Resumo
Neste artigo, objetivamos analisar a perspectiva de Equidade e Justiça Social que professoras da Educação Infantil têm para a aprendizagem das crianças em Matemática. A pesquisa se orienta por abordagem mista, utilizando questionário respondido por 146 professores da Educação Infantil, do município de Itabuna, Bahia. O questionário contempla a perspectiva de Equidade e Justiça Social, verificando a disposição para pedagogia culturalmente responsiva, contendo dezenove questões em escala Likert de seis pontos, variando de Discordo Fortemente a Concordo Plenamente. As definições de Equidade e Igualdade são analisadas por Análise Textual Discursiva, enquanto para o questionário em Likert utilizamos análise descritiva de itens. As análises qualitativas sobre Equidade e Igualdade mostram que ainda falta compreensão sobre Equidade, pois são superficiais e, em alguns casos, contraditórias, quando comparadas com as de Igualdade. A estatística aplicada às questões em Likert indica nível de concordância significativo no que tange à Disposição para a Práxis, para a Comunidade e para a Justiça Social. Identificamos as maiores discordâncias na Disposição para a Justiça Social, o que requer explorar questões sociais, econômicas e políticas na formação desses professores, como forma de proporcionar o entendimento das desigualdades e relações de poder presentes nas escolas e instituições de Educação Infantil e, ainda, como a Matemática pode ajudar a desenvolver crianças mais críticas e conscientes do seu papel na sociedade, contribuindo para um mundo mais justo e menos desigual. O Alfa de Cronbach é de 0,83, o que retrata um nível de confiabilidade alta.
Equidade na matemática; Justiça Social; Educação Infantil; Prática pedagógica equitativa; Pedagogia culturalmente responsiva
Abstract
This article aims to analyze the perspective of Equity and Social Justice that Early Childhood Education teachers have for children’s learning in Mathematics. This research has a mixed approach, and a questionnaire answered by 146 Early Childhood Education teachers, from the municipality of Itabuna, Bahia. The questionnaire considering the perspective of Equity and Social Justice, verifying the Willingness for culturally responsive pedagogy, contained nineteen questions on a six-point Likert scale, ranging from Strongly Disagree to Strongly Agree. The definitions of Equity and Equality were confirmed by Discursive Textual Analysis, while the Likert questionnaire was used for descriptive analysis of the items. Qualitative analyses on Equity and Equality show that there is still a lack of understanding about Equity, as they are superficial and, in some cases, contradictory compared to those on Equality. Statistics applied to the Likert questions indicate a significant level of agreement for the Disposition of Praxis, for the Community, and for Social Justice. Disagreements were found in the greater provision for Social Justice, which requires exploring social, economic, and political issues in teacher training, as a way of providing an understanding of the inequalities and power relations present in schools and Early Childhood Education institutions, and how Mathematics can be taught to help develop children who are more critical and aware of their role in society, contributing to a fairer and less unequal world. Cronbach's Alpha is 0.83, which represents a high level of reliability.
Equity in mathematics; Social justice; Childhood education; Equitable pedagogical practice; Culturally responsive pedagogy
1 Introdução
A Educação no Brasil tem sido pautada por desigualdades, segregações e exclusão, ao invés de promover a Justiça Social e o respeito à diversidade (Gatti; Menezes, 2021). As desigualdades e inequidades estão presentes em todo o território nacional, pois “a distribuição e o cumprimento do direito à Educação nos territórios vulneráveis têm se guiado muito mais por uma racionalidade técnica do que pela noção de justiça social” (Barbosa; Cruz; Ribeiro, 2022, p. 2-3), impactando no direito à Educação das crianças e adolescentes.
A Base Nacional Comum Curricular (BNCC), documento normativo para a construção dos currículos das escolas brasileiras e instituições de Educação Infantil, apresenta orientações para o desenvolvimento integral da criança, considerando os aspectos físicos, emocionais, cognitivos e sociais (Brasil, 2018). Todavia, a BNCC apresenta orientações igualitárias para todas as crianças, mostrando que “[...] a política da Educação Infantil no Brasil ainda está pautada nas desigualdades econômicas, sociais, regionais, raciais, de gênero e também de idade” (Oliveira; Abramowicz, 2017, p. 296). O desenvolvimento e a aprendizagem das crianças são respeitados quando consideramos suas histórias, sua cultura e seu contexto social.
Considerando que a BNCC não tem orientações distintas para os diferentes perfis de crianças brasileiras, é importante que as instituições de Educação Infantil construam seus currículos considerando sua realidade. Para isso, os professores que atuam na Educação Infantil precisam estar preparados para observar e adotar as vivências e os conhecimentos desenvolvidos pelas crianças no ambiente familiar e em suas comunidades, vinculando-os à sua prática pedagógica, buscando ampliar estas experiências, para que esta diversidade consolide novas aprendizagens.
Dentre as aprendizagens que devem ser desenvolvidas a partir da primeira infância, destaca-se a da Matemática, importante para ajudar no desenvolvimento integral das crianças. Ainda que a Educação Infantil não esteja dividida em disciplinas ou áreas de conhecimento, não dá para desconsiderar que a Matemática está presente nos Campos de Experiência (Brasil, 2018). English (2009) argumenta que mesmo em situações complexas as crianças são capazes de matematizá-las e, durante estas situações (atividades, brincadeiras, vivências), costumam se basear no conhecimento e experiências existentes, sem separar em disciplinas.
Brizuela (2006, p. 17) destaca que “as crianças, nos mais diversos contextos socioeconômicos e culturais, estão imersas em um mundo de notações matemáticas desde o momento em que chegam ao mundo”. Neste sentido, é preciso que a Matemática seja explorada com intencionalidade (Smole, 2014; Moreira; Gusmão; Moll, 2018), mas respeitando o contexto (D’ambrósio, 2005; Wagner; Herbel-Eisenmann; Choppin, 2012) e os direitos de aprendizagem da criança (Brasil, 2018).
Para D’Ambrósio (2005, p. 115) “a contextualização é essencial para qualquer programa de Educação de populações nativas e marginais, mas não menos necessária para as populações dos setores dominantes, se quisermos atingir uma sociedade com Equidade e Justiça social”. Portanto, é importante para todos os grupos sociais que a Matemática seja contextualizada, pois as “práticas cognitivas e organizativas não são desvinculadas do contexto histórico no qual o processo se dá, contexto esse em permanente evolução” (D’ambrósio, 2005, p. 118).
A circunstância que os conceitos matemáticos serão explorados vai depender do planejamento do professor, assim como do contexto social da escola. Contudo, esses elementos só serão considerados em uma prática pedagógica equitativa, a depender das crenças e atitudes do professor. Como forma de compreender a disposição de professores para práticas equitativas, Whitaker e Valtierra (2018) destacam três domínios: disposição para a Práxis, disposição para a Comunidade e disposição para a Justiça Social.
De acordo com Paulo Freire (2007), práxis envolve ação e reflexão, logo, possui interação entre teoria e prática, sendo a ação consciente e reflexiva fundamental para a transformação da realidade. Ao verificar a disposição para Práxis, Whitaker e Valtierra (2018) buscam ponderar sobre como professores com identidades culturais fortes são menos propensos a apoiar ideologias que minimizam as diferenças entre grupos culturais para justificar o tratamento igual a todos.
A disposição para a Comunidade identifica a abertura do professor para o diálogo com os estudantes e a comunidade escolar, pois a inserção do professor na comunidade deve ajudar a compreender o contexto cultural (Wagner; Herbel-Eisenmann; Choppin, 2012), proporcionando maior engajamento (Whitaker; Valtierra, 2018). Esta disposição baseia-se no ensino culturalmente responsivo, que defende que os estudantes podem obter melhor desempenho quando o ensino considera suas experiências culturais (Gay, 2010).
Na disposição para a Justiça Social, Whitaker e Valtierra (2018) buscam identificar o conhecimento dos professores sobre como a Justiça Social pode ser alcançada na sala de aula. Para isso, os professores precisam ser culturalmente responsivos, de modo a compreender que a Educação é um direito civil dos estudantes (Gay, 2010; Whitaker; Valtierra, 2018). Neste sentido, ensinar Matemática para a Justiça Social seria possibilitar meios para que os estudantes possam desenvolver consciência sociopolítica (Freire, 1992), compreendendo a origem das desigualdades sociais e suas próprias dinâmicas de vida; como forma de entender suas identidades sociais e culturais (Wagner; Herbel-Eisenmann; Choppin, 2012).
Presume-se, portanto, que a disposição para a Práxis, para a Comunidade e para a Justiça Social pode ajudar a compreender como os professores que ensinam matemática estão inclinados e engajados a desenvolverem práticas equitativas e com Justiça Social. A partir desse cenário, objetivamos, neste artigo, analisar a perspectiva de Equidade e Justiça Social que professoras da Educação Infantil têm para o desenvolvimento das crianças em Matemática. Para atingir esse objetivo, desenvolvemos uma pesquisa de abordagem mista, por meio de questionário respondido por 146 professoras que atuam na Educação Infantil, de Itabuna, Bahia.
Este trabalho está dividido em cinco seções. A introdução apresentou o contexto e os problemas que motivam a realização desta pesquisa, assim como o objetivo delimitado para este texto. A segunda seção traz o referencial teórico da pesquisa, onde discutimos sobre o conceito de Equidade, Igualdade e Justiça Social para a aprendizagem da Matemática. A terceira seção descreve os procedimentos metodológicos desta investigação, seguida pela seção dos resultados, que foi dividido em duas subseções: [1] concepções e relações de Equidade e Igualdade na perspectiva das professoras da Educação Infantil que ensinam Matemática e [2] crenças e atitudes que embasam uma prática pedagógica equitativa – disposição para a práxis, para a Comunidade e para a Justiça Social. Por fim, as considerações finais serão dispostas.
2 Equidade e Justiça Social para a aprendizagem da Matemática
Pesquisas que discutem Equidade e Igualdade para a aprendizagem manifestam, em alguns casos, interpretações diferentes, apesar disso, essas ideias trazem relações em comum com as perspectivas paradigmáticas e posições subjacentes sobre questões fundamentais como direitos e Justiça Social. De acordo com Benadusi (2006), o conceito de Equidade é comumente considerado como semelhante ao de Igualdade, ou por vezes esses conceitos são sobrepostos, contudo, é importante diferenciá-los, já que a Equidade pode ser considerada como um desenvolvimento do conceito de Igualdade.
Esta pesquisa fundamenta-se em Whitaker (2023), que explica que a Equidade para a aprendizagem ocorre quando se fornece aos professores, estudantes e comunidade escolar, os recursos e apoios alinhados com suas necessidades individuais; enquanto a Igualdade acontece quando professores, estudantes e comunidade escolar recebem exatamente os mesmos recursos e apoio, independente de suas necessidades individuais.
A diferenciação de Equidade e Igualdade apontada por Whitaker (2023), também se alinha ao da National Council of Teachers of Mathematics (NCTM, 2008, p. 12) que argumenta que: “A Equidade não significa que cada estudante deve receber um ensino idêntico; pelo contrário, exige a adaptação razoável e adequada, sempre que tal se revele necessário, de modo a promover o acesso a aquisição dos conteúdos a todos os estudantes.” Portanto, ao desconsiderar as necessidades individuais, tem-se a Igualdade e não a Equidade (Santana; Castro, 2022).
A National Academies of Sciences, Engineering, and Medicine (NASEM) orienta que as práticas de sala de aula devem ser baseadas na Equidade e na Inclusão, abraçando a pedagogia da Justiça Social (NASEM, 2022). Ainda que as discussões apontadas pela NASEM, e adaptadas de Philip e Azevedo (2017) e Rodriguez (2015) sejam voltadas para o Ensino de Ciências e Engenharia na Educação Básica, estas abordagens de Equidade podem também ser adaptadas ao ensino de matemática. A adaptação feita por nós foi baseada no NASEM (2022), mas também considerou Chao, Murry e Gutiérrez (2014), D’Ambrósio (2005), Freire (1992), Gutiérrez (2012; 2013), Jost e Kay (2010), Koestler et al. (2022), Santana e Castro (2022; 2024) e Wagner, Herbel-Eisenmann e Choppin (2012), com as seguintes abordagens: [1] aumentar as oportunidades e o acesso à aprendizagem da Matemática; [2] enfatizar a Realização, Representação e Identificação com a Matemática; [3] expandir o que constitui a Matemática; e [4] explorar a Justiça Social a partir da Matemática.
Ainda que a Matemática seja uma disciplina presente no currículo brasileiro, seja na Educação Infantil, a partir dos Campos de Experiência, ou no Ensino Fundamental e Médio, como área do conhecimento (Brasil, 2018), a oportunidade e o acesso mencionados na abordagem [1] também estão relacionadas com a forma que a Matemática é tratada na prática pedagógica do professor, com as estratégias de ensino, com a não exclusão de conceitos, possibilitando que os estudantes possam usar a Matemática para desenvolverem uma visão crítica da sociedade. Santana e Castro (2022) explicam que as oportunidades e o acesso são viabilizados para a aprendizagem, quando o estudante pode Expressar suas aprendizagens, estas podem ser realizados por diagnóstico feitos de diferentes formas, de modo a incluir formas de representação e registros diversificados. Na Educação Infantil os diagnósticos podem ser feitos por representações como: desenhos, números, textos, comunicação oral, dentre outros.
As oportunidades e o acesso também são viabilizados ao Propiciar qualidade de ensino por meio de práticas pedagógicas equitativas e inclusivas, considerando as diferenças de aprendizagem dos estudantes e de níveis (Santana; Castro, 2022). As propostas precisam oportunizar uma diversidade de atividades e acesso a materiais, como situações-problema, livros, Recursos Educacionais Digitais, dentre outros. Santana e Castro (2022) ainda indicam a importância do acesso e das oportunidades para possibilitar que os conceitos matemáticos aprendidos pelos estudantes possam ir além da sala de aula, como forma de Alcançar Expectativas. Logo, é importante considerar que as crianças da Educação Infantil também devem ter estas oportunidades.
Ao possibilitar aos estudantes Expressar – Propiciar - Alcançar Expectativas, os professores podem enfatizar maior Realização, Representação e Identificação com a Matemática, previstos na abordagem [2]. De acordo com Gutiérrez (2012), a Realização acontece quando se tem resultados tangíveis, tais como melhora nas avaliações, o que pode gerar mais disposição pela disciplina. O maior interesse pode ajudar com o engajamento e a afetividade a uma disciplina que geralmente é temida e odiada por muitos estudantes (Gutiérrez, 2013).
Evitar experiências negativas, medos, ansiedades e identidades matemáticas insatisfeitas é uma forma de Equidade na Matemática (Chao; Murry; Gutiérrez, 2014). Contudo, se por um lado saber Matemática pode trazer oportunidades aos estudantes, não saber Matemática pode oprimir e criar esteriótipos (Gutiérrez, 2013). Mesmo em projetos centrados na Equidade para a aprendizagem da Matemática é possível observar a “perspectiva de déficit subjacente em termos de tentar fazer com que mais (e diferentes tipos de) alunos aprendam matemática” (Gutiérrez, 2013, p. 48, tradução nossa).
Além disso, estas Realizações podem ser referentes ao contexto social e econômico, uma vez que o acesso à Matemática pode ajudar os estudantes no mundo do trabalho (NASEM, 2022), ajudando-os a Alcançar Expectativas, tornando a Matemática relevante (Santana; Castro, 2022). Os estudantes podem utilizar a Matemática em diferentes contextos, fazendo conexões da Matemática com outras áreas, usando uma variedade de representações matemáticas (textual, gráfica, icônica, verbal), sociais e culturais. Representações que se referem, por exemplo, a representações com gráficos, símbolos numéricos, leitura de números e compreensão de figuras geométricas.
Ensinar matemática valorizando os aspectos culturais pode ajudar os estudantes a compreenderem melhor os conceitos matemáticos, servindo como Representação de conceitos de forma mais significativa, produzindo resultados mais eficazes (Wagner; Herbel-Eisenmann; Choppin, 2012).
Ainda na abordagem [2], a Identificação com a Matemática pode se dar como uma prática social, constituindo-se a partir da Identidade cultural deste indivíduo (D'ambrósio, 2005; Gutiérrez, 2012). Gutiérrez (2012) alerta para o fato de não relacionar esta identidade apenas com o passado, pois a incorporação do mundo real, com situações autênticas, traz maior significado para a vida dos estudantes (Wagner; Herbel-Eisenmann; Choppin, 2012). Neste sentido, a Identidade reconhece que o indivíduo é único, pois tem suas particularidades e está imerso em um contexto social que o identifica.
A abordagem [3], expandir o que constitui a Matemática; vincula-se com a construção de um currículo capaz de oportunizar que o conhecimento Matemática predisponha expressar uma visão crítica da sociedade, possibilitando que a Matemática seja usada humanisticamente, desenvolvendo formas diferenciadas de conhecimento (D'ambrosio, 2005).
Neste contexto, é importante verificar a interlocução da Matemática com outras áreas e linguagens, englobando, por exemplo, a interdisciplinaridade, recorrendo aos estudos culturais e à teoria crítica para explicar e tentar intervir na produção de práticas hegemónicas (Gutiérrez, 2013). É importante considerar que na Educação Infantil a interdisciplinaridade está presente a partir da interlocução entre os diferentes Campos de experiência, possibilitando que a criança construa conhecimento de forma integrada.
Mesmo que as abordagens que priorizem a Equidade na Matemática tenham um aspecto libertador, é preciso ficar atento ao fato de que os estudantes marginalizados, ou seja, os povos oprimidos sejam contemplados com práticas que incorporem os princípios de uma estrutura emancipatória (Gutiérrez, 2013). É possível observar que a abordagem [3] tem correspondência com a dimensão de poder de Gutiérrez (2012; 2013), que relaciona a duas construções: (1) o poder da Matemática ou (2) o poder associado ao sucesso na Matemática.
Gutiérrez (2013) alerta para a visão utilitarista da Matemática, muitas vezes presentes em documentos curriculares e em práticas pedagógicas centradas apenas no contexto. É preciso cuidado para que a ideia de poder não esteja atrelada a afirmação de que a aprendizagem da matemática confere aos alunos poder na sociedade. Um bom desempenho em Matemática não indica, necessariamente, inteligência, mas pode significar oportunidades para Expressar, Propiciar e Alcançar expectativas.
Na abordagem [4], explorar a Justiça Social a partir da Matemática; é importante considerar e valorizar a participação dos estudantes, instigando-os a entender com profundidade suas condições de vida e a dinâmica sociopolítica do mundo (Freire, 1992; Wagner; Herbel-Eisenmann; Choppin, 2012). Convém esclarecer que a Justiça Social pode envolver benefícios e encargos sociais distribuídos de acordo com leis ou regras estipuladas para assegurar direitos de indivíduos e grupos, além de tratamento digno (Jost; Kay, 2010).
É papel da escola fazer com que os estudantes percebam as (in)justiças da sociedade, presentes, muitas vezes, em sua própria realidade. Koestler et al. (2022) argumentam que a abordagem da Justiça Social nas aulas de Matemática pode ajudar na conexão da Matemática com as histórias culturais e comunitárias dos estudantes, possibilitando relacionar a Matemática com outras disciplinas, além de capacitar os estudantes a resolverem desafios do mundo real, predispondo na valorização da matemática como ferramenta de mudança social.
O professor tem um papel importante na mediação desta abordagem, o que requisita predisposição e entendimento de que a Justiça Social é um direito civil. Whitaker e Valtierra (2018) asseveram que professores que se mostram culturalmente responsivos possuem disposição para a Práxis, para comunidades e para a Justiça Social.
Compreender a perspectiva dos professores sobre Equidade para a aprendizagem da Matemática e sua predisposição para práticas culturalmente responsivas pode ajudar em processos formativos com foco em abordagens com Equidade. Pesquisas em Educação Matemática (Chao; Murry; Gutiérrez, 2014; NCTM, 2014) tem sugerido práticas de ensino baseadas na Equidade por meio de três lentes úteis para a construção do ensino: refletir, observar e envolver-se na comunidade.
Ao refletir sobre sua prática pedagógica, o professor pode transformar realidades. Whitaker e Valtierra (2018) destacam a importância de os professores terem consciência de sua própria identidade, assim como conhecer os estudantes e sua prática. Para conhecer os estudantes e os contextos (in)justos é preciso que o professor faça observações e estabeleça o diálogo com os estudantes e a comunidade.
Desenvolver práticas com Equidade e Justiça Social ao ensinar matemática é uma tarefa desafiadora, pois é preciso considerar a heterogeneidade e o currículo escolar. Há uma diversidade de raças, etnias, religiões, origens socioeconômicas, convicções políticas, níveis de desempenho que precisam ser considerados. Será que os professores estão predispostos a fazer uma prática pedagógica com Equidade e Justiça Social? Na próxima seção apresenta-se os procedimentos metodológicos.
3 Procedimentos metodológicos da investigação
Esta investigação integra o projeto intitulado Desenvolvimento Profissional do Professor de Matemática: ações com vistas a promover Equidade, cadastrado no Comitê de Ética em Pesquisa (CEP) da Universidade Estadual de Santa Cruz (UESC), sob parecer nº 5.741.814, CAAE: 64046222.7.0000.0055, com ações desenvolvidas pelo Grupo de Pesquisa em Educação Matemática, Estatística e Ciências1 (GPEMEC) e pela Rede Educação Matemática Nordeste2 (REM-NE). Esta pesquisa teve financiamento da UESC.
Nesta pesquisa adotamos a abordagem teórica-metodológica da pesquisa quali-quantitativa, ou seja, utilizamos abordagem mista, como forma de esclarecer a perspectiva das professoras da Educação Infantil em relação à Equidade e Justiça Social relacionadas à sua prática pedagógica para o desenvolvimento das crianças em Matemática. O uso desta abordagem justifica-se pelo fato da interação entre os dados qualitativos e quantitativos possibilitar uma compreensão mais aprofundada da perspectiva das professoras (Creswell; Plano-Clark, 2011).
Os dados foram coletados por meio de questionário feito no Google Docs, disponibilizado durante formação colaborativa para 281 professoras da Educação Infantil, com adesão voluntária. Ao final do período obtivemos 146 respostas. As professoras atuavam na creche II e III e pré-escola I e II da rede municipal de Itabuna, sendo que 21,2% atuavam com crianças de 2 anos (Creche II); 28,1% com crianças de 3 anos (Creche III); 28,8% com crianças de 4 anos (Pré-escola I) e 21,9% com crianças de 5 anos (Pré-escola II). Todas as professoras tinham ao menos o curso de Pedagogia e atuavam em escolas de Educação Infantil de Itabuna, sendo que 52% delas tinham mais de 10 anos de experiência docente e 24% menos de 3 anos de experiência. Para estas análises não foi feita nenhuma correlação entre idade, tempo de experiência docente ou formação.
O questionário foi dividido em três seções: [1] perfil docente; [2] perspectiva sobre interdisciplinaridade3; e [3] perspectiva sobre equidade e justiça social – definição de Equidade e Igualdade (duas questões aberta) e 19 itens preenchidos por escala Likert, baseado no instrumento Dispositions for culturally responsive pedagogy scale (DCRPS), de Whitaker e Valtierra (2018). O DCRPS é dividido em três domínios disposicionais: para a Práxis (6 questões), para a Comunidade (9 questões) e para a Justiça Social (4 questões). O DCRPS é um instrumento que pode ser utilizado para a formação de professores em qualquer nível de ensino: Educação Infantil, Ensino Fundamental ou Médio, pois busca verificar a disposição de professores para práticas culturalmente responsivas.
Para atender ao objetivo deste artigo, as análises foram feitas nas duas questões abertas do questionário; e nas 19 questões da escala Likert da parte [3] do questionário. Para a análise das questões abertas foi feita a codificação dos sujeitos e a tabulação dos dados. A partir desse conjunto de textos (corpus), utilizamos a Análise Textual Discursiva (ATD) (Moraes; Galiazzi, 2016). A escolha dessa técnica de análise justifica-se por possibilitar a desconstrução e a reconstrução do texto, ou seja, a unitarização, o que permite uma melhor compreensão das perspectivas dos professores sobre Equidade e Igualdade. As categorias foram definidas a partir dos textos que contém a perspectiva dos professores e por meio da interlocução com os teóricos que fundamentam Equidade e Igualdade. A partir da análise foi feita uma comparação entre as respostas sobre Equidade e Igualdade de cada sujeito, como forma de verificar como diferenciam ou não cada um destes conceitos.
A análise das 19 questões da parte [3] do questionário, cujo itens são uma escala Likert de 6 pontos, foi feita por análise descritiva de itens em escala Likert (Hair Junior et al., 2005). Para isso, foi construído gráfico de concordância e discordância no RStudio. A avaliação da consistência interna do instrumento foi feita pelo coeficiente Alfa de Cronbach, com o objetivo de analisar a confiabilidade do questionário ao estimar o quão bem as questões do instrumento convergem e produzem resultados semelhantes (Freitas; Rodrigues, 2005).
4 Equidade e Justiça Social para a aprendizagem da Matemática
Os resultados serão apresentados em duas seções. Na primeira seção discutir-se-á a perspectiva de Equidade e Igualdade das professoras da Educação Infantil. Na segunda seção tem-se os resultados da escala Likert sobre Disposição para a Práxis, para comunidade e para a Justiça Social.
4.1 Concepções e relações de Equidade e Igualdade na perspectiva das professoras
Nesta seção são discutidas as concepções de Equidade e Igualdade das professoras a partir da interpretação das respostas ao questionário. A interpretação foi feita a partir de unitarizações previstas na ATD, que não prevê a quantitificação de respostas (Moraes; Galiazzi, 2016). As interpretações diferenciadas em relação a Equidade e Igualdade (Benadusi, 2006; NCTM, 2008; Whitaker, 2023) foram identificadas na perspectiva das professoras da Educação Infantil que participaram desta pesquisa. Ao serem questionadas sobre o que seria Equidade para a aprendizagem da Matemática, estas professoras relacionaram este conceito a: (1) Dar oportunidades iguais; (2) Dar oportunidades diferentes; (3) Ser Justo; e (4) Igualdade de Direitos (Quadro 1).
Observa-se nas perspectivas reveladas (Quadro 1), contradições em relação ao conceito de Equidade, verificadas pelas categorias (1) Dar oportunidades iguais e (2) Dar oportunidades diferentes. De acordo com Whitaker (2023), o conceito de Equidade está alinhado com as necessidades individuais, portanto, ao se Dar oportunidades diferentes, atende-se às questões mais individuais. Por outro lado, ao Dar oportunidades iguais, todos os estudantes terão acesso a recursos, estratégias e metodologias iguais, independente de suas carências; o que concerne o conceito de Igualdade (NCTM, 2008; Whitaker, 2023).
Santana e Castro (2022) indicam que a Equidade para a aprendizagem de conceitos matemáticos pode ser identificada com diagnósticos, ofertados com recursos e metodologias para a aprendizagem, com oportunidades para que os estudantes possam Expressar – Propiciar - Alcançar Expectativas.
O professor de matemática que está aberto a Dar oportunidades, viabiliza o acesso aos conceitos matemáticos, contudo, a forma como ele vai dar estas oportunidades é um indicativo ou não de Equidade. No Quadro 1 é possível observar que a Categoria: (1) Dar oportunidades iguais foi definida a partir de unitarizações, como: prezar pela igualdade, agir de forma igualitária e ser imparcial, o que remete a uma concepção de Equidade como Igualdade. Essa compreensão equivocada também foi percebida por Benadusi (2006), o que pode implicar nas atitudes do professor em sua prática pedagógica. Whitaker e Valtierra (2018) salientam que professores que tratam todos os estudantes de forma igualitária, tendem a minimizar diferenças culturais, o que pode contribuir com desigualdades e injustiças.
A categoria (3) Ser justo, no Quadro 1, pode ser associada ao conceito de Justiça Social (Koestler et al., 2022), pois as professoras mencionam o uso de regras justas, para atender às individualidades, uma vez que os estudantes não são iguais, o que requisita ajustar e respeitar essas diferenças. A Justiça Social na Matemática é uma das abordagens que apontamos neste trabalho e que está associada a Equidade para a aprendizagem da Matemática (Chao; Murry; Gutiérrez, 2014; Gutiérrez, 2012; 2013; Santana; Castro, 2022).
A (4) Igualdade de direitos é concatenada, de acordo com a perspectiva das professoras no Quadro 1, a não dar privilégios, ao respeito a igualdade de direitos e ao alcance destes direitos. Koestler et al. (2022) relaciona a Igualdade de direitos com a Justiçza Social. Contudo, não é possível esclarecer nos protocolos coletados na pesquisa, se a perspectiva das professoras está associada realmente a Justiça Social, pois há unitarizações que parecem divergentes, ainda que estejam relacionados com Justiça. Por exemplo: há professores que indicam que a Justiça é não dar privilégios, mas o que ela considera como privilégios? Neste caso, o privilégio pode remeter a tratamento igual, sem diferenciação, ou ainda, a tratamentos diferentes de acordo com as necessidades, pois ela pode se referir a não ofertar mais para quem não precisa.
O segundo questionamento respondido pelas professoras foi em relação a Igualdade para a aprendizagem da Matemática. Observa-se perspectivas semelhantes com as de Equidade, como: (1) Dar oportunidades iguais; (2) Dar oportunidades diferentes; (3) Ser Justo; (4) Não ser Justo e (5) Igualdade de Direitos (Quadro 2).
As unitarizações prenunciam perspectivas adequadas, quando as professoras indicam que se relaciona com Dar oportunidades iguais (NCTM, 2008; Whitaker, 2023). Contudo, verificou-se protocolos que explicitaram Igualdade como Equidade. Além disso, observou-se no Quadro 2, perspectivas que remetem a uma visão que se distancia dos princípios de Equidade, quando o professor afirma que Igualdade é dar oportunidades iguais sem distinção e sem discriminação.Gay (2010) assevera a importância de considerar as diferenças culturais em sala de aula, pois isso pode ajudar na melhora do desempenho.
Por outro lado, o Quadro 2 traz a categoria (4) Não Ser Justo, com a unitarização: Dar oportunidades iguais, mesmo para pessoas que têm necessidades diferentes. Esta é a única categoria que não aparece no Quadro 1 e esboça a preocupação das professoras sobre a falta de Justiça Social no conceito de Igualdade (Whitaker, 2023). A categoria (3) Ser Justo apresenta unitarizações que remetem a Justiça Social, embora o conceito de Igualdade esteja ligado a dar oportunidades a todos, as professoras relacionaram a Igualdade com a oportunidades de aprender as mesmas coisas. É possível perceber que a Igualdade não está relacionada, neste caso, às oportunidades para se atingir um objetivo, mas à Igualdade que se espera alcançar ao final. Esta perspectiva remete à Equidade (Whitaker, 2023).
A falta de clareza entre a concepção de Equidade e Igualdade pode impactar na promoção da Justiça Social (Koestler et al., 2022), na definição e escolha dos recursos e metodologias mais adequadas para cada realidade (Santana; Castro, 2022; 2024), e no desenvolvimento de abordagens com Equidade (Chao; Murry; Gutiérrez, 2014; (Santana; Castro, 2022; 2024), seja por considerar o princípio de igualdade, deixando alguns estudantes, ou seja, perpetuando desigualdades existentes.
Por isso, é importante compreender a disposição destas professoras para o ensino culturalmente responsivo (Gay, 2010). A próxima subseção discute os resultados do instrumento Dispositions for culturally responsive pedagogy scale (DCRPS), de Whitaker e Valtierra (2018).
5.2 Crenças e atitudes que embasam uma prática pedagógica equitativa
De acordo com Wagner, Herbel-Eisenmann e Choppin (2012), a dissincronia cultural entre professores e estudantes, contribuiu para desigualdades e experiências educacionais às vezes opressivas para estudantes com culturas diferentes. Neste sentido, o instrumento Dispositions for culturally responsive pedagogy scale, de Whitaker e Valtierra (2018), investiga se os professores possuem crenças e atitudes que embasem uma prática pedagógica equitativa, possibilitando resultados positivos entre os estudantes de todos os grupos demográficos. Este instrumento é dividido em Disposição para a Práxis, para a Comunidade e para a Justiça Social.
A Disposição para a Práxis tem seis questões, são elas:
Q01. Eu estou aberto a avaliar minhas práticas de ensino.
Q02. Eu estou aberto a receber feedbacks sobre minha prática de ensino
Q03. Eu estou ciente da minha origem cultural
Q04. Eu estou disposto a ser vulnerável
Q05. Eu estou disposto a examinar minhas próprias identidades (raça, gênero, classe socioeconômica etc.).
Q06. Eu estou disposto a aproveitar oportunidades de desenvolvimento profissional com foco em questões de diversidade (Whitaker; Valtierra, 2018, p. 18, tradução nossa).
A Disposição para a Comunidade tem nove questões, são elas:
Q07. Eu valorizo a aprendizagem colaborativa.
Q08. Eu valorizo a colaboração com as famílias.
Q09. Eu me vejo como um membro da comunidade de aprendizagem junto com os alunos. Q10. Eu valorizo a opinião dos alunos sobre as regras da sala de aula.
Q11. Eu valorizo o desenvolvimento de relacionamentos pessoais com os alunos.
Q12. Eu valorizo o diálogo como forma de aprender sobre a vida dos alunos fora da escola
Q13. Eu me sinto confortável com o conflito como uma parte inevitável dos processos de ensino e aprendizagem.
Q14. Eu valorizo as diferenças dos alunos.
Q15. Eu valorizo a colaboração com os colegas (Whitaker; Valtierra, 2018, p. 20, tradução nossa).
A Disposição para a Justiça Social tem quatro questões, são elas:
Q16. Eu acredito que conversas sobre raça, racismo, gênero, sexualidade, religião etc. devem ser feitas nas aulas de matemática quando necessário e/ou relevante.
Q17. Eu acredito que as escolas podem reproduzir as desigualdades sociais.
Q18. Eu acredito que é importante reconhecer como as questões de poder são representadas nas escolas.
Q19. Eu valorizo a Equidade (dar a cada aluno o que eles precisam individualmente) sobre a Igualdade (dar a cada aluno a mesma coisa) (Whitaker; Valtierra, 2018, p. 20, tradução nossa).
Para iniciar as análises, tabulamos os dados e os inserimos no RStudio para a construção do gráfico de Discordância e Concordância (Figura 1). O gráfico da Figura 1 foi originado no RStudio a partir de análise das discordâncias e concordâncias das questões propostas por Whitaker e Valtierra (2018). Conforme observado, as porcentagens de concordância são maiores em todos os 19 itens. A maior discordância foi verificada em Q04 - Eu estou disposto a ser vulnerável (Disposição para a Práxis), com 36%. A vulnerabilidade questionada pode ter relação com as fragilidades e as dificuldades que as professoras enfrentam na Práxis, contudo, a metodologia abordada não permitiu certificar-se como as professoras entenderam esta vulnerabilidade. Whitaker e Valtierra (2018) explicam que a vulnerabilidade é importante na prática de bons professores, pois é necessário coragem e trabalho árduo, principalmente ao se trabalhar em contextos sociais e culturais diversos.
A análise das Estatísticas descritivas das questões referentes a Disposição para a Práxis mostram que a maior variância de respostas foi em Q04, com 2,257 (Tabela 1). A Disposição para a Práxis continha seis questões que medem o comprometimento das professoras com a autoconsciência e o autoaperfeiçoamento (Whitaker; Valtierra, 2018).
A Tabela 1 mostra que todas as médias, exceto Q04, estão acima de 5, o que indica um nível de concordância alto, considerando que foi usada uma escala de 6 itens. Apesar de Q04 ter as maiores discordâncias entre as 19 questões (Figura 1), observa-se uma média de quase 4, o que ainda indica concordância.
Na Disposição para a Comunidade, a maior discordância é de Q13 - Eu me sinto confortável com o conflito como uma parte inevitável dos processos de ensino e aprendizagem, com 14%. Compreender o nível e o tipo de interação com a comunidade é importante, pois o diálogo, na visão de Freire (2011), pode favorecer o desenvolvimento de novos sentidos ao mundo. No entanto, a abertura ao diálogo deve estar sujeita a divergências e convergências de opiniões, o que pode favorecer o desenvolvimento de competências como o senso crítico, a argumentação e ainda o respeito as diferenças (Brasil, 2018).
A Tabela 2 confirma a discordância verificada na Figura 1, pois apresenta em Q13 uma média menor que as demais questões, com 4,541 e uma variância também maior, de 1,16. A Disposição para a Comunidade tem nove questões que avaliam como as professoras desenvolvem e potencializam as relações com a comunidade (Whitaker; Valtierra, 2018).
Todas as questões da Disposição para a Justiça Social tiveram discordâncias, principalmente Q16 – Eu acredito que conversas sobre raça, racismo, gênero, sexualidade, religião etc., devem ser feitas nas aulas de matemática quando necessário ou relevante, com 21% e Q17 - Eu acredito que as escolas podem reproduzir as desigualdades sociais, com 23%.
A discordância em Q16 pode ter relação com o estranhamento das professoras em abordar temáticas voltadas a diversidade cultural em práticas pedagógicas da Educação Infantil, ademais em contextos que envolva Matemática, já que isso não está previsto no documento que norteia a construção dos currículos das escolas brasileiras e instituições de Educação Infantil (Brasil, 2018). A discordância em Q17 pode ter compatibilidade com a falta de clareza sobre a natureza das escolas (Gutiérrez, 2013). Apesar de a Educação almejada dever ser voltada para a Justiça Social e respeito à diversidade, Gatti e Menezes (2021, p. 155) salientam que “frequentemente se defronta com o oposto do que pretende, como desigualdades, segregações, preconceitos e outras formas de exclusão”. Essas desigualdades sociais são fortemente reproduzidas porque a escola e instituições de Educação Infantil, de uma forma geral, costuma favorecer estudantes social e culturalmente privilegiados.
Em comparação as 19 questões, Q18 - Eu acredito que é importante reconhecer como as questões de poder são representadas nas escolas e Q19 - Eu valorizo a Equidade (dar a cada aluno o que eles precisam individualmente) sobre a Igualdade (dar a cada aluno a mesma coisa), também tiveram discordâncias, com 8% e 6%, respectivamente.
As relações de poder na escola e instituições de Educação Infantil são legitimadas pelo currículo, pois ele reflete o projeto de sociedade e a visão do mundo de quem o (re)produz, trazendo crenças e valores que podem reprimir, limitar ou expandir práticas sociais (Silva, 2005). Neste sentido, o professor pode reproduzir estas relações de poder, a partir da relação professor-aluno, na abordagem utilizada para a aprendizagem, ao induzir valores, ensinamentos e normas, por exemplo. Reconhecer estas relações é importante para criar ambiente inclusivo e equitativo, evitando práticas autoritárias, favorecendo um ambiente de respeito, confiança e colaboração (Freire, 2011).
Gutiérrez (2013, p. 61, tradução nossa) salienta que as relações de poder também podem ser percebidas na Matemática, pois, “a aprendizagem e o ensino da matemática não são atividades neutras”. Por isso, é preciso ter cuidado com discursos que classificam os estudantes em bons em matemática ou não, porque é um discurso excludente e cria rótulos.
Para valorizar a Equidade sobre a Igualdade (Q19), as professoras precisam compreender que a perpetuação do poder pode excluir ainda mais as minorias em ambientes de aprendizagem. O NASEM (2022) enumera o ensino significativo e rigoroso, assim como a luta contra o poder e a opressão sistêmicas, como pontos importantes para trabalhar em prol da Equidade, destacando ainda que a Justiça Social precisa estar presente neste processo.
As discordâncias percebidas em maior número na Estatística descritiva dos itens da Disposição para a Justiça Social (Tabela 3), pode ser compatível com a falta de clareza sobre Equidade e Justiça Social, assim como sobre as relações em instituições de Educação Infantil que implicam em exclusão. Esta falta de clareza tem relação com o fato de, muitas vezes, a Equidade e a Justiça Social serem deixadas implícitas, o que pode contribuir para a perpetuação do poder historicizado.
A Disposição para a Justiça Social salienta a vontade e a consciência das professoras se envolverem em questões de Justiça Social em sua sala de aula (Whitaker; Valtierra, 2018). Portanto, estas questões são importantes para compreender se as professoras reconhecem ou não as instituições de Educação Infantil como locais de ruptura ou manutenção das desigualdades sociais. Há indícios de que algumas professoras possam ter dúvidas quanto a valorização da Educação como libertação e empoderamento de crianças culturalmente e socialmente diversos, contudo, a metodologia adotada não permitiu aprofundar e compreender estas perspectivas.
Em relação a Estatística descritiva das 19 questões, as Tabelas 1, 2 e 3 mostram médias e variâncias próximas. Buscando aprofundar as análises, verificou-se que a moda e a mediana em todas as questões foram iguais a 5. A fim de se acurar o entendimento dos resultados apresentados, destaca-se que sempre que os valores da moda e da mediana forem iguais em uma mesma questão, significa que aquela resposta é bastante representativa das escolhas feitas pelos respondentes, nas respectivas afirmações. O que demonstra que nível de concordância é significativo em todo o instrumento. O Alfa de Cronbach deste instrumento é 0,83. De acordo com Freitas e Rodrigues (2005), este valor é considerado com uma confiabilidade alta, já que é maior que 0,75 e menor que 0,90. A seguir, tem-se as considerações finais.
6 Considerações finais
Neste artigo, objetivamos analisar a perspectiva de Equidade e Justiça Social que as professoras da Educação Infantil têm para o desenvolvimento das crianças na abordagem de conceitos da Matemática. Para isso, as professoras responderam um questionário com duas questões abertas sobre Equidade e Igualdade para a aprendizagem de conceitos da Matemática e 19 questões respondidas por escala Likert de seis itens, baseada no instrumento Dispositions for culturally responsive pedagogy scale (DCRPS), de Whitaker e Valtierra (2018).
A partir de uma revisão de literatura (NASEM, 2022; Chao; Murry; Gutiérrez, 2014; D’ambrósio, 2005; Freire,1992; Gutiérrez, 2012; 2013; Jost; Kay, 2010; Koestler et al., 2022; Santana; Castro, 2022; 2024; Wagner; Herbel-Eisenmann; Choppin, 2012), concluímos que as práticas pedagógicas para a aprendizagem da Matemática devem ser baseadas na Equidade e na Inclusão, envolvendo a pedagogia da Justiça Social, com as seguintes abordagens: [1] aumentar as oportunidades e o acesso à aprendizagem da Matemática; [2] enfatizar a Realização, Representação e Identificação com a Matemática; [3] expandir o que constitui a Matemática; e [4] explorar a Justiça Social a partir da Matemática.
Para que estas abordagens sejam desenvolvidas é preciso que os professores compreendam que a Equidade para a aprendizagem de conceitos matemáticos na etapa da Educação Infantil requer alinhar as necessidades individuais, considerando as minorias e incluindo a todos no processo. Todavia, são necessários recursos e apoios dentro e fora das instituições da Educação Infantil, principalmente, predisposição para práticas culturalmente responsivas. Esta predisposição precisa ser acompanhada de processos formativos com foco em abordagens com Equidade. Refletir sobre a Práxis, interagir com a Comunidade, compreender o contexto social e trabalhar em prol da Justiça Social pode ajudar a transformar realidades.
As análises qualitativas sobre as definições de Equidade e Igualdade mostram que ainda falta compreensão sobre Equidade. As perspectivas sobre Equidade são superficiais e, em alguns casos, contraditórias, quando comparadas com as de Igualdade. Foi verificada respostas que indicam que Equidade e Igualdade são a mesma coisa, o que pode comprometer o desenvolvimento de abordagens com Equidade, dificultando o acesso aos conceitos matemáticos por minorias e o combate às desigualdades de uma forma geral.
As respostas do instrumento DCRPS revelaram nível de concordância alto e significativo em todos os três aspectos analisados: Disposição para a Práxis, Disposição para a Comunidade e Disposição para a Justiça Social. Contudo, observou-se nível de discordância maior em relação a disposição para a Justiça Social, o que requer explorar questões sociais, econômicas e políticas na formação destes professores, como forma de proporcionar o entendimento das desigualdades e relações de poder presentes nas instituições de Educação Infantil e ainda como a Matemática pode ser explorada para ajudar a desenvolver estudantes mais críticas e conscientes do seu papel na sociedade, contribuindo para um mundo mais justo e menos desigual.
As persistentes disparidades de desempenho social e cultural existentes em nossa sociedade, tornam fundamental que os formadores de professores considerem explorar no contexto formativo a Matemática na perspectiva da Educação Multicultural, pois seria uma forma de favorecer a coexistência de culturas distintas, valorizar os diferentes grupos étnicos, promover oportunidades às minorias, e combater o preconceito e a discriminação.
Ainda que as análises apresentadas neste artigo tenham possibilitado obter um panorama geral da perspectiva das professoras da Educação Infantil, revelando um nível de concordância positivo e significativo, ressaltamos a importância de também compreender a natureza das discordâncias que apareceram, pois podem esclarecer e ajudar a implementar abordagens com Equidade e Justiça Social.
Neste sentido, a metodologia com o uso de questionário foi importante para ter uma impressão geral do grupo, entretanto, seria importante prever a realização de entrevistas com uma amostra de professoras, a fim de esclarecer perspectivas sobre Equidade e Igualdade, assim como as concordâncias e discordâncias quanto a disposição para a Práxis, para a Comunidade e para a Justiça Social.
É preciso ainda considerar que o instrumento utilizado foi construído e validado para um contexto social e cultural diferente do brasileiro. Em pesquisas futuras pretendemos fazer uma adaptação que não considere apenas a tradução, mas a realidade social e cultural das escolas brasileiras e instituições de Educação Infantil.
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Considera-se que na Educação Infantil há vivências e experiências que envolvem múltiplas linguagens, que estão organizados em Campos de Experiência, possibilitando construir conhecimento de forma integrada.
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Disponibilidade de dados:
Os dados gerados ou analisados durante este estudo estão incluídos neste artigo publicado.
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Editor-chefe responsável:
Prof. Dr. Marcus Vinicius Maltempi,
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Editor associado responsável:
Profa. Dra. Celi Espasandin Lopes
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Datas de Publicação
-
Publicação nesta coleção
01 Ago 2025 -
Data do Fascículo
2025
Histórico
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Recebido
16 Jun 2024 -
Aceito
06 Fev 2025


Fonte: elaborado a partir dos dados da pesquisa com auxílio do RStudio (2023)