Resumo
Neste artigo discutimos como a visualização e a experimentação com tecnologias podem ser abordadas nas aulas de Matemática, partindo de demandas e necessidades dos professores. Para isso, consideramos dois contextos de pesquisa: um deles, a produção de dados de um doutoramento em desenvolvimento, em que houve a proposta de um curso de formação com professores que ensinam Matemática, o que propiciou o desenvolvimento de uma atividade por um dos professores cursistas em sua sala de aula; o outro, no contexto de uma pesquisa de mestrado já finalizada, no qual a produção de dados se deu em uma disciplina eletiva ministrada pela professora da escola e a pesquisadora de maneira colaborativa, que teve como uma de suas discussões a linguagem de programação em Python. Ambas as pesquisas fazem parte do projeto temático Ensino e aprendizagem de Matemática com calculadoras: possibilidades para a prática do professor e tiveram seus dados produzidos no segundo semestre de 2022, na cidade de São Carlos. Neste artigo, discutimos os dados provenientes do diário de campo das pesquisadoras, atividade aplicada pelo professor, respostas escritas dos estudantes a um questionário, transcrição dos diálogos em sala de aula e arquivos salvos na calculadora gráfica. Concluindo, destacamos que o repertório de saberes docentes foi determinante para que a experimentação com tecnologias, em particular com a calculadora gráfica, ocorresse em ambos os cenários. Além disso, refletimos sobre a importância da relação entre universidade e escola, pois apesar da importância dos saberes docentes para a configuração dos ambientes heurísticos observados, essa relação foi a base para que os desdobramentos evidenciados acontecessem.
Colaboração universidade-escola; Juros simples e compostos com TD; Programação em Python; Pensar-com-calculadora-gráfica; Abordagens investigativas com calculadora
Abstract
In this article, we discuss how visualization and experimentation with technology can be addressed in Mathematics classes based on teachers' demands and needs. For this purpose, we consider two research contexts: one of them, the data production from an ongoing doctoral study, where a training course was proposed with Mathematics teachers, leading to the development of an activity by one of the participating teachers in their classroom; and the other one, it was developed within the context of a completed master's research, where data production occurred in an elective course taught collaboratively by the school teacher and the researcher, with one of the discussions focusing on the Python programming language. Both studies are part of the thematic project Teaching and Learning Mathematics with Calculators: Possibilities for Teacher Practice and had their data produced in the second semester of 2022 in the city of São Carlos. The data discussed in this article come from the researchers' field diary, activities assigned by the teacher, written responses from students to a questionnaire, transcripts of classroom dialogues, and files saved on the graphing calculator. Additionally, we highlight that teachers' repertoire of knowledge was crucial for the experimentation with technology, particularly with graphing calculator, to occur in both scenarios. Additionally, we reflect on the importance of the relationship between university and school, as despite of the importance of teachers' knowledge for the configuration of the observed heuristic environments, this relationship was the basis for the evidenced developments to take place.
University-school collaboration; Simple and compound interest with DT; Programming in Python; Thinking-with-graphing-calculator; Investigative approaches with calculators
1 Introdução
Conforme apontam Castrillón-Yepes, Villa-Ochoa e Parra-Zapata (2022), nas últimas décadas, têm-se observado pesquisas envolvendo a formação de professores que ensinam Matemática, cujo foco é a integração das tecnologias no cotidiano escolar. Apesar desses autores discorrerem acerca do contexto da Colômbia, observamos um movimento semelhante no contexto brasileiro com programas como o Educom (COMputadores na EDUcação) em 1983, o Proninfe (Programa Nacional de Informática na Educação) em 1989 (Borba; Penteado, 2019), bem como outros programas governamentais e o advento de pesquisas com interesse nessa temática.
Concomitantemente a essa integração de computadores em sala de aula, as calculadoras simples e científicas também foram consideradas para o contexto escolar (Borba; Scucuglia; Gadanidis, 2020). Entretanto, com o incentivo à compra de computadores através de programas educacionais, a integração da calculadora no ambiente escolar perdeu força (Borba; Penteado, 2019).
O Grupo de Pesquisa em Informática, outras Mídias e Educação Matemática (GPIMEM), vinculado ao Programa de Pós-Graduação em Educação Matemática (PPGEM) da Unesp - campus Rio Claro, iniciou o movimento de investigação envolvendo a integração da calculadora gráfica no processo de ensino e aprendizagem com estudantes do curso de Ciências Biológicas, na disciplina de Matemática Aplicada em 1994 (Paiva et al., 2023). No decorrer do tempo, pesquisas no âmbito de mestrado e doutorado foram desenvolvidas por membros do grupo com o intuito de compreender os processos de ensino e aprendizagem atrelados ao uso da calculadora gráfica (Paiva et al., 2023).
Mais recentemente, um projeto de pesquisa temático com esse foco, dentro do GPIMEM, passou a ser desenvolvido, intitulado Ensino e aprendizagem de Matemática com calculadoras: possibilidades para a prática do professor1. Tal projeto vem sendo conduzido por membros do GPIMEM, em parceria com a Casio Comércio Brasil Ltda.
Neste artigo destacamos desdobramentos acerca de duas pesquisas vinculadas a esse projeto, sendo uma de um doutorado em andamento e a outra de um mestrado já finalizado, que consideram a integração das calculadoras científica e gráfica no ambiente escolar.
Conforme observam Javaroni e Zampieri (2015), dentro do GPIMEM, o desenvolvimento de pesquisas atreladas a projetos temáticos é cada vez mais frequente, e, nesse sentido, podem fazer parte desses projetos, pesquisas de iniciação científica, de mestrado, doutorado e até mesmo, de pós-doutorado. Tais pesquisas podem ser consideradas o alicerce da pergunta central que se busca responder, formado por estudos mais específicos que compõem um mosaico de pesquisa (Borba, 2004), oportunizando, portanto, a compreensão do todo.
Desse modo, ao discutirmos os desdobramentos das duas pesquisas mencionadas anteriormente, buscamos ressaltar características que convergem para as ideias de Tardif (2000) de que os saberes docentes são situados, plurais e heterogêneos. Além disso, debatemos elementos que se aproximam da experimentação com tecnologias, como visualização, feedback e zona de risco (Borba; Scucuglia; Gadanidis, 2020; Borba; Villarreal, 2005; Arcavi, 2003; Skovsmose, 2000).
2 Referencial Teórico
Ao discutir o uso de tecnologias digitais (TD) para produção de conhecimento matemático, nos apoiamos na experimentação com tecnologias trazida por Borba e Villarreal (2005) e sintetizada por Borba, Scucuglia e Gadanidis (2020). Os autores destacam que a integração das TD em tal abordagem possibilita o levantamento de conjecturas, a observação de padrões, além de oportunizar a descoberta de resultados matemáticos previamente desconhecidos, bem como a coleta e a organização de dados de um número expressivo de variáveis, repetir e proporcionar novos experimentos etc.
Indo ao encontro do que propõe os autores, entendemos que abordagens investigativas (Skovsmose, 2000; Ponte, 2010) podem estimular o estudante na busca pelo conhecimento matemático, tornando-o autônomo em seu processo de aprendizagem. No processo investigativo, o estudante desempenha o papel central não apenas no desenvolvimento das atividades, mas também no seu delineamento, na apresentação dos resultados, na argumentação e na validação de suas ideias. Nesse sentido, entendemos que a interação entre estudantes e entre estes com o professor em sala de aula, durante a mobilização dos conhecimentos é importante para o processo de aprendizagem, ou seja, "[...] ao envolver o aluno na formulação das questões a serem estudadas, essa abordagem tende a promover maior engajamento na aprendizagem" (Ponte; Brocado; Oliveira, 2016, p. 23).
Em consonância com essas perspectivas, Borba, Scucuglia e Gadanidis (2020) defendem a importância da investigação em meio ao processo de pensar-com-tecnologias, cujo termo remete à possibilidade de “[...] analisar aspectos do papel das mídias digitais na produção de significados e conhecimentos matemáticos” (Borba; Scucuglia; Gadanidis, 2020, p. 52).
Nesse sentido, os autores defendem a criação de cenários de investigação matemática, por meio da configuração de um ambiente configurado com as tecnologias. Assim, “a descoberta de padrões ou singularidades entre representações de objetos matemáticos (ou componentes dessas representações) propulsiona a produção de sentidos matemáticos. Há, assim, uma dimensão ‘empírica’ envolvendo pensamento e aprendizagem matemática” (Borba; Scucuglia; Gadanidis, 2020, p. 58, grifo dos autores).
No bojo dessas discussões, há de se destacar o papel da visualização em abordagens alinhadas à experimentação com tecnologias. Segundo os autores, por meio dela é possível que sejam feitas conexões entre distintas representações, pois “a visualização envolve um esquema mental que representa a informação visual ou espacial” (Borba; Scucuglia; Gadanidis, 2020, p. 59). Ainda, nessa perspectiva, Arcavi (2003) ressalta a importância de criar e refletir sobre o que é visto, destacando que a visualização vá além do nervo óptico e do sentido da visão.
Outro aspecto inerente à visualização e que os autores chamam a atenção é para o feedback na produção de conhecimento matemático. Para eles, as TD participam como protagonistas em tal produção, “[...] a partir das possibilidades de que experimentações sejam feitas com feedback visual quase instantâneo” (Borba; Scucuglia; Gadanidis, 2020, p. 60).
Contudo, para a integração das TD em sala de aula, particularmente nas aulas de Matemática, são necessários muitos enfrentamentos, um deles se refere a avançar para o que Skovsmose (2000) denominou de zona de risco. Esse termo remete a lidar com o desconhecido, não somente com a integração das TD, mas também se pensarmos em quaisquer inovações educacionais, há o pressuposto de que serão necessárias mudanças nas práticas docentes. Portanto, o professor pode optar por delimitar as respostas de seus estudantes, de modo que se sinta mais confortável, entretanto “[...] à medida que os alunos estão operando os passos, o professor pode prever a ocorrência de eventos e desafios. Porém, fazendo assim, [que] muitas oportunidades de aprendizagem [sejam] [...] também perdidas” (Skovsmose, 2000, p. 87).
A mudança de uma zona de conforto para uma zona de risco pode gerar certo desconforto, pois há um movimento para uma situação inesperada e desconhecida, conforme evidenciado pro Skovsmose (2000), em que nem tudo mais é previsível e controlável pelo professor, tampouco ele será o detentor do conhecimento, pois pensando nas TD, especificamente, um simples apertar de teclas poderá levar “[...] a uma situação nova que, por vezes, requer um tempo mais longo para análise e compreensão” (Borba; Penteado, 2019, p. 57). Por isso os autores sugerem que professores e pesquisadores criem redes de trabalho, se envolvam em ações coletivas, pois “é difícil ter que dizer ‘não sei’ e achar tempo para investigar” (Borba; Penteado, 2019, p. 89, grifo dos autores).
A docência, independentemente do uso de TI [tecnologias informáticas], é uma profissão complexa. Nela estão envolvidas as propostas pedagógicas, os recursos técnicos, as peculiaridades da disciplina que se ensina, as leis que estruturam o funcionamento da escola, os alunos, seus pais, a direção, a supervisão, os educadores de professores, os colegas professores, os pesquisadores, entre outros (Borba; Penteado, 2019, p. 56).
Devido a essa complexidade, é importante que as pesquisas que têm os professores como objeto de estudo ou como colaboradores, se pautem no que Tardif (2000) chama de epistemologia da prática profissional docente. Ou seja, que valorizem o que o professor sabe fazer e o que de fato faz em sala de aula, reconhecendo a pluralidade de seus saberes, os quais, segundo esse autor, são heterogêneos, situados e temporais. “Um professor tem uma história de vida, é um ator social, tem emoções, um corpo, poderes, uma personalidade, uma cultura, ou mesmo culturas, e seus pensamentos carregam as marcas dos contextos nos quais se inserem" (Tardif, 2000, p. 15).
Diante desse enlace teórico, ressaltamos que os recortes de dados trazidos são desdobramentos do saber fazer de dois docentes, colaboradores das pesquisas aqui debatidas, bem como em seus movimentos em adentrar uma zona de risco, o que foi determinante para a configuração dos ambientes investigativos que se constituíram em seus respectivos contextos, nos quais nos debruçamos na análise e que serão discutidos após a apresentação da metodologia.
3 Metodologia
As pesquisas discutidas neste artigo seguem uma abordagem metodológica qualitativa e versam sobre a integração de calculadoras no ambiente escolar, de modo a se considerar e discutir o contexto e as necessidades dos professores, bem como levar em conta suas experiências e conhecimentos (D’Ambrosio; Lopes, 2015; Tardif, 2000). Dessa forma, na pesquisa de doutorado foi desenvolvido um curso de formação com professores que ensinam Matemática da rede básica de ensino de São Carlos, enquanto a pesquisa de mestrado teve como cenário uma disciplina eletiva2 ministrada para estudantes das três séries do Ensino Médio em uma escola pertencente ao Programa Ensino Integral na cidade de São Carlos e contou com a parceria da professora da escola.
O curso de formação com professores ocorreu no segundo semestre de 2022 na Diretoria de Ensino de São Carlos, totalizando uma carga horária de 30 horas, sendo 21 presenciais e nove horas de atividades assíncronas. O curso contou com a participação de 10 professores da rede básica de ensino, lotados em escolas estaduais públicas dessa região. Os encontros ocorriam aos sábados das 09h às 12h, em que propostas de atividades envolvendo a abordagem investigativa (Ponte, 2010) e a experimentação com tecnologias (Borba; Scucuglia; Gadanidis, 2020) eram discutidas com os professores. Com esse movimento, buscamos fomentar reflexões sobre o que era proposto e o que os professores pensavam que poderiam mudar pensando em seus contextos, demandas e necessidades (Paiva et al., 2023).
Ao longo do curso foram discutidas diferentes propostas, as quais emergiram a partir de conteúdos elencados pelos próprios professores, que versavam sobre: estatística e saúde pública, envolvendo chuvas e casos de dengue; transporte urbano e a escolha da melhor opção para se locomover de uma cidade para outra; exploração de conceitos envolvendo potenciação; planejamento financeiro por meio de planilhas e gráficos; a compra de um smartphone e opções de pagamento, sendo essa última adaptada pelo professor Heitor3 e aplicada em sala de aula. Outros temas também emergiram no final do curso, pois os professores foram convidados a apresentar um plano de aula nos dois últimos encontros. Nos momentos assíncronos, os educadores se dedicaram à elaboração desses planos.
Em relação à proposta de ensino sobre a compra de smartphone, a ideia era abordar a discussão acerca de temas que envolviam juros simples e compostos na tomada de decisão sobre essa compra, utilizando os aplicativos planilha e gráfico. Para tanto, uma situação foi colocada em que uma jovem gostaria de adquirir um smartphone, mas dispunha de um valor que seria inviável a compra à vista, então teria que analisar os juros e compreender qual seria a melhor opção para seu caso específico, levando em conta suas finanças. Ela teria que decidir também se uma outra opção (que envolvia pagamento via PIX, com desconto), seria viável para que adquirisse o aparelho. Na adaptação feita pelo professor Heitor, ele trocou o smartphone pelo PC gamer, pois segundo ele fazia mais sentido para seus estudantes, e propôs outras condições para a compra, incluindo uma opção de colocar os valores das parcelas na caderneta de poupança, conforme discutiremos mais adiante.
Os procedimentos metodológicos usados nessa pesquisa foram: gravação em vídeo e áudio de todos os encontros; os registros dos planos de aula elaborados pelos professores e diário de campo da pesquisadora e dos colaboradores. Para esse artigo, a discussão focaliza em um desdobramento desse curso, que foi a aplicação em sala de aula feita pelo professor Heitor, que inclusive realizou um questionário após o desenvolvimento da proposta, para entender se seus estudantes haviam compreendido os conceitos abordados. Dessa maneira, os dados discutidos acerca dessa situação são frutos dessas respostas a esse questionário e também da adaptação da atividade feita pelo professor Heitor.
Ademais, ao longo do curso procuramos dialogar com os professores de modo que suas necessidades fossem levadas em consideração e ainda pudessem refletir sobre sua própria prática, envolvendo os estudantes e incentivando a criação de conjecturas a partir da integração da tecnologia na sala de aula.
Nesse mesmo caminho, buscando discutir a integração das calculadoras científica e gráfica com estudantes, a pesquisa de mestrado, já defendida, foi desenvolvida no contexto de uma escola pertencente ao Programa Ensino Integral da cidade de São Carlos, São Paulo, na Escola Estadual Professor Sebastião de Oliveira Rocha. Para a produção dos dados, foi estabelecida uma parceria com a professora da escola, Mirella4. Ao longo do segundo semestre de 2022, a disciplina eletiva foi conduzida essencialmente pela professora e pela pesquisadora, tendo também a colaboração da pesquisadora associada do projeto5, de modo que desenvolvemos atividades com os estudantes envolvendo as calculadoras e questões cotidianas. Dessa maneira, elaboramos a disciplina eletiva intitulada Calculática – Explorando questões matemáticas do cotidiano com calculadoras. Ressaltamos que os 22 educandos compuseram a turma, sendo que desses 17 estavam na 1ª série do Ensino Médio, quatro na 2ª série do Ensino Médio e um na 3ª série do Ensino Médio (Teixeira, 2024).
Para o delineamento das temáticas tratadas ao longo da disciplina eletiva, pedimos para que os estudantes respondessem um questionário online e dessem sugestões do que poderia ser abordado, sendo assim, essas recomendações foram consideradas no planejamento da disciplina eletiva. Além disso, a direção escolar havia solicitado que as discussões que permeassem a disciplina eletiva levassem em consideração os Objetivos de Desenvolvimento Sustentável da Organização das Nações Unidas e às questões presentes no Sistema de Avaliação do Rendimento Escolar do Estado de São Paulo (SARESP). Tendo essa conjuntura, os temas discutidos ao longo do semestre envolveram os temas: salário mínimo e cesta básica e linguagem de programação em Python.
A partir desse cenário optamos por pautar as atividades discutidas com os estudantes ao longo do segundo semestre nos cenários para investigação (Skovsmose, 2000) e na experimentação com tecnologias (Borba; Scucuglia; Gadanidis, 2020), de modo que as propostas foram atreladas a situações com referência à realidade e a calculadora foi integrada para que os educandos interpretassem os resultados obtidos e pensassem com esse artefato.
Em colaboração com a professora Mirella, as aulas foram elaboradas de modo que discutimos após cada aula o que seria passível de mudança - considerando as dúvidas, inquietações e (des)ânimo dos estudantes, de modo que refletimos acerca dos acontecimentos ocorridos em aula. Em seguida, um plano de aula era elaborado e no dia anterior à sua aplicação, fazíamos uma reunião com a intenção de alinhar o que havíamos pensado com a perspectiva da professora da escola, enfatizando sua colaboração em todo o processo de elaboração e desenvolvimento da disciplina (Teixeira, 2024).
A partir desse movimento se sucedeu a situação discutida neste artigo. Ao notar que os estudantes estavam cansados da temática ligada a tópicos de Educação Financeira, Mirella sugeriu que o assunto abordado fosse alterado. Dessa maneira, revisitamos o questionário online que os estudantes responderam na primeira aula e identificamos que eles indicaram linguagem de programação como um possível conteúdo para discussão. Assim, decidimos trabalhar acerca da programação computacional com a calculadora gráfica.
Iniciamos a abordagem sobre linguagem de programação discutindo sua lógica e estrutura, para isso, os educandos foram convidados a pensar em descrever o passo a passo de como fazer um sanduíche com pão, presunto e queijo. Essa dinâmica inicial foi importante para abordar com os discentes a importância de especificar para a máquina as etapas do que pretendemos fazer. Depois disso, propusemos alguns desafios, tais como: verificar se um número dado é divisível por 3, calcular a área e o perímetro de um quadrado, entre outros.
Um dos problemas propostos aos estudantes solicitava que eles fizessem um algoritmo que solucionasse um dos problemas apresentados, a saber: realizar a conversão de determinado tempo, dado em segundos, para dias, horas, minutos e segundos. Para isso, disponibilizamos um tutorial aos educandos com as funcionalidades do Python presentes na calculadora gráfica e uma tabela na folha de atividades com sintaxes que poderiam ser utilizadas. Dessa maneira, fomos auxiliando e discutindo com os discentes as estratégias que estavam pensando para resolver o problema dado.
Nesse contexto, um dos estudantes - denominaremos esse estudante de Le, ao descrever as etapas do programa postas na calculadora gráfica, fez de uma maneira diferente da que pensamos. A partir disso, foi proposto que fossem feitos testes com diferentes valores e com isso notamos que havia uma diferença no resultado dos segundos do programa proposto pela professora Mirella e pelo estudante Le.
A partir daí, buscamos analisar a diferença dos valores nos dois programas elaborados. Dessa maneira, exploramos com o estudante onde estava o erro da diferença dada em segundos nos dois algoritmos. Esse recorte é discutido no artigo a partir das transcrições dos áudios e relatos da professora Mirella, arquivos salvos da calculadora e anotações no diário de campo da pesquisadora.
Diante do exposto, entrelaçamos esses recortes de dados de ambas as pesquisas, provenientes das fontes anteriormente mencionadas, e realizamos uma triangulação de dados, que consiste na “combinação de metodologias diversas no estudo do mesmo fenômeno, conhecida como triangulação, [que] tem por objetivo abranger a máxima amplitude na descrição, explicação e compreensão do objeto de estudo” (Goldenberg, 2004, p. 63). A partir disso, consideramos as diferentes fontes de dados citadas e juntamos esses recortes em um mesmo arquivo e sob a ótica da literatura trazida na seção anterior, buscamos aspectos convergentes nos dados provenientes de ambas as pesquisas. Isso se deu para compreendermos de forma fidedigna o que emergia nesse processo, a partir do diálogo com os referenciais teóricos discutidos na seção anterior, sobre as temáticas envolvendo os saberes docentes e experimentação com tecnologias.
4 Discutindo os saberes docentes e a experimentação com calculadora gráfica
Ao triangularmos os dados apresentados anteriormente e analisarmos sob a ótica da experimentação com tecnologias (Borba; Scucuglia, Gadanidis, 2020; Borba; Villarreal, 2005) e da epistemologia dos conhecimentos profissionais docentes (Tardif, 2000), emergiram dois eixos de análise: o cuidado com o planejamento das propostas a serem aplicadas em sala de aula, e, o papel da experimentação, tanto no movimento de elaboração de tais propostas, quanto em relatos e diálogos com os estudantes durante e após o desenvolvimento de cada uma delas.
Apresentamos a análise dos dados e os dois eixos citados anteriormente por pesquisa, ou seja, considerando o que foi proveniente da pesquisa de doutorado em andamento, em que focaremos em uma atividade desenvolvida por um professor cursista; e, o contexto da pesquisa de mestrado já defendida, em que analisaremos as diferentes tentativas das professoras e do educando na identificação do erro no algoritmo. Dessa maneira, visualizaremos em diferentes contextos o cuidado com o planejamento da atividade e o papel da experimentação com tecnologias.
Em relação a adaptação e aplicação da atividade feita pelo professor Heitor, sobre juros simples e compostos, é importante destacar que houve várias adaptações que ele julgou necessárias de serem feitas em relação à proposta original, aplicada no curso de formação ocorrido em São Carlos. Ou seja, na ocasião do curso, a proposta foi pensada tendo como cenário uma tomada de decisão que deveria ser elaborada sobre a compra de um smartphone, dadas diferentes condições de venda envolvendo pagamentos parcelados, prestações e juros embutidos em tais prestações. A ideia era que fosse feita uma organização dos dados por meio do aplicativo planilha da calculadora gráfica para que depois, na funcionalidade gráfico, fosse feita a construção dos gráficos que representasse cada tipo de juros e, por fim, a decisão fosse tomada.
Na época, os professores, de modo geral, gostaram da proposta, e, um deles resolveu aplicar com sua turma da 1ª série do Ensino Médio. No entanto, pensando no contexto de sua turma, julgou conveniente alterar o cenário para a compra de um PC gamer, colocando outras condições e acrescentando a abordagem de juros simples e compostos com outro enfoque, trazendo também uma possibilidade de comparação com o rendimento na caderneta de poupança. Assim, o professor buscou pensar em algo que estivesse mais relacionado à realidade de seus estudantes, articulando ainda com a exploração de conceitos que ele precisava contemplar. Essa preocupação e atitude do professor vão ao encontro das ideias de Tardif (2000, p. 7), ao defender que
[...] os conhecimentos profissionais exigem sempre uma parcela de improvisação e de adaptação a situações novas e únicas que exigem do profissional reflexão e discernimento para que possa não só compreender o problema como também organizar e esclarecer os objetivos almejados e os meios a serem usados para atingi-los.
Após fazer as adaptações que considerou necessárias, a proposta do Prof. Heitor ficou configurada como mostra o Quadro 1 a seguir:
Após colocar essa situação para os estudantes, para iniciar a atividade, o professor Heitor ainda acrescentou outras condições, como a simulação de que os estudantes teriam uma renda de R$2.500,00, com gastos fixos como transporte, lazer, alimentação, etc. A partir disso, alguns questionamentos foram colocados na tentativa de instigar os estudantes a pensarem, em um primeiro momento, sobre qual seria a melhor opção de compra, além de verificar se de fato as compras eram sem juros. Na sequência, usando a calculadora gráfica, os estudantes deveriam analisar os juros e decidir se a opção que eles haviam pensado em um primeiro momento ainda seria a melhor compra.
Após essa primeira etapa, o professor Heitor solicitou que os estudantes decidissem, por meio da análise na planilha e dos gráficos, qual das duas opções seria mais vantajosa para eles: comprar o PC gamer parcelado ou colocar o valor das parcelas na poupança mensalmente, considerando uma taxa de juros compostos de 0,65% ao mês.
Assim, após organizarem seus dados na planilha e plotar os gráficos, o professor fez questionamentos instigando os estudantes a compreenderem a diferença do capital investido mês a mês na aplicação com juros compostos, a diferença mês a mês de cada uma das duas situações colocadas, a refletirem sobre a diferença entre juros simples e juros compostos, e, finalmente, pensarem sobre qual opção seria mais viável.
Cabe destacar ainda que o professor Heitor sugeriu, ao longo do desenvolvimento da atividade com os estudantes, a plotagem dos gráficos na calculadora gráfica e fomentou uma discussão dos conceitos relacionados ao tema de investigação, como o comportamento do gráfico de cada função e suas representações e a taxa de crescimento em cada situação.
Ressaltamos ainda que elementos como adaptações e discernimento, observados nessa proposta com um novo enfoque pensada pelo professor Heitor, característicos dos saberes docentes (Tardif, 2000), também se fizeram presentes no nosso segundo cenário, sobre a proposta aplicada com estudantes envolvendo programação em Python na calculadora gráfica. Tal fato pode ser observado quando a professora Mirella, ao perceber que a turma já estava mostrando cansaço das propostas que estavam sendo aplicadas na eletiva, sugeriu uma mudança no tema da disciplina, de modo a contemplar a funcionalidade Python da calculadora gráfica. Logo após a primeira aula sobre esse tema, em que os estudantes discutiram sobre o que é um algoritmo e se ambientaram inicialmente com a linguagem de programação, Mirella teceu algumas reflexões que direcionaram as ações das duas aulas seguintes:
Acho que eles gostaram dessa mudança, alguns que estavam desanimados depois que viram o que fizeram, eles gostaram. Acho que é isso, continuar agora as nossas… eu acho que eles gostaram dessa parte de programação, acho que a gente já pode pedir para montaram ou a gente montar e daí eles apresentam porque eles vão saber explicar porque eles já estavam aqui.
(Transcrição dos diálogos da disciplina eletiva, 11 de novembro de 2022 - dados de pesquisa de Franciele Santos Teixeira).
Essa fala da professora Mirella mostra que houve sensibilidade por parte dela, ao perceber que os estudantes apresentavam certo desânimo em relação ao tema, que envolvia tópicos de Educação Financeira, que até então estava sendo tratado na disciplina e isso desencadeou na atitude de mudar para um tema que já era de interesse de alguns deles, que foi a programação em Python. Em relação a essa sensibilidade na docência, Tardif (2000, p. 17) pontua que isso “[...] exige do professor um investimento contínuo e a longuíssimo prazo, assim como a disposição de estar constantemente revisando o repertório de saberes adquiridos por meio da experiência”.
Outro ponto pertinente a ser destacado em ambas as situações analisadas é a preocupação dos professores em se aproximar dos estudantes, ou seja, de propor algo que fosse significativo em suas realidades, tendo em mente que eram heterogêneas entre si. Isso é importante pois os estudantes “[...] são seres humanos cujo assentimento e cooperação devem ser obtidos para que aprendam e para que o clima da sala de aula seja impregnado de tolerância e de respeito pelos outros [...] Para que aprendam, eles mesmos devem, de uma maneira ou de outra, aceitar entrar em um processo de aprendizagem” (Tardif, 2000, p. 17).
E isso nos leva ao contexto da pesquisa de mestrado, que versa sobre esse aceite ao convite (Skovsmose, 2000) para esse processo de aprendizagem, mais especificamente, traz à tona o papel da experimentação na elaboração de tais abordagens e nas falas dos estudantes durante e após o desenvolvimento das propostas. Ainda sobre esse processo do aceite dos estudantes a entrar em um processo de aprendizagem, conforme aponta Tardif (2000), destacamos o movimento que houve em relação à primeira parte da atividade aplicada pelo professor Heitor, do estudo dos dados por meio da planilha até o estudo das representações gráficas dos juros simples e compostos por meio da calculadora gráfica ao demonstrar a preocupação com dificuldades apresentadas pelos estudantes.
A ideia de explorar os gráficos na calculadora se deu devido a percepção do professor de que o conceito matemático a ser estudado não estava sendo compreendido pelos estudantes como esperado. Especificamente, o professor Heitor destacou para a doutoranda que os educandos ainda não conseguiam entender a diferença entre juros simples e juros compostos, além de interpretar e comparar situações que envolviam esses juros por meio de representações gráficas ou análise de planilhas. Para o professor, a turma não estava conseguindo compreender o crescimento linear ou exponencial de cada caso somente por meio da análise dos dados na planilha, assim percebemos que a visualização dos gráficos foi algo importante para os discentes, a partir das seguintes respostas dadas no questionário aplicado após o desenvolvimento das propostas:
Aluno 1: Sim, me ajudou a projetar melhor os gráficos na minha cabeça.
Aluno 2: Foi uma atividade divertida e interessante, ajuda no entendimento do gráfico e como os juros funcionam.
Aluno 4: Achei interessante, me despertou mais interesse em relação ao assunto e me ajudou a compreendê-lo melhor sim.
Aluno 6: Gostei muito da atividade, aprender a mecher 6 na calculadora foi uma experiencia muito boa. Foi bom para conseguir entender mais sobre o conteúdo.
Aluno 7: Achei tanto quanto satisfatório, me ajudou a compreender juros simples, compostos e de funções exponenciais e de 1° grau.
(Respostas à pergunta 1: O que você achou da atividade? Ela te ajudou na compreensão do conteúdo ensinado? do questionário aplicado após a resolução da atividade – dados de pesquisa de Suellen Moura de Paiva, 2022).
Nesse sentido, percebemos que uma das características da experimentação com tecnologias foi destacada nessas falas, uma vez que, segundo Borba e Villarreal (2005), a visualização favorece a criação de conjecturas, tentativas e erros, etc. Ademais, para Borba, Scucuglia e Gadanidis (2020, p. 59), a visualização “[...] oferece meios para que conexões entre representações possam acontecer. Assim, a visualização é protagonista na produção de sentidos e na aprendizagem matemática” e ela indo além do sentido físico (Arcavi, 2003), já que assimilações foram feitas entre o conteúdo de juros simples e compostos pelos educandos (Arcavi, 2003).
No que se refere às tentativas e erros, também inerentes à experimentação com tecnologias (Borba; Villarreal, 2005), destacamos o movimento realizado por um estudante, pela professora Mirella e pela Maitê, para tentar descobrir um erro em um dos programas realizados na linguagem de programação em Python, em relação ao segundo cenário aqui discutido. Na ocasião, foi pedido aos estudantes que criassem um programa no aplicativo Python, usando a calculadora gráfica, que, ao ser inserido um determinado valor em segundos, fosse retornada uma conversão em dias, horas, minutos e segundos para tal valor.
Ao dialogar com o estudante Le sobre o programa criado, notamos que seu raciocínio tinha sido diferente do pensado por nós durante o planejamento da aula. Com o intuito de conferir o que havia feito, Le chamou a professora Mirella, que ao constatar que o educando tinha feito um código diferente do que o que estruturamos, propôs que realizássemos testes envolvendo valores para conferir se havia algum erro em algum dos códigos. Todo esse movimento culminou na constatação, pela Mirella, de um erro na parte dos segundos no programa feito pelo estudante. Na Figura 1 a seguir, evidenciamos o programa feito por Le (à esquerda) e pela Mirella (à direita) na calculadora gráfica:
– Programação do problema dos segundos feita pelo Le (à esquerda) e pela Mirella (à direita)
Percebemos que no programa criado por Le, representado na Figura 1 à esquerda, cada linha de seu código é independente uma da outra. Por exemplo, na segunda linha (Figura 1) ele define a variável dias por meio de sucessivas divisões ((n//60)//60)//24, em que em cada uma dessas divisões são considerados apenas os quocientes. Na linha em que o educando define a variável horas, ele utiliza o resto da divisão de ((n//60)//60)) por 24. Na linha seguinte, ele segue o mesmo raciocínio para definir a variável minutos, tomando o resto da divisão de (n//60) por 60, e a partir desse resultado toma o resto dessa divisão por 24. Por fim, ele continua com essa estratégia para definir a variável segundos, tomando o resto da divisão de n por 60, dividindo o resto por 60 novamente, pegando o resto e dividindo por 24, até chegar no resto em segundos, o que para ele, deveria ser os segundos retornados ao rodar o programa.
Já no programa da Mirella, representado na Figura 1 à direita, percebemos que ela define as variáveis de forma interligada, ou seja, primeiramente ela definiu d (dias), e fez a divisão de t (tempo em segundos, que são dados de entrada do programa) por (24*60*60). Depois ela definiu r como sendo o resto dessa divisão. Posteriormente, definiu a variável h (horas) como sendo o resto obtido antes dividido por 60*60. Em seguida, ela redefiniu r como sendo o resto desta última divisão. Para encontrar a variável m (minutos), a professora Mirella tomou esse resto e dividiu por 60, e, por fim, usou o resto dessa última divisão para definir s (segundos).
Mirella e o estudante Le fizeram vários testes em seus programas, para verificar se as saídas coincidiam e, em vários deles, os resultados foram os mesmos. Mas, quando entraram com o número 9876543210, proposto pelo educando, perceberam uma diferença nos segundos. Enquanto o programa da Mirella retornou 30 segundos, o de Le retornou 6. Com isso, iniciamos o processo de investigação para descobrir onde estava o erro, como percebemos no diálogo a seguir:
Maitê: E aí, como você implementou?
Le: Fiz aquele jeito lá mesmo.
Maitê: Clica lá para gente…
[Le testa uma quantidade de segundos]
Maitê: Tá certo, Le? Você verificou?
Profa. Mirella: Vamos verificar os dois juntos? São códigos diferentes… fala aí quantos segundos você colocou. Fala um número, Maitê.
Maitê: Vamos pegar o número do Le.
Profa. Mirella: A gente vai digitar a mesma coisa.
Maitê: 86460
[Não conseguiram identificar se o código estava correto]
Profa. Mirella: Vamos em um número aleatório para ver se vai dar igual.
Le: Pode ser o 9876543210.
[Resposta da Mirella e do Le deram diferentes, só mudou os segundos, da Mirella 30 segundos e do Le 6 segundos]
Le: Nossa, mas é um erro muito próximo.
(Transcrição dos diálogos da disciplina eletiva, 25 de novembro de 2022 - dados de pesquisa de Franciele Santos Teixeira)
Na Figura 2 a seguir, evidenciamos os resultados retornados a partir dos programas do estudante Le (à esquerda) e da professora Mirella (à direita):
– Retorno do algoritmo feito pelo Le (à esquerda) e do algoritmo da professora Mirella (à direita)
Em meio a esse processo, Mirella e Le fizeram testes com diferentes números, rodando seus respectivos programas, para comparar seus resultados, e, quando chegaram a um impasse em relação à diferença entre os valores de segundos obtidos em um desses testes, conforme evidenciado no diálogo anterior e na Figura 2, a professora recorreu a um programa que havia feito no computador, que segundo ela, havia sido construído em um curso sobre programação que fez há algum tempo. Então essa construção foi tomada como parâmetro para eles tentarem achar o erro. Nesse movimento investigativo, de tentativas e erros, observamos um pensar-com-tecnologias (Borba; Scucuglia; Gadanidis, 2020, p. 56), por meio da configuração de um ambiente “de descobertas, de formulação de conjecturas acerca de um problema e busca por possíveis e diversificadas soluções”, conforme o diálogo a seguir retrata:
Profa. Mirella: Vamos olhar aqui no computador para a gente fazer o tira teima… na hora que roda esse daqui…
[...]
Profa. Mirella: O que a gente tinha colocado?
Le: 9876543210
Profa. Mirella: Ah la…
Maitê: Deu igual o de quem?
Profa. Mirella: Deu igual ao meu daqui [se referindo ao que estava na sua calculadora]
Maitê: E tá certo, né? Só para confirmar as contas…
Profa. Mirella: Fazer as contas a gente não quer não [risos]. Então, aqui eu peguei o tempo por 60 e o segundo é o resto. Então se eu parasse aqui, ia ficar um montão de minutos e ele ia pegar só o resto dos segundos. Aí eu peguei esse minuto e dividi por 60 de novo para descobrir quantas horas e atualizei os minutos aqui porque ficou só o resto. Aí das horas eu dividi por 24 para ficar só os dias e o que sobrou hora.
(Transcrição dos diálogos da disciplina eletiva, 25 de novembro de 2022 – dados de pesquisa de Franciele Santos Teixeira).
Observando a discrepância nos segundos registrados, iniciamos um processo de investigação para compreender o que ocorreu na programação desenvolvida pelo estudante Le. Neste movimento, destacamos a possibilidade de realizar os experimentos na calculadora gráfica e a partir do seu feedback poder comparar respostas e pensar nas diferenças entre os programas, ressaltando uma das características da experimentação com tecnologias que é a possibilidade de realizar testes a partir desse feedback (Borba; Villarreal, 2005). Além disso, a partir de propostas como essa, é possível notar a imprevisibilidade de acontecimentos em sala de aula, característica de uma zona de risco, pois
Por mais que o professor seja experiente, é sempre possível que uma nova combinação de apertar de teclas e comandos leve a uma situação nova que, por vezes, requer um tempo mais longo para análise e compreensão. Muitas dessas situações necessitam de exploração cuidadosa ou até mesmo de discussão com outras pessoas (Borba; Penteado, 2019, p. 57).
Pensando no ambiente de aprendizagem investigativo, notamos o aceite do estudante a um cenário para investigação ao sugerir que outros números fossem testados, Skovsmose (2000, p. 87) destaca que
A tarefa é tornar possível que os alunos e o professor sejam capazes de intervir em cooperação dentro da zona de risco, fazendo dessa uma actividade produtiva e não uma experiência ameaçadora. Isso significa, por exemplo, a aceitação de questões do tipo “o que acontece se...”, que possam levar a investigação para um território desconhecido.
Dessa forma, a discussão com o estudante continuou de modo que buscamos compreender seu raciocínio e discutir melhor essa diferença dos segundos, o que culminou no diálogo a seguir:
Maitê: Deixa eu ver, Le.
Profa. Mirella: Olha aí, dias é o “n por 60 por 60 por 24” [(n//60//60//24)].
Maitê: Ah, ele já foi direto.
Le: Eu tinha feito assim, não sei se está certo. Eu acho que está errado…
Profa. Mirella: Posso colocar aqui, Maitê … o rascunho do Le.
Maitê: Mas aí você não implementou o restante, Le?
Profa. Mirella: Mas aí deu erro ou você só cansou de digitar?
Le: Cansei e acho que está errado.
Maitê: As horas seriam o resto por 24, o resto que sobra dessa conta…
Profa. Mirella: A parte inteira são os dias e o que sobra as horas.
Maitê: Aí os minutos vai pegar tudo isso aqui do resto por 24… não sei, Le.
Le: É… não sei.
Profa. Mirella: Eu acho que esse começo está certo, esse dos dias e horas está legal. Aí, aqui você já fechou os dias, fechou as horas… aqui eu faria as horas por 60 para dar os minutos, então já não faz mais sentido o 24 porque o dia já está definido. A lógica está muito boa, mas precisa mexer nessa sintaxe aí.
(Transcrição dos diálogos da disciplina eletiva, 25 de novembro de 2022 - dados de pesquisa de Franciele Santos Teixeira).
A partir do diálogo notamos que tanto a professora Mirella quanto a Maitê perceberam que o erro poderia vir do número 24 colocado no código por Le. Dessa maneira, Mirella, Maitê e Le investigam linha a linha o programa criado pelo estudante. A professora constata que o resto por 24 da última linha já não faz mais sentido para definir a variável segundos. Todavia, naquela ocasião, não conseguimos finalizar a discussão com o estudante durante a aula. Após reflexões entre a Mirella e as pesquisadoras, notamos que o problema do algoritmo feito por Le, representado na Figura 2 (à esquerda), estava relacionado a criação de seu código, não se atentando que se ele tomasse o resto da primeira divisão de n por 60, o resto já definiria a grandeza em segundos e não precisaria haver nenhuma conversão, pois esse resto não ultrapassaria 59, já que é número inteiro e o divisor é 60.
Assim, podemos dizer que em ambas as situações, propostas abertas foram aplicadas, as quais permitiram diferentes modos de se chegar a uma ou mais soluções. Enquanto na primeira, houve a possibilidade de que os estudantes se familiarizassem com diferentes representações (planilha e gráficos) para explorar os conceitos de juros simples e compostos, no caso da segunda situação, envolvendo a programação, o diálogo entre as professoras e o estudante com a finalidade de encontrar o possível erro no programa de Le se configurou como um novo problema que emergiu em meio à investigação. Isso também caracteriza o pensar-com-tecnologias, pois “[...] problemas abertos, que podem ser explorados de diversificadas formas, admitem diferentes soluções e abrem caminhos para o surgimento de novos problemas” (Borba; Scucuglia; Gadanidis, 2020, p. 57).
Assim, destacamos que o ambiente investigativo que prevaleceu em ambos os cenários foi planejado pelos respectivos professores, em colaboração com as pesquisadoras, autoras deste artigo. Contudo, ressaltamos que os saberes profissionais desses professores, os quais são situados, heterogêneos e plurais, conforme pontua Tardif (2000), foram primordiais para fomentar a experimentação com tecnologias (Borba; Scucuglia; Gadanidis, 2020), particularmente a visualização, a formulação de conjecturas e o surgimento de novos problemas ao longo do pensar-com-calculadora gráfica.
5 Considerações Finais
Neste artigo tivemos o propósito de discutir recortes de dados de duas pesquisas, uma de mestrado, já finalizada (Teixeira, 2024) e a outra de doutorado (em andamento), que fazem parte do projeto temático Ensino e aprendizagem de Matemática com calculadoras: possibilidades para a prática do professor, desenvolvido no GPIMEM, vinculado ao PPGEM, sendo fruto de uma parceria entre esse referido grupo de pesquisa e a Casio, com a gestão administrativa da FUNDUNESP.
Ambas as pesquisas discutidas seguem uma abordagem metodológica qualitativa e os recortes de dados trazidos são provenientes das seguintes fontes: no caso da situação envolvendo o professor Heitor, cujo cenário faz parte da pesquisa de doutorado, foram utilizados excertos dos questionários respondidos pelos estudantes desse referido professor, após a aplicação da proposta sobre os juros simples e compostos, bem como seu plano de aula, que foi a proposta que ele adaptou a partir da original aplicada ao longo do curso de formação realizado em São Carlos; no caso da segunda situação discutida, sobre o diálogo envolvendo a descoberta do erro na programação em Python, fruto do cenário da pesquisa de mestrado, os excertos trazidos são transcrições de gravações de vídeo e áudio da disciplina eletiva, registros do diário de campo da pesquisadora e arquivos salvos na calculadora gráfica utilizada pelo estudante.
Ao triangularmos esses dados e analisarmos sob a ótica da experimentação com tecnologias (Borba; Scucuglia; Gadanidis, 2020; Borba; Villarreal, 2005) e da epistemologia dos conhecimentos profissionais docentes (Tardif, 2000), dois eixos de análise emergiram: o cuidado com o planejamento das propostas a serem aplicadas em sala de aula, e, o papel da experimentação, tanto no movimento de elaboração de tais propostas, quanto em relatos e diálogos com os estudantes durante e após o desenvolvimento de cada uma delas.
Em relação ao primeiro eixo destacamos a sensibilidade e o discernimento dos dois professores, Heitor e Mirella, ao compreenderem as demandas de seus estudantes, adaptando propostas e buscando modos para que elas fossem significativas em seus respectivos contextos. No caso de Heitor, houve a percepção de que querer adquirir um PC gamer seria mais próximo à vontade de seus estudantes do que adquirir um smartphone. Além disso, alterações como o acréscimo da situação envolvendo poupar parcelas na caderneta de poupança também lhe pareceu mais conveniente. Na segunda situação, a professora Mirella também teve essa mesma sensibilidade e discernimento, uma vez que, percebendo o desânimo dos estudantes com que antes estava sendo debatido nas aulas (tópicos de Educação Financeira), resolveu promover uma mudança no conteúdo, abrindo espaço para abordar programação em Python, na calculadora gráfica.
Em ambos os casos a heterogeneidade de conhecimentos dos professores, que caracteriza os saberes docentes, segundo Tardif (2000), foi determinante para que a experimentação com tecnologias (Borba; Scucuglia; Gadanidis, 2020; Borba; Villarreal, 2005) ocorresse em suas aulas. Isso pode ser observado, quando no caso do professor Heitor, por exemplo, os estudantes, por meio de representações distintas (planilha e gráfico, alinhados com uma proposta pedagógica em sintonia com a integração da calculadora gráfica), tiveram a oportunidade de compreender sobre diferenças entre crescimento linear e exponencial, entre outros conceitos.
Isso também ocorreu na segunda situação, uma vez que ao perceberem a diferença nos dois algoritmos criados, por Le e Mirella, havia um erro na última linha do feito pelo estudante, o que fez com que um novo problema emergisse, que foi a investigação desse erro. Esse acontecimento desencadeou uma série de testes e levantamento de conjecturas, que só foi possível porque um ambiente heurístico foi configurado, de modo que houve um pensar-com-calculadora gráfica, além disso, as professoras se movimentaram para uma zona de risco (Borba; Penteado, 2019), uma vez que não cogitaram abandonar o problema porque não sabiam a resposta, mas encararam a investigação junto ao estudante.
A partir desses resultados, percebemos como é fundamental a interlocução entre universidade e escola, pois mesmo destacando o quão determinante foram os saberes docentes para os desdobramentos debatidos em ambas as situações, houve todo um movimento de colaboração entre os professores e as pesquisadoras para que tudo isso acontecesse. Esse movimento foi caracterizado pela discussão em pares, uma vez que no caso da primeira situação, foi por meio de uma parceria entre a pesquisadora e o professor, que teve início no curso de formação, pautado na valorização de um ambiente respeitoso, propício ao apoio mútuo, que foi possível o pensar-com-calculadora gráfica naquele contexto.
O mesmo ocorreu na segunda situação, em que houve uma parceria entre a pesquisadora e a professora Mirella. A colaboração foi intrínseca ao longo de todo o período da disciplina eletiva (mesmo antes e depois, uma vez que a parceria teve continuidade). Ou seja, o planejamento das propostas, a aplicação e as reflexões acerca das aulas eram feitas em conjunto, contando também com a colaboração da pesquisadora associada. Então no caso dessa segunda situação, a junção entre universidade e escola também esteve no cerne dos acontecimentos evidenciados.
Pode parecer repetitivo, à primeira vista, destacar a importância dessa junção, mas sabemos que a realidade é mutável, portanto, essa relação pode gerar uma consequência agora, que difere qualitativamente do que já mostraram pesquisas anteriores. E compreendemos que entender essa dinâmica do contexto do ambiente escolar pode contribuir para a discussão de peculiaridades que fazem a diferença no movimento de pensar sobre formação de professores, pensar sobre a integração das tecnologias em sala de aula…pensar sobre educação matemática, pensar sobre educação.
Diante do exposto, esperamos fomentar reflexões acerca desses temas, finalizando com o destaque de outros elementos que possibilitam que a parceria entre universidade e escola seja tão profícua, como: a dinâmica colaborativa que se faz presente ao longo do desenvolvimento de projetos temáticos como esse aqui discutido, bem como o fato de estarmos em um programa de pós-graduação que nos oportuniza unir teorias e dialogar com a sala de aula.
Referências
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1
Aprovado sob nº 3221/2021 - CCP - FUNDUNESP.
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2
“[...] As disciplinas eletivas ocupam um lugar central no que tange à diversificação das experiências escolares, oferecendo um espaço privilegiado para a experimentação, a interdisciplinaridade e o aprofundamento dos estudos” (São Paulo, 2014, p. 29). As disciplinas eletivas são oferecidas semestralmente, possui como responsável pelo menos dois professores e os estudantes optam, por ordem de prioridade, qual disciplina pretendem fazer (São Paulo, 2014).
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3
Esta pesquisa foi submetida ao Comitê de Ética em Pesquisa (CEP) e foi aprovada sob número do parecer 5.660.874. Dessa maneira, garantimos o anonimato do participante da pesquisa, utilizando um nome fictício.
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4
Esta pesquisa foi submetida ao Comitê de Ética em Pesquisa (CEP) e foi aprovada sob número do parecer 5.660.848. O nome da professora Mirella não é fictício já que foi autorizado mediante assinatura de documentos exigidos pelo CEP. Entretanto, ressaltamos que garantimos o anonimato dos participantes da pesquisa, os estudantes, identificando-os pelas iniciais de seus nomes.
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5
Profa. Dra. Maria Teresa Zampieri. Ao longo da discussão dos dados, ela será referida como Maitê.
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6
Esse excerto é uma transcrição das respostas dadas pelos estudantes, logo não mudamos a escrita feita por eles.
Datas de Publicação
-
Publicação nesta coleção
07 Abr 2025 -
Data do Fascículo
2025
Histórico
-
Recebido
24 Fev 2024 -
Aceito
05 Nov 2024



Fonte: dados de pesquisa de Franciele Santos Teixeira, 2022
Fonte: dados de pesquisa de Franciele Santos Teixeira, 2022