Resumo
Apresentamos, neste artigo, considerações sobre a oralidade como fonte legítima de conhecimento para a compreensão de processos históricos que envolvem a educação (matemática) dos povos do campo no Brasil e, além disso, tratamos das potencialidades da História Oral, como recurso teórico-metodológico, aventadas por e percebidas a partir de investigações realizadas no estado do Paraná, para compreender, elaborar e registrar histórias de instituições escolares rurais. Tecemos, também, algumas considerações sobre os desafios e as possibilidades que essas pesquisas mostram quando praticam a História Oral e a colocam como metodologia potente para os estudos em História da Educação Matemática quando o objeto primeiro de análise são instituições de ensino rurais. Para tanto, escolhemos apresentar quatro pesquisas historiográficas, que registraram versões históricas sobre escolas rurais do estado do Paraná, em diferentes épocas: uma delas investigou uma Casa Escolar Rural e se propôs a elaborar uma narrativa sobre a primeira década de funcionamento desta instituição escolar (1961-1971); outra, considerou estudar um Grupo Escolar Rural (1947-1977); as outras duas pesquisas se dedicaram ao estudo de Escolas Itinerantes, uma delas não mais em funcionamento (2009-2016) e, a segunda, ainda em movimento de itinerância por estar localizada em um acampamento (2008-dias atuais).
Escolas Rurais; Educação do Campo; Narrativas; História Oral; História da Educação Matemática
Abstract
In this article, we present considerations about orality as a legitimate source of knowledge for understanding the historical processes that involve the (mathematics) education of rural people in Brazil, and we also deal with the potential of Oral History as a theoretical-methodological resource, suggested by and perceived from investigations carried out in the state of Paraná, to understand, elaborate and record stories of rural schools. We also consider the challenges and possibilities that these studies show when they practice Oral History and place it as a powerful methodology for studies in the History of Mathematics Education, whose primary object of analysis is rural educational institutions. To this end, we chose to present four historiographical researches, which recorded historical versions of rural schools in the state of Paraná, at different times: one of them investigated a Rural Schoolhouse and proposed to elaborate a narrative about the first decade of operation of this school institution (1961-1971); another research considered studying a Rural School Group (1947-1977) and the other two researches deal with Itinerant Schools, one of which is no longer in operation (2009-2016) and the other is still traveling, as it is located in a camp (2008-current days).
Rural Schools; Rural Education; Narratives; Oral History; History of Mathematics Education
1 Introdução
É possível que as margens delimitem, sabotem, prendam,
impeçam o expandir.
Dificultem o caminhar.
Não permitam novos olhares por horizontes desconhecidos.
Muitos foram os colocados à margem.
Inúmeros estiveram eternamente condenados a ela.
Vivos sem vida. Vidas de outras vidas.
Propomos leituras sem margens.
Leituras que permitam o conhecer desacorrentado.
Que ultrapassem o(s) sentido(s).
(Hebelyanne Pimentel da Silva, 2021)
Escolas de Trabalhadores Rurais e Escolas de Pescadores1, Grupos Escolares2, Escola Primária Rural, modalidade de Escolas Isoladas também denominada de Casas Escolares3, Escolas Itinerantes4... essas são algumas modalidades de escola que podem ser encontradas na literatura quando nos propomos a estudar as escolas rurais do estado do Paraná em diferentes épocas, incluindo o cenário atual.
O estado do Paraná é diverso desde a sua colonização; uma colonização que se mostrou forte e habitou, no início do século passado, rápida e grandemente, sobretudo, a zona rural. Produtores agrícolas vindos dos estados de São Paulo e Minas Gerais, junto a imigrantes europeus, foram responsáveis pela popularização rural do estado. Terras férteis e boas condições de compra foram responsáveis significativos desse movimento. Esse cenário urgia por ações que atendessem a essa gente, e ofertar escolarização para a população rural compunha essa agenda. Os registros históricos dão conta de que as primeiras escolas rurais do estado do Paraná surgiram por volta de 1920, num estado que teve sua população rural como a predominante até metade da década de 1970. É deste modo que, também no Paraná, como em todo o restante do Brasil, a educação rural surge pela necessidade de oferecer aos moradores do meio rural instrução primária (Souza, 2019). No entanto, nossos estudos e esforços de pesquisas, no âmbito da História da Educação Matemática, conduzem-nos por caminhos que nos levam a compreender que há um apagamento ou, talvez, um silenciamento de sujeitos, práticas, ideários e discursos envolvidos quando da educação escolar do rural.
Dados do Censo Demográfico realizado pelo Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE, 2022), apontam o Paraná como o quinto estado mais populoso do país, com dimensões territoriais que o levam a ocupar o décimo quinto na lista dos maiores estados brasileiros em superfície. Na postura que buscamos promover em nossos afazeres, inserimo-nos nesse contexto, é este espaço territorial que atrai nossos olhares investigativos, não em sua totalidade, dado que não acreditamos na possibilidade de esse olhar se findar, mas nas possibilidades de estudos que têm se mostrado em nosso caminho, considerando, inclusive, proximidades geográficas.
Ruckstadter e Ruckstadter (2015) afirmam que a história das instituições escolares rurais, de um modo geral, tem sido tema bastante recorrente nas pesquisas em História da Educação, porém alertam que a mesorregião do Norte Pioneiro do estado do Paraná não tem sido contemplada. Nosso escopo de pesquisa refere-se a essa mesorregião e à Norte Central – ambas, na nomenclatura utilizada pelo IBGE desde 2017, inserem-se na região geográfica intermediária de Londrina5.
As pesquisas de Souza (2017, 2019), Bailão (2019), Paião (2019), Melo (2021) e Domingues (2023) são resultados dos esforços que temos realizado na tentativa de compreender essas escolas rurais, registrar suas possíveis histórias, ou uma história possível, além de disparadores para outras investigações que, no trilhar do caminho, revelam-se como potencialidade de novos estudos, “[permitem] novos olhares por horizontes desconhecidos” e “leituras que permitam o [elas, as escolas rurais paranaenses] conhecer” (Silva, 2021).
Essas pesquisas, portanto, tematizam diferentes modelos de escolas rurais paranaenses, inscrevem-se como pesquisas historiográficas que registram versões históricas sobre essas instituições e contribuem para a História da Educação Matemática como região de inquérito. Mas essas pesquisas revelam-nos mais: as versões históricas registradas nesses trabalhos dão-se por narrativas elaboradas a partir da oralidade, são narrativas produzidas a partir de momentos de entrevistas, movimento teórico-metodológico pautado na metodologia da História Oral, em que temos compreendido que “narrar é contar uma história, narrar-se é contar nossa história ou uma história da qual também somos, fomos ou nos sentimos personagens. Esse contar, é importante ressaltar, se dá sempre em direção a alguém. Desse modo, a narração prevê um posicionamento frente ao outro” (Cury; Souza; Silva, 2014, p. 915).
Nossas pesquisas trazem à cena conjuntos de narrativas que permitem outras narrativas, num processo de elaboração aberto, plural, disforme, levando-nos a outras compreensões e discursos sobre as diferentes modalidades de escolas rurais do Paraná. Conjuntos de narrativas que nos possibilitam constituir um desenho sem fronteiras, margens ou limitações na variedade de seu espaço e de seu tempo e, às vezes, perceber as imagens que se formam, se deformam e se transformam (Garnica, 2010) sobre as escolas rurais paranaenses.
Assim, apresentamos, neste texto, considerações sobre a oralidade como fonte de conhecimento legítima para a compreensão de processos históricos que envolvem a educação (matemática) dos povos do campo no Brasil e, além disso, tratamos das potencialidades da História Oral, como recurso teórico-metodológico, aventadas por e percebidas a partir dessas investigações, para compreender, elaborar e registrar histórias de instituições escolares rurais. Tecemos, também, algumas considerações sobre os desafios e as possibilidades que essas pesquisas mostram quando praticam a História Oral e a colocam como metodologia potente para os estudos em História da Educação Matemática quando seu objeto primeiro de análise são instituições de ensino rurais.
2 Oralidade e História Oral: potencialidades junto à História da Educação (Matemática) dos povos do campo no Brasil
O encontro do campo da História da Educação Matemática com os povos do campo do Brasil exige, em um primeiro plano, um exercício de descentramento histórico (Garnica, 2005). Isso porque, na historiografia da Educação, pela centralidade dada à compreensão de processos de produção, circulação e comunicação do conhecimento matemático, escolar ou não, empreendidos em centros urbanos, há um apagamento e/ou silenciamento de sujeitos, coletivos, ideários e discursos envolvidos em processos educacionais próprios das populações camponesas de nosso país. Assim, o campo brasileiro pouco se constituiu como território de interesse para a investigação da Educação Matemática, e é graças às demandas legítimas provenientes de grupos ligados à luta contra a violação do direito à terra, como comunidades, entidades da sociedade civil, movimentos sociais e sindicais e, também, de secretarias de educação de municípios e estados, que esse cenário tem se modificado.
Essa historiografia da Educação ligada ao contexto urbano se serviu, hegemonicamente, da perspectiva documental e da valorização dos registros das culturas escritas para a produção do conhecimento histórico. Essa opção tem a ver, como nos inspira Patricio Arias (2010), com a dominação colonial de nosso território, uma vez que a escrita se edificou como um patrimônio do urbano considerado civilizado, desenvolvido e moderno; ao passo que o campo, cujas formas de expressão cultural são essencialmente marcadas pela oralidade, foi posicionado como primitivo, atrasado e incapaz de compreender o progresso instituído pela modernidade.
Podemos dizer, então, que a dicotomia entre escrita e oralidade marca a dicotomia cidade e campo no Brasil. A escrita se mostrou como forma de expressão da diferença colonial na medida em que se estabeleceu como instrumento de exercício do poder, instituindo presenças e permanências de certos sujeitos, coletivos, ideários e discursos no tempo, como aqueles ligados ao urbano, enquanto silenciava e relegava ao esquecimento outros, como aqueles vinculados ao rural. Com essa dicotomia estabelecida, prevalecia uma historiografia que via nas culturas escritas urbanas a fonte de informações legítimas para a construção de considerações e perspectivas para a educação em nosso país, sendo o campo retratado, quando muito, por meio de uma história colonizada, construída em séculos de dominação e de fetichismo sobre o rural.
É nesse cenário que entendemos a valorização da oralidade e da tradição oral como uma inegociável posição para uma historiografia da Educação Matemática pensada junto aos povos do campo. A oralidade e a tradição oral cumprem papel importante na resistência dos povos camponeses visto que, ao criar, preservar ou reavivar suas memórias, se reconhecem como sujeitos e coletivos políticos e históricos capazes de traçar um projeto próprio de país, disputando sentidos com as narrativas hegemônicas preconizadas pelo urbano. No campo educacional, particularmente, a oralidade traz para a cena sistemas específicos de valores, de práticas e de saberes que, antes invisibilizados, definem os processos educacionais no meio rural. Esses processos reivindicam espaços políticos de enunciação sobre o modo como os povos camponeses compreendem tanto a educação quanto a produção de uma escola específica, alternativa e diferenciada, condizente com suas lutas, seus horizontes de futuro e radicalmente resistente às dinâmicas e às finalidades de uma educação escolar alinhada ao urbano. Afinal,
A escola historicamente se constrói enquanto lugar de incorporação das ideias da modernidade, e assim, enquanto espaço urbanocentrado, tendo suas demandas direcionadas para os aspectos que marcam a cidade. Na realidade nacional essas perspectivas se consolidam fundadas no colonialismo e logo em seguida na colonialidade. Dentro dessas questões a escola tem sua forma articulada com as finalidades da modernidade/urbanocentrismo, porém, a escola não se coloca na reprodução dessa nova ordem, mas também acaba participante das produções de modos de existência que as legitime, em busca da ordem - normatização de corpos a partir da civilidade. Assim, a normas eurocêntricas desencadeiam historicamente no Brasil, onde as ideias de modernidade urbanocêntrica e civilidade tomam a escola como lócus privilegiado das ações para disseminação das ordens, onde é espaço de desenvolvimento social e cultural em prol do progresso moderno (GONZÁLEZ STEPHAN, 1995) (Farias; Faleiro, 2020, p. 8-9).
Na pesquisa em História da Educação Matemática, particularmente, as aproximações da oralidade com discussões que tangenciam o rural não são recentes, apesar de intensificadas nos últimos anos. Podemos considerar os trabalhos de Ivete Baraldi (2003) e Maria Ednéia Martins (2003), vinculados ao Grupo de Pesquisa História Oral em Educação Matemática (GHOEM), precursores nessa aproximação6.
Baraldi (2003), ao traçar um panorama histórico da formação de professores de Matemática, nas décadas de 1960 e 1970, na região de Bauru, no estado de São Paulo, evidencia como os ideários e discursos sobre a modernidade materializados na expansão das estradas de ferro marcam a formação de professores e instituem ações de capacitação visando à ampliação do quadro docente. Esses ideários e discursos, como revelam as narrativas dos colaboradores da pesquisa, são marcados pela superação do modo de vida rural e a adoção do urbano como marcas do progresso e da urbanização.
Martins (2003), por sua vez, investigou a formação de professores e de estudantes em núcleos de ensino rural, na região oeste do estado de São Paulo, entre 1950 e 1970. Esse trabalho traz relevantes compreensões sobre processos de escolarização no meio rural ao discutir temáticas como as relações de trabalho e o êxodo; as dificuldades de transporte; as estratégias didáticas e os recursos de ensino, como a multisseriação e os espaços e tempos escolares; as relações subjetivas, marcadas pela influência de valores e pela intensa aspiração, pela comunidade rural, do modo de vida urbano; bem como particularidades sobre o ensino de Matemática nessas instituições.
Os vinte anos que se passam após a conclusão desses trabalhos são marcados por diversas mudanças no cenário político, particularmente a expansão da Educação do Campo como paradigma educacional. Se, antes, prevalecia a constituição de uma educação dos povos do campo voltada para o desenvolvimento e os interesses urbano-industriais, com a oferta de um modelo de educação alheado à realidade dos povos camponeses, a Educação do Campo passou a preconizar a superação do antagonismo entre rural e urbano em duas perspectivas. A primeira, compreender que ambos, campo e cidade, em suas profundas contradições, são complementares, interdependentes e possuem semelhante valor. A segunda, que campo e cidade possuem particularidades, o que implica em diferentes possibilidades de organizar os processos educacionais que neles e com eles se realizam.
A emergência da Educação do Campo no debate educacional7, reconhecidamente possível graças aos movimentos sociais e às ações coletivas ligadas à luta pela efetivação do direito à terra, redireciona o compromisso de pesquisadores e pesquisadoras em Educação Matemática com os povos do campo. Ainda que seja relevante a compreensão das relações que subalternizam esses povos, em um sentido reativo que dá a ver as desigualdades materiais e simbólicas a que são acometidas essas populações, passou-se também a adotar um sentido propositivo que vê em processos educacionais próprios de territórios camponeses possibilidades de identificação e de construção política, afirmando seus modos de saber, de fazer e, fundamentalmente, de ser. Nessa perspectiva, a História da Educação Matemática adota um modo de interpelação que passa “pelas memórias e histórias camponesas, por indivíduos e coletividades que, ontem e hoje, (re)existem em identificações políticas, territoriais e culturais que escapam das imagens coloniais que conferem ao rural uma visão depreciativa […]” (Fernandes; Medanha, 2022, p. 7).
É por essa valorização inegociável da oralidade como modo de produção de conhecimento e pela afirmação de uma História da Educação Matemática como possibilidade de identificação e de construção política dos povos do campo que a História Oral surge como metodologia intencionalmente escolhida para nossas pesquisas. Acreditamos que a História Oral, em seu compromisso com a escuta atenta e com a produção narrativa, possibilita criar, preservar ou reavivar memórias camponesas, afirmando seus modos de vida e reconhecendo-os, pelo espaço acadêmico, como sujeitos e coletivos políticos e históricos capazes de construir e de decidir por processos educacionais próprios. A pesquisa em História da Educação Matemática torna-se um campo de disputa de sentidos que não mais definem o rural pelo urbano, mas que veem esses processos educacionais – e, especialmente, as escolas rurais – como espaços de identificação e de construção política e cultural. Nesse sentido,
É muito importante anunciar as implicações não apenas epistemológicas, mas também éticas, estéticas e políticas da prática da tradição oral, em situações de dominação neocolonial e neoimperial como as que atualmente vivem. A história oral não se converte apenas em uma perspectiva teórico-metodológica distinta para a reconstrução do passado dos povos indígenas [e entendemos, neste texto, do campo], mas sim em um instrumento político insurgente necessário para a descolonização coletiva da história (Arias, 2010, p. 286, tradução nossa).
Essa escolha intencional pela História Oral é conduzida pela escuta do outro, interlocutores que colaboram para que possamos construir e registrar versões históricas a partir de memórias disparadas em momentos de entrevista, que dizem daquilo que vivenciaram, ou vivenciam, nos processos educacionais do campo. “Um trabalho em História Oral é, pois, sempre, um inventário de perspectivas irremediavelmente perpassado pela subjetividade, um desfile de memórias narradas, um bloco multifacetado de verdades enunciadas” (Garnica, 2010, p. 31). O tratamento dessas memórias nos permite acessar, muitas vezes, cenários e histórias desconhecidas e não registradas.
É nesse sentido que corroboramos Cury, Souza e Silva (2014, p. 911) quando afirmam que veem nas narrativas “a possibilidade de explorar diversos olhares sobre situações históricas e ampliar os significados sobre elas de modo que se possam compreender aspectos que de outro modo talvez nem fossem abarcados”, conduzindo-nos a acreditar na potência da mobilização da História Oral nesses nossos esforços de pesquisa, assim como concordar que “o estudo aprofundado das narrativas e sua teorização por pesquisas na linha da História da Educação Matemática através da História Oral se tornaram indispensáveis” (Cury; Souza; Silva, 2014, p. 911).
O encontro da História Oral com a Educação do Campo tem nos permitido, além da elaboração de compreensões sobre processos de escolarização de camponeses no Brasil, uma reelaboração constante dos princípios e procedimentos que sustentam a metodologia. Podemos dizer, então, que esse encontro tem possibilitado a problematização de nossos pressupostos e estratégias de investigação na medida em que nos deparamos, singularmente, com objetos de pesquisa com natureza distintiva daquela que usualmente trabalhamos na pesquisa educacional. Além de cada cenário de pesquisa ser único, são também únicos os modos de mobilizar os procedimentos da História Oral nas investigações, criando condicionantes específicas a partir de sujeitos e contextos que participam de nossa investigação.
Na sequência deste texto, com a intenção de apresentar algumas pesquisas que se deram nesse movimento de encontro da História Oral com a Educação do Campo, bem como destacar como essas pesquisas tensionaram os princípios e procedimentos da História Oral, escolhemos apresentar os trabalhos de Souza (2017, 2019), Paião (2019) e Domingues (2023).
3 Possibilidade de encontro da História Oral com a Educação do Campo: movimentos de pesquisa no estado do Paraná
Dentre algumas pesquisas realizadas8, anteriormente citadas, fundamentadas teórica-metodologicamente na História Oral, que abordam a história de escolas rurais no estado do Paraná, elencamos quatro delas para apresentação e exemplificação neste texto. A primeira investigou uma Casa Escolar Rural e se propôs a elaborar uma narrativa sobre a primeira década de funcionamento dessa instituição escolar (1961-1971). A segunda considerou estudar um Grupo Escolar Rural, localizado no seio de uma usina de açúcar e álcool, uma das principais fontes econômicas do município em que se situava. As duas pesquisas seguintes tratam de Escolas Itinerantes, uma delas não mais em funcionamento, pela efetivação da reforma agrária na localidade, transformando as terras antes ocupadas (do acampamento) em territórios legalizados (assentamentos) – e, consequentemente, deixando a escola de ser itinerante para se fixar ao espaço, como escolas municipais e estadual. A outra pesquisa aborda uma escola ainda em itinerância, por estar localizada em um acampamento rural.
Consideramos relevante fazer uma pequena digressão para justificar o uso da expressão escolas rurais neste artigo. Abordamos pesquisas realizadas em épocas bastante distintas, inclusive anteriores ao Movimento Por Uma Educação do Campo, organizado por movimentos sociais camponeses, no final da década de 1990 – que, dentre outros efeitos, está o de reposicionar a nomenclatura utilizada para as escolas que atendem populações rurais. A substituição de escola rural por escola do campo, vista posteriormente em políticas públicas, nos nomes das próprias escolas e na literatura acadêmica, teve como intuito colocar luz nos problemas vivenciados historicamente por tais escolas, para, então, superá-los. Como destaca Caldart (2009), porém, o percurso da Educação do Campo é marcado por tensões e contradições, especialmente entre movimentos sociais e Estado.
Mantivemos a referência à escola rural, neste artigo, por entender que não há como tratar de escolas do campo em um período anterior a esse citado, que inaugura uma nova fase nas pesquisas da área e, também, na proposição de políticas públicas, que passam a considerar a centralidade dos movimentos sociais na educação. Entendemos, todavia, que também há uma discrepância em referimo-nos às Escolas Itinerantes como escolas rurais – visto que essas são escolas que desafiam, de diversos modos, o modelo de escola rural previamente estabelecido e consolidado no país. Para evitar um anacronismo, que consideramos um erro maior, utilizamos, nas seções dedicadas a um olhar para a totalidade das pesquisas desenvolvidas, a expressão escolas rurais, e, nas seções mais específicas sobre as Escolas Itinerantes, escolas do campo.
A pesquisa de Souza (2017) teve como foco disparar uma narrativa sobre a primeira década de funcionamento de uma modalidade de instituição escolar – Casa Escolar Rural (1961-1971) – localizada no município de Bandeirantes-PR. Pautada no referencial teórico metodológico da História Oral, realizou entrevistas com ex-professoras e ex-alunas que vivenciaram a escola nesse período. A partir das memórias verbalizadas nesses momentos de entrevistas é que se deu a elaboração de uma narrativa sobre essa escola, permitindo uma (re)construção da história da educação rural naquela comunidade e, ainda, constituir traços para além do que a literatura aborda, considerando aspectos como a estrutura da escola, o cenário, as práticas, as exigências das inspetoras de ensino, as funções das professoras, o material didático, as punições, a avaliação, a disciplina e a rotina.
É importante ressaltarmos que, ao mobilizarmos a metodologia de História Oral em nossas pesquisas, não dispensamos registros oficiais já existentes sobre o nosso objeto de análise, já que acreditamos que a investigação desses registros nos ajuda a constituir nossas versões históricas. A escola que Souza (2017) desejava estudar continuava em funcionamento, assumindo-se como Escola Rural Municipal Ricierre Ormenezze – Ensino Infantil e Ensino Fundamental. Em sua pesquisa, a autora destaca que não encontrou registros oficiais sobre as mais de cinco décadas de funcionamento dessa escola, sendo que poucas informações encontradas ilustravam páginas de seu atual Projeto Político-Pedagógico (PPP) que procuram, sem muito sucesso, dar conta do registro de uma história daquele tempo, daquela Casa Escolar. Além dessas poucas páginas, nada mais constava no acervo da própria escola ou no da Secretaria Municipal de Educação.
Souza (2017) decide, então, realizar um movimento no bairro em que a escola está localizada, uma campanha denominada Minhas Memórias. Com essa campanha, ela teve por intenção recuperar registros (fotos, livros, cadernos etc.) da Casa Escolar Lourenço Ormenezze, visto que não tinha encontrado nenhum material informativo ou documentos da época de seu funcionamento. “A campanha iniciou-se na escola e, para isso, foram entregues panfletos aos alunos que estudam nesta escola do bairro, para que levassem aos seus pais e avós, e também foram deixados alguns panfletos na venda (um pequeno ponto de comércio) do Bairro” (Souza, 2017, p. 36). Essa escolha feita por Souza (2017) expõe sua pesquisa a um bairro rural e traz àquelas pessoas a curiosidade e a vontade de contribuir. “Rapidamente a campanha movimentou os moradores do bairro e até dos bairros vizinhos, as pessoas começaram a contar umas para outras sobre a campanha, o que fez com que ganhasse uma grande repercussão na população do bairro” (Souza, 2017, p. 37).
A autora relata que, em poucas semanas, as pessoas a procuraram para entregar registros e para contar as suas histórias. Talvez isso se justifique, também, por ser esse um espaço rural já conhecido pela pesquisadora (e uma pesquisadora antes conhecida neste bairro, na posição de antiga moradora), e por ter sido na escola, em sua atual configuração, que a pesquisadora cursou parte de sua formação escolar básica. Foi nesse encontro com as pessoas do bairro e seus registros que Souza (2017) definiu os seus primeiros possíveis colaboradores. Assim, de um lugar de ausências, a pesquisa se torna um espaço de presenças. Após o movimento gerado a partir da campanha Minhas Memórias, Souza (2017) encontrou ex-professoras e ex-alunas, mulheres que vivenciaram essa escola e que podiam e queriam narrar suas histórias. Souza (2017) encontrou, por meio da História Oral, uma possibilidade de acessar um “desfile de memórias” (Garnica, 2010, p. 31).
É importante destacar que Souza (2017) escolhe entrevistar uma ex-professora da escola duas vezes. Após a primeira entrevista, ela se depara com outras informações e volta à entrevistada para uma nova conversa. Em cada narrativa de suas colaboradoras foi possível perceber a instituição de ensino sob uma dinâmica específica – eram versões da história da Casa Escolar que estavam guardadas nas memórias das colaboradoras, um recordar de vivências e de lembranças de momentos que acessaram um cenário possível da escola. Considerando que “fontes orais contam-nos não apenas o que o povo fez, mas o que queria fazer, o que acreditava estar fazendo e o que agora pensa que fez” (Garnica, 2010, p. 34), Souza (2017) toma esses aspectos para disparar uma narrativa sobre a Casa Escolar Lourenço Ormenezze, num movimento analítico de análise narrativa de narrativas e registra uma versão histórica da escola em tela.
Souza (2019), por sua vez, conduziu uma investigação específica sobre um Grupo Escolar Rural de uma pequena cidade do interior paranaense, localizado nas imediações de um complexo de uma usina de açúcar e álcool. Para isso, sua intenção era realizar entrevistas com antigos professores e alunos que pudessem auxiliá-la na construção de uma versão histórica desse Grupo Escolar.
Quando dos seus primeiros movimentos de pesquisa, a autora destaca que recorrer aos documentos oficiais do acervo da escola lhe parecia uma boa estratégia para encontrar possíveis nomes. Esperava neles encontrar nomes de alunos, professores, funcionários e esses pudessem ser um ponto de partida nessa busca pelos entrevistados. A surpresa viria quando, ao se deparar com caixas e mais caixas de documentos, não encontrou nenhum correspondente ao recorte temporal a que sua pesquisa se referia. A pesquisa de Souza (2019) intencionava estudar o Grupo Escolar entre os anos de 1947 e 1977, contudo, os documentos encontrados eram referentes ao Colégio Estadual do Campo Usina Bandeirantes, de 2012, que se instalou no mesmo prédio após a extinção do Grupo Escolar Rural Usina Bandeirantes9.
Entre a busca e a longa espera, Souza (2019) escolhe elaborar seus roteiros de entrevista, tendo em vista possíveis colaboradores e elabora, então, um possível roteiro de entrevista para ex-alunos; outro, para ex-professores; e uma terceira versão pensada para entrevistar o Fundador do Grupo Escolar. Em História Oral, os pesquisadores tendem a enviar o roteiro de entrevista com antecedência ao colaborar para que esse possa, se assim desejar, organizar sua fala, separar objetos (livros, fotos, outros etc.) para compartilhar com o pesquisador no momento da entrevista. No entanto, quando já com seus colaboradores definidos, Souza destaca que nenhum deles quis receber o roteiro antecipadamente.
Ainda no que se refere aos roteiros e aos momentos de entrevista, a autora expõe em seu relatório de pesquisa que:
Assumimos uma não uniformidade nos momentos de entrevistas, cada momento de entrevista foi único, um movimento transformador, conhecedor e entendedor, de diferentes modos, a cada momento de entrevistas éramos um... fomos vários. Assim, reconhecemos que o roteiro, neste aspecto, nos dá um norte inicial, o roteiro é dinâmico e se reestruturou continuamente (Souza, 2019, p. 55).
O caminho encontrado por Souza (2019) foi a divulgação da pesquisa em redes sociais (Facebook) e via aplicativo em grupos de WhatsApp, em que ela divulgava seu interesse de pesquisa para a comunidade local. Além disso, a divulgação também especificava o interesse por algum registro (fotografia, cadernos, livros etc.), referentes ao Grupo Escolar. Logo, viria o contato da primeira colaboradora, uma ex-aluna. Quando se deparou com a divulgação da pesquisa, fez o contato com a pesquisadora por meio do aplicativo de conversas, WhatsApp. A primeira entrevista, então, foi realizada com essa pessoa que era ex-aluna do Grupo Escolar. E, a partir desse primeiro momento de entrevista, Souza (2019) exercitou o que a literatura já nos anuncia: um potente modo de encontrar colaboradores quando se mobiliza a História Oral é o critério de rede, ou seja, um colaborador vai indicando outro possível e, afirma: “[a primeira entrevistada] nos falou de várias pessoas, nos relatou alguns nomes e assim fomos entrando em contato com os possíveis nomes, conversa com um, conversa com outro, um movimento de monta e desmonta [...]” (Souza, 2019, p. 56). A autora relata que apelou até para uma antiga lista telefônica a partir da sugestão de um sobrenome que não era muito comum, estratégia que lhe rendeu um contato telefônico e o agendamento de uma entrevista. E foi assim que essa pesquisa encontrou seus colaboradores, entre contatos vindos pós divulgação e pelo critério de rede.
A análise das entrevistas gravadas com professoras e alunos que vivenciaram o Grupo Escolar resultou uma versão histórica sobre o Grupo Escolar e sobre as práticas pedagógicas que nele tiveram lugar e, ainda, foi possível entender sobre uma instituição que inaugurou uma nova concepção (arquitetônica e didática pedagógica) de escola, que permanece até hoje. Essa investigação possibilitou questionar o modelo de formação de professores, a carência e a urgência, às quais se agrega outra marca que opera nesse cenário, a descontinuidade das políticas públicas no campo da educação e, principalmente, na educação rural, o tratamento de questões relativas à higiene – um modelo de organização escolar calcado na razão médica, que, ao ser constituído, retiraria do espaço privado – religioso ou familiar – o monopólio sobre a formação dos meninos e meninas. Para tanto, apela-se aos argumentos científicos que recobrem um amplo aspecto de questões vinculadas à escola, tais como o problema da localização dos edifícios escolares, da necessidade de uma edificação própria e apropriada para funcionar como escola, do ingresso dos alunos, do tempo e dos saberes escolares, da alimentação, dos recreios, das percepções, da inteligência, da moral e, inclusive, do civismo.
É interessante destacar como as pesquisas de Souza (2017, 2019) exigiram movimentos metodológicos, em termos de condutas e procedimentos, diferentes daqueles usualmente empregados na pesquisa em História Oral. No caso, a ausência de registros escritos sobre as escolas investigadas demandou a construção de estratégias inventivas – e, por isso, pouco usuais – para a aproximação de pessoas que vivenciaram, de diferentes momentos e formas, os espaços escolares investigados e que estivessem interessados em compartilhar experiências com a pesquisadora. Em um dos casos, a aproximação pessoal com o cenário da pesquisa permitiu um contato mais direto por meio de uma campanha; em outro, as tecnologias digitais e o rápido compartilhamento de informações possibilitaram alcançar pessoas, ainda que desconhecidas, para colaborar com a pesquisa. Esses aspectos evidenciam a História Oral como metodologia em movimento, na qual as formas de acesso aos colaboradores – e, essencialmente, às suas narrativas – varia conforme o objeto a ser investigado, sempre se considerando, evidentemente, que essas formas de acesso se estabeleçam respeitosamente em relação aos grupos com os quais buscamos dialogar.
Já a pesquisa desenvolvida por Paião (2019) teve como objetivo registrar as memórias da história da Escola Itinerante Maria Aparecida Rosignol Franciosi (2009-2016), localizada no Acampamento Eli Vive, no distrito de Lerroville do município de Londrina-PR. A investigação utilizou a História Oral como fundamentação teórico-metodológica para o registro e a análise de narrativas produzidas a partir de sete entrevistas realizadas com educadoras e educadores que trabalharam, organizaram e construíram essa escola em seus anos de funcionamento. As narrativas possibilitaram contar uma história da experiência de fazer uma outra escola, qualificada pela ação política direta da comunidade do Acampamento Eli Vive e que se fez na e pela coletividade do povo Sem Terra, sendo reconhecida como necessária para a própria continuidade e qualidade da luta pela Reforma Agrária Popular.
É importante destacar que as investigações junto aos povos do campo impõem à pesquisa, muitas vezes, condutas éticas pensadas junto a coletividades, algo que não estamos habituados nos protocolos gerais de pesquisa. Em alguns casos, além dos procedimentos de apresentação da pesquisa aos possíveis colaboradores, individualmente e de acordo com pressupostos éticos balizados pelos Comitês de Ética em Pesquisa Envolvendo Seres Humanos, há a necessidade de aprovação pelo coletivo. Paião (2019) relata:
A partir da narrativa das memórias da educadora Vanderleia e das informações sobre as educadoras e os educadores dos tempos da Escola Itinerante, entrei em contato com duas pessoas que apareceram no relato. Uma delas respondeu as mensagens enviadas aconselhando-me a entrar em contato com a coordenação do Assentamento para apresentar a minha proposta de pesquisa. [...] Ao chegar na sede do assentamento, fui ao mercado, que ainda não conhecia, e pedi informações sobre onde poderia encontrar a Sandra Flor. [...] Ao dirigir-me ao prédio aonde me orientaram ir, Sandra veio ao meu encontro, recebeu-me com um abraço e um sorriso, e pediu para que eu esperasse, pois, a reunião já estava para acabar. [...] Logo, fui chamada para uma varanda em que se encontravam várias pessoas, algumas sentadas, outras em pé, de forma dispersa pelo espaço. Sentei-me em uma cadeira à frente de todas e todos, era um grupo de umas 15 pessoas. Sandra explicou-me que estavam presentes alguns representantes das brigadas dos assentamentos, coordenadores de setores e dirigentes da coordenação. Ela me pediu para apresentar a minha proposta de pesquisa para o grupo e assim o fiz. Iniciei me apresentando e busquei, também, apresentar os objetivos e a fundamentação teórica e metodológica da pesquisa. Expliquei que, com esse exercício de registrar as narrativas sobre a Escola Itinerante, dos tempos de acampamento, tinha como objetivo produzir um trabalho que pudesse contribuir para a socialização dessa experiência da comunidade e, assim, contribuir para a preservação da história da comunidade e da Escola Itinerante do MST. Expliquei que o trabalho poderia, ainda, contribuir nas ações para a formação continuada das educadoras e dos educadores que vinham de Londrina e que, de forma geral, desconheciam a história da Escola Itinerante “Maria Aparecida Rosignol Franciosi” e, até mesmo, a história do MST e sua proposta de educação. Expressei minha admiração pelo Movimento e sua história de luta pela Reforma Agrária Popular, e agradeci por elas e eles serem o MST e manterem viva essa luta pela democratização da terra. Após minha apresentação, começamos a conversar sobre a pesquisa, várias pessoas me deram ideias de quem entrevistar, uma lista de nomes de pessoas que foram educadoras na escola. A pesquisa foi acolhida pela comunidade (Paião, 2019, p. 63-65).
Esse procedimento, de consulta prévia a um coletivo antes do início das entrevistas, não nos era comum, nem mesmo enunciado pela História Oral. Os modos de organização da sociedade, ou da comunidade, determinam se isso faz sentido e qual sua importância. Em sociedades marcadas pelo individualismo, um pedido de autorização a um grupo para a realização de entrevistas individuais soa até como cerceamento da liberdade de expressão de cada indivíduo, que decidiria por si se deseja ou não conceder seu tempo para dialogar com um pesquisador; porém, sociedades ou grupos organizados de modo que a sobrevivência, as lutas e as conquistas dependem da coletividade, como é o caso de acampamentos e assentamentos rurais, especialmente ligados a movimentos sociais, como o MST, e também de comunidades tradicionais, indígenas e quilombolas, a autorização de um coletivo nada mais é que uma decisão pelo bem comum.
Como afirma Durham (1984, p. 28, grifos da autora):
Na vida urbana de uma sociedade como a nossa, o indivíduo (parte indiferenciada da massa) só é plenamente reconhecido como pessoa, como sujeito, nos grupos primários que se estruturam na vida privada: a família, os parentes, os amigos, os vizinhos. Na esfera pública, tende a ser despersonalizado e figura como vendedor de força de trabalho, comprador de mercadorias, beneficiário do INPS, usuário do transporte coletivo, eleitor, homem-massa. Nos movimentos sociais de cunho comunitário, onde se valoriza a participação de todos e de cada um, onde todos devem falar, opinar, decidir, o que parece estar ocorrendo é um processo novo, o de constituição de pessoas na esfera pública, através do jogo do mútuo reconhecimento que ocorre internamente, na prática comunitária.
No processo de autorização coletiva para a realização da pesquisa, Paião (2019) obteve sucesso e pôde seguir com as entrevistas, inclusive com indicações de nomes por esse coletivo. Contudo, não há garantias para tal. Diante de uma negativa, o pesquisador pode ter seu projeto interrompido, com as consequências que isso pode causar (atraso na conclusão de um curso de mestrado ou doutorado, perda de bolsa ou outro tipo de financiamento, necessidade de elaboração de novo projeto de pesquisa etc.). Assim, é importante que haja consciência, ao se trabalhar com povos do campo que se organizam por movimentos sociais ou por comunidades tradicionais, em que a coletividade é central, que sempre se corre tal risco, sendo esse procedimento imprescindível e necessário, a nosso ver.
A pesquisa de Domingues (2023) teve como objetivo realizar uma investigação historiográfica sobre o processo de construção e funcionamento da Escola Itinerante Valmir Motta de Oliveira, localizada no Acampamento Valmir Mota de Oliveira, no município de Jacarezinho-PR. Essa escola, especificamente, iniciou suas atividades em agosto de 2008, logo após a ocupação da Fazenda Itapema, e segue até os dias atuais. Para o desenvolvimento da pesquisa, foram realizadas nove entrevistas, que constituíram narrativas mobilizadas como as principais fontes historiográficas dessa investigação. Com isso, foram realizadas reflexões sobre os seguintes temas: a oposição entre Escolas Itinerantes e escolas urbanas; o início da escola antes mesmo de existir uma construção que possa ser chamada de escola; e as dificuldades de colocar em prática a proposta educacional das Escolas Itinerantes.
Utilizamos, assim como em Souza (2017, 2019) e Paião (2019), o critério de rede para a escolha das pessoas a serem convidadas a ceder entrevistas para a pesquisa de Domingues (2023). Inicialmente, havia uma primeira pessoa, que, além de professora da Escola Itinerante Valmir Motta de Oliveira, havia realizado seu doutorado na Universidade Estadual de Londrina, no Programa de Pós-Graduação em Ensino de Ciências e Educação Matemática, com a pesquisa desenvolvida na escola. Em nossas buscas por fontes historiográficas, encontramos material escasso que abordasse algo referente à escola, sendo um deles a tese de Silveira (2020), que não possui fins historiográficos, mas que tem a escola como cenário de pesquisa. Assim, foi realizado um contato inicial, por meio da rede social Facebook, para, depois, apresentar detalhadamente o objetivo de pesquisa e o convite oficial. A partir dessa primeira entrevista, que foi realizada na própria escola, outras pessoas foram surgindo: algumas por recomendação, outras por encontros e conversas durante a vivência do pesquisador no ambiente escolar – seja para realizar consulta a materiais, para realizar entrevistas ou até para retornar com a textualização para aprovação do entrevistado.
Uma dificuldade que percebemos ser recorrente na utilização do critério de rede é a aceitação dos Comitês de Ética em Pesquisa Envolvendo Seres Humanos. Apesar de previsto pela Carta Circular nº 110, de 8 de dezembro de 2017, da Comissão Nacional de Ética em Pesquisa e da Secretaria-Executiva do Conselho Nacional de Saúde, do Ministério da Saúde (Brasil, 2017), que, em caso de não haver definição prévia do número de participantes da pesquisa, poder indicar, na Plataforma Brasil, o tamanho da amostra como zero (devido à necessidade técnica de indicação de um valor numérico), nem sempre isso é aceito. Em algumas situações, recebemos pareceres que diziam que poderíamos apresentar uma projeção da quantidade de participantes. Nessas pesquisas, não há como projetar um número, visto que os convites deixam de ser realizados a novas pessoas quando não há mais tempo para entrevistas ou quando as informações obtidas começam a se repetir, sem contribuições incrementais para a pesquisa.
E, nesse mesmo sentido, Souza (2019) coloca suas dificuldades em encontrar pessoas que pudessem lhe contar sobre o Grupo Escolar e externa sua preocupação:
Narrativas, que só nos seriam possíveis se encontrássemos os sujeitos, esses sujeitos. Pessoas, que pudéssemos atribuir nomes, e que as enunciações do que viveram nessa escola, nos caberia, a partir de seus registros, escrever uma história. Então, pelo nosso caminho de pesquisar encontramos nossa primeira “pedra”. Como encontrar os sujeitos que vivenciaram o Grupo Escolar no período de 1947 a 1977? (Souza, 2019, p. 53, grifo nosso).
Essas pesquisas também nos mostraram que outra situação recorrente foi o destacado por Souza (2019) sobre o não acesso às pessoas. Conforme destacamos acima, enquanto buscava por possíveis colaboradores, Souza (2019) elaborou seus roteiros de entrevista. Uma versão do roteiro foi elaborada pensando em uma possível entrevista com o Fundador do Grupo Escolar, nome que a pesquisadora teve acesso durante a sua busca. No entanto, mesmo após várias tentativas, Souza (2019) não conseguiu acessar esse potencial colaborador de sua pesquisa e precisou desistir da realização dessa entrevista, considerada pela pesquisadora relevante para compreender o Grupo Escolar investigado.
Das dificuldades em encontrar, em acessar, do não acesso, das interferências das condições climáticas, das necessidades de campanhas na venda do bairro, de campanhas nas redes sociais e em aplicativos de conversa, destacados nas pesquisas de Souza (2017, 2019), Paião (2019) e Domingues (2023), surgem também as surpresas, surpresas que têm interferência na metodologia da pesquisa.
Na pesquisa de Souza (2019), a autora nos relata que combinou, por telefone, uma entrevista com um colaborador, mas que, ao chegar no local e horário combinados, se deparou com duas pessoas, sendo a segunda um amigo do colaborador – ambos acreditavam que a fala da segunda pessoa também contribuiria para a pesquisa, daí o convite. Uma surpresa: o desafio de uma entrevista com duas pessoas simultaneamente, um roteiro que pede para ser repensado em segundos, um lidar com o inesperado, um colaborador a mais.
O que a autora não sabia é que esta não seria a única entrevista que aconteceria nesses moldes em sua pesquisa. No contato de uma ex-professora, que soube da investigação via divulgação nas redes sociais, se dispôs a colaborar com a condição de, no momento da entrevista, estar acompanhada de sua irmã, também ex-professora da escola. Outra entrevista simultânea, dessa vez sem o estranhamento do inesperado, era um momento combinado previamente e que, certamente, a vivência da entrevista anterior foi essencial.
Das surpresas, também há desconfiança que se transforma em sorriso e em acolhimento.
Numa manhã, busquei o primeiro contato com a professora Idalina, um primeiro contato para explicar sobre a pesquisa, dizer o que estava procurando, e consultar se ela podia nos ceder uma entrevista. Cheguei ao endereço, avistei uma casa simples com um quintal enorme, cheio de animais. Chamei no portão pelo seu nome, passado um tempo, aponta uma senhora, de cabelos brancos, com uma estatura alta, com um semblante sério e a princípio, desconfiado. Antes que eu falasse qualquer coisa, a beira de seus 90 anos, aquela senhora, que mal me conhecia, me disse: “o que a mocinha deseja‖?”. Neste instante, ainda do lado de fora do quintal, eu comecei a me apresentar. Quando toquei no assunto do Grupo Escolar, aquela professora aposentada, me sorriu e cortou minha fala: “Vamos entrar!”. Ela começou a me contar, numa conversa que parecia de avó para neta, (aquelas conversas que os avós contam para os netos, de um tempo que parece tão distante, de um tempo que foi deles, que ao contar nos faz viajar, nos faz ver o tempo com uma impressão ou uma falsa impressão, que tudo naquele tempo era bom), foi assim a minha primeira e informal conversa com a Dona Idalina. Então ela me contou suas experiências, foi refazendo seus percursos, narrando suas identidades, me contou dela, da família, me mostrou suas fotografias, e mostrou sua casa, me acolheu (Souza, 2019, p. 56-57).
E aquela conversa que antecede o momento da entrevista em que o pesquisador lamenta não estar autorizado a ligar o gravador: “Mas tudo aquilo não era a entrevista, eu não estava gravando, o único registro que tenho está em minhas memórias. E depois de muitas horas de conversa marcamos para fazer a entrevista no começo da semana seguinte” (Souza, 2019, p. 57).
Acolhimento, sorrisos e lágrimas acabam por ser constantes quando ouvimos histórias, histórias que movimentam memórias. Quando Souza (2017) volta para uma segunda entrevista com a mesma colaboradora, registra que:
Ao final da entrevista, um café com bolo, e muitas risadas, e as histórias que ela contava sobre aquela época. No momento em que eu disse que iria embora, ela falou: “está cedo, tenho tantas histórias para te contar!” Neuza me fez prometer que sempre voltaria em sua casa para tomar, segundo ela, um cafezinho com prosa (Souza, 2017, p. 44).
E para um cafezinho com prosa a pesquisadora sempre voltou, porque sempre foi convidada a partir do vínculo e da confiança estabelecida quando se pôs a ouvir o que o outro tinha a contar. A isso também creditamos a seriedade ética e o respeito com que sempre se cuida das tratativas para o momento da entrevista, da autorização das narrativas para o pesquisador, um compromisso com e durante todo o processo de investigação – e, quem sabe, após o término dele…
Outro aspecto relevante a ser destacado é que, de acordo com os procedimentos da História Oral, após a transcrição e a textualização da entrevista realizada, o colaborador analisa o texto elaborado e, depois de correções, modificações, acréscimos ou omissões por ele indicadas, cede os direitos sobre ele para composição de fonte historiográfica da pesquisa. Esse processo, que, muitas vezes, é realizado com auxílio de mídias digitais (por e-mail, por exemplo), no contexto das nossas pesquisas exigiu, na maioria dos casos, retornos presenciais aos locais e reencontros com os colaboradores – considerando a dificuldade de acesso à internet no meio rural.
Esse aspecto nos mostra, uma vez mais, como essas pesquisas, de algum modo, revisitam pressupostos e procedimentos da História Oral, por conta da especificidade do contexto. Quando se trata de acesso aos locais e às pessoas, o mundo rural costuma trazer dificuldades: por um lado, as estradas e os meios públicos de transporte são muito precários e, por outro, o contato pelos meios de comunicação, muitas vezes, falham. Planejar e realizar entrevistas com as pessoas que podem colaborar com a pesquisa são desafios grandes.
As pesquisas de Paião (2019) e Domingues (2023), por exemplo, dependeram de um apoio grande dos próprios entrevistados e de outros para serem realizadas. Sem carro, Paião (2019) dependia de diversas ajudas para conseguir chegar ao Assentamento Eli Vive, onde residiam e trabalhavam seus entrevistados. Em algumas situações, eram moradores do distrito que, em seu modo de vida distinto daquele vivenciado nos centros urbanos, há disposição para escutar e ajudar uma forasteira, que ali se encontra:
Saímos de Cornélio Procópio no primeiro ônibus, com saída às 7h da manhã, descemos na rodoviária de Londrina e embarcamos em um ônibus metropolitano com destino a Tamarana e parada em Lerroville, às 10h. Ao chegar em Lerroville, por volta de 11h, procuramos informações de números de telefones de pessoas que disponibilizam caronas ou taxistas que nos levassem até o Assentamento. Paramos no ponto do ônibus que leva a comunidade para o Assentamento, e que fica em frente a uma pequena mercearia. Havia várias pessoas em frente à mercearia, esperando o ônibus, e várias delas eram do Assentamento. O proprietário da mercearia disponibiliza cadeiras de plástico para as pessoas sentarem e, nessa “roda”, ficam proseando sobre os mais variados assuntos. Todas as pessoas nos ajudaram com contatos para o transporte e conseguimos falar com o Seu Celso, que topou nos levar (Paião, 2019, p. 61-62).
Em outras situações, os moradores do próprio Assentamento se compadecem e prestam ajuda à pesquisadora:
Cheguei em Lerroville às 8h30. [...] Fiquei sentada no banco em frente ao Bar do Polaco e, enquanto esperava, vi uma família saindo do mercado e o carro todo empoeirado me fez pensar na ideia de que poderiam morar no Assentamento. Fui ao encontro da família, perguntei se moravam no assentamento e eles responderam que sim. Estavam em três pessoas, Dona Marisa, seu filho Emerson e seu neto Murilo, uma criança de uns cinco anos. Desci com eles para o Assentamento. [...] Gilda me acolheu com muito carinho em toda aquela manhã. Quando enviei mensagem, avisando que iria me atrasar, pois havia “perdido” o ônibus. Ela, compreensiva e gentil, chegou a oferecer que seu filho fosse me buscar em Lerroville. Mas, como consegui aquela carona, não foi necessário (Paião, 2019, p. 68-69).
Cheguei em Lerroville às 7h50 e não consegui embarcar no ônibus. Tentei contatar Seu Celso, mas não consegui. Voltei à mercearia, aquela de lugar de prosa e de pedir ajuda, consegui o número de telefone do Seu Nego, taxista da região. Combinamos e ele veio me buscar. Nesse dia, devido às dificuldades para agendar as entrevistas, marquei três entrevistas, uma para a manhã e duas para a tarde. Chegando na escola, consegui uma carona com o Junior, morador do Assentamento, que me levou até o lote da minha primeira entrevistada daquele dia, Marilda, educadora da Escola Itinerante de 2009 a 2011. Foi difícil chegar até o lote, com a internet falhando e sem muita noção de onde ficava, nos perdemos e passamos do local (Paião, 2019, p. 71).
Domingues (2023), por sua vez, sempre ia ao local da pesquisa acompanhado de outro pesquisador, que estava de carro – o que facilitava muito sua locomoção. Para uma determinada entrevista, porém, que foi realizada no Assentamento Companheiro Keno, contou com a ajuda de um morador:
Caminhei por cerca de uma hora pela estrada de pedra e, nesse caminho, passei alguns perrengues: cachorro correu atrás de mim, sede, muita poeira, pois tinha alguns caminhões passando pela estrada, porém presenciei um pôr do sol lindíssimo com aquela paisagem. Passou, então, um rapaz de moto e gritou: “está indo para a escola?”. Eu balancei a cabeça que sim e ele perguntou: “quer uma carona?”. Eu nem hesitei, subi na moto e partimos em direção à escola (Domingues, 2023, p. 39).
No ambiente rural, as distâncias são grandes e os meios de transporte escassos, exigindo mais daqueles que se propõem a realizar pesquisas com a História Oral. Além disso, as condições climáticas também podem ser obstáculos para o acesso:
No dia 25 de março de 2022, realizei a quinta entrevista, com o Jonathan. Durante a semana, entrei em contato com ele e combinamos a entrevista para às 15h. Na noite anterior, choveu muito em Bandeirantes – o que nos deixou em dúvida se iríamos ou não. Saímos às 12h38 e pegamos um tráfego grande de caminhão. Quando chegamos na estrada de chão no caminho para ir à escola, percebemos que havia muito barro e a única coisa que me vinha à lembrança era o que a Dahiane havia contado a respeito do acidente dela. Mesmo assim, decidirmos arriscar, com mais cuidado. Durante o trajeto, havia muitas poças d’água e a estrada estava um pouco escorregadia (Domingues, 2023, p. 39).
Em Lerroville, dessa vez já sem tanta pressa, pois havia marcado o encontro para às 14h, fui, primeiro, ao mercado. Entre os itens comprados, estava uma sombrinha, para me proteger da chuva fina e contínua que pairava. Fazia uma temperatura agradável. Fui a um restaurante que o pessoal do mercado indicou. Um lugar simples, pequeno e de comida caseira, que logo percebi ser gerenciado por uma família. Perguntei ao pessoal sobre o ônibus para o assentamento, que partiria às 13h30, e eles me alertaram sobre a possibilidade de o ônibus não descer, devido à condição da estrada por causa da chuva. Almocei e saí caminhando, pensando sobre a decisão que deveria tomar. Caminhei por quatro ruas, passei em frente à escola do distrito. Estava no horário de saída e havia vários ônibus de transporte escolar rural em frente à escola. Parei na mercearia que havia conseguido ajuda no dia da entrevista da Vanderleia e, de lá, liguei para o Seu Celso novamente. Havia duas mulheres e uma criança esperando o ônibus para o Assentamento, Dona Nadir e sua filha Mônica, de dez anos, e Dona Nair. Pedi ao Seu Celso que nos levasse ao Assentamento. A chuva deixou o caminho mais barulhento e sacolejante, até mesmo de carro. No caminho, fomos discutindo política e a necessidade de atendimento às demandas dos assentamentos, sendo o foco da discussão a importância da pavimentação da estrada, que melhoraria a vida das famílias assentadas e também poderia ser uma alternativa de caminho para o trajeto até Tamarana (Paião, 2019, p. 64).
Essas mobilizações de Souza (2017, 2019), Paião (2019) e Domingues (2023), em busca de compreender a escola do meio rural, para registrar versões históricas dessas instituições foram, em grande parte, viabilizadas por ouvir aqueles que vivenciaram essas escolas em seus distintos espaços, aqueles que tinham a contar sobre os modos de constituição, sobre as lutas, os desafios e as alegrias dos momentos de instalação e da permanência dessas escolas nessas comunidades.
Os recortes dos percursos metodológicos destacados nesta seção nos permitem perceber que a escolha intencional pela História Oral como metodologia se fez potente para que essas pesquisas pudessem se concretizar. As narrativas elaboradas e analisadas são fontes históricas produzidas intencionalmente para que as escolas rurais tematizadas nas pesquisas aqui mencionadas tivessem, também, um registro de sua história e é, nessas narrativas produzidas a partir da mobilização da História Oral como metodologia de pesquisa, que os pesquisadores encontraram elementos para constituir essas histórias.
Além do que disseram os colaboradores entrevistados nesses trabalhos, são esses movimentos de pesquisa que tiram das casas e fazem chegar aos pesquisadores fotos e cadernos de uma época, objetos antes guardados com propósitos pessoais, que agora contribuem como elementos importantes de análise e interpretação, além disso também ajudam a ilustrar os relatórios das pesquisas e se tornam públicos, do mesmo modo que as narrativas.
Registros que foram mobilizados e produzidos dada a intenção de pesquisa lançada àquelas comunidades. É nesse sentido que percebemos a mobilização da História Oral como um modo de permitir a elaboração de uma história dessas escolas rurais que parecem ter tido seus registros históricos negligenciados no curso do tempo, dado que pouco ou quase nada, para além dos objetos pessoais dos colaboradores, foi encontrado no decorrer dessas investigações. É certo que motivos vários podem ter contribuído para esses não encontros e é certo, também, que acreditamos que, para essas pesquisas em tela, a escolha pela metodologia da História Oral para investigar escolas rurais foi essencial.
4 Considerações
Como apresentado neste texto, as pesquisas de Souza (2017, 2019), Paião (2019) e Domingues (2023) tinham objetivos distintos, em comum lançaram seus olhares para escolas da zona rural. Para além disso, desenvolveram suas pesquisas pelos caminhos que puderam ou que lhes foi possível, desenharam seus percursos metodológicos, seja por escolhas ou necessidades. Em todas elas uma escolha que as aproxima, a escolha teórico metodológica, a História Oral, e assim tensionaram os princípios e os procedimentos desta metodologia ao modo como cada um dos percursos metodológicos permitiu e/ou exigiu.
Importa ressaltar que o que nos impulsionou ao desejo de escrever este texto, no encontro de pesquisadores interessados em discutir a temática que nestas páginas se instala, foi querer comunicar e compartilhar esses nossos movimentos de pesquisas no sentido de trazer à tona como eles mostram as possibilidades da História Oral quando intencionalmente a mobilizamos como metodologia de pesquisa em investigações que tinham por objetivo estudar escolas rurais paranaenses, em suas mais variadas estruturas, conforme destacamos no início deste artigo. No entanto, dizer das possibilidades também nos leva a dizer dos desafios. E, mais que isso, nos leva a projetar novos estudos que possam, assim como esses já realizados, nos ajudar a avançar nesta discussão, lançando outros olhares para escolas paranaenses e para além das limitações fronteiriças que demarcam este estado no mapa.
É neste sentido que o encontro, por nós provocado, da História Oral com a Educação do Campo, nos mostra que há caminhos possíveis e potentes!
Nas quatro pesquisas tematizadas neste texto, documentos oficiais pouco foram encontrados pelos respectivos pesquisadores e, quando encontrados, poucos registros apresentavam. As histórias que pudemos registrar em cada uma dessas investigações, do modo como nos foi possível, são versões produzidas a partir do querer ouvir outras histórias, do ouvir as variadas versões, que se encontram e se desencontram quando lançamos nosso olhar para o conjunto delas. Quando ouvidas, gravadas e, por meio dos procedimentos da História Oral, organizadas em texto escrito, essas narrativas, eticamente produzidas e autorizadas, nos permitem registrar versões a partir de memórias comunicadas em momentos de entrevistas intencionalmente planejados.
Para além do ouvir, nos dispomos a escutar e produzir versões dessas instituições de ensino que estão (ou estiveram) na roça, que atende (ou atenderam) uma comunidade rural específica. Versões que nos foram possíveis, também, no encontro com as fotografias, com os cadernos e com outros objetos que nos chegaram por meio dos entrevistados, de suas famílias e das campanhas – que mobilizaram a comunidade local que não manifestou dúvidas da importância de contribuir com as pesquisas acerca de sua história escolar.
Para os entrevistados, interessados em contar, sempre se está cedo, tenho tantas histórias para te contar!. Está cedo para desligar o gravador, está cedo para ir embora! E quantas histórias eles contaram, mais de uma vez, sozinhos, juntos (com amigos, entre irmãos), com bolo, com café, com prosa, risos e emoções. Para os pesquisadores, um empenho, um esforço, desafios que por vezes extrapolam os rotineiros encontrados no caminhar de uma pesquisa, alguns próprios do campo, seja a chuva que dificulta o deslocamento, seja a distância, a paciência da espera ou o correr do cachorro…
Agradecimentos
O presente trabalho foi realizado com apoio da Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível Superior - Brasil (CAPES) – Código de Financiamento 001 e da Diretoria de Pesquisa e Pós-Graduação do campus Cornélio Procópio da Universidade Tecnológica Federal do Paraná.
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- SCHELBAUER, A. R; GONÇALVES NETO, W. Ensino primário no meio rural paranaense: em foco as escolas de trabalhadores rurais e de pescadores entre as décadas de 30 e 50 do século XX. Cadernos de História da Educação, Uberlândia, v. 12, n. 1, p. 83-107, jan./jun. 2013.
- SILVA, H. P. Fragmentos de precarização do trabalho docente: leituras da formação NORMAL de professoras alagoanas (1932-1959). Revista Cocar, Belém, v. 17, n. 35, p. 1-21, 2021.
- SILVEIRA, D. I. Um olhar para a agroecologia e a educação ambiental no ensino de ciências na escola itinerante do MST. 2020. 164 f. Tese (Doutorado em Ensino de Ciências) - Universidade Estadual de Londrina, Londrina, 2020.
- SOUZA, G. S. Memórias da primeira década de funcionamento da Casa Escolar Lourenço Ormenezze: uma narrativa. 2017. 89 f. Trabalho de Conclusão de Curso (Licenciatura em Matemática) - Universidade Tecnológica Federal do Paraná, Cornélio Procópio, 2017.
- SOUZA, G. S. Da fuligem à edificação do Grupo Escolar Rural Usina Bandeirantes: narrativas que contam história(s). 2019. 161 f. Dissertação (Mestrado em Ensino de Matemática) - Universidade Tecnológica Federal do Paraná, Cornélio Procópio, 2019.
- SOUZA, G. S.; ANDRADE, M. M. Os sentidos e significados da docência no meio rural: um estudo em História Oral e Educação Matemática. Revista de História da Educação Matemática, v. 8, p. 1-18, 2022.
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O processo de institucionalização das Escolas de Trabalhadores Rurais (ETR) e das Escolas de Pescadores (EP) no Paraná oferece fortes indícios para que possamos compreendê-las em meio às tematizações que consideravam a escola rural como lócus para a formação do trabalhador do campo e o seu ensino como fundamental para constituir ou, utilizando das palavras de Mennucci (1934), criar “o homem do campo” e “o homem do mar”, de modo que eles não se considerassem inferiores, na escala social, em relação “ao homem da cidade”. “As ETR e EP são expressão de uma preocupação de caráter nacional, como foi evidenciada anteriormente, a formação do homem do campo e do homem do mar ganhou relevo específico no governo de Manuel Ribas, no qual a questão agrícola foi destacada como uma preocupação que passou a envolver a ação conjunta dos governos estadual e Federal” (Shelbauer; Neto, 2013, p. 90). De acordo com Schelbauer e Neto (2013), as ETR como internatos de ensino público, destinados à formação de profissionais da agricultura e da pecuária para ambos os sexos, porém em instalações independentes e com finalidades diferentes, de acordo com os imperativos sociais e as necessidades técnicas e práticas da lavoura e da pecuária. Mantidas pelo governo estadual, tais escolas deveriam ser instaladas nas zonas rurais e ofertar o Curso Primário Agrícola e o Curso Agrícola Profissional. As EP tinham como finalidade precípua a formação do profissional da pesca, circunscrita à população litorânea, por meio da realização de cursos voltados aos interesses regionais. De orientação prática, as EP passaram a destinar-se aos filhos dos pescadores e aos demais interessados na vida marítima, viabilizando excursões de estudos em museus e mercados e atividades práticas em fábricas de industrialização e conservação do pescado.
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Um novo modelo de organização escolar configurado de aspectos pedagógicos e arquitetônicos, pressupunha a adoção de um sistema de ensino diferenciado, concretizou diretrizes pedagógicas bastante diferenciadas daquelas vigentes, implicando a constituição das classes, para um ensino homogêneo – em cada sala de aula uma classe referente a uma série, para cada classe, uma professora. Essa classificação dos alunos constituiu-se uma evolução no sistema educacional, surgindo, então, a noção de classe e série. A série tornou-se a matriz estrutural, assim passou a ser realizada a distribuição dos conteúdos, os horários, frequências de rotinas diárias, a estruturação de matérias compostas por lições, pontos, aulas e exercícios (Souza; Andrade, 2022).
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Como uma tentativa de resolver os problemas da educação rural, com características próprias e estruturas precárias. As Casas Escolares funcionavam nas casas dos professores e em outros ambientes poucos adaptados ao funcionamento de uma escola pública de qualidade. Conhecida como escola de primeiras letras por ofertar um ensino de 1ª a 4ª série, havia, quase sempre, uma única professora lecionando para todas as turmas e o ensino era multisseriado (Souza, 2017).
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Escolas Itinerantes são escolas inseridas em acampamentos do Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem Terra (MST), de modo que, quando há mudança de local do acampamento, da ocupação, a escola a acompanha. Por isso, essas escolas são responsabilidade do governo do estado e não dos municípios (Sapelli, 2015).
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Até o ano de 2017, o IBGE utilizava mesorregiões para subdividir os estados brasileiros. Nessa organização, o escopo das pesquisas aqui citadas são Norte Central e Norte Pioneiro do estado do Paraná. A partir do ano de 2017, o IBGE passou a utilizar “regiões geográficas intermediárias” e “regiões geográficas imediatas”. Nessa organização, as pesquisas se inserem na região geográfica intermediária de Londrina (IBGE, 2017).
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É fato que o atributo precursor, aqui, não indica a inexistência de trabalhos sobre a escolarização dos povos do campo, com foco em processos educacionais e formativos ligados à Matemática, anteriores a essas duas pesquisas. Acreditamos que os trabalhos de Ivete Baraldi (2003) e Maria Ednéia Martins (2003) inauguram um tratamento da temática que mais se aproxima, em termos de pressupostos e procedimentos, daquele que mobilizamos nas pesquisas que desenvolvemos.
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Mais à frente, trazemos uma discussão sobre a opção de se adotar, neste texto, as expressões escolas rurais e escolas do campo, ainda que a última expressão seja a que, hoje, mais bem representa a luta dos povos do campo pela construção de uma escola específica, diferenciada e alternativa.
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Referimo-nos, aqui, a pesquisas realizadas no âmbito dos seguintes grupos de pesquisa: Educação Matemática do Campo – Estudos e Pesquisas, liderado por Línlya Sachs, e Grupo de Estudos em História da Educação e Educação Matemática, liderado por Mirian Maria Andrade. Ambos estão vinculados à Universidade Tecnológica Federal do Paraná (UTFPR).
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A nomenclatura Colégio Estadual do Campo, obviamente, não é utilizada desde 1978; mas, sim, após alterações mais recentes.
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Editor-chefe responsável:
Prof. Dr. Roger Miarka
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Editor associado responsável:
Profa. Dra. Luzia Aparecida de Souza
Datas de Publicação
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Publicação nesta coleção
09 Jun 2025 -
Data do Fascículo
2025
Histórico
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Recebido
26 Fev 2024 -
Aceito
05 Nov 2024
