemos uma imagem para exemplificar tais possibilidades: o cubo visto por cima, o foco na sua aresta e o cubo visto por dentro, com destaque para um dos seus vértices.

Figura 2
– Perspectivas eleitas para ver o cubo

Além disso, a relação entre figuras bidimensionais e tridimensionais, que costuma ser pouco trabalhada em livros didáticos devido à “dificuldade na representação (desenho) e na leitura das formas bidimensionais e tridimensionais, que ocorre desde a antiguidade” (Amaral et al., 2022, p. 109), também é algo que as professoras consideram que pode ser tratado com a RA.

A profundidade, conforme a compreendemos com Merleau-Ponty (2018, p. 345), não é apenas mais uma dimensão acrescida à largura e ao comprimento. Trata-se de uma dimensão existencial que “não se indica no próprio objeto, evidentemente ela pertence à perspectiva e não às coisas”. Para o autor, assim como ela não pode ser extraída das coisas, também não pode ser inserida pela consciência, pois “anuncia um certo elo indissolúvel entre as coisas e mim, pelo qual estou situado diante delas” (Merleau-Ponty, 2018, p. 345).

Isso significa que, diferindo-se da largura (ou do comprimento), que pode ser interpretada como presente ao objeto sem necessariamente implicar a pessoa que o percebe, a profundidade, como uma dimensão ainda não objetivada4, isto é, posta em termos de relações, é uma dimensão que se anuncia ao ser vivida pelo corpo que se coloca em movimento no mundo, buscando ver em perspectiva o que a ele se anuncia.

Ainda com Merleau-Ponty (2018, p. 346) entendemos que a grandeza aparente e a convergência são “‘signos’ que, por hipótese, deveriam introduzir-nos na experiência do espaço”. No entanto, continua o autor, tais signos só podem “significar o espaço se eles já são apreendidos nele e o espaço já é conhecido”. Então, como conhecer o espaço de modo originário ou “antes da objetivação”? Segundo Merleau-Ponty (2018), pela percepção.

A percepção, na perspectiva fenomenológica, é a experiência originária, “é a iniciação ao mundo e, como se disse da profundidade, ‘antes dela não há nada que seja espírito’, não podemos colocar nela relações objetivas que em seu nível ainda não estão constituídas” (Merleau-Ponty, 2018, p. 346). A grandeza aparente e a convergência “não estão presentes na percepção como fatos objetivos” (Merleau-Ponty, 2018, p. 348) e não fazem aparecer a profundidade. Elas “não são nem signos nem causas da profundidade: elas estão presentes na experiência da profundidade assim como o motivo, mesmo quando não está articulado e posto à parte, está presente na decisão” (Merleau-Ponty, 2018, p. 348, grifo do autor).

Paulo (2001) esclarece que a percepção espacial ou a ideia de profundidade que as professoras procuram compreender, ocorre motivada por nossa experiência de corpo vivente. Ele é o que nos permite vivenciar a cultura, a história e nos faz engajados nas ações (Bicudo, 2022), tornando-nos presença no mundo.

Pela presença, atribuímos significado às direções – direita, esquerda, dentro, fora – e tomamos uma posição para ver algo em perspectiva. Os objetos tridimensionais explorados pelos alunos passam a existir para eles “pela experiência perceptiva [que se] afunda na espessura do mundo” (Merleau-Ponty, 2018, p. 275) e se fazem reconhecer, revelando um sentido.

Desse modo, a profundidade, para além de ser mais uma dimensão do objeto, é uma experiência originária que não é causada pela convergência e grandeza aparente, embora estas a motivem por serem “uma certa maneira de olhar à distância” (Merleau-Ponty, 2018, p. 349).

A profundidade, com a RA, é vivenciada de forma diferente, pois o aluno a compreende como possibilidade de um sujeito engajado, revelando-se “imediatamente o elo do sujeito ao espaço” (Merleau-Ponty, 2018, p. 360). Os objetos geométricos tridimensionais são compreendidos na ação, no movimento do aluno que quer ver as construções. Edith destaca a ação do aluno que deseja experienciar essa dimensão da profundidade.

Professora Edith: Ele [aluno] vai agachar, ele percebe que está muito ruim para agachar [e fala:] não, espera aí, vou erguer esse troço aqui [aumentar a altura na construção], ele vai lá e ergue [para conseguir abaixar dentro da construção].

(Diálogo da professora, 2023).

Esse movimento é do corpo vivente ou corpo-próprio que, com o aplicativo de RA, tem ampliadas suas possibilidades e abre um campo de sentido.

As professoras, ao analisarem a forma como os alunos realizam as explorações, destacaram a disposição para participar das tarefas, a curiosidade para explorar as construções e o entendimento que expressavam acerca dos conteúdos que viam.

Professora Luciana: Você viu eles falando? Temos que ir até lá [construção] e eles foram até lá. [...] Vamos entrar [...] você vê que eles estavam explorando bastante. Eles estavam mais interessados, estavam interagindo mais.

Professora Tati: Ela foi colocando o dedinho [para contar as faces], porque aí passa a ter uma visão mesmo, de dentro da figura ali.

(Diálogo entre as professoras, 2023).

Luciana enfatiza o movimento dos alunos para entrar nos objetos projetados, o que, para ela, mostra o interesse e a disposição em realizar as explorações. Tati se volta para a estratégia da aluna que utiliza os dedos para a contagem das faces dos poliedros, como se fossem objetos tangíveis. Interpretamos, nessas falas das professoras, a compreensão de que o corpo pode ser entendido “como lugar de um conhecimento originário do mundo e de si próprio, um saber sensível que antecede o conhecimento reflexivo, mas, ao mesmo tempo, possibilita-o” (Santos, 2016, p. 165).

Essa interpretação feita por nós é motivada por entender que, mais do que estarem atentas às propriedades ou características dos objetos, as professoras se voltam para o movimento corporal dos alunos ao fazerem as explorações. Entendem que esse movimento lhes dá abertura para (re)descobrir as características dos objetos virtuais em articulação com as questões de Geometria propostas.

Essa experiência é originária, pois dada na percepção, revela que o conhecimento que temos do mundo é sempre em perspectiva e, portanto, inesgotável. A depender de nossas vivências, o mundo faz sentido a partir de aspectos distintos (Santos, 2016). Do mesmo modo, no movimento para explorar a construção, abrem-se caminhos diversos que podem favorecer a constituição de conhecimento, porque, tendo liberdade para explorar, o aluno elege as perspectivas que lhe possibilitam criar estratégias para a resolução da tarefa proposta. Essas estratégias são particulares e não têm um padrão a ser seguido por toda a turma. Porém, são compartilhadas, expressas, discutidas e podem levar a uma sistematização importante para o conhecimento matemático.

Os diálogos com as professoras também mostraram que os gestos dos alunos, quando interagem com a RA, foram compreendidos como se estivessem lidando com objetos reais. Ou seja, como se os objetos virtuais projetados no ambiente estivessem lá fisicamente.

Professora Edith: Vários alunos falaram: “tô preso aqui dentro” [Figura 3]!

Figura 3
– Capturas de tela: vendo o prisma por dentro

(Diálogo da professora, 2023).

A fala de Edith, que procuramos ilustrar na Figura 3, indica uma interpretação de que o objeto projetado se materializa, pois o aluno fica preso nele. Com Merleau-Ponty (2018, p. 357), pode-se dizer que há, para esse aluno, a experiência originária da profundidade em que não há uma grandeza aparente definida a partir de uma distância. Não existe, também, uma busca ou uma correção das aparências que fazem coexistir faces e arestas. Há, sim, “o investimento do objeto por meu olhar que o percorre, o anima, [...] [fazendo] as coisas ou os elementos das coisas se envolverem uns aos outros”. Dizemos que há a experiência originária da profundidade, na qual se “revela imediatamente o elo do sujeito ao espaço” (Merleau-Ponty, 2018, p. 360) – e fico preso aqui... dentro.

Professora Tati: Eu achei a Realidade Aumentada fantástica. Primeiro porque faz já gostar, se você não sabe nada [de geometria], nunca viu nada, você quer ver aqui [com a RA] e você já gosta [...] mas eu gosto muito da parte que você toca, sabe, que você pega, eu acho isso fantástico também, para ele tocar e ver o que tem [na construção], ir abrindo.

(Diálogo da Professora, 2023).

Edith e Tati consideram que, quando o aluno explora as construções projetadas em RA junto aos objetos e pessoas, ele rompe a separação sujeito-objeto, pois não é mais mero observador, há uma interação e uma imersão (Schuster; Rosa, 2021) no mundo dessas construções. Santos (2016, p. 163) afirma que, como “são as sensações vivenciadas pelos sentidos que despertam a percepção do sujeito para si próprio e para o ambiente à sua volta, de forma que é esta percepção do sujeito que vai possibilitar a construção de um sentido”, pode-se dizer que essa imersão o faz sentir-se parte desse cenário virtual/real.

O “corpo que vive a experiência perceptiva, que habita o espaço, que revela o que se mostra à percepção, [...] é origem de todas as atividades perceptivas e estas só se tornam visíveis (só se revelam) pelo engajamento no mundo percebido” (Paulo; Batista; Pereira, 2023, p. 235). Com isso, os objetos matemáticos passam a fazer sentido a partir das possibilidades que se tem para interagir – tocar, entrar, pisar etc. –, em um cenário que traz objetos físicos e virtuais em coexistência com aqueles que os exploram.

Cabe ressaltar que essas sensações não são pontuais, pois se encontram no corpo-próprio, sendo uma abertura à percepção. O percebido faz sentido de modo particular a cada um. No entanto, os significados que emergem durante o diálogo tornam o compreendido aberto ao outro – colegas e professora. Essa abertura também é originária, pois o corpo é um espaço expressivo por meio do qual ocorre a comunicação com o outro e com o mundo. Isso significa que, ao mesmo tempo em que o movimento da pessoa que explora com RA destaca a autonomia e a singularidade de cada aluno (Santos, 2016), o conhecimento possibilitado passa a ser uma construção coletiva.

Esse modo de entender o compartilhar com o outro é expresso nas afirmações das professoras Wanda e Edith:

Professora Wanda: [...] eles não conseguem explorar totalmente sozinhos [...], então um começou a comunicar para o outro [...] e aí eles ficaram conversando entre si [...]: “Gente, dá para entrar nas figuras, vem cá para vocês verem” [imitando a fala do aluno]. Aí eles iam em outro grupo para mostrar que dá para entrar na figura, entendeu?

Professora Edith: Eles começam a falar: “abaixa aí para você ver que dá para entrar lá” [na construção]. “Ahh, dá para entrar lá?” [na construção]. Aí vai o outro [aluno] e entra.

(Diálogo das professoras, 2023).

Para as professoras, as atitudes dos alunos na aula demonstram que há uma necessidade de compartilhar com os colegas o que cada um entende ao explorar as construções em RA. Esse compartilhar não visa apenas expor o entendido, mas busca convidar o outro para vivenciar experiências semelhantes às suas. Isso ocorre porque, em uma postura fenomenológica, entendemos a pessoa “como um ser repleto de subjetividade” (Santos, 2016, p. 180). Ou seja, embora consideremos que a constituição de conhecimento é um processo subjetivo, de compreensão da pessoa que se dispõe a fazer explorações, pela característica do humano, que sempre está no mundo com o outro, abre espaço para o processo intersubjetivo por meio da comunicação.

Nesse processo intersubjetivo, as características dos objetos matemáticos são evidenciadas e, com a mediação do professor, podem ser sistematizadas ou objetivadas. Vale destacar que, na experiência que trouxemos, fazendo explorações de figuras da Geometria Espacial, a visualização era um aspecto importante que o grupo queria enfatizar. Porém, esse ver possibilitado pelo movimento com a RA não é um simples olhar, mas uma abertura em que se instaura a visibilidade.

A visibilidade é entendida como “a situação do corpo dirigindo-se para o mundo visível que o envolve em todas as direções”, pois “é uma forma visível que se põe a aparecer e aquele que vê é um corpo que se põe a ver. O corpo que experimenta ver carrega consigo a condição de ser corpo que se situa dinamicamente no mundo visível e [...] tem um parentesco radical como esse mundo” (Caminha, 2014, p. 65).

Por ser uma estrutura dinâmica, aquilo que se mostra na visibilidade nunca é alcançado em sua plenitude, pois o olhar possui limitações e a cada movimento ele vê o objeto de uma determinada perspectiva, embora nunca o veja em sua totalidade. Essas limitações revelam que há uma cegueira na visão, pois sempre haverá aspectos invisíveis naquilo que se faz visível, tornando os modos de aparecer dos objetos inesgotáveis. Assim, pode-se dizer que os “olhos que se dirigem ao mundo para ver ganham uma relação de proximidade com as coisas visíveis, mas também ganham uma relação de distância daquilo que não se vê” (Caminha, 2014, p. 64).

Por fim, destaca-se que a expressão por meio de movimentos corporais é bastante explorada em disciplinas como as de Educação Física e até mesmo de artes, mas não nas aulas de Matemática. É esse um dos principais aspectos que faz a RA ser, ao mesmo tempo, um diferencial para favorecer a constituição de conhecimento do aluno e um desafio para a prática de ensino do professor de Matemática: como fazer com que os alunos se movam para explorar com a RA se há uma cultura de ficar sentado resolvendo exercícios?

No grupo, a superação desse desafio veio com a busca por modos de dar liberdade ao movimento dos alunos. Ao notarem que os estudantes tinham a tendência de se sentar e olhar as construções na tela do aplicativo, os professores cogitaram a possibilidade de as aulas ocorrerem em ambientes amplos, com espaço suficiente para os alunos se movimentarem.

Professora Wanda: Eu acho que, a princípio, tem que achar uma maneira de tirar eles da zona de conforto, entendeu? Então eu acredito que trocando o local já ajuda, senão [na sala de aula] eles sentam, se acomodam e não conseguem participar.

Professora Edith: A gente podia propor de levar eles num lugar que não tem muita mesa e cadeira [...] para explorar melhor, [...] daí eles vão explorar em pé [...] porque é um ambiente diferente, para ver como é que vai ser.

(Diálogos das professoras, 2023).

A intenção de dar espaço para o movimento – seja no sentido de um movimento físico ou intencional – levou as professoras a conduzirem suas aulas no refeitório ou na quadra da escola. Essa mudança de ambiente possibilitou o alcance de resultados positivos em relação ao objetivo que tinham: os alunos se deslocavam pelo ambiente e realizavam as explorações de forma mais espontânea. Interpretamos que a mudança não foi apenas do ambiente da aula, mas da atitude das professoras, que entenderam a proposta, e dos próprios alunos, que passaram a considerar a possibilidade de investigar em Matemática.

5 Considerações Finais

A vivência com as professoras e os professores no grupo de formação com estudo de aula lhes permitiu discutir as possibilidades para o ensino e a aprendizagem de Matemática com RA. Consideramos, pela análise da experiência vivida, que elas e eles entendem que o trabalho com esse tipo de tecnologia favorece a visualização, que o conhecimento constituído é aberto ao outro por meio do diálogo e das expressões corporais, e para que o aluno possa se envolver com as explorações, é preciso dar espaço para o movimento. Isso, de certo modo, dá sentido ao interrogado: como o professor de Matemática da Educação Básica compreende o ensino e a aprendizagem de Matemática com RA?

Vimos que a visualização é desenvolvida na experiência da profundidade, entendida como uma dimensão originária que não pode ser percebida nas construções feitas no quadro, em papel ou mesmo com tecnologias que tenham as explorações restritas à tela dos dispositivos. O movimento corporal é o que permite a vivência da profundidade e, ao mesmo tempo, expande o espaço investigativo do aluno, que se vê compondo o ambiente com objetos físicos e virtuais. Ou seja, ele não é mais mero espectador que observa ou manipula a construção, mas é alguém que se doa ao cenário e nele se envolve para explorá-lo. Esse movimento é, então, intencionalidade originária do corpo-próprio que se dispõe a ver.

O professor, atento ao movimento do aluno que busca ver os objetos que está explorando, entende o sentido do ver que “não se limita a sensação das qualidades de caráter visual, àquilo que nos chega pelos olhos, pois o corpo-próprio as vive. Há a intenção de mover-se para ver e, nas explorações, o aluno se coloca em condições de [...] [ver] aquilo que a ele vai se mostrando em seus diferentes modos de doação” (Paulo; Batista; Pereira, 2023, p. 238, grifos dos autores).

Os gestos do aluno que explora determinada figura com a RA, além de ser o meio que possibilita a compreensão do professor acerca do sentido que as explorações fazem para ele, é um modo de interagir com os objetos virtuais que investiga, entrando nos sólidos, tocando seus vértices, caminhando sobre as arestas etc. É, também, um modo de estar com o outro, colega com quem dialoga.

O que se abre na percepção leva o aluno a se sentir junto ao outro, e esse sentimento desperta o desejo de que o outro veja aquilo que lhe está sendo revelado. Para isso, articula o percebido desdobrando-o em atos de compreensão e expressa, comunica. Nesse movimento de perceber, articular o percebido e comunicar, ocorre a constituição de conhecimento em uma ação coletiva.

Compreender como o conhecimento é constituído com RA leva a uma mudança de atitude do aluno e do professor. O aluno, que está acostumado a dar respostas aos exercícios, coloca-se em movimento para explorar as tarefas da aula de Matemática. O professor aceita o desafio de buscar estratégias diferenciadas, de incentivar o movimento do aluno.

No grupo, as professoras sentiram a necessidade de mudar o próprio local em que a aula era realizada, para dar liberdade de movimento aos alunos, mas a experiência também mostrou que, além da mudança de local, é importante o envolvimento dos e com os alunos, pois é ele que permite explorações das possibilidades para a “prática de atividades, que possibilite a liberação das emoções, o prazer da participação, que favoreça ao educando condições para o novo e que através de experiências ele possa perceber o que seu corpo é capaz de fazer e a partir daí, desenvolver todas as suas potencialidades” (Verderi, 2000, p. 30).

Sobretudo, mostrou-se importante para as professoras e professores entenderem o modo pelo qual os objetos geométricos explorados – poliedros e corpos redondos, objetos da geometria espacial – podem ser compreendidos pelos alunos. Para desenvolver as habilidades i e ii, anteriormente destacadas, é preciso explorar os objetos tridimensionais, o que significa vivenciar a profundidade. Ver uma figura espacial – um poliedro – significa compreender o seu sentido, percebê-lo “em profundidade”.

Pode-se dizer, com Merleau-Ponty (2018, p. 355), que na percepção de um sólido geométrico, como um cubo, “o sentido do percebido me aparece como instituído nele e não como constituído por mim”. Logo, a coexistência dos elementos característicos dos sólidos geométricos, que os fazem aparecerem como uma figura, não se dá pelo “pensamento das relações geométricas de igualdade e do ser geométrico ao qual elas pertencem”, mas sim devido ao “investimento do objeto por meu olhar que o percorre, o anima, e faz as suas faces valerem imediatamente como ‘quadrados vistos de viés’, a ponto de nós nem mesmo os vermos sob o aspecto perceptivo de losango” (Merleau-Ponty, 2018, p. 357).

Com isso, concluímos com o autor que “a profundidade não pode ser compreendida como pensamento de um sujeito acósmico, mas como possibilidade do sujeito engajado [revelando] [...] o elo do sujeito ao espaço” (Merleau-Ponty, 2018, p. 360). Para essa vivência espacial, o movimento do corpo-próprio é fundamental, pois é nele que se manifesta de modo sensível a “implicação espacial e temporal” (Merleau-Ponty, 2018, p. 371), que proporciona condições para que as coisas coexistam no espaço, bem como para compreender que “as partes do espaço segundo a largura, a altura e a profundidade não são justapostas, elas coexistem porque estão todas envolvidas no poder único do nosso corpo sobre o mundo” (Merleau-Ponty, 2018, p. 371) em uma relação que é temporal, antes que espacial.

Agradecimentos

Agradecemos ao CNPq (processo nº 151812/2022-5) e à FAPESP (processo nº 2019/16799-4) o financiamento dos projetos que possibilitaram a pesquisa desenvolvida.

Referências

  • AMARAL, R. B.; MAZZI, L. C.; ANDRADE, L. V.; PEROVANO, A. P. Livro Didático de Matemática: compreensões e reflexões no âmbito da Educação Matemática. Campinas: Mercado de Letras, 2022.
  • BAIRRAL, M. A.; HENRIQUE, M. P. Smartphones com Toques da Educação Matemática: mãos que pensam, inovam, ensinam, aprendem e pesquisam. Curitiba: CRV, 2021.
  • BATISTA, C. C. Perceber-se professor de matemática com tecnologia no movimento de forma/ação. 2021. 258 f. Tese (Doutorado em Educação Matemática) - Instituto de Geociências e Ciências Exatas. Universidade Estadual Paulista, Rio Claro. Disponível em: https://repositorio.unesp.br/handle/11449/215834 Acesso em: 20 maio 2023.
    » https://repositorio.unesp.br/handle/11449/215834
  • BEZERRA, R. C.; MORELATTI, M. R. M. A construção da identidade profissional do professor que ensina Matemática no contexto da Lesson Study. In: RICHIT, A.; PONTE, J. P.; GÓMEZ, E. S. (orgs.). Estudos de Aula na Formação Inicial e Continuada de Professores. São Paulo: Livraria da Física, 2022. p. 25-52.
  • BICUDO, M. A. V. A formação do professor: um olhar fenomenológico. In: BICUDO, M. A. V (org). Formação de professores? Da incerteza à compreensão. Bauru: EDUSC, 2003. p. 19-46.
  • BICUDO, M. A. V. Filosofia da Educação Matemática segundo uma perspectiva fenomenológica. In: BICUDO, M. A. V. (org). Filosofia da educação matemática: fenomenologia, concepções, possibilidades didático-pedagógicas. São Paulo: UNESP, 2010. p. 23-47.
  • BICUDO, M. A. V. Aspectos da pesquisa qualitativa efetuada em uma abordagem fenomenológica. In: BICUDO, M. A. V. (org.). Pesquisa qualitativa segundo uma visão fenomenológica. São Paulo: Cortez, 2011. p. 29-40.
  • BICUDO, M. A. V. Introdução. In: BICUDO, M. A. V. (org.). Cyberespaço: Possibilidades que abre ao mundo da educação. São Paulo: Livraria da Física, 2014. p. 15-34.
  • BICUDO, M. A. V. Filosofia da educação matemática: sua importância na formação de professores de matemática. In: SILVA, R. S. R. da (org.). Processos formativos em educação matemática: perspectivas filosóficas e pragmáticas. Porto Alegre: Editora Fi, 2018. p. 29-45. Disponível em: https://sbem-go2.websiteseguro.com/anais/index.php/EnGEM/article/view/2 Acesso em: 30 abr. 2020.
    » https://sbem-go2.websiteseguro.com/anais/index.php/EnGEM/article/view/2
  • BICUDO, M. A. V. Corpo vivente: centro de orientação eu-mundo-outro. Médica Review, Madrid, v. 10, n. 2, p. 119-135, 2022. Disponível em: http://www.mariabicudo.com.br/resources/MEDICA_3337%20b.pdf Acesso: 6 jan. 2025.
    » http://www.mariabicudo.com.br/resources/MEDICA_3337%20b.pdf
  • CAMINHA, I. O. A cegueira da visão segundo Merleau-Ponty. Revista Estudos Filosóficos, São João D'El Rey, v. 2, n. 13, p. 63-72, 2014. Disponível em: https://www.ufsj.edu.br/portal2-repositorio/File/revistaestudosfilosoficos/art5%20rev13.pdf Acesso em: 20 abr. 2023.
    » https://www.ufsj.edu.br/portal2-repositorio/File/revistaestudosfilosoficos/art5%20rev13.pdf
  • FERREIRA, H. S. O uso de software e seu impacto no tipo de resolução de exercícios de geometria. 2018. 66 f. Dissertação (Mestrado Profissional em Matemática) - Unidade Acadêmica Especial de Ciências Exatas e Tecnológicas, Universidade Federal de Goiás, Jataí, 2018. Disponível em: https://repositorio.bc.ufg.br/tede/handle/tede/9272 Acesso em: 20 maio 2023.
    » https://repositorio.bc.ufg.br/tede/handle/tede/9272
  • HUMMES, V.; BREDA, A.; FONT, V. Critérios de adequação didática implícitos na reflexão de professores quando planejam, implementam e redesenham uma aula em uma experiência de Lesson Study. In: RICHIT, A.; PONTE, J. P.; GÓMEZ, E. S. (orgs.). Estudos de Aula na Formação Inicial e Continuada de Professores. São Paulo: Livraria da Física, 2022. p. 53-88.
  • LOPES, L. M. D.; VIDOTTO, K. N. S.; POZZEBON, E.; FERENHOF, H. A. Inovações educacionais com o uso de Realidade Aumentada: uma revisão sistemática. Educação em Revista, Belo Horizonte, v. 35, p. e197403, 2019. Disponível em: https://www.scielo.br/j/edur/a/D8BG7VqVDPmYk3d5xmCJJyF/ Acesso em: 20 jun. 2023.
    » https://www.scielo.br/j/edur/a/D8BG7VqVDPmYk3d5xmCJJyF/
  • MERLEAU-PONTY, M. Fenomenologia da Percepção. Tradução de Carlos Alberto Ribeiro de Moura. 5. ed. São Paulo: Martins Fontes, 2018.
  • MOCROSKY, L. F.; MONDINI, F.; ORLOVSKI, N. A quem interessar possa. In: PAULO, R. M.; FIRME, I. C.; BATISTA, C. C. (org.). Ser Professor com Tecnologias: sentidos e significados. São Paulo: Cultura Acadêmica, 2018. p. 41- 54. Disponível em: https://www.academia.edu/38181508/Ser-professor-com-tecnologias.pdf Acesso em: 20 abr. 2020.
    » https://www.academia.edu/38181508/Ser-professor-com-tecnologias.pdf
  • MOCROSKY, L. F.; ORLOVSKI, N.; LIDIO, H. O Professor que Ensina Matemática nos Anos Iniciais: uma abertura ao contínuo acontecer histórico. Revista IberoAmericana de Estudos em Educação, Araraquara, v. 14, n. 1, p. 222-236, jan./mar. 2019. Disponível em: https://periodicos.fclar.unesp.br/iberoamericana/article/view/10894 Acesso em: 28 jun. 2021.
    » https://periodicos.fclar.unesp.br/iberoamericana/article/view/10894
  • PAULO, R. M. A compreensão geométrica da criança: um estudo fenomenológico. 2001. 321 f. Dissertação (Mestrado em Educação Matemática) - Instituto de Geociências e Ciências Exatas. Universidade Estadual Paulista, Rio Claro, 2001.
  • PAULO, R. M.; BATISTA, C. C.; PEREIRA, A. L. O movimento na/para a constituição de conhecimento com Realidade Aumentada. In: BICUDO, M. A. V., PINHEIRO, J. M. L (org.). Corpo-vivente e a constituição de conhecimento matemático. São Paulo: Livraria da Física, 2023. p. 229-253.
  • PONTE, J. P.; QUARESMA, M.; MATA-PEREIRA, J.; BAPTISTA, M. Exercícios, problemas e explorações: Perspectivas de professoras num estudo de aula. Quadrante, Lisboa, v. 24, n. 2, p. 111-134, 2015. Disponível em: https://repositorio.ul.pt/bitstream/10451/22628/1/Ponte,%20MQ,%20JMP,%20MB%20Quadrante%2024 (2)%202015.pdf Acesso em: 10 jul. 2020.
    » https://repositorio.ul.pt/bitstream/10451/22628/1/Ponte,%20MQ,%20JMP,%20MB%20Quadrante%2024 (2)%202015.pdf
  • QUARESMA, M.; PONTE, J. P. Dinâmicas de Reflexão e Colaboração entre Professores do 1.º Ciclo num Estudo de Aula em Matemática. Bolema, Rio Claro, v. 33, n. 63, p. 368-388, 2019. Disponível em: https://www.scielo.br/j/bolema/a/YDRhdGMpwptfFwtXGr4RmcN/?lang=pt&format=pdf Acesso em: 31 jul. 2023.
    » https://www.scielo.br/j/bolema/a/YDRhdGMpwptfFwtXGr4RmcN/?lang=pt&format=pdf
  • ROSA, M.; SEIDEL, D. J. Cyberformação com professores de matemática: desvelando o movimento de perceber-se como professor on-line. In: BICUDO, M. A. V. (org.). Ciberespaço: Possibilidades que abre ao mundo da educação. São Paulo: Livraria da Física, 2014. p. 343-390.
  • RICHIT, A.; PONTE, J. P.; GÓMEZ, E. S. Apresentação: Estudos de aula na formação inicial e continuada de professores. In: RICHIT, A.; PONTE, J. P.; GÓMEZ, E. S. (org.). Estudos de Aula na Formação Inicial e Continuada de Professores. São Paulo: Livraria da Física, 2022. p. 11-23.
  • SANTOS, L. A. M. O Corpo Próprio como Princípio Educativo: a perspectiva de Merleau-Ponty. Curitiba: Appris, 2016.
  • SCHUSTER, P. E. S; ROSA, M. Realidade Aumentada e a Cyberformação de uma Professora de Matemática: Pontos Críticos de Funções de Duas Variáveis. Jornal Internacional de Estudos em Educação Matemática - JIEEM, São Paulo, v. 14, n. 2, p. 130-141. 2021. Disponível em: https://jieem.pgsskroton.com.br/article/view/9128 Acesso em: 20 dez. 2022.
    » https://jieem.pgsskroton.com.br/article/view/9128
  • SECRETARIA DE ESTADO DE EDUCAÇÃO - SEDUC/SP. Matrizes de referência para a avaliação SARESP: documento básico. São Paulo: SEDUC, 2009. Disponível em: https://saresp.fde.sp.gov.br/Arquivos/MatrizReferencia_2019.pdf Acesso em: 14 abr. 2023.
    » https://saresp.fde.sp.gov.br/Arquivos/MatrizReferencia_2019.pdf
  • SOUZA, M. A. V. F.; WROBEL, J. S.; BALDIN, Y. Y. Lesson Study como Meio para a Formação Inicial e Continuada de Professores de Matemática - Entrevista com Yuriko Yamamoto Baldin. Boletim Gepem, Rio de Janeiro, [s.v.], n. 73, p. 115-130, 2018. Disponível em: https://doi.editoracubo.com.br/10.4322/gepem.2018.020 Acesso em: 5 maio 2019.
    » https://doi.editoracubo.com.br/10.4322/gepem.2018.020
  • VERDERI, E. B. L. P. Dança na Escola. 2. ed. Rio de Janeiro: Sprint, 2000.
  • 2
    AR é a abreviação do termo inglês Augmented Reality, traduzido para Realidade Aumentada. Como já dissemos, trata-se de uma funcionalidade do aplicativo Geogebra Calculadora 3D.
  • 3
    Projeto nomeado de A constituição do conhecimento matemático com Realidade Aumentada, processo 2019/16799-4.
  • 4
    Merleau-Ponty (2018, p. 346) nos diz que a experiência objetivada da profundidade “consiste em decifrar certos fatos dados – a convergência dos olhos, a grandeza aparente da imagem – recolocando-os no contexto de relações objetivas que os explicam”. Porém, segundo esse autor, se tenho a possibilidade de transitar da grandeza aparente ao seu significado é porque sei “que existe um mundo de objetos indeformáveis”.
  • 1
    Pesquisa realizada com apoio financeiro do Conselho Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico, CNPq, Brasil (processo nº 151812/2022-5). Foi aprovada pelo Comitê de Ética em Pesquisa da Faculdade de Ciências da UNESP/Campus Bauru (parecer nº 5.619.452). O estudo realizado vincula-se a um projeto do Edital 09/2020 financiado pelo Conselho Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico, CNPq, Brasil.

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    07 Abr 2025
  • Data do Fascículo
    2025

Histórico

  • Recebido
    15 Dez 2023
  • Aceito
    13 Maio 2024
location_on
UNESP - Universidade Estadual Paulista, Pró-Reitoria de Pesquisa, Programa de Pós-Graduação em Educação Matemática Avenida 24-A, 1515, Caixa Postal 178, 13506-900 - Rio Claro - SP - Brazil
E-mail: bolema.contato@gmail.com
rss_feed Acompanhe os números deste periódico no seu leitor de RSS
Reportar erro