Open-access Sociedade do Algoritmo e a Educação Matemática Crítica

Algorithm Society and the Critical Mathematics Education

Resumo

O avanço tecnológico vem se desenvolvendo de forma acelerada e os algoritmos são basilares nessa estrutura, contribuindo para sua formatação social. A partir desse contexto, teve-se como objetivo neste artigo buscar subsídios que impulsionem reflexões sobre as implicações sociais da Matemática na sociedade do algoritmo, bem como sobre o papel social da Educação Matemática nesse cenário. O artigo trata-se de um ensaio teórico, uma vez que se caracteriza por uma natureza reflexiva e interpretativa. Este ensaio é fundamentado na perspectiva da Educação Matemática Crítica e na relação Ciência Tecnologia e Sociedade, particularmente sobre a denominada Equação Civilizatória. De forma a exemplificar as reflexões teóricas-conceituais levantadas no artigo, apresenta-se também os resultados de um estudo empírico, cujo objetivo foi o de investigar como estava a compreensão de alguns sujeitos sociais, usuários das tecnologias digitais, sobre as implicações sociais da modulação algorítmica, atrelada ao advento da revolução digital. Conclui-se que há carência de discussões críticas sobre a imbricação entre a tecnologia e a Matemática como ferramenta basilar na construção dos modelos sociais. Com isso, propõe-se para o campo da Educação Matemática a aproximação com as preocupações da Educação Matemática Crítica imbricada à Equação Civilizatória, de modo a problematizar as aplicações sociais da matemática e promover reflexões sobre suas implicações.

Palavras-chave Algoritmo; Equação Civilizatória; Educação matemática crítica; Modulação social; Revolução digital

Abstract

Technological advances have been developing in an accelerated way and algorithms are fundamental in this structure, contributing to its social formatting. From this context, the objective of this paper was to seek subsidies that boost reflections on the social implications of mathematics in the algorithm society, as well as on the social role of Mathematics Education in this scenario. The research is based on the perspective of Critical Mathematics Education and on the relationship between Science, Technology and Society, especially in the Civilizing Equation. Qualitative research was developed through propositional theoretical reflections and the data are presented in the parameters of Discursive Textual Analysis. Through online questionnaires, aimed at two social spheres, it was investigated what level of information individuals have about mathematical modulation and its possible social impacts. It is concluded that there is a lack of discussions about the imbrication between technology and mathematics as a basic tool in the construction of social models. Thus, it is proposed for the field of Mathematical Education an approximation with the Civilizing Equation.

Keywords Algorithm; Civilizing Equation; Critical mathematics education; Social Modulation; Digital revolution

1 Sociedade do algoritmo: algumas inquietações

Vivenciamos no início do século XXI uma sociedade digital, denominada por Schwab (2016), de 4ª Revolução Industrial ou Revolução 4.0, expressão que representa a acelerada magnitude das transformações do mundo pela tecnociência. Basta observar a intensidade da sua influência, o respeito à sua autoridade e a participação em seu funcionamento. Estamos falando das tecnologias disruptivas: o Big Data, a inteligência artificial, a internet das coisas e a robótica, cada vez mais, fazem parte do nosso cotidiano. Ao sermos usuários de e-mail, de provedores de filmes e séries de televisão via streaming, como Netflix, de aplicativos de rotas via satélite como o Google Maps, de redes sociais como Twitter, Facebook e Instagram e tantos outros aplicativos algoritmizados, estamos sujeitos a uma modulação social. Ou seja, essas tecnologias digitais alteram nosso jeito de viver e prometem muito mais.

A Revolução Industrial é considerada uma marca histórica no processo civilizatório, cujo desenvolvimento nos remete a mudança radical nas estruturas da sociedade, de modo a melhorar e facilitar o processo produtivo. Entretanto, a nova e eminente revolução remete a importantes preocupações quanto o direcionamento das tecnologias.

Para entender os meandros dessa configuração cultural, voltamos a lente de análise para os algoritmos matemáticos, que por sua vez, são instrumentos que auxiliam na formatação dos modelos sociais (Civiero, 2016), levando a denominar o momento atual de sociedade do algoritmo. Enquanto educadores matemáticos, preocupados com o possível cenário que visa a algoritmização da vida, nos instigamos sobre o papel da Educação Matemática (EM), e mais particularmente, sobre os problemas contemporâneos aos quais a EM pode fazer frente.

A Educação foi usada na 1ª Revolução Industrial como forma de controle de massas populares trazendo um falso empoderamento das minorias. Nessa ótica, “[...] a revolução industrial muda também as condições e as exigências da formação humana” (Manacorda, 2006, p. 271). Com essa visão, Manacorda já questionva sobre o papel da instrução frente às mudanças daquela época. Voltando a lente para a atualidade, questionamos: frente à revolução digital, quais são as possibilidades educacionais? Para essa questão, temos como pressuposto que se faz necessário a visão crítica da realidade e, para tanto, é fundamental a compreensão da organização social.

O artigo trata-se de um ensaio teórico, uma vez que se caracteriza por uma natureza reflexiva e interpretativa. Este ensaio é fundamentado na perspectiva da Educação Matemática Crítica e na relação Ciência Tecnologia e sociedade, particularmente sobre a denominada Equação Civilizatória. Seu objetivo é o de possibilitar reflexões sobre as implicações sociais da Matemática na sociedade do algoritmo e sobre o papel social da Educação Matemática nesse cenário.

De forma a exemplificar as reflexões teóricas-conceituais levantadas no artigo, apresenta-se os resultados de um estudo empírico, cujo objetivo foi o de investigar como estava a compreensão de alguns sujeitos sociais, usuários das tecnologias digitais, sobre as implicações sociais da modulação algorítmica, atrelada ao advento da revolução digital. Os dados foram produzidos por meio de questionário online, destinado a duas esferas sociais, a saber, alunos do Instituto Federal Catarinense (IFC) – Campus Rio do Sul e sujeitos ligados ao núcleo de inovação de Rio do Sul/SC (StartUp). A análise dos dados foi amparada nos preceitos da Análise Textual Discursiva (ATD), segundo Moraes e Galiazzi (2006, 2016).

Para expor a investigação, trazemos uma discussão sobre a sociedade do algoritmo, observando algumas etapas do avanço tecnológico. Na sequência, enquanto educadores, buscamos aproximações com a EMC e algumas preocupações que perpassam esse campo, propondo uma interrelação com a Equação Civilizatória. Em seguida, apresentamos a análise e discussão dos dados produzidos, bem como algumas reflexões propositivas. Por fim, tecemos considerações sobre este percurso, indicando que é preciso conhecer mais, para poder criticar e atuar na sociedade de forma a ser mais que um usuário das tecnologias, mas também saber reconhecer as suas implicações no comportamento social.

2 Sociedade do algoritmo X modulação social

Na história vivenciamos três revoluções industriais, que são marcos da transformação na indústria com a transição para novos processos de manufatura e, por sua vez, no modo de vida das pessoas, não somente no processo industrial, mas em toda a sua plenitude, alterando as relações com o trabalho, do artesanal para o maquinário, durante os séculos XVIII e XIX.

De forma breve, podemos dizer que a 1ª Revolução Industrial foi instaurada na Inglaterra em 1784, principalmente com o aprimoramento da mecanização do tear e da força à vapor. A segunda, em 1870, foi demarcada pela expansão da industrialização para outros países da Europa, com a produção em escala, a linha de montagem, a eletricidade e a combustão – a invenção do motor à explosão. A terceira, em 1969, se expressa pelos avanços tecnológicos do século XX, com o desenvolvimento da automação, da robótica, dos computadores, da internet e dos eletrônicos. Todas as três proporcionaram mudanças substanciais no processo civilizatório, todavia, foram incluídas no cotidiano das pessoas de forma gradativa.

A 4ª Revolução (digital), denominada por Schwab (2016) de Revolução 4.0, chega de uma forma mais acelerada e promete um impacto mais profundo do que as anteriores, rompendo com todos os padrões. Ela engloba as principais inovações tecnológicas dos campos de automação, controle e tecnologia da informação, aplicadas aos processos de manufatura. Também pode ser chamada de Revolução Digital, pois promete a integração dos mundos físico, biológico e digital. Pela acelerada transformação, alguns autores já vêm denominando de Revolução 5.0. Considerando a velocidade das mudanças, vamos adotar a concepção de Revolução Digital.

As inovações proeminentes da Revolução Digital somente são possíveis por meio da programação computacional, essa por sua vez, é estruturada por algoritmos matemáticos. Considerando que, para cada ação há, pelo menos, um algoritmo que alimenta os Sistemas Cyber-Físicos, a Internet das Coisas e a Internet dos Serviços, isto é, as chamadas tecnologias disruptivas sob as quais os processos de produção tendem a se tornar cada vez mais eficientes, autônomos e customizáveis, passamos a viver uma sociedade modulada por algoritmos.

As tecnologias disruptivas são aquelas que apresentam inovação tamanha que provoca uma ruptura com os modelos e padrões já estabelecidos, isto é, uma transformação acelerada, ocasionando, portanto, certa mudança no comportamento social. Dentre as tecnologias disruptivas destacamos a Inteligência artificial (IA) que, há pouco tempo, fazia parte apenas dos filmes de ficção científica, mas hoje e, de forma cada vez mais rápida, faz parte do nosso dia a dia. Por exemplo, nos aplicativos de rotas como Google Maps e Waze, nas buscas no Google, no comércio eletrônico (e-Commerce), nas câmeras de vigilância, nos eletrodomésticos, na TV (Netflix e YouTube), nos aplicativos de trabalho como o Uber e logo estará no mercado com os veículos autônomos e muito mais. Na educação, destacamos o ChatGPT, o qual tem provocado muitas discussões sobre as possíveis mudanças pedagógicas que podem ser impulsionadas.

A IA pode ser vista, por um lado, como uma maravilha, a qual tem o potencial de aumentar a produtividade. Mas, pode ser considerada a tecnologia mais transformadora da era da informação, ou até mesmo a matematização do óbvio, com a governança da proliferação de robôs, cada vez mais autônomos. A IA pode ser considerada uma tecnologia capaz de melhorar a economia e permitir que os profissionais desenvolvam suas competências mais humanas, de modo a mudar o jeito que o mundo vive e trabalha, sendo, segundo Daugherty e Wilson (2019), fundamental para o mercado inovar e crescer rapidamente com estratégias de administração para o sucesso na nova era da IA. Seria uma benesse se a IA viesse para permitir que os profissionais desenvolvam suas habilidades mais humanas, isto é, relacionadas à criatividade, a inovação e experimentação.

Mas, por outro lado, não podemos deixar de questionar qual mudança comportamental a IA, estruturada pelos algoritmos matemáticos, tem provocado e ainda provocará na sociedade. As suas utilizações serão em benefício da humanidade? Ou podem trazer sérias implicações para a continuidade do nosso volume de controle – o planeta Terra? E ainda, a interesse de quem são desenvolvidas? Quais os interesses políticos e econômicos que subjazem ao desenvolvimento tecnológico?

Para Daugherty e Wilson (2019, p. 13-14), “[...] Os sistemas de IA não estão apenas automatizando muitos processos, tornando-os mais eficientes, eles agora estão permitindo que pessoas e máquinas trabalhem de forma colaborativa de maneiras inovadoras [...]”. O potencial poder da IA de transformar as relações de trabalho é sem precedentes e, no entanto, apresenta um desafio urgente e crescente. Isso remete a outras indagações: Qual a verdadeira compreensão do impacto das tecnologias disruptivas pela sociedade? Estamos cientes de suas implicações sociais? Elas permitem ao menos atenuar a desigualdade real das condições de vida? Ou apenas estamos nos adaptando à acelerada transformação e seguindo como usuários passivos dessas tecnologias?

Ainda, segundo os mesmos autores seria um equívoco pensar que a IA, gradualmente substituirá os seres humanos, um setor após o outro. Entretanto, os autores mencionam, por exemplo, que veículos autônomos substituirão os motoristas de táxi, de carros de entregas e de caminhões. Por outro lado, mencionam que o maior poder dessa tecnologia é complementar e aumentar as capacidades humanas. E quando isso acontecer, como serão os novos setores de serviços? Como ficará a economia? E quem garantirá os empregos?

Deleuze, no fim do século XX, alertava sobre o verdadeiro potencial das tecnologias:

A cada tipo de sociedade, evidentemente, pode-se fazer corresponder um tipo de máquina: as máquinas simples ou dinâmicas para as sociedades de soberania, as máquinas energéticas para as de disciplina, as cibernéticas e os computadores para as sociedades de controle. Mas as máquinas não explicam nada, é preciso analisar os agenciamentos coletivos dos quais elas são apenas uma parte (Deleuze, 1990, apudMorozov, 2018, p. 42).

Com essa dimensão, se faz imprescindível introduzir nessa discussão a política, a economia e as ideologias. Segundo Morozov (2018, p. 41), não basta ficar no debate digital, ele pode nos conduzir a um equívoco. Sabemos falar sobre as ferramentas tecnológicas, mas não ampliamos o olhar para os “[...] sistemas sociais, políticos e econômicos que são viabilizados ou inviabilizados, ampliados ou atenuados por essas mesmas ferramentas [...]”.

Nesse cenário, identificamos uma modulação algorítmica em ascensão, isto é, a indução dos comportamentos sociais por meio dos usuários das tecnologias de informação e comunicação. As mais avançadas técnicas da IA contribuem para a clássica modulação deleuzeana, base da sociedade do controle. “[...] As sociedades de controle caracterizam-se assim pela multiplicação da oferta de ‘mundos’ (de consumo, de informação, de trabalho, de lazer). Trata-se, porém, de mundos lisos, banais, formatados, porque são mundos da maioria, vazios de toda singularidade [...]” (Lazzarato, 2006, p. 101). Para Cassino (2018, p. 28-29), a modulação algorítmica, gerida por códigos computacionais e tendo acesso a uma enorme quantidade de dados pessoais de cada indivíduo “[...] atua de maneira personalizada, prevendo gostos e preferências de cada um, sendo a tecnologia mais eficaz para criar mundos, gerar oceanos azuis e vender produtos ou ideias [...]”.

Para Silveira (2018, p. 31), tal modulação é “[...] expediente fundamental da comunicação no capitalismo, em sua fase neoliberal [...]”. Para entender essa conjuntura, O’Neil (2020), apresenta com contundência vários exemplos da atuação algorítmica, como um processo de destruição em massa, provocando assim, o aumento da desigualdade social, bem como a ameaça à democracia.

Um exemplo, para a autora, da retroalimentação de uma Arma de Destruição em Massa (ADM), é o uso de escores de crédito para avaliar potenciais funcionários. As causas de pessoas responsáveis terem seus escores de crédito baixo, podem ser pela falta de emprego e não por má performance no trabalho. Dessa forma, as ADMs ao rejeitarem esse perfil, “tendem a punir os pobres” (O’Neil, 2020, p. 15). A autora discute que os algoritmos são criados subjugados a determinados interesses, longe de serem neutros. As plataformas digitais, com seus sistemas algoritmos preditivos, cada vez mais nos capturam, e passamos de utilizadores a dependentes passivos de suas tecnologias.

Temos, à nossa frente, um mundo de possibilidades ainda desconhecido, onde não se sabe o potencial que essa tecnologia pode atingir e, com isso, surgem muitas incertezas que ilustram as limitações da nossa capacidade de mensurar as implicações que o desenvolvimento tecnológico proporcionará a curto e a longo prazo. As questões levantadas anteriormente permeiam nossos pensamentos e nos fazem nos mover no sentido de investigar e questionar, cada vez mais, o papel social da educação nesse processo, em especial, por ser nossa área de atuação, a EM. Não temos a pretensão de dar respostas a todas essas perguntas, mas elas nos auxiliam a problematizar a realidade e perceber que há muito a ser investigado.

3 A Educação Matemática e as variáveis sociais

Partimos do pressuposto de que é fundamental entender a relação entre o sujeito e o conhecimento. Afinal, o sujeito que aprende e que está inserido em diferentes ambientes de aprendizagem é um sujeito social que se constitui, segundo Charlot (2001), como um sujeito único, um ser singular com história própria e que interpreta e fornece sentidos ao mundo, à posição que nele ocupa e às suas relações com outros sujeitos. Dessa forma, são as relações sociais que determinam o conhecimento, o que reforça a proposição da conectividade entre o conhecimento matemático escolar e a realidade experienciada no cotidiano.

Destarte, a EM, com o intuito de construir uma sociedade solidária, preocupada com as questões humanas, precisa estar embrenhada na realidade e a ela integrada nos mais distintos campos, sejam eles econômicos, políticos, sociais, ambientais, culturais, científicos ou tecnológicos. E ainda, ao nosso ver, na sociedade do algoritmo, a Matemática se apresenta como ferramenta basilar na construção dos modelos sociais, emergindo para o campo da EM problematizar as aplicações desta área e promover reflexões sobre suas implicações.

Com esse entendimento, nos aproximamos da EMC, cientes de que, cada vez mais, se faz necessário apresentar aos estudantes, para além do conhecimento específico da área, conhecimentos que lhe deem condições de interpretar, criticar e agir nesta sociedade. Conforme Alrø e Skovsmose (2010, p. 18), a EMC “[...] preocupa-se com a maneira como a Matemática em geral influencia nosso ambiente cultural, tecnológico e político e com as finalidades para as quais a competência matemática deve servir [...]”.

Para ilustrar a interlocução das tecnologias com a Matemática, e por sua vez, pensar na intervenção na/da EM, trazemos a problemática do mundo do trabalho. Um importante fator se apresenta, à medida em que o desenvolvimento tecnológico avança e as máquinas começam a substituir os homens, de modo a reduzir a quantidade de empregos. Isto é, a Revolução Digital, anunciada no início do século XXI, promete reduzir drasticamente ou até mesmo anular a força de trabalho no chão de fábrica, sendo substituídos por sistemas informatizados. Perante essa realidade refletimos sobre dois possíveis cenários: A) a Revolução Digital quando atrelada ao capitalismo poderá asseverar um assassino lento e gradativo, que faz a elite explorar os trabalhadores enquanto é útil a si, e posteriormente descartá-los, como se fossem parte de um maquinário em desuso. Ou, B) o alto grau de desenvolvimento tecnológico poderá estar à serviço da humanidade e, ao substituir algumas frentes de trabalho, possibilitará aos homens ter tempo para usufruir a vida, para além do trabalho. Para essa reflexão, vejamos o que Schawab (2016, p. 42), nos aponta:

Há cerca de dois campos opostos quando se trata do impacto de tecnologias emergentes no mercado de trabalho: aqueles que acreditam em um final feliz – os trabalhadores deslocados pela tecnologia vão encontrar novos empregos e a tecnologia irá desencadear uma nova era de prosperidade; e aqueles que acreditam que o fato levará a um progressivo Armagedom social e político, criando uma escala maciça de desempregos tecnológicos. A história mostra que o resultado provável está em algum lugar médio entre estes dois campos [...].

Dados de 2019 mostram que na sociedade brasileira, 52,6% dos adultos não concluíram o Ensino Médio, do total de 133,7 milhões de brasileiros com 25 anos ou mais, 44,2 milhões (33,1%) não terminaram o Ensino Fundamental e 16,8 milhões (12,5%) não haviam concluído o Ensino Médio em 2018. Além disso, 9,2 milhões (6,9%) não têm instrução formal (IBGE – PNAD, 2019). Esses dados nos mostram que mais da metade da população brasileira não completou o Ensino Médio. Ainda, de acordo com Schwab, (2016, p. 43-44), até o momento, a evidência é a seguinte:

[...] a quarta revolução industrial parece estar criando menos postos de trabalho nas novas indústrias do que as revoluções anteriores. De acordo com uma estimativa do Oxford Martin Programme on Technology, apenas 0,5% da força de trabalho dos EUA está empregada em indústrias que não existiam na virada do século, uma porcentagem muito menor do que os aproximadamente 8% novos postos de trabalho criados em novas indústrias durante a década de 1980 e os 4,5% de novos postos de trabalho criados durante a década de 1990 [...].

Considerando o déficit de postos de trabalho juntamente com a baixa taxa de escolaridade da sociedade brasileira podemos supor que estes trabalhadores estarão ainda mais deslocados dentro do mundo do trabalho, gerando ainda mais desempregos. Bianchetti e Freire (2012, p. 56), corroboram essa visão ao questionarem se pretendemos “[...] adequar o homem ao meio ou transformar o meio para o homem? [...]”. Na atualidade vemos que, cada vez mais, o ser humano está sendo moldado para se adaptar as novas tecnologias e isso é irreversível. Entre as forças preparadas para moldar o futuro, o avanço tecnológico se ergue sob o aspecto de seu progresso exponencial.

Até mesmo em países onde o ambiente político é bem mais suscetível ao bem-estar dos trabalhadores típicos, as mudanças acarretadas pela tecnologia estão se tornando cada vez mais evidentes. [...] A parte esvaziada do mercado de trabalho já polarizado provavelmente se expandirá, à medida que os robôs e as tecnologias de auto serviço forem corroendo continuamente os empregos de baixa remuneração, ao mesmo tempo em que algoritmos cada vez mais inteligentes ameaçam as ocupações com qualificações mais elevadas (Ford, 2019, p. 91).

Arrebatadoras tecnologias estão nos fornecendo oportunidades extraordinárias para resolver os maiores desafios que enfrentamos, mas também rompem as antigas formas de resolver os problemas e nos apresentam novos desafios. Essas questões nos remetem a refletir sobre a importância de compreender como os aspectos tecnocientíficos se entrecruzam com os aspectos sociais e, mais ainda, como a EM pode contribuir nesse processo.

A compreensão da realidade pode se dar por meio da Educação, todavia, o sistema educacional não mudou significativamente em séculos. Já o acesso à informação, ao conhecimento e as habilidades necessárias estão mudando consideravelmente. Verificamos que há preocupações sobre os rumos da Educação nesta sociedade tecnológica em vários setores, por exemplo, para Steve Vinter, Diretor da Google, unidade em Cambridge, “[...] a aceleração da tecnologia e a explosão da informação criam a necessidade urgente de repensar o sistema educacional tradicionalmente centrado no conteúdo [...]”. E, essa mudança deve começar “[...] com uma profunda explicação de como as necessidades da sociedade moderna e da força de trabalho estão mudando [...]” (Vinter, 2015, apud Fadel, Bialik, Trilling, 2015).

Na sociedade algoritmizada, nos parece cada vez mais contundente que a EM assuma as preocupações quanto as aplicações da Matemática na sociedade, bem como traga essas discussões para os ambientes de aula. Skovsmose (2008, p. 38), já apontava que “[...] referências à vida real parecem ser necessárias para estabelecer uma reflexão detalhada sobre a maneira como a matemática pode operar em nossa sociedade [...]”. Portanto, a busca por uma estratégia que desvele as complexidades da sociedade contemporânea imbricadas com as ações matemáticas talvez conduza às respostas para as preocupações com a sociedade.

3.1 Educação Matemática Crítica e as imbricações com a Equação Civilizatória

Enquanto educadores, precisamos nos mover para entender os problemas contemporâneos dos quais a EM faz parte e deve fazer frente. Skovsmose (2014) corrobora esse entendimento e chama atenção ao papel da EM enquanto mantenedora do sistema, preparando os estudantes com competências técnicas e funcionais ao sistema.

A educação matemática serve como a introdução mais significativa à sociedade tecnológica. É uma introdução que dota (um número de) estudantes de habilidades técnicas relevantes e, ao mesmo tempo, dota (todos) os alunos de uma atitude “funcional” em relação à sociedade tecnológica. “Funcional” é definido da perspectiva das estruturas de poder dominantes [...] (Skovsmose, 2014, p. 264, tradução nossa).

Nessa perspectiva, com o pressuposto de que o conhecimento da realidade é a primeira ferramenta para o posterior agir e transformar, almejamos provocar reflexões sobre a sociedade do algoritmo, isto é, sobre a participação da Matemática na sociedade contemporânea e suas implicações no modo de vida das pessoas. Portanto, para além da introdução técnica, almejamos ter subsídios que proporcionem a compreensão da realidade e, portanto, nos aproximamos das preocupações da EMC. Segundo Civiero (2016), os estudos sobre as implicações sociais da ciência e da tecnologia, também auxiliam a nos aproximar desse debate. Nessa ótica:

Os desafios criados pela quarta revolução industrial parece concentrar-se principalmente nas desigualdades e nas preocupações crescentes sobre as injustiças sociais. Como já apresentado, a inovação e a ruptura afetarão nossos padrões de vida e bem-estar, que podem ocorrer tanto de forma positiva quanto negativa. Por isso, as preocupações emergentes da nova equação civilizatória, devem estar voltadas à construção do conhecimento e do capital humano, de modo que possa beneficiar a todos [...] (Civiero; Bazzo, 2020, p. 91).

Na tentativa de compreender as variáveis desta sociedade, Bazzo (2019) idealiza uma equação civilizatória a qual é moldada pela era tecnológica. A equação civilizatória para Bazzo (2019, p. 21) é uma metáfora, cujo objetivo é chamar atenção para a nossa realidade cada vez mais convulsionada, e busca “[...] reunir as mais diferentes variáveis que surgem a todo instante em uma civilização que está vulnerável às mais aceleradas mutações em seu comportamento cotidiano [...]”. A equação civilizatória apresenta uma preocupação com as discussões abarcadas pelos estudos da relação Ciência, Tecnologia e Sociedade (CTS) e, segundo Civiero e Bazzo (2022), pode vir a ser um instrumento para se reconhecer as variáveis que determinam a realidade objetiva e concreta, ou seja, pode vir a ser uma categoria para análise do real.

Para exemplificar tais aplicações em aulas de Matemática, citamos dois trabalhos. O primeiro, desenvolvido na formação de professores de Matemática, traz um roteiro para o ensino de curvas senoidais a partir da discussão de produção de energia sustentável (Civiero; Shoereder; Cucco, 2022). Outra aplicação foi o estudo do modelo gaussiano de dispersão de poluentes atmosféricos, usualmente praticado no ensino de engenharia. Segundo os autores, “[...] Decisões podem ser tomadas a partir de mudanças de cenário e, portanto, a engenharia cumpre com seu papel de resolver problemas, como na indústria que, no seu fazer produtivo e tecnológico, causa um problema ambiental para a sociedade [...]” (Gaffuri et al., 2020).

Esses exemplos nos apontam que a compreensão das variáveis contemporâneas que constituem a eminente equação “[...] pode nos orientar na busca de ferramentas para compreender o processo civilizatório tão complexo dos dias atuais e tensionar em direção a outro processo civilizatório em que a garantia da dignidade humana seja a meta [...]” (CIVIERO, 2021, p. 13-14). Essa compreensão nos remete a um pensamento explícito em Civiero (2016, p. 262):

Há muitos e complexos interesses, até mesmo antagônicos, que perpassam o processo civilizatório. Olhar para a equação civilizatória significa, também, interpretar esses dados; significa compreender que a dimensão política da ciência e da tecnologia precisa ser explorada, de modo a apresentar exemplos das contradições implicadas nessa privatização do conhecimento científico e tecnológico. Para tanto, será necessário enfrentar e superar uma leitura estreita do devir civilizatório e enfrentar as desigualdades sociais do mundo [...].

Com o exposto até aqui, enquanto educadores matemáticos, reconhecemos a imbricação das preocupações da EMC com o alerta da Equação Civilizatória, conforme já discutido por Civiero (2016) ao tratar dos embates para a formação de professores de Matemática, com intuito de “[...] proporcionar reflexões e alterações nas nossas formas de trabalhar o conhecimento em tempos tão sisudos dos problemas humanos [...]” (Bazzo, 2019, p. 20). Para potencializar as reflexões, identificamos a EM como um campo que deve fazer frente às reflexões e assumir como desafios, na sociedade do algoritmo, no mínimo a compreensão das variáveis contemporâneas e suas implicações.

Desse modo, promulgamos a necessidade de convergir com os estudos sobre a equação civilizatória, a qual intensifica o alerta de que é preciso nesse mundo convulsionado, acelerado e cada vez mais mercantilizado, uma estratégia de cooperação consciente para que a Educação não seja condutora de elementos de desigualdade sociaz al.

Civiero (2016) já afirmou que é preciso uma engrenagem entre a Educação Matemática e a realidade. Tal engrenagem deve considerar a epistemologia crítica apresentada pela EMC imbricada com a identificação e a compreensão das variáveis contemporâneas que constituem a equação civilizatória. Dessa forma, será possível contextualizar os currículos com construtos interdisciplinares explícitos que fomentem o pensar, o aprender e o sintetizar as informações, de modo a discerni-las criticamente.

3.2 Dados empíricos: compreensões sobre a sociedade do algoritmo

Envoltos nessas inquietações, os autores deste artigo desenvolveram conjuntamente uma pesquisa empírica, com o objetivo de adensar o ensaio teórico. Essa foi desenvolvida como parte das pesquisas realizadas no Núcleo de Estudos e Pesquisas em Educação Matemática e suas Perspectivas (NEPEMP). Esse grupo de pesquisa é formado por professores e estudantes do Curso de Licenciatura em Matemática do Instituto Federal Catarinense (IFC) - campus Rio do Sul.

A questão norteadora foi: qual nível de informação os indivíduos, partícipes desta sociedade, têm quanto a modulação matemática e seus possíveis impactos sociais?

Para obter alguns parâmetros que possibilitassem entender como está a compreensão do senso comum, realizou-se uma pesquisa qualitativa, sendo que a população alvo foi definida com amostragem baseada em agrupamento, pois buscou-se questionar indivíduos que pertencem a dois grupos definidos.

Os sujeitos da pesquisa foram indivíduos inseridos em duas esferas sociais, uma educacional e outra técnica. A primeira por estudantes, do ensino médio, bem como do ensino superior, do IFC - campus Rio do Sul, uma instituição pública de Educação Científica e Tecnológica e, a segunda esfera, por pessoas ligadas ao StartUp Weekend Rio do Sul/SC, por estarem ligadas aos processos de inovação.

O instrumento de produção de dados foi um questionário online com perguntas abertas. A construção de um questionário, segundo Aaker et al. (2001), é considerada uma arte imperfeita, pois não existem procedimentos exatos que garantam que seus objetivos de medição sejam alcançados com boa qualidade. Na busca de melhor refinamento das questões, o questionário foi baseado em Aaker et al. (2001), o qual define alguns passos para elaboração de um questionário. Por sua vez, após várias versões e ajustes, ele foi disparado.

Os convites foram disparados para esses dois grupos, por meio de formulário do Google. O questionário foi organizado em duas partes, sendo a primeira com o propósito de construir o perfil dos sujeitos (idade, gênero e nível de escolaridade) e, a outra abordando questões sobre a modulação matemática e seus impactos sociais.

Para análise dos dados qualitativos optou-se pela análise textual discursiva (ATD), segundo Moraes e Galiazzi (2006, 2016). A ATD foi escolhida como metodologia, por proporcionar uma análise rigorosa do corpus que se constitui em um exercício que possibilita a construção de novos conceitos. Conforme Moraes e Galiazzi (2006 p. 11), esta “[...] não pretende testar hipóteses para comprová-las ou refutá-las ao final da pesquisa, a intenção é a compreensão, reconstruir conhecimentos existentes sobre os temas investigados [...]”.

Primeiro, realizamos a desmontagem dos textos extraídos das respostas do questionário, extraindo as unidades de significado e codificando estas, com a intenção de facilitar a identificação quando de sua repetição no documento original. Os dados foram organizados em unidades de significados, dos quais selecionamos três categorias emergentes – crítica, facilitadora e salvacionista.

Compreendemos que o ato da escrita é a meta-reflexão, é repensar sobre o que já foi pensado, e traduzir em linguagem comunicativa. Por isso, para este artigo, após análise e discussão dos dados, apresentamos conforme a ATD uma síntese dos metatextos, com reflexões propositivas.

Os 20 sujeitos que aceitaram o convite para participar, foram esclarecidos do anonimato de seus dados. Com idades entre 17 e 43 anos, sendo 55% gênero masculino e as demais do gênero feminino. Quanto ao nível de escolaridade, 10% estão cursando o Ensino Médio, 40% estão cursando Ensino Superior e 50% já concluíram o Ensino Superior. Isto é, 90% dos sujeitos estão cursando o nível superior ou já concluíram. Pelo menos em hipótese, o nível de escolaridade deveria proporcionar formas de interpretação da realidade, preocupação com o que acontece no mundo e pensar sobre as implicações desses adventos na sua própria realidade cotidiana. Então, vamos ver o que os dados nos apresentam.

A primeira questão visou capturar as percepções dos sujeitos quanto a interferência da tecnologia na vida cotidiana. Ao analisar as respostas da questão, – As tecnologias mudam o modo de comportamento das pessoas. Você concorda ou discorda desta afirmação? Poderia dar um exemplo? – foi possível caracterizá-las em três categorias emergentes, conforme Quadro 1.

Quadro 1
– Percepções sobre a interferência da tecnologia na vida cotidiana.

Somente ¼ dos sujeitos apresentou uma percepção crítica, enquanto as categorias facilitadora e salvacionista se apresentaram indissociáveis e até mesmo complementares pelos demais. Mesmo entre aqueles de visão crítica, não identificamos nas respostas elementos que possam trazer à tona a relação entre o desenvolvimento tecnológico e os encaminhamentos políticos e econômicos, como se fossem dissociáveis e sem entrelaçamento mútuo. Como afirma Morozov (2018, p. 45), parece que a “[...] narrativa da disrupção tecnológica mais instigante roubou a cena da história bem mais deprimente da disrupção política e econômica que pouco tinha a ver com a tecnologia [...]”.

Na sequência, ao perguntar se os sujeitos relacionam a Matemática com as mudanças de comportamento na sociedade, verificou-se que 50% fazem certa aproximação do cotidiano com a Matemática, outros 10% não fazem a relação entre a Matemática e as possíveis mudanças que ela pode provocar no comportamento social. E, os outros 40% não responderam à questão, o que pode evidenciar um distanciamento dessa compreensão.

Todavia, ao analisar as respostas dos que fizeram menção ao uso da Matemática na sociedade, verificamos que a compreensão dessa dimensão fica apenas na sua aparência, com entendimentos do senso comum. Isto é, reconhecem a Matemática apenas pela aritmética básica explicitada nas atividades diárias como, por exemplo, no uso de medidas nas receitas ou nos algarismos usados para definir códigos e senhas. Ou seja, não relacionaram a matemática ao avanço tecnológico ou aos algoritmos presentes nos aplicativos digitais que usam cotidianamente.

As respostas a essa questão nos fazem perceber que os sujeitos não reconhecem a Matemática com seu poder formatador, como discutido por Skovsmose (2008), na construção de modelos sociais e agora, cada vez mais, com os algoritmos computacionais, os quais interferem no comportamento social, direcionando escolhas e tomadas de decisão, isto é, regem a sociedade contemporânea.

Segundo Machado (2018, p. 49), pesquisadora sobre a modulação de comportamentos nas plataformas de mídias sociais, os “[...] algoritmos são criados para propósitos que, na maioria das vezes estão longe de serem neutros [...]”. Dessa forma, apresentam “[...] preocupações estritamente racionais, que juntam as certezas da matemática com a objetividade da tecnologia [...]” (Seaver, 2017, p. 2, tradução nossa). Entretanto, na sua aplicabilidade, os algoritmos não são apenas processos abstratos matemáticos, são carregados de intencionalidades e trazem consequências a seus usuários. Consequências que muitas vezes não são percebidas de imediato, e na pior hipótese são naturalizadas, como se fosse um processo natural da humanidade. Estes sujeitos ainda não perceberam que estamos na era do algoritmo,

[...] ou, como alguns especialistas apontam, em uma “algocracia” onde a matemática e a ciência da computação estão se transformando em um poderoso mecanismo de influência, moldando e guiando o nosso comportamento e a governança da sociedade. A “algocracia”, além de nossa visão ou nossa vontade de ação, condiciona cada vez mais a nossa existência, e o seu uso crescente, ao mesmo tempo em que nos dota de uma poderosa ferramenta de conhecimento, nos restringe, manipula, controla e provoca, algumas vezes de forma mais benigna e outras de forma mais arriscada e problemática (Gómez, 2019, p. 216).

Nesse cenário, ao desvelar, nas respostas do questionário, o distanciamento do reconhecimento dos algoritmos matemáticos como estruturantes e, por sua vez, formatadores dos modelos sociais, evidencia-se que os sujeitos, de modo geral, parecem ser apenas usuários passivos da tecnologia e não questionam o que está por trás das suas interfaces. Mesmo aqueles que apresentaram uma percepção crítica na primeira questão, não manifestaram essa preocupação.

Esse resultado evidencia algumas preocupações da EMC, expressas, por exemplo, quando Skovsmose refere-se à relação entre tecnologia e sociedade, embasado nas formulações de Ellul[1] o qual considera que a tecnologia “[...] é o aspecto dominante da civilização, e o homem está completamente imerso nessa tecnologia [...]”. Para o autor, essa tese “[...] lida com o poder, porque, por meio da tecnologia, é possível estabelecer e/ou intensificar relações de poder [...]” (Skovsmose, 2001, p. 29).

Ainda, ao relacionar esse desconhecimento para com a aplicação da Matemática, considerando que todos os sujeitos têm uma demasiada formação escolar e as preocupações da EMC com as relações de poder determinadas e integradas em uma estrutura tecnológica, nos cabe refletir e questionar sobre o papel social da EM nesse processo. Esses resultados nos levam a refletir que, cada vez mais:

[...] se faz premente estabelecer relações entre os conteúdos curriculares e as questões sociais que afligem principalmente a classe trabalhadora. Pois, cada vez mais, sentimos a necessidade de aproximar as questões técnicas, nesse caso, em particular, o conhecimento matemático específico, das questões humanas, para não nos tornar seres automatizados (Civiero; Bazzo, 2020, p. 78).

Destarte, parece coerente e necessário tratar dessas questões no âmbito da EM. Entendemos que há certa emergência de relacionar a Matemática da escola com a Matemática aplicada na sociedade, para que esses processos sejam desvelados.

Para aprofundar o assunto sobre a interferência do avanço tecnológico no cotidiano das pessoas, buscamos verificar o entendimento sobre a chamada Revolução 4.0. Como dito anteriormente, elegemos a revolução 4.0, por estar em destaque nas mídias no momento desta pesquisa. Com a análise dos dados, verificou-se que 35% dos sujeitos nunca ouviram falar sobre a Revolução 4.0, enquanto os outros 65% afirmaram que sim. Esse primeiro resultado nos remete a entender que há acesso à informação, os sujeitos já leram algo a respeito, tiveram contato com matérias que falam sobre a temática. Não obstante, ao serem questionados sobre o que trata a Revolução 4.0, dos 65% que anunciaram já terem ouvido falar dessa temática, somente 30% apresentam um conhecimento aprofundado, destacando os seus principais elementos, como a internet das coisas, o Big Data e o uso dos algoritmos matemáticos nos aplicativos e redes sociais; outros 40% responderam dentro de conhecimentos do senso comum, veiculados pelas mídias e, ainda, 30% não souberam responder.

Esses resultados mostram que apesar de 90% dos sujeitos que colaboraram com a pesquisa estarem cursando ou já terem concluído o Ensino Superior, apenas 19,5%, ou seja, 30% dos 65% que apontaram saber algo sobre a Revolução 4.0, apresentam um conhecimento sobre a mesma e, têm se questionado sobre suas implicações sociais.

Nessa lógica, também identificamos preocupações apontadas pela EMC, quando apresenta que a EM talvez seja um dos mais significantes instrumentos de introdução do estudante à sociedade tecnológica. Outrossim, é uma iniciação de duas vias, pois “[...] tanto dota (uma parte dos) estudantes com habilidades técnicas relevantes, quanto dota (todos os) estudantes com uma atitude ‘funcional’ em relação à sociedade tecnológica [...]” (Skovsmose, 2001, p. 32). Essa relação funcional acaba condicionada às relações impostas pelo poder dominante que tem como meta, cada vez mais, formar especialistas para resolver os problemas técnicos.

Por conseguinte, apesar das inovações tecnológicas estarem chegando para mudar expressamente o nosso modo de vida, ainda não nos demos conta dessas mudanças. Continuamos como meros expectadores, como usuários passivos das tecnologias, ficando à mercê de suas consequências. Assim, em consonância com Bazzo (2015, p. 105), reforçamos que “[...] não se trata de avaliar apenas os possíveis impactos que fatalmente a ciência e [a] tecnologia causam e causarão na vida de todos nós, mas sim, e principalmente, descobrir o irreversível a que tais usos nos conduzirão [...]”.

Nessa linha de pensamento, Bridle (2019, p.11), ao discutir a tecnologia e o fim do futuro, afirma que não se faz necessário somente compreensão, mas é preciso alfabetização. Ou seja, “[...] a alfabetização real em relação aos sistemas consiste em muito mais do que apenas entendê-los, e pode ser compreendida e praticada de várias maneiras. Vai além do uso funcional do sistema e abrange o contexto e suas consequências [...]”.

Ao entender como funciona o sistema e compreender suas implicações na sociedade o “[...] alfabetizado está, crucialmente, apto tanto a criticar quanto a responder às críticas [...]” (Bridle, 2019, p.11). Identificamos que a fala de Bridle vem ao encontro das preocupações da EMC, quanto a Educação estar apenas habilitando funcionalmente os sujeitos para operar as novas tecnologias, sem um posicionamento crítico. Na mesma vertente, quando tratamos de analisar as variáveis da Equação Civilizatória, estamos nos aproximando da realidade, com objetivo de compreender como funcionam os sistemas.

Os resultados apreendidos reforçam a ideia de que há uma realidade mais arraigada da qual não estamos cientes, e “[...] nossa alienação dessa realidade mais profunda reduz nossa mobilização e qualidade de vida [...]” (Bridle, 2019, p. 120). Portanto, se faz necessário entender o que está explícito, mas também buscar compreender o que está velado. E isso se faz questionando por que, para que e para quem, são desenvolvidas tais tecnologias, e ainda, para quem servem os nossos dados ou como podem capturar nossas vidas. E isso, se faz urgente, para deixarmos de ser apenas sujeitos alienados e, ao menos, sermos sujeitos que compreendem as conexões e intervenções sociais, regulados pelos algoritmos em função dos interesses do sistema econômico. Ter conhecimento e consciência da realidade é um grande passo.

4 Algumas considerações

Ao longo do último século e principalmente neste início de século XXI, a aceleração tecnológica transformou nosso planeta, nossa sociedade e nós mesmos. Entretanto, não transformou o modo ao qual entendemos os elementos dessa transformação e muito menos os processos educacionais. Talvez seja porque continuamos totalmente imersos nos sistemas tecnológicos, que por sua vez, moldam nosso jeito de pensar e de agir. A partir do pressuposto de que o conhecimento da realidade é a primeira ferramenta para o posterior agir e transformar, procuramos investigar qual nível de informação os indivíduos, partícipes desta sociedade, têm quanto a modulação matemática, por meio do avanço tecnológico, e seus possíveis impactos sociais.

A problemática instaurada nos remeteu a refletir sobre a importância de reconhecer o avanço tecnológico como uma das mais potencializadoras variáveis contemporâneas. Consideramos os algoritmos como parte basilar da construção dessas novas tecnologias ditas disruptivas. Esses, por sua vez, estão inseridos no nosso cotidiano por meio das tecnologias digitais, entretanto, não são reconhecidos como instrumento de modelamento social, nos proporcionando uma falsa ilusão de liberdade de escolha.

A pesquisa de campo foi realizada apenas com uma amostra social, pois, mesmo que um estudo empírico possa revelar algo, ele nunca revelará o todo. Todavia, o resultado serve para nos alertar quanto a carência de reflexão crítica sobre as implicações sociais que serão sentidas em função da acelerada transformação advinda da Revolução Digital. Ou Revolução 4.0, ou 4ª Revolução Industrial, ou sociedade do algoritmo, não importa a taxonomia, se não reconhecermos a sua potencialidade e influência no nosso modo de vida.

Enquanto educadores, ao considerarmos o processo civilizatório, que nos aponta que estamos cada vez mais próximos dos limites civilizatórios, seja em suas dimensões ambientais, culturais e/ou sociais, determinamos um ponto de inflexão, qual seja, a premência de mudança de rota na EM. Isto é, se faz cada vez mais urgente nos aproximar da perspectiva da EMC, e atrelada e essa epistemologia usar a Equação Civilizatória, no processo educacional, como uma ferramenta para análise e, quiçá, compreensão da realidade. Em consonância com Civiero e Bazzo (2022), salientamos ainda que a Educação deveria ter como premissa a maximização da dignidade humana, isto é, preparar sujeitos que reconheçam os princípios dos direitos da pessoa humana e se movam em prol de garanti-los para toda a humanidade. Pois, só assim, poderemos catalisar e reivindicar o pensamento crítico e reflexivo.

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  • 1
    Jaques Ellul, filósofo francês da tecnologia, escreveu, em 1964, The technological society.

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    01 Jul 2024
  • Data do Fascículo
    2024

Histórico

  • Recebido
    10 Set 2023
  • Aceito
    14 Dez 2023
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