Open-access Compreensões sobre a pesquisa Hermenêutico-Fenomenológica situada no âmbito da Educação Matemática

Understandings about Hermeneutic-Phenomenological research situated within the scope of Mathematics Education

Resumo

Este artigo foi desenvolvido por ocasião dos quarenta anos de existência do Programa de Pós-Graduação em Educação Matemática (PPGEM) da UNESP – Campus de Rio Claro, configurando-se como uma forma de comemoração desse marco histórico. O objetivo deste texto é apresentar compreensões sobre a pesquisa Hermenêutico-Fenomenológica, destacando esse tipo de investigação no campo da Educação Matemática. Com esse intuito, realizamos um estudo descritivo de natureza qualitativa, iniciando a discussão a partir de um entendimento sobre as abordagens qualitativa e quantitativa de pesquisa, reconhecendo que toda pesquisa requer atenção à realidade do que se pretende investigar. Em seguida, voltamos nosso olhar para um possível procedimento de investigação Hermenêutico-Fenomenológico, abordando considerações sobre a Fenomenologia, a Hermenêutica e a Hermenêutica-Fenomenológica, o que nos levou a uma visão investigativa que situa fenômeno de pesquisa e pesquisador em uma relação indissolúvel. Como resultado, compreendemos que a pesquisa Hermenêutico-Fenomenológica busca entender, de maneira rigorosa, a complexidade dos fenômenos investigativos e refletir sobre como eles se manifestam para nós. Nessa vertente, entendemos que o ser humano é um ser interpretativo e histórico, cuja percepção do mundo é moldada por suas experiências e interações culturais e sociais.

Educação Matemática; Fenomenologia; Hermenêutica Filosófica; Pesquisa Qualitativa; Pesquisa Quantitativa

Abstract

This article was developed on the occasion of the forty years of existence of the Postgraduate Program in Mathematics Education (PPGEM) at UNESP – Rio Claro Campus, representing a form of celebration of this milestone. The objective of the text is to present an understanding of Hermeneutic-Phenomenological research, highlighting this type of investigation in the field of Mathematics Education. With this aim, we carried out a descriptive study of a qualitative nature, starting the discussion from an understanding of the qualitative and quantitative research approaches, recognizing that all research requires attention to the reality of what it intends to investigate. Next, we turned our attention to a possible Hermeneutic-Phenomenological procedure, addressing considerations about Phenomenology, Hermeneutics, and Hermeneutics-Phenomenological, which led us to an investigative vision that places research phenomenon and researcher in an indissoluble relationship. As a result of the study, we understand that Hermeneutic-Phenomenological research seeks to understand, in a rigorous way, the complexity of phenomena and reflect on how they manifest themselves to us. In this aspect, it is understood that the human being is an interpretative and historical being, whose perception of the world is shaped by their cultural and social experiences and interactions.

Mathematics Education; Phenomenology; Philosophical Hermeneutics; Qualitative research; Quantitative research

1 Introdução

Este texto surgiu no momento em que o Programa de Pós-Graduação em Educação Matemática (PPGEM) da UNESP – Campus de Rio Claro completou seus quarenta anos de existência, assim, este texto é uma forma de comemorar esse marco. Tal programa foi inaugurado em 1984, com a oferta do curso de mestrado. Nove anos depois, em 1993, passou a oferecer também o curso de doutorado, ambos com o objetivo de formar professores e pesquisadores em áreas especializadas da Educação Matemática. Com esse propósito, mestrandos e doutorandos têm a oportunidade de desenvolver projetos de pesquisa e participar de grupos de investigação junto a especialistas da área.

Segundo Bicudo, Viana e Penteado (2001, p. 2-3), uma característica que permaneceu desde o surgimento do programa é seu enfoque interdisciplinar nos problemas da sua área de inquérito. Isso significa que, para a formação do educador matemático, “é básico que se aborde uma variedade grande de trabalhos a respeito da Matemática e do seu ensino e aprendizagem, elaborados sob diferentes perspectivas científico-filosóficas. Esse alvo é atendido pelo rol das disciplinas que são oferecidas”.

Sendo assim, a Educação Matemática pode ser entendida como uma área que busca compreender a Matemática por meio de diferentes dimensões teóricas, epistemológicas e metodológicas, que sustentam os processos de ensino-aprendizagem; a formação profissional do professor de Matemática e suas respectivas práticas em diversos contextos socioculturais; e as questões ontológicas, epistemológicas e axiológicas que fundamentam o pensamento filosófico de diferentes correntes, com o objetivo de compreender as demarcações da área, as perspectivas históricas e as novas tecnologias.

Diante disso, nós, pesquisadores em Educação Matemática, focados em questões ontológicas e epistemológicas, propomos este texto com o objetivo de trazer à tona compreensões sobre a pesquisa Hermenêutico-Fenomenológica no âmbito da Educação Matemática. Nossa intenção é apresentar essa abordagem investigativa como uma das diversas possibilidades teóricas, epistemológicas e metodológicas que sustentam muitos dos trabalhos produzidos no PPGEM/UNESP.1

Para atender ao objetivo proposto, organizamos a escrita deste texto da seguinte forma: após esta introdução, dedicamos atenção às abordagens qualitativa e quantitativa, destacando seus pressupostos teóricos e as diferenças entre elas; na sequência, fundamentados na discussão sobre essas abordagens, enfocamos a Fenomenologia, a Hermenêutica e a Hermenêutica-Fenomenológica, apresentando nossa posição teórica em relação a elas; e, por fim, trazemos nossas considerações finais, seguidas das referências que sustentaram nossa discussão.

2 Compreensões sobre as abordagens qualitativa e quantitativa de pesquisa

Toda investigação requer atenção aos pressupostos da área em que serão realizadas as observações e análises do objeto de estudo, o que abre espaço para compreender como os procedimentos empregados serão efetivados. Nesse contexto, o domínio das “dimensões ontológicas e epistemológicas ‘do quê’ e ‘do como’ se investiga” (Bicudo, 2011a, p. 11) torna-se essencial para o desenvolvimento da pesquisa, conferindo confiabilidade aos estudos. Essa confiabilidade, segundo a autora, é superior àquela derivada de cálculos ou procedimentos metodológicos.

Em Educação Matemática, ao menos no Brasil, a pesquisa qualitativa se sobressai em relação à quantitativa. As pesquisas quantitativas são baseadas em procedimentos estatísticos, tendo como princípios fundamentais a contagem e a mensuração. Esse tipo de pesquisa busca alcançar a possibilidade de generalização e transferibilidade dos resultados, seguindo uma lógica que “parte de estudos teóricos sobre o assunto investigado os quais são articulados e postos como um quadro teórico que fundamenta a investigação e respectiva interpretação” (Bicudo, 2011a, p. 16).

De acordo com a autora, aquele que opta por realizar uma pesquisa de caráter quantitativo frequentemente parte da análise de dados de uma pequena amostra para, em seguida, generalizar os resultados para um conjunto maior do qual a amostra foi retirada. Esse tipo de procedimento exige atenção ao que é universal — uma lei, norma ou fato que abarca toda uma coleção de objetos de mesma natureza em estudo. Após verificar que a generalização é possível, empreende-se a transferibilidade, “entendida no sentido de que ações efetuadas no desenrolar daquela pesquisa específica podem ser efetuadas em outras situações com possibilidade de sucesso similares” (Bicudo, 2011a, p. 17).

Contudo, cabe mencionar que nem sempre é possível realizar uma pesquisa quantitativa, pois muitos aspectos investigativos fogem da alçada dos procedimentos estatísticos, tornando necessária a adoção de outra lógica de pesquisa, a qualitativa. Nessa situação, também podem ser realizados atos de generalização e transferibilidade, como ocorre na medicina, em que se investiga um caso específico, geralmente relacionado à cura de uma doença, e se procura generalizar o procedimento para outros casos semelhantes. “O que muda entre pesquisa quantitativa e a qualitativa, no que concerne à generalização e à transferibilidade, é a concepção de certeza e a de repetição exata, ainda que probabilística, de ocorrências” (Bicudo, 2011a, p. 17). Não se trata de que uma modalidade seja superior à outra,

[...] nem de se afirmar a supremacia absoluta de uma sobre a outra; entretanto, de dar-se conta da visão de mundo e de conhecimento que subjaz a cada uma, compreender sua lógica, os aspectos da realidade mundana que se mostram mais apropriados a serem estudados por uma ou por outra modalidade. Ou seja, de compreender o que se busca conhecer e cujos indícios revelam ser mais bem estudados de modo qualitativo, ou quantitativo (Bicudo, 2021, p. 546).

Entretanto, apenas as concepções de generalização e transferibilidade não nos indicam a abrangência e orientação desses modos investigativos. Para Alves (1991), Godoy (1995), Neves (1996) e Chizzotti (2003), que buscaram diferenciá-los, enquanto a pesquisa qualitativa mantém ligações diretas com as pessoas, suas vivências, o local onde residem e as ocorrências que as cercam, a pesquisa quantitativa se orienta pelas quantificações possíveis nesse cenário, ainda que se percebam aspectos não quantificáveis. Assim, o termo quantitativo está associado à exatidão dos cálculos, enquanto o qualitativo se relaciona com as pessoas, fatos e locais que constituem os objetos de pesquisa, extraindo significados visíveis e perceptíveis por meio de uma atenção sensível. Após isso, o pesquisador interpreta e divulga os resultados e significados evidentes do objeto de pesquisa, considerando sempre as diversas soluções possíveis para as interrogações formuladas.

Em termos de variedade, os estudos qualitativos dispõem de uma ampla gama de opções, o que, na visão desses autores, decorre da possível adoção de procedimentos determinados pelos aspectos ou pela natureza da pesquisa. Conforme Alves (1991), Godoy (1995), Neves (1996) e Chizzotti (2003), aqueles que utilizam essa vertente podem se diferenciar por pressupostos metodológicos, técnicas de investigação ou objetivos da pesquisa. Dessa maneira, as pesquisas qualitativas podem se desdobrar em uma variedade de abordagens: Naturalista, Pós-Positivista, Antropológica, Etnográfica, Estudo de Caso, Humanista, Fenomenológica, Hermenêutica, Ideográfica, Ecológica, Construtivista, entre outras.

Entretanto, não basta escolher uma dessas abordagens. É preciso situar-se enquanto pesquisador e adotar uma conduta adequada. De acordo com Bicudo (2011a, p. 14), “o qualitativo da pesquisa informa que se está buscando trabalhar com qualidades dos dados à espera de análise”, o que pressupõe a escolha de uma postura que deverá ser assumida pelo pesquisador. Destacam-se, como forma de explicitar os possíveis posicionamentos acerca dessa exigência, dois processos distintos: o objeto/observado e o fenômeno/percebido.

No primeiro, interessa “uma postura de separação entre sujeito que efetua a observação e o objeto observado. A busca é pela qualidade, tomada como já dada e pertinente ao objeto. É como se a qualidade fosse do objeto e se mostrasse passível de ser observada” (Bicudo, 2012, p. 17). Já no segundo,

Há uma doação de aspectos passíveis de serem percebidos em modos próprios de aparecer [...]. Passado o momento, restam os atos da consciência – psicológicos, cognitivos, de ajuizamento – que articulam o percebido, organizando-o e expressando-o em linguagem. Assim, o que se tem é a expressão do percebido expressado pela linguagem – falada, escrita, artística, mítica etc. É nesse aspecto que a descrição é básica para essa perspectiva de pesquisa. Uma vez expressado e comunicado, o percebido já não é do sujeito, mas está apresentado (dado) à comunidade, solicitando, então, procedimentos de análise e interpretação (Bicudo, 2012, p. 18).

Esse é um discurso contrário aos pressupostos do cartesianismo e do positivismo,

[...] no que têm de determinante, categórico, objetivo e mensurável e é consonante com discursos que promulgam a inseparabilidade entre sujeito e objeto, a impossibilidade de se ter apenas um modo de ver o estudado, bem como com a relevância dos contextos histórico, político e social em que o estudado se situa e com a impossibilidade de aprisionar-se o dito na linguagem em caixas de interpretação (Bicudo, 2012, p. 19).

Em resumo, ao contrário da pesquisa quantitativa, que visa a exatidão, generalização e transferibilidade dos resultados, fundamentando-se em cálculos estatísticos e de mensuração, a pesquisa qualitativa envolve outras possibilidades investigativas, levando em conta a importância das pessoas envolvidas no processo. Consideramos essa abordagem como uma opção conveniente para muitos casos, especialmente quando se deseja explorar questões complexas, entender experiências humanas, gerar teorias ou hipóteses iniciais e capturar a diversidade de perspectivas.

Por sermos pesquisadores da área de ensino2 e estarmos fundamentados na Educação Matemática, optamos, em nossas investigações, por assumir uma postura Hermenêutico-Fenomenológica, o que nos situa em uma vertente qualitativa de pesquisa. A Hermenêutica é entendida como a arte da interpretação de textos, especialmente textos com significados complexos, como textos religiosos, literários, filosóficos, legais e históricos. Ela é uma disciplina que se concentra em compreender o significado e o contexto desses textos, além de buscar explicar como esses elementos se relacionam com a compreensão global de uma obra. Em sua formulação filosófica, a Hermenêutica não se limita apenas à interpretação textual, bem além disso, requer considerar também a interpretação de fenômenos culturais, históricos e humanos em geral, os quais, em muitos casos, são acessados mediante textos.

Já a Fenomenologia é uma escola filosófica que destaca a busca de sentido que o mundo e as coisas situadas nele possuem para nós. Entendemos que, a partir dessa teoria, os modos de vida, as ações projetadas, as operações realizadas diariamente, entre outros aspectos, são passíveis de percepção e podem ser compreendidos nos atos “atualizados do movimento da consciência”, de forma atenta e consciente pela pessoa que os vivencia. A priori, segundo Bicudo (2012), não há quadros de categorias ou indicações específicas para proceder. Contudo, deve-se manter rigor para evitar o achismo. O par fenômeno/percebido caracteriza essa forma de proceder.

3 A Fenomenologia

Foquemos, inicialmente, em aspectos cruciais da Fenomenologia — uma corrente filosófica que busca compreender o modo pelo qual o conhecimento é constituído no mundo. “Como tal, seu modo de proceder é filosófico, estando voltado para os assuntos recorrentes à filosofia ocidental desde seu nascimento, na Grécia, no século VIII a.C. Busca investigar o real e a realidade; o conhecimento da ‘verdade’” (Bicudo, 2020, p. 31). Seu fundador, Edmund Husserl (1859-1938), que também era matemático, preocupou-se, de início, em entender como o conhecimento sobre os objetos matemáticos é constituído e produzido, o que o levou a considerar a realidade objetiva que perdura e atravessa toda a história da humanidade. De acordo com Bicudo (2020), as investigações de Edmund Husserl iniciaram com seu trabalho de doutorado, em 1887, o qual serviu de fundamento para sua obra Filosofia da Aritmética, de 1891. Nesse estudo, o filósofo está

[...] preocupado com a origem da aritmética, já entendendo “origem” como o momento primeiro de sua constituição na subjetividade do sujeito e não, por exemplo, como uma origem cronológica que encadearia fatos históricos. Entretanto, as argumentações que tece, nessa investigação, são de natureza psicológica, seguindo os ensinamentos de Franz Brentano, seu professor de psicologia e de filosofia, que já trabalha a intencionalidade da consciência (Bicudo, 2020, p. 31-32).

Do período que vai de 1887 a 1938, Husserl se dedicou sobretudo ao estudo das ciências exatas, considerando seu conceito de Mundo-Vida (Lebenswelt). Esse é o mundo das coisas experienciadas na vida pré e extracientífica. Segundo Palmer (1969, p. 182): “contra o mundo dos cientistas, ‘objetivamente válido’ e anônimo, Husserl opôs o horizonte intencional em que cada um vive e se move, num horizonte que não é anônimo, mas pessoal e partilhado com outros seres que também o experimentam; a isto chamou ele o mundo da vida”.

Na esteira de seu pensamento, está implícita a crítica à corrente positivista3, que estava em voga na época. No entanto, a investigação que Husserl realiza, na qual se podem observar suas considerações sobre esse modo de pensamento, não é estritamente clara, levando suas argumentações a se entrelaçarem cada vez mais. O filósofo não propõe métodos como os dos positivistas para o trabalho científico.

Husserl busca saber da constituição do objeto matemático e do modo pelo qual esse objeto permanece inteligível em sua objetualidade ao longo da história de povos e culturas. Se ele critica a filosofia positivista, então não busca uma verdade (teórica, por exemplo) para embasar suas articulações. É conhecida a afirmação de Husserl “ir às coisas, elas mesmas”, sem intermediação de conceitos que digam o que são. Então, de onde partir? Há o dado. No caso aqui considerado, o objeto matemático, tomado como “a coisa ela mesma, a ser compreendida”. Como dele (objeto matemático) compreender sua constituição? Foi preciso adentrar por questões sobre o dado e como isso, o dado, é dado; é dado a quem e como é dado; o dado, em si, é o real? É a verdade? Como compreender “verdade”? (Bicudo, 2020, p. 33).

Ao se posicionar assim, Husserl não se negou a enfrentar as questões que surgem ao investigar o método científico. Em consonância com Bicudo (2020), de uma maneira um tanto ingênua, alguns se referem a um método fenomenológico, como se isso definisse uma forma específica de proceder. No entanto, Husserl, com o intuito de ir às coisas mesmas, propõe um constante questionamento sobre o que é compreendido, de modo que não há um entendimento final ou correto, como na visão positivista. Portanto, não existe um método fenomenológico definido, “mas procedimentos pautados na filosofia fenomenológica explicitada, enquanto uma atitude assumida como um modo de ser e de pesquisar. Desse modo, nos trabalhos de Husserl, há sempre a ‘démarche’ da descrição do compreendido e questionamentos sobre o método” (Bicudo, 2020, p. 33).

Então, qual seria o modo próprio de se trabalhar fenomenologicamente? O pesquisador interessado nesta vertente deve se dedicar, por meio de seus sentidos, a perceber as qualidades, processos e modos pelos quais um determinado fenômeno se manifesta. Posteriormente, ele pode expor suas interpretações e compreensões possibilitadas pela consciência. Em conformidade com Bicudo (1994), é importante mencionar que o que é visto pelos sentidos não é percebido de maneira isolada; há uma região de fenômenos percebidos simultaneamente. Nessa abordagem de pesquisa, os dados obtidos não podem ser generalizados ou transferidos para outros contextos, pois fazem parte de um entrelaçamento entre o pesquisador e o fenômeno percebido — entre Sujeito/Fenômeno.

Uma consequência dessa relação Sujeito/Fenômeno é que nem o Sujeito, nem o Fenômeno observado a partir dessa conjunção podem ser concebidos ou tomados separadamente dos modos pelos quais a relação se estabelece. Dessa maneira, em uma pesquisa abordada fenomenologicamente, os procedimentos empregados são inseparáveis do fenômeno que está sendo estudado e do pesquisador. “Não há uma separação entre o percebido e a percepção de quem percebe, uma vez que é exigida uma correlação de sintonia, entendida como doação, no sentido de exposição, entre ambos” (Bicudo, 2012, p. 18).

Essa concepção surge sempre que enfocamos os significados da palavra Fenomenologia. Ela pode ser decomposta em duas outras de origem grega: Fenômeno e Logia. “‘Fenômeno’ significa aquilo que se mostra; não somente aquilo que aparece ou parece [...]. ‘Logia’ deriva da palavra logos, que para os gregos tinha muitos significados: palavra, pensamento” (Bello, 2006, p. 17-18, grifo do autor). Para Bicudo (1994, p. 17), a palavra Fenômeno pode ainda ser “concebida como aquilo que se manifesta”. Assim, podemos entender a Fenomenologia como um ato reflexivo — mediado pelo olhar e pensamento de um sujeito — sobre um determinado fenômeno que se mostra.

O que se mostra está ligado ao mundo físico, fenomênico, mas também à subjetividade daquele a quem se mostra. O mundo está aí, é o espaço onde somos, estamos em ação e onde estão as coisas – físicas, conjunto de situações etc. A Fenomenologia aceita a realidade do mundo; não a coloca sob suspeição, isto é, não duvida dessa realidade considerada fenomênica. O fenomênico é o que é visto disso que se mostra. Nós o compreendemos como o encontro entre quem olha com atenção e o que é visto (Bicudo, 2010, p. 29).

E como todo ato é particular, a realidade já não pode ser objetivamente dada. “É, portanto, perspectival, não havendo uma única realidade, mas tantas quantas forem suas interpretações e comunicações” (Bicudo, 1994, p. 18). Segundo a autora, é o compreendido, o interpretado e o comunicado. Com essa explicação, pode parecer que a concepção fenomenológica é pouco rigorosa, já que, em seu ideal, abrange uma multiplicidade de visões subjetivas. No entanto, só é possível perceber uma dada realidade fenomenológica estando presente em sua concreção, e isso não exclui o rigor das pesquisas abordadas fenomenologicamente. Pelo contrário, contribui para que o sujeito esteja livre de seus preconceitos.

Além disso, considera-se, na Fenomenologia, a comunicação que um determinado sujeito estabelece com seus pares, configurando o ato intersubjetivo. Dessa forma, aquilo que é visto pode ser compartilhado com outras pessoas, mesmo que esteja fundamentado pelo singular binômio Sujeito/Fenômeno. Conforme Bicudo (1994), em uma comunidade, todos estão aptos a perceber e compartilhar suas experiências vividas entre si, o que ocorre por meio da linguagem. É por meio dessa possibilidade que chegamos a uma ideia de verdade, que não é subjetiva, objetiva ou relativa, mas possibilitada pelos sujeitos por meio de consentimento.

Esclarecida nossa posição em termos da pesquisa fenomenológica, avançamos para entendimentos acerca da Hermenêutica, situando-nos na sua formulação filosófica, como expressa por Heidegger, Gadamer e outros autores. A Hermenêutica filosófica — e não apenas a filosófica — situa-se na problemática imposta pelo fenômeno da compreensão: o de interpretar/compreender aquilo que é exposto por algo ou alguém.

4 Hermenêutica Filosófica

Hermenêutica é um termo que se refere à teoria e à prática da interpretação de textos, símbolos e experiências, compreendendo, em sua envergadura, a forma como a linguagem, a cultura e nossas próprias perspectivas e hipóteses influenciam o nosso entendimento sobre o mundo. Segundo Palmer (1969), a palavra Hermenêutica tem sua origem no verbo hermeneuein (interpretar) e no substantivo hermeneia (interpretação), sendo que ambos os vocábulos evocam a nomenclatura e o ofício de Hermes, um deus da tradição grega cujo objetivo era “transformar tudo aquilo que ultrapassa a compreensão humana em algo que essa inteligência consiga compreender” (Palmer, 1969, p. 24). Acreditava-se que Hermes seria o responsável pela descoberta da linguagem e da escrita, o que implica a preocupação inicial da Hermenêutica com a influência da linguagem na interpretação.

Ao longo do tempo, a Hermenêutica evoluiu, assumindo diferentes abordagens, como a jurídica, a teológica e a filosófica, podendo ser classificada de duas maneiras, conforme Santos (2023): Clássica ou Filosófica. A primeira, caracterizada por conjuntos de regras, princípios e normas, tem sua origem na Antiguidade e se destinava à interpretação/compreensão de textos. Desde então, passou a ser entendida como uma forma metodológica a serviço de outras disciplinas — jurídicas e teológicas. Nas palavras de Gadamer (2014, p. 29), “sempre houve uma hermenêutica teológica e outra jurídica, cujo caráter não era tanto teórico-científico, mas correspondia e servia muito mais ao procedimento prático do juiz ou do sacerdote instruídos pela ciência”.

A forma Filosófica, por outro lado,

[...] deixa de ser uma ajuda metodológica ou didática para outras disciplinas – ou seja, deixa de se referir apenas à comunicação simbólica e passa a se referir, de modo mais amplo, a toda vida humana – a partir de Martin Heidegger. Em Ser e tempo, publicado em 1927, Heidegger transforma o que até então vinha sendo discutido como um método (por Schleiermacher e Dilthey, por exemplo) em uma ontologia – a condição mais fundamental de ser/estar no mundo (Batista, 2012, p. 106, grifo do autor).

Como forma de análise, é possível afirmar que a passagem da Hermenêutica Clássica para a Filosófica teve seu pontapé inicial a partir dos trabalhos de Friedrich Daniel Ernst Schleiermacher (1768-1834) e se consolidou, no século XX, como uma das principais preocupações da Hermenêutica. Ricoeur (1990) menciona essa fase em Interpretação e Ideologias, afirmando que se buscava desregionalizar as formas locais da Hermenêutica para ampliá-la, de tal modo que todas as formas da Hermenêutica fossem incluídas em uma abordagem geral.

[...] esse movimento de desregionalização não pode ser levado a bom termo sem que, ao mesmo tempo, as preocupações propriamente epistemológicas da hermenêutica, ou seja, seu esforço para constituir-se em saber de reputação científica, estejam subordinadas a preocupações ontológicas segundo as quais compreender deixa de aparecer como um simples modo de conhecer para tornar-se uma maneira de ser e de relacionar-se com os seres e com o ser. O movimento de desregionalização se faz acompanhar, pois, de um movimento de radicalização, pelo qual a hermenêutica se torna, não somente geral, mas fundamental (Ricoeur, 1990, p. 18).

Como um avanço conseguido por Schleiermacher, há o desenvolvimento da Hermenêutica em uma concepção universal, passando a ser compreendida como o ato de entender o que é dito em um texto, exatamente como é dito. Dessa maneira, não se deve incorrer em formulações ou transformações sobre o dito em um discurso, distinguindo assim o falar do compreender. Tem-se, portanto, a concepção da Hermenêutica como Teoria da Compreensão. Para alcançar isso, deve-se ir além “da particularidade dos textos e das regras, das receitas, que dispersam a arte de compreender. A Hermenêutica nasceu desse esforço, ou seja, de uma ‘tecnologia’ que não se limita mais a uma simples coleção de operações desarticuladas” (Ricoeur, 1990, p. 20). Além disso, para Schleiermacher, a compreensão é vista como um processo de reconstrução.

[...] a compreensão enquanto arte é voltar de novo a experimentar os processos mentais do autor do texto. É o reverso da composição pois começa com a expressão já fixa e acabada e recua até à vida mental que a produziu. O orador ou autor construiu uma frase; o auditor penetra nas estruturas da frase e do pensamento. Assim a interpretação consiste em dois momentos interactuantes: o momento “gramatical” e o “psicológico” (no sentido lato de tudo aquilo que se inclui na vida psíquica do autor). O princípio em que assenta esta reconstrução, seja ela gramatical ou psicológica, é o do círculo hermenêutico (Palmer, 1969, p. 93).

O Círculo Hermenêutico, mencionado pelo autor, “era concebido em termos de uma relação mútua entre o texto como um todo e suas partes individuais, ou entre o texto e a tradição” (Batista, 2012, p. 106), referindo-se a um movimento dialético que pode ser expresso pelo seguinte adágio: interpreta-se para compreender e compreende-se para interpretar. Dessa forma, a compreensão se torna essencialmente referencial, visto que só podemos compreender algo na medida em que o comparamos com o já conhecido por nós. Sendo assim, tudo o que compreendemos

[...] agrupa-se em unidades sistemáticas, ou círculos compostos de partes. O círculo como um todo define a parte individual, e as partes em conjunto formam o círculo. Por exemplo, uma frase, como um todo é uma unidade. Compreendemos o sentido individual quando a consideramos na sua referência à totalidade da frase; e reciprocamente, o sentido da frase como um todo está dependente do sentido das palavras individuais. Consequentemente um conceito individual tira o seu significado de um contexto ou horizonte no qual se situa; contudo o horizonte constrói-se com os próprios elementos aos quais dá sentido. Por uma interação dialética entre o todo e a parte, cada um dá sentido ao outro; a compreensão é, portanto, circular. E porque o sentido aparece dentro deste “círculo”, chamamos-lhe o “círculo hermenêutico” (Palmer, 1969, p. 94).

Por meio desse processo de interpretação/compreensão, é possível experimentar os processos mentais do autor de uma obra. Wilhelm Christian Ludwig Dilthey (1833-1911), que deu continuidade aos estudos de Schleiermacher e “tinha como objetivo apresentar métodos para alcançar uma interpretação ‘objetivamente válida’ das ‘expressões da vida interior’” (Palmer, 1969, p. 105), baseou-se nessa possibilidade:

Com efeito, é do lado da psicologia que Dilthey procura o traço distintivo do compreender. Toda ciência do espirito — todas as modalidades do conhecimento do homem implicando uma relação histórica — pressupõe uma capacidade primordial: a de se transpor na vida psíquica de outrem. No conhecimento natural, o homem só atinge fenômenos distintos dele, cuja coisidade fundamental lhe escapa. Na ordem humana, pelo contrário, o homem conhece o homem. Por mais estranho que o outro homem nos seja, não é um estranho no sentido em que pode sê-lo a coisa física incognoscível. A diferença de estatuto entre a coisa natural e o espírito comanda, pois, a diferença de estatuto entre explicar e compreender. O homem não é radicalmente um estranho para o homem, porque fornece sinais de sua própria existência. Compreender esses sinais é compreender o homem (Ricoeur, 1990, p. 24-25).

Cabe mencionar que, no Círculo Hermenêutico, verifica-se uma contradição lógica em sua formulação, “pois se temos que captar o todo antes de poder conhecer as partes, então nunca compreenderemos nada. E, no entanto, afirmamos que as partes tiram o seu sentido do todo. Por outro lado, não podemos certamente começar com um todo, não diferenciado em partes” (Palmer, 1969, p. 94). Inclusive, a compreensão deve ocorrer por meio de saltos quando se faz uso do Círculo, considerando-se simultaneamente as partes e o todo com o auxílio de comparações e intuições. As comparações são sempre realizadas por meio de um confronto com nossas experiências, já as intuições estão vinculadas à nossa capacidade humana de compreender ou conhecer algo de forma direta, instantânea e sem depender de raciocínio lógico. Elas possibilitam uma abertura para uma espécie de adivinhação.

A outra forma da Hermenêutica que mencionamos, a Filosófica, à qual nos orientamos, surge um pouco mais tarde, com autores como Edmund Husserl (1859-1938) e Martin Heidegger (1889-1976), que buscam relacioná-la com o campo da Fenomenologia. O primeiro nunca se reportou à Hermenêutica em seus tratados, porém, a maneira como explicita seus modos de proceder, sua busca pelas interrogações que faz e sua explicitação sobre a intencionalidade indicam sua possível concepção Hermenêutica. Já Heidegger, por outro lado, deixa explícito em Ser e Tempo que suas condutas o convertem em um hermeneuta. De todo modo, Heidegger se diferenciou de Husserl, chegando a influenciar outros autores:

A escolha feita por Heidegger do termo hermenêutica — uma palavra carregada de associações, desde as suas raízes gregas até ao seu uso moderno em filologia e teologia — sugere um desvio anticientífico fortemente contrastante com Husserl. A mesma orientação é transposta para a “hermenêutica filosófica” de Hans-Georg Gadamer, marcando a própria palavra com laivos de anticientismo (Palmer, 1969, p.131).

O que se vê, na Hermenêutica produzida com Heidegger, é o rompimento com a busca de métodos e procedimentos para a realização da compreensão, haja vista que nos apresenta a possibilidade de desprendimento das regras e de suas respectivas elaborações, enfocando sua atenção para além do pensar reflexivo para a interpretação. Seu projeto de Hermenêutica Filosófica se distingue pela orientação que estabelece para o critério de verdade, que não se baseia em dados ou na melhor maneira de se compreender, mas no pensamento explicitado via linguagem — processo que só ocorre graças às condições humanas que vivenciamos. Aliás, para Heidegger, não se fala em modos corretos de compreender; “na verdade, compreender não é compreender melhor, nem sequer no sentido de possuir um melhor conhecimento sobre a coisa [...]. Basta dizer que, quando se logra compreender, compreende-se de um modo diferente” (Gadamer, 2014, p. 392, grifo do autor).

Para Heidegger,

[...] a compreensão é o poder de captar as possibilidades que cada um tem de ser, no contexto do mundo vital em que cada um de nós existe. Não é capacidade ou o dom especial de sentirmos a situação de outra pessoa, nem é o poder de captar mais profundamente o significado de “alguma manifestação da vida” (Palmer, 1969, p.135).

Diferente da Hermenêutica Clássica, Heidegger não concebe a compreensão por meio de métodos de leitura, nem mesmo como “um procedimento de reflexão crítica, mas um modo de ser, e como tal é uma característica do ser humano. Isso pressupõe um saber pragmático, intuitivo, que vem antes de qualquer consideração teórica, leis ou julgamentos e é o que nos orienta no mundo” (Batista, 2012, p. 106). Para Heidegger, a interpretação transcorre em harmonia com uma consciência reflexiva e geralmente quando algo nos é estranho, isto é, passamos a interpretar quando alguma experiência perde o sentido ou quando as expectativas não se comprovam como esperado. É diante de interrupções no fluxo compreensivo que paramos para averiguar o que estamos fazendo, o que estamos dizendo e o que sentimos. Assim, a compreensão, no viés heideggerniano, deve preceder a interpretação, sendo intuitiva e pré-reflexiva. Restam, após isso, os atos da comunicação, que podem estabelecer uma ideia de verdade consensual entre o intérprete e a comunidade.

[...] como uma síntese entre entendimento e interpretação, quando nos abrimos para o mundo e afirmamos o significado de algo, que acaba se estabelecendo como verdade [...]. A ideia de verdade, neste sentido, surge como um acordo entre o meu julgamento e o mundo, considerando, pois, meus pressupostos (Batista, 2012, p. 106).

Com essa formulação, a Hermenêutica “passa a se preocupar com o sentido (ou a falta de sentido) da vida humana, e o problema da filologia torna-se, então, secundário” (Batista, 2012, p. 106). Ela rompe com a questão de métodos e “se aplica imediatamente no plano de uma ontologia do ser finito, para aí encontrar o compreender, já não como um modo de conhecimento, mas como um modo de ser” (Ricoeur, 1988, p. 08). Essa mudança de paradigma ficou cunhada como virada ontológica. Ao passo que a Hermenêutica Clássica é epistemológica, conduzindo-se por meio de um entendimento que toma sujeito indagativo e objeto inerte, a Hermenêutica Filosófica é ontológica, significando que toda interpretação é uma manifestação do ser em relação ao ser.

Na esteira dos hermeneutas filosóficos, conforme as prerrogativas de Heidegger, temos Hans-Georg Gadamer (1900-2002), que chegou a conviver com Heidegger e foi influenciado por suas obras. Gadamer explica essa influência em seu trabalho Hermenêutica em Retrospectiva, no qual relata a fundamentação de seus estudos naquele autor. Sua obra mais famosa é Verdade e Método: Traços Fundamentais de uma Hermenêutica Filosófica, na qual expõe uma reflexão crítica sobre a experiência estética, histórica e filosófica, sempre fazendo menção ao termo Compreensão.

O fenômeno da compreensão impregna não somente todas as referências humanas ao mundo, mas apresenta uma validade própria também no terreno da ciência, resistindo à tentativa de ser transformado em método da ciência. A presente investigação toma pé nessa resistência que vem se afirmando no âmbito da ciência moderna, contra a pretensão de universalidade da metodologia científica. Seu propósito é rastrear por toda parte a experiência da verdade, que ultrapassa o campo de controle da metodologia científica, e indagar por sua própria legitimação onde quer que se encontre. É assim que as ciências do espírito acabem confluindo com as formas de experiência que se situam fora da ciência: com a experiência da filosofia, com a experiência da arte e com a experiência da própria história (Gadamer, 2014, p. 29-30).

Ademais, do ponto de vista de sua filosofia, a Hermenêutica não deve ser considerada simplesmente como uma arte ou técnica da compreensão:

A hermenêutica que se vai desenvolver aqui não é uma doutrina de métodos das ciências do espírito, mas a tentativa de entender o que são na verdade as ciências do espírito, para além de sua autoconsciência metodológica, e o que as liga ao conjunto de nossa experiência de mundo. Ao tomarmos a compreensão como objeto de nossa reflexão, não objetivamos uma teoria da arte de compreender, como o queria a hermenêutica tradicional da filologia e da teologia. Uma tal teoria ignora que, em face da verdade do que nos diz a tradição, o formalismo do saber artificial se arroga uma superioridade que é falsa (Gadamer, 2014, p. 31-32).

Para Gadamer, a Compreensão é entendida como sendo inerente a todos os humanos, o que se afasta do antigo ideal da teoria da interpretação em que o intérprete, observando de fora, esclarecia os significados dos textos ou de experiências vividas. Como estrutura fundamental na experiência mundana, ela “não pode ser uma atividade isolada, pois a compreensão é participativa, dialógica. O significado de uma ação ou texto, portanto, é sempre negociado, consensuado, não pode ser simplesmente ‘descoberto’ pelo pesquisador” (Batista, 2012, p. 107). Com base em Gadamer, estamos constantemente interpretando as coisas dispostas no mundo e, dessa maneira, a interpretação dá-se na fusão de horizontes4, sendo a todo instante firmada por acordos intersubjetivos, portanto, consensual.

Embora a Hermenêutica de Heidegger e Gadamer mantenha similaridades, elas não estão em total harmonização. Em consonância com Rohden (2012, p. 16):

É verdade, sim, que ambas comungam de muitos conceitos, mas é verdade também que são propostas filosóficas distintas. Com relação ao método filosófico parece que Heidegger é, por assim dizer, mais ‘analítico’, aristotélico, ao passo que Gadamer pauta-se pelo dialógico, dialético, socrático-platônico. Embora o projeto filosófico gadameriano não seja compreensível nem factível sem a contribuição de Heidegger, ele possui especificidades e uma originalidade que precisa ser levada em conta quando nos adentramos no terreno da hermenêutica.

Nesse direcionamento, nós, enquanto pesquisadores da Educação Matemática, aproximamo-nos da vertente mais recente da Hermenêutica, denominada Filosófica, que foi desenvolvida por Heidegger, Gadamer, entre outros estudiosos. Ao tomá-la como meio de estudo, juntamente com a Fenomenologia, entendemos que ambas as teorias se desenvolveram dentro de uma tradição conceitual que proporcionou uma certa harmonização de trabalho entre elas. Mas como se dá essa harmonização?

Já mencionamos, neste texto, que a Fenomenologia valoriza a percepção dos fenômenos experienciados, dos quais não duvidamos no momento da percepção. Isso, de acordo com Bicudo (2011b), só pode ser compreendido como uma ausência de dúvidas e ocorre por meio do ato da consciência. “No fluxo das vivências, o enlaçado nesse ato solicita outros atos cognitivos, articuladores e de comunicação a serem efetuados pela consciência, avançando com o processo de constituição e de produção do conhecimento” (Bicudo, 2011b, p. 32), resultando em um trabalho que é cognitivo e julgador. Esse fluxo de vivências mencionado pela autora se refere ao vivido ou experienciado no processo de realização desses atos, contudo:

No momento em que a experiência ocorre ela não é ainda refletida. Porém, pode se tornar foco sobre a qual a reflexão se volta, abrindo, no fluxo do vivido, momentos de tomar consciência do vivenciado. Essa é a característica das Erlebnisses: experiências refletidas. Portanto, diferentemente da experiência empírica, que é tomada na sua objetividade pragmática e observada de um lugar externo ao seu processo, a vivência, ou o experienciado, é percebida e refletida no fluxo dos atos da consciência (Bicudo, 2011b, p. 33, grifo do autor).

Conforme a autora, a experiência não se limita ao domínio da psicologia individual, mas se expande ao âmbito psicossocial. “Isso porque sua estrutura é hermenêutica e, em virtude disso, ela se autointerpreta e dá-se à interpretação” (Bicudo, 2011b, p. 33). Assim, a interpretação/compreensão “fenomenológica não é previamente fixada, mas é historicamente constituída pela experiência vivenciada pela pessoa que sempre já é junto ao mundo em que outros também são e, desse modo, torna-se uma hermenêutica da existência humana” (Mondini; Mocrosky; Bicudo, 2016, p. 03).

É nesse sentido que utilizamos o termo Hermenêutica-Fenomenológica, entendendo a compreensão como um existencial. Desse modo, ela é considerada uma estrutura a priori que revela os modos como o Ser-aí, ou Dasein heideggeriano, existe. Para Negru (2007, p. 54), “como existencial, a compreensão opera projetando anteriormente ao Dasein as suas possibilidades. Essas projeções são organizadas pela interpretação, que tem o papel de tornar explícito o que nós, enquanto seres humanos, já somos simplesmente porque existimos”. Diante do exposto e em acordo com o autor, a interpretação está relacionada a uma estrutura prévia da compreensão e se baseia naquilo que temos, vemos e aprendemos previamente.

Assim, ao adotar a postura Hermenêutico-Fenomenológica em nossas pesquisas, buscamos compreendê-las em todas as suas complexidades, refletindo sobre os modos como elas se manifestam para nós, pesquisadores, quando nos voltamos intencionalmente para elas no campo da Educação Matemática. Nessa abordagem, entendemos o ser humano como um ser interpretativo, histórico e situado, cuja compreensão do mundo é moldada por suas experiências e interações com o contexto cultural e social em que está inserido.

5 Considerações Finais

Em nossa época, existem diversas formas de realizar uma investigação científica. Tais formas ganharam expressão a partir dos estudos qualitativos, nos quais a crescente diversidade de pressupostos teóricos, metodológicos, técnicas de investigação e objetivos da pesquisa se tornaram possibilidades para as grandes áreas da ciência. Em nossos estudos, situados no âmbito da Educação Matemática, temos nos preocupado com a abordagem Hermenêutico-Fenomenológica, o que resulta, a princípio, na junção Sujeito/Fenômeno e implica na não “separação entre o percebido e a percepção de quem percebe, uma vez que é exigida uma correlação de sintonia, entendida como doação, no sentido de exposição, entre ambos” (Bicudo, 2012, p. 18).

Por se tratar da Educação Matemática, entendemos, como afirma Bicudo (1993, p. 19), que a pesquisa nessa área “não é uma pesquisa em Matemática, nem é uma pesquisa em Educação”. Embora os temas se refiram a ambas as partes, a condução investigativa, via de regra, aborda assuntos da Matemática e utiliza procedimentos próprios da pesquisa em Educação. A pesquisa se concentra no compreender, no fazer e no interpretar da Matemática no meio social, cultural e histórico, sem esquecer o significado das ações político-pedagógicas características da Educação.

Depreende-se que a pesquisa em Educação Matemática busca novos sentidos, interpretações e compreensões, proporcionando o desenvolvimento de uma inteligência teórica que possibilite a interpretação e a compreensão nesta área. Concordamos com Mondini, Mocrosky e Bicudo (2016, p. 08), os quais afirmam que, nesta perspectiva, “a hermenêutica se apresenta como uma possibilidade rigorosa para a pesquisa”. Além disso, situamo-nos em um movimento investigativo que, de maneira rigorosa, busca a essência do fenômeno, alinhando-se à proposta fenomenológica e valorizando a combinação entre Hermenêutica e Fenomenologia.

Por fim, registramos que quando tratamos da Hermenêutica-Fenomenológica, nosso objetivo é explorar a interpretação e compreensão que podemos realizar a partir da condição de cada ser humano. A compreensão, nesse sentido, não deve ser vista como um bem que alguém possui, mas como um modo de ser. Ela “é ontologicamente fundamental e anterior a qualquer ato da existência” (Espósito, 1991, p. 99). A pesquisa dentro do quadro Hermenêutico-Fenomenológico busca compreender o sentido que o mundo faz para nós por meio do pensamento reflexivo e do esforço hermenêutico. Surge, assim, uma possibilidade investigativa para entender os fenômenos em suas diferentes manifestações, expressões e significados.

Referências

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  • SANTOS, J. G. Um estudo hermenêutico sobre as demonstrações no movimento da matemática moderna. 2023. 182 f. Dissertação (Mestrado em Educação Matemática) - Instituto de Geociências e Ciências Exatas, Universidade Estadual Paulista, Rio Claro, 2023.
  • 1
    Esses trabalhos são produzidos por membros do grupo de Fenomenologia em Educação Matemática (FEM) e outros. O FEM estuda, há mais de 25 anos, a filosofia fenomenológica, com foco em aspectos ontológicos, epistemológicos, éticos e antropológicos. Seus estudos abrangem temas como: concepção da matemática; modos de conhecer e produzir matemática, destacando provas e veracidade; o debate sobre a incompletude matemática; ensino e aprendizagem da matemática, com ênfase nas vivências do corpo e nas formas de expressão dos sentidos; a compreensão do ser humano no mundo; currículos analisados hermeneuticamente; e a avaliação da aprendizagem da matemática, incluindo políticas públicas e sistemas de avaliação.
  • 2
    Referimo-nos ao modo como a Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível Superior (CAPES) classifica a área de concentração da Pós-Graduação em Educação Matemática no Brasil, como área de ensino ou área 46.
  • 3
    O método positivista foi criado e difundido por Augusto Comte (1798-1857) na primeira metade do século XIX. São três, os princípios fundamentais que regem esse método ao tratar da questão da produção científica: 1ª A ciência é o único conhecimento possível, e o método da ciência é o único válido: portanto, o recurso a causas ou princípios não acessíveis ao método da ciência não dá origem a conhecimentos; a metafísica, que recorre a tal método, não tem nenhum valor. 2ª O método da ciência é puramente descritivo, no sentido de descrever os fatos e mostrar as relações constantes entre os fatos expressos pelas leis, que permitem a previsão dos próprios fatos (Comte); ou no sentido de mostrar a gênese evolutiva dos fatos mais complexos a partir dos mais simples (Spencer). 3ª O método da ciência, por ser o único válido, deve ser estendido a todos os campos de indagação e da atividade humana; toda a vida humana, individual ou social, deve ser guiada por ele (Abbagnano, 2007, p. 776).
  • 4
    O termo fusão de horizontes, desenvolvido por Gadamer (2014), refere-se à relação entre diferentes perspectivas, experiências e contextos culturais durante o processo de interpretação. Em teoria, todas as pessoas possuem seu “horizonte” de compreensão, formado por suas experiências de vida, cultura, conhecimento etc.

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    07 Abr 2025
  • Data do Fascículo
    2025

Histórico

  • Recebido
    11 Dez 2023
  • Aceito
    23 Set 2024
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