Resumo
Dois temas são centrais a este texto. Em sua primeira parte, ele trata do uso e das potencialidades da História Oral para estudos relacionados à formação e atuação de professoras e professores que ensinam/ensinaram matemática no Brasil; enquanto, em sua segunda parte, discutimos brevemente o potencial da dimensão histórica para esses estudos, indicando relações com o processo de colonização no país e os estudos sobre decolonialidade. Vinculando ambas as partes, buscamos, por fim, apontar possibilidades de interconectar temas como formação e atuação docentes, História Oral, estudos decoloniais e Educação Matemática.
Formação de Professores; História da Educação Matemática Brasileira; História Oral; Estudos Decoloniais
Resumen
Dos temas son centrales en este texto. La primera parte trata del uso y de las potencialidades de la Historia Oral para investigaciones relacionadas a la formación y actuación de profesoras y profesores que enseñan/enseñaron matemática en Brasil; mientras que la segunda parte discute brevemente el potencial de la dimensión histórica para esta investigación, indicando relaciones con el proceso de colonización en el país y los estudios sobre decolonialidad. Finalmente, apuntamos posibilidades de interconectar temas como formación y actuación docente, Historia Oral, estudios decoloniales y Educación Matemática.
Formación de profesores; Historia de la Educación Matemática Brasileña; Historia Oral; Estudios Decoloniales
1 História Oral e suas possibilidades na formação de professores e professoras que ensinam matemática
Embora Miguel de Unamuno seja leitura obrigatória para alguns de nós, sua obra não tem sido sistematicamente estudada em nosso grupo de pesquisa. Mas é dele que vêm duas perspectivas fundamentais para este texto. Essas perspectivas, sob outras rubricas e vindas de outras bibliografias, têm, de modo geral, sustentado nossas pesquisas e nossas práticas em relação à formação de professores e professoras que ensinam matemática.
A primeira delas é a chamada filosofia de carne e osso, segundo a qual a intenção dos fazeres filosóficos é compreender o mundo a partir do homem real, não de uma sua abstração, “o homem de carne e osso, aquele que nasce, sofre e morre – sobretudo morre –, aquele que come e bebe e joga e dorme e pensa e deseja, o homem que é visto e ouvido, o irmão, o verdadeiro irmão [...] porque há uma coisa, também conhecida como homem, o sujeito de não poucas divagações mais ou menos científicas [...] que não é daqui nem dali nem desta época nem de outra, que não tem sexo nem pátria, uma ideia enfim. Ou seja, um não homem.” (Unamuno, 2013, p.19). Essa perspectiva de que a filosofia deve tratar de um homem corporificado, localizado, plural, que compartilha fazeres, sendo uno e singular mas tornando-se diverso em comunidade, leva Miguel de Unamuno a referir-se à Espanha como um povo que filosofa na vida, não por meio da elucubração, lançando-se a compreender o homem concreto, não como ideia, “o sujeito e o supremo objeto, ao mesmo tempo, de toda filosofia, queiram ou não queiram certos autoproclamados filósofos” (Unamuno, 2013, p. 20).
Essa mesma perspectiva o leva a defender o conceito de intra-história – a segunda das perspectivas que, anteriormente, apontamos como fundamental a este texto:
Tudo o que contam diariamente os jornais, toda a história do ‘presente momento histórico’ não é nada mais que a superfície do mar, uma superfície que se gela e cristaliza nos livros e registros [...] Os jornais nada dizem sobre a vida silenciosa de milhões de homens sem história que todo dia e em todos os países do planeta se levantam assim que o sol nasce e saem para o campo para continuar o desconhecido e silencioso trabalho cotidiano e eterno [...] Essa vida intra-histórica, silenciosa e contínua como o próprio fundo do mar, é a substância do progresso, a verdadeira tradição, a tradição eterna, não a tradição falsa que se costuma procurar no passado enterrado nos livros e papéis e monumentos e pedras (O´Kuinghttons em Unamuno, 2013, p. 9-10).1
E, assim, costurando seres de carne-e-osso e intra-história, dispara-se todo um ideário filosófico para compreender o mundo a partir do homem concreto, que se faz em sua história cotidiana, aquela que, muito frequentemente, escapa dos registros tidos como fundamentais para escrever essa mesma história.
Essas perspectivas talvez expliquem – mais uma vez, ainda que agora por outros caminhos – nossa opção pela História Oral como metodologia de pesquisa, vetor que dispara e sustenta nossos modos de compreender esse homem concreto em uma de suas singularidades: o de ser professor que ensina matemática e/ou o de atuar como pesquisador em Educação Matemática, criando cotidianamente os espaços, os vãos e desvãos necessários à sua prática, constituindo todo um campo e constituindo toda uma comunidade que pensa e faz, de um modo ou outro, Educação Matemática.
Não raras vezes, os estudos sobre a formação e a atuação dos professores que ensinam matemática tropeçam ao criar um professor genérico, ora totalmente abstrato, ora um pouco mais concreto, mas via de regra forjado a partir de formações e espaços formativos cuja caracterização mais detalhada e delicada parece ser desnecessária, ou como se toda forma de tornar-se professor estivesse sempre e indefectivelmente atrelada aos espaços formais de formação e atuação pelos quais circula ou circulou. É exatamente nesse sentido que, segundo pensamos, a História Oral é, junto a outras metodologias e abordagens de pesquisa mais recentes, benvinda nos estudos sobre as formações e práticas dos que ensinam matemática.
A História Oral é, sinteticamente, um modo de produzir narrativas, registrá-las, estudá-las e disponibilizá-las, e nós a temos mobilizado incorporando a essa mobilização o apelo para que ela seja cada vez mais exercitada, posto que cabe às instituições de ensino e pesquisa não apenas defender e respeitar a diversidade e a pluralidade – pontos focais da História Oral – mas promovê-las. É importante, também, registrar que concebemos metodologia não como um mero conjunto de procedimentos, mas como um conjunto de procedimentos fundamentados. Assim, a História Oral é um – dentre os muitos – modos de operar com narrativas que, nesse caso, são criadas em momentos de entrevista com um ou mais sujeitos. Atualmente, são inúmeras as abordagens metodológicas disparadas a partir de fontes orais, e tem se intensificado o número de pesquisas vinculadas às narrativas. O que distingue essas iniciativas da História Oral é que, no caso da História Oral, tem-se como pressuposto que as narrativas produzidas são fontes historiográficas (ou fontes historiográficas bastante singulares, que ressaltam, pelo próprio modo como são criadas, a subjetividade dos que produzem essas fontes-narrativas). Produzir fontes-narrativas que são fontes historiográficas: esse o diferencial das pesquisas que usam a História Oral em relação àquelas que usam entrevistas, ou têm a oralidade como ponto de partida ou, ainda, àquelas que criam e operam com narrativas (Cf. Gonçalves, 2020; Garnica; Gomes, 2020).
Não é, entretanto, necessário, lançar-se a um projeto historiográfico ao mobilizar a História Oral como perspectiva metodológica. Ainda que com ela sejam produzidas fontes historiográficas, essas fontes podem ser mobilizadas numa diversidade de ocasiões e para uma grande quantidade de tarefas distintas, ainda que a todas essas ocasiões e tarefas esteja subjacente a defesa de uma concepção de história como aquela a que Unamuno chama de intra-história: conhecer, a partir dos seres incorporados, dos homens de carne-e-osso, dos que experimentam, criam e desenvolvem seus cotidianos, os espaços e tempos, passados e presentes, pelos quais esses homens passam e passaram, vivendo comunitariamente suas vidas, interagindo, transformando e sendo transformados por seu meio.
Fazer história, nesse sentido, implica considerar necessariamente a interlocução com os que viveram determinado momento, em determinado espaço, visto que o uso da História Oral implica, também, flexibilizar o conceito de história não mais vinculando apenas ao tempo, mas também ao espaço, esse modo de compreender o mundo: espaço praticado, espaço-tempo inventado e vivido (Morais, 2017). Ainda que não se deva desprezar perspectivas mais clássicas de fazer histórica – por exemplo aquelas que cuidam de cenários mais distantes, em que não há possibilidade de interlocução viva, efetiva, entre-visões – mesmo a essas perspectivas agregam-se fontes mais diversificadas, mais plurais que não apenas os estáticos registros chamados, talvez equivocadamente, de fontes primárias.
Com o uso das narrativas – que, em nosso caso, são criadas com o uso da História Oral mas que poderiam ser criadas a partir de outras estratégias – temos tentado compreender esse horizonte complexo e caótico de formação e atuação do professor e da professora que ensina/ensinou matemática. Das pesquisas realizadas – para ficarmos em apenas dois exemplos, dadas as limitações naturalmente impostas a um artigo científico – podemos ressaltar que a História Oral em Educação Matemática, pensada como guia para um tratamento teórico e metodológico do tema formação docente, daria conta de investigar as formações também pelo viés documental – visto que a História Oral não prescinde do trabalho com documentos escritos – mas opta por apostar, em primeira instância, nas narrativas de pessoas, o que constitui um pacto entre pesquisadores de um mesmo grupo: as narrativas nos permitem identificar não apenas o que está nos registros usuais, mas ir além desses registros, sem desprezá-los: a aposta nas narrativas nos possibilita identificar processos, trajetórias, histórias de vida; promover reverberações, ouvir e valorizar, como protagonistas, personagens que de outro modo estariam ocultos nas estabilidades produzidas por uma história puramente documental. Talvez seja por isso que outros autores avaliam nossa perspectiva como uma insubordinação criativa: ela se dá, inicialmente, ao buscamos alterar não apenas o foco dos estudos sobre a formação de professores e professoras no Brasil e suas instituições formadoras, optando por visitar espaços mais diversos e variados, que até muito recentemente eram secundarizados, por motivos dos mais diversos, no panorama da investigação sobre os que ensinam/ensinaram matemática.
Abraçar essa opção implica operar a partir de uma concepção segundo a qual o sudeste não é o centro único dessa discussão, nem mesmo o irradiador, por excelência ou por força das circunstâncias, das políticas de formação docente para o restante do país. Dessa alteração quanto aos espaços estudados decorrem outras alterações: elementos culturais, regionais, singulares, inusuais etc se mostram, e a Educação Matemática passa a ser não apenas um campo em que se discutem estratégias de ensino de Matemática, mas espaço pelo qual podem circular temas novos, até então tidos como externos ou próprios e pertencentes a outros campos que não o nosso.
É do estudo das dinâmicas de formação e atuação de professores e professoras que ensinam/ensinaram matemática no Cariri cearense, por exemplo, que nos vem a compreensão de que escapam da mera formalização – a formação formal, a formação usual, as Escolas Normais, os Cursos de Licenciatura, os mais distintos modos e instituições de formar para o magistério – e dos dispositivos legais vigentes em cada época as credenciais para que esses professores se tornem professores, o que nos leva a afirmar que a legitimação da condição de professor não reside necessariamente no seu estatuto institucional nem no seu enquadramento legal, mas nas redes de relações e nos movimentos pulsantes, vivos, que se formam nessas redes.
Conceitos como formação inicial, formação continuada e formação em serviço não dão conta de expressar os fluxos, as intensidades e as multiplicidades que se insinuam no plano de forças que atuam nos processos formativos. A formação de professores extrapola qualquer classificação normatizadora, e está além e aquém dos processos rígidos, delineados, temporalizados, institucionalizados. Assim, pensamos a formação de professores como uma rachadura, um fora, algo que se passa em espaço-tempos vários e variados, intersticiais, por vezes indeterminados, cujos início e continuidade podem ser desencadeados em pontos de ruptura ou ao longo de toda uma vida. Formar-se, portanto, não tem a ver com fixação nem com forma(ta)ção, mas com invenção, criação, reinvenção, recriação, ao longo de toda uma trajetória profissional e de uma trajetória de vida, de fluxos e de passagens.
Nas entrevistas realizadas para essa pesquisa no Cariri cearense, foi possível identificar que, apesar de todo o esforço normativo para formar professores e professoras em processos disciplinadores, conteúdos segmentados, níveis de ensino e instituições, há, na verdade, uma série de processos formativos que escapam a esses dispositivos, e que indicam, para nós, o que chamamos de formação de professores “em trajetória”, permeada por processos de desterritorialização e reterritorialização, invenções de si, devires (Alencar; Garnica, 2022, Alencar, 2020).
Seguindo – agora em direção à região centroeste brasileira –, destacamos a pesquisa (Both, 2021) que se dedicou a estudar a formação e a atuação docentes num espaço geográfico estruturado a partir do garimpo de diamantes, atualmente formado por quatro municípios de Mato Grosso – Barra do Garças, Araguaiana, Pontal do Araguaia e Torixoréu – e dois de Goiás – Aragarças e Baliza. Ao contrário do que se mostra no Cariri (Alencar, 2020), nesse polo diamantífero não ficam ressaltadas as experiências religiosas e a influência dessas experiências na formação dos professores, ainda que se mantenha a compreensão de que a formação e atuação desses professores do Centroeste também tenha se dado num misto de formalidades e vivências singulares que os levou a se tornarem os professores que são ou foram, mantendo-se, também nesse caso, o alinhamento das experiências humanas das mais diversas naturezas (como ocorre, no caso do Cariri, com a religiosidade popular) com as práticas político-partidárias.
Nesse espaço goiano/mato-grossense, a Educação sempre esteve a serviço de interesses políticos, operando como moeda de troca entre as necessidades da sociedade local (empregos e vagas de estudo, por exemplo) e as aspirações (votos e apoio político) dos grupos dominantes das mais diversas esferas, uma relação clássica no quadro de coronelismo político vigente nos municípios estudados. Conversar com esses professores nos permite perceber, por exemplo, que as escolas da região, pelo menos as mantidas por instituições religiosas, mesmo após a oficialização de uma normativa nacional para o Ensino Primário, guiavam-se de acordo com preceitos próprios, flagrantemente negligenciando as diretrizes oficiais. De modo geral, os depoentes dessa pesquisa, quando nos contando sobre suas atividades escolares cotidianas, ressaltam a falta de disciplina, o questionamento e a subversão da ordem como elementos sempre negativos, colocando-se como radicalmente contrários a qualquer ação que tente subverter ou transgredir o que é imposto. Estando submetidos a um sistema político fechado, controlador e autoritário, os professores locais reproduziam esse estado-de-coisas em suas práticas docentes. Praticamente todos os nossos entrevistados classificam a si próprios como professores rígidos e autoritários, que não permitiam qualquer tipo de indisciplina por parte dos estudantes. Além disso, reforçam, quase sempre como algo positivo, a rigidez aplicada pelas instituições em que estudaram e a de seus próprios pais como matrizes de suas práticas docentes.
É importante notar, como fazem Both e Garnica (2021), que, segundo esses depoimentos, o modo autoritário de manter a disciplina não só era bem recebido pelos estudantes quanto era o que permitia que se firmasse, entre professores e alunos, uma certa atmosfera de cumplicidade, respeito e mesmo admiração. O professor não só exerce o poder de controle: ele legitima esse controle como o principal modo de acesso ao respeito dos alunos e à aprovação do modelo de ensino pelas famílias. Por outro lado, suas ações são legitimadas pelo que politicamente ocorre ao redor, num contexto sócio-político amplamente dominado pelo coronelismo que exige dele, professor, aquela mesma docilidade que ele exige dos seus alunos. Assim, por força das circunstâncias políticas, são dóceis os professores que, por sua vez, exigem docilidade daqueles a quem eles ensinam, compondo um ciclo em que imperam apenas o desejo e as determinações da elite, que exerce, na região, o controle político.
Essa coreografia de um mesmo autoritarismo que atravessa lugares, comunidades e tempos distintos, e que exige, sempre, em contrapartida, a docilidade dos governados e a discordância quanto a qualquer tipo de subversão, pode ser claramente percebida quando, em seus depoimentos, os professores nos falam sobre suas posições quanto a movimentos políticos de classe, sindicais ou não. Essas posições são, via-de-regra, marcadas pela aversão e pelo desejo de pontuar claramente seu afastamento em relação a essas iniciativas, o que parece ser um modo de manifestar seu autocontrole, exercitando aquela mesma disciplina que ele, professor, exige de seus alunos (Both; Garnica, 2021).
As narrativas de professores, em pesquisas guiadas metodologicamente pela História Oral, nos permitem compreensões como essas, que podem implicar um redimensionamento nos estudos sobre as práticas de formação e atuação docente no Brasil, além de viabilizarem o surgimento de questões que usualmente não frequentam o terreno de pesquisa da Educação Matemática, como é o caso da religiosidade popular (Alencar, 2020); do conluio entre práticas docentes e práticas políticas coronelísticas (Both, 2021) ou práticas políticas conservadoras que imprimem uma lentidão nos movimentos de formação docente (Cury, 2011); das questões de gênero na educação matemática (Gomes; Roque; Almeida, 2020; Dassie. Burigo; Gomes, 2020, Santi, 2021; Oliveira, 2021); da realidade de professores que ensinam ou ensinaram matemática por longos anos sem terem o mínimo apreço pela matemática (Both, 2021); de cursos formais de formação docente criados a partir de práticas aprendidas por professores em formação em seus cursos-vagos, em detrimento de modelos oficiais ou de cursos regulares já existentes (Galetti, 2004); do surgimento de um novo padrão de professor e de docência que ocorre a partir da experiência de cursos emergenciais para a formação de professores secundários (Miranda; Garnica, 2019); de como o discurso sobre a circulação de conhecimentos em Educação Matemática, no plano internacional, promove a crença em uma dinâmica segundo a qual nós, do hemisfério sul, meramente aplicamos teorias engendradas pelos pesquisadores, colegas nossos, do norte (Souza, 2016), entre outras tantas questões possíveis.
Assim, nos parece que o uso das narrativas – guiado pela História Oral ou por outros referenciais teórico-metodológicos – se constitui numa abordagem extremamente significativa para a pesquisa sobre a formação de professores no campo da Educação Matemática. As narrativas têm sustentado uma série de práticas de pesquisa – como, por exemplo, os estudos relacionados à investigação sobre a própria prática – e têm sido utilizadas segundo uma gama enorme de visões teóricas e procedimentais que, embora distintas, dialogam ou podem dialogar. De todo modo, julgamos fundamental que, ao valer-se das narrativas, deve-se sempre defender a importância, nas práticas escolares e nas pesquisas educacionais, de não apenas respeitar a diversidade, mas promovê-la, para o que se torna necessário trazer à cena perspectivas sociológicas, políticas, culturais, antropológicas etc., usualmente negligenciadas ou secundarizadas nos estudos e nas políticas públicas sobre a formação docente.
Sob essa mesma perspectiva que defende a pluralidade, a luta contra as desigualdades e a atenção com as exclusões naturalizadas, começam a ser mais frequentes, no Brasil, os estudos guiados por uma perspectiva decolonial – seja nas práticas educativas, seja na pesquisa em Educação e Educação Matemática. Esse é o segundo foco que este artigo pretende trazer para o debate.
2 A dimensão histórica da formação de professoras e professores que ensinam matemática e o lugar dos estudos decoloniais e da História Oral
Mesmo reconhecendo os vários esforços empreendidos em estudos e pesquisas do nosso campo desde a década de 1990, Gomes (2014, p. 14) chamou a atenção sobre como a formação de professores de Matemática veio sendo “frequentemente pensada e debatida de modo muito genérico, como se o professor de Matemática tivesse uma caracterização única e válida em todos os tempos e lugares”. A autora argumentou que, embora sejam relevantes as investigações, no sentido de contribuir para um ensino mais significativo nas escolas, conclamando por posturas reflexivas de professores, estiveram excluídos dessa abordagem, generalista e universalista, dois aspectos fundamentais: um relativo à diversidade dos agentes sociais envolvidos com a docência em matemática, à diversidade dos meios e instâncias de formação decorrentes dos conteúdos e habilitações para o exercício de suas formações, e à colossal diversidade geográfica, histórica, econômica, política e sociocultural do território brasileiro; outro relativo à relevante análise dos homens e mulheres exercendo a docência em Matemática em nosso país durante os tempos, ou seja, a consideração das dimensões históricas nas pesquisas sobre formação de professores.
Gomes (2014) enfatizou ser inadequado e comprometedor, nos trabalhos sobre o tema, desconsiderar aspectos históricos relevantes, tais como a antiga e duradoura marca de exclusão existente no Brasil “colonizado por uma metrópole contra-reformista, que considerava os índios como bárbaros e os escravos negros como propriedade de seus senhores”, e que considerou a educação dispensável para essa grande parcela da população durante séculos; como também a tardia oferta de cursos de formação de professores, iniciada a partir do século XIX, e de um modo muito lento até a década de 1960 (Gomes, 2014, p. 15-16).
Associar a dimensão história à pesquisa sobre formação de professores, como sugeriu Gomes (2014) é, em certa medida, darmos um passo largo para trás, como pesquisadores e acadêmicos, e inverter o papel da academia/universidade como produtora e implementadora de ações segundo parâmetros genéricos, pautados em categorias e circunstâncias eurocêntricas universalizadas. Significa nos colocarmos atentos visando a conhecer as histórias e circunstâncias próprias de agentes educativos nas várias regiões do nosso país, identificar padrões coloniais responsáveis por vários tipos de discriminações e exclusões e criar caminhos de resistência e insurgências que nos direcionem a ações políticas mais legítimas. É, portanto, garantir a possibilidade de problematizar e promover ações no presente, consideradas as multifacetadas dimensões – epistemológicas, socio-culturais, éticas, estéticas, políticas – que essas histórias e circunstâncias trazem junto a elas.
Podemos inferir que essa prática de desconsiderar aspectos singulares da nossa história e cultura no que diz respeito à formação de professores – mas não apenas à formação de professores, convém pontuar –, ressaltada por Gomes (2014), tem uma relação intrínseca com o que Lander (2001) caracterizou como sendo o pensamento colonial/eurocêntrico historicamente hegemônico na América Latina. Segundo esse autor, há uma continuidade básica do pensamento liberal de independência, positivista e conservador do século XIX, bem como da sociologia da modernização e do desenvolvimentismo do século XX, em suas diversas versões, do neoliberalismo e das disciplinas acadêmicas institucionalizadas nas universidades do continente. Para além da diversidade de orientações e da variedade de contextos históricos engendrados pelas especificidades cunhadas a partir das colonizações, o autor argumentou que é possível identificar nessas correntes hegemônicas um substrato colonial que se exprime na leitura dessas sociedades a partir da cosmovisão europeia que visa transformá-las à imagem e semelhança das sociedades do norte que, em sucessivos momentos históricos, têm servido de modelo a ser imitado.
Como ainda observou Lander (2001) e ressaltaram Giraldo e Fernandes (2019), o modo de agir pautado nessa linha de pensamento colonial produz, por um lado, uma acepção linear e unidirecional da história, que progride de um estado mais atrasado (geralmente relacionado a uma visão mítica da natureza bruta) a um estado mais avançado (estampado no ideal da sociedade europeia); e, por outro lado, inviabiliza todas as outras histórias empiricamente coexistentes e anteriores ao processo de colonização do continente americano. Esses processos compõem, segundo esses autores, o mito da modernidade eurocêntrica e a naturalização de epistemologias hegemônicas, que nos são impostas como únicas opções.
Os estudos sobre colonialidade/decolonialidade têm denunciado que, embora a colonização formal e explícita tenha tido um fim com a descolonização das Américas durante os séculos XVIII e XIX, a matriz colonial de poder produziu circunstâncias que operam até os dias atuais nos modos como o trabalho, o conhecimento, a autoridade e as relações intersubjetivas se exprimem e se vinculam entre si, o que é chamado de colonialidade (Quijano, 2007; Mignolo, 2017). Os estudos de Walsh (2008) indicam quatro eixos articulados através dos quais a colonialidade pode operar – a colonialidade do poder (hierarquização de corpos e legitimação da exploração de recursos naturais e humanos, exercidas a partir de um ideal de progresso, justiça e liberdade), a colonialidade do saber (imposição de epistemologias e racionalidades hegemônicas, referenciadas em culturas brancas e europeias, como única forma de conhecimento, e na desconsideração de sabedorias outras), a colonialidade do ser (de dimensão ontológica, e que se manifesta através da inferiorização e da subalternização do sujeito e de suas capacidades cognitivas), e a colonialidade da vida e da natureza (ruptura promovida entre os mundos biofísicos, humanos e espirituais por uma dicotomia imposta entre natureza e sociedade).
Essas operações, por sua vez, resultaram/resultam em discriminação social e são sistematizadas de várias maneiras, dependendo dos contextos históricos, sociais e geográficos específicos, espraiando-se pelas discussões raciais, étnicas ou nacionais (Quijano, 2007), bem como quando vem à cena a questão de gênero (Lugones, 2008). Em decorrência da colonialidade colocada em prática desde o século XVI, emergirá a decolonialidade como forma de (re)existir, sustentar e (re)construir meios de luta permanentes com vistas a identificar e visibilizar sabedorias outras, em um confronto contínuo que exige o engendramento de processos que visam à desvinculação com o eurocentrismo (Walsh, 2008).
Para Mignolo (2017), a decolonialidade é um projeto tanto político quanto epistêmico, com vistas a um pensar e fazer decolonial, que problematiza as histórias de poder procedentes da Europa, com o objetivo de libertar o campo do conhecimento e as relações interculturais. No meio acadêmico, tal projeto se manifesta em abordagens analíticas sobre a distinção de classes, os estudos étnicos, os estudos de gênero, estudos regionais e das práticas socioeconômicas, estéticas e políticas, buscando opor-se aos pilares da civilização ocidental moderna.
Por sua vez, seja como prática metodológica ou como projeto acadêmico e político na construção de conhecimento voltada(o) à escuta de vozes dissonantes em uma sociedade hegemonicamente eurocêntrica, a História Oral tem sido um dispositivo na “viagem entre mundos” (Lugones, 2008) (o acadêmico universitário e as diferentes comunidades internas e externas a ele), que suscita a escuta, a intermediação, o registro e o ressoar de vozes plurais que denunciam e anunciam de que modo as relações de poder atravessam os cotidianos (esses não tidos como recorrência e reprodução passiva das estruturas), afetando corpos e experiências cheias de vida e de alteridades (Rovai; Valente; Vasconcelos, 2022). Nas pesquisas em Educação Matemática, a História Oral tem produzido presenças, favorecendo a inclusão de pessoas muitas vezes invisibilizadas/os social e academicamente, expressando uma “preocupação epistemológica mais democrática e sensível em não outrizá-las/os ou objetificá-las/os” (Rovai; Valente; Vasconcelos, 2022, p. 8).
Vemos, assim, a aproximação entre a perspectiva decolonial e a História Oral como um caminho significativo para os estudos sobre formação de professores de Matemática na medida em que ela pode contribuir, entre outras coisas, para re-situar as pesquisas e os referenciais teóricos exaustivamente mobilizados nos últimos tempos em nossa área, e produzir mudanças tanto analíticas quanto práticas, implicadas e afetadas por demandas sociais e identitárias, presentes nas vozes e histórias de sujeitos improváveis. Essa aproximação pode amparar problematizações acerca da colonialidade das práticas acadêmico-científicas, permitindo uma abertura a outros referenciais e uma ressignificação dos referenciais já mobilizados, de modo a atender perspectivas próprias, geográfica e culturalmente situadas, tradicionalmente tratadas de modo homogêneo porque engendradas pela matriz colonial.
Apresentamos a seguir alguns movimentos de incorporação da perspectiva decolonial à pesquisa no campo da Educação Matemática, em especial, àquela relacionada à formação de professores.
2.1 Sobre os estudos decoloniais na Educação Matemática
Os estudos decoloniais ganharam espaço na Educação Matemática, haja vista, por exemplo, a organização de dois dossiês temáticos que buscaram uma aproximação da área com esses estudos. O primeiro deles foi publicado na Revista Perspectivas da Educação Matemática (Vol. 12/ n.º 30), da UFMS, em 2019, organizado por Victor Giraldo e Filipe dos Santos Fernandes. Esse dossiê foi produto das discussões ocorridas no GT 19: Educação Matemática, durante a 39ª Reunião Anual da Associação Nacional de Pesquisa e Pós-Graduação em Educação (ANPEd). A articulação de Giraldo e Fernandes (2019) dos onze textos que subsidiaram as discussões do GT, deu-se partir de uma postura decolonial para debater a formação de professoras e professores que ensinam matemática, possibilitando discussões sobre vestígios e efeitos de colonialidade manifestados em processos de formação e práticas docentes, indicando também, segundo os autores, relações de poder, regulações e movimentos de resistência em espaços e tempos em que esses processos se deram ou vêm se dando. A discussão evidenciou, ao mesmo tempo, em que medida as instituições educacionais, sobretudo a universidade, em seu papel de detentora e difusora do conhecimento, têm servido como instrumentos de um “projeto de poder hegemônico de padrões coloniais”; bem como apontou para a importância de “construção de posicionamentos, posturas e horizontes de resistência, de transgressão, de intervenção e de insurgência no contexto da formação de professoras e professores que ensinam matemática” (Giraldo; Fernandes, 2019, p. 467), vinculadas a um giro epistêmico decolonial que inverta o protagonismo das narrativas hegemônicas.
No sentido de denunciar e romper com a subordinação da Universidade à “superioridade e aos padrões culturais, sociais, políticos, territoriais, raciais e de gênero e sexualidade da modernidade euro-eua-cêntrica”, Giraldo e Fernandes (2019, p. 476) defendem que:
[...] a proposição de uma identidade docente, ainda que inicialmente construída por meio de uma ação política e jurídica empreendida pela conversão da Universidade em lócus de sua constituição, se consolidou e se reproduziu em meio a processos que procuraram converter as experiências de dominação epistemológica e ontológica em ideais de progresso, justiça e liberdade. A decisão sobre os diferentes aspectos da formação de professoras e professores ficou, então, a cargo de um grupo dedicado a introjetar uma narrativa que justificasse a si próprio como único e necessário; de modo que outros grupos, à margem, tiveram e ainda têm pouca ou nenhuma expressão na construção desses cenários de formação, permanecendo subalternizados na qualificação de seus sujeitos, saberes e práticas nos mais diversos processos formativos.
Ainda segundo esses autores, os textos discutidos no GT e publicados no dossiê evidenciam possibilidades de “construção de resistências individuais e coletivas junto às macro e micropolíticas que cerceiam a formação de professoras e professores, especialmente as políticas de identidade” (Giraldo; Fernandes, 2019, p. 476). Ao propor coletivos docentes como caminhos de formação, ativismo e resistência; e ao reivindicar a participação de outros sujeitos (indígenas e professores da educação básica, por exemplo) em processos formativos institucionais que promovam reconfigurações, os estudos apresentados em tais textos desconstroem a narrativa hegemônica acerca das identidades docentes, apontando a viabilidade de outros espaços dedicados a uma insubordinação face aos ideários e discursos pedagógicos correntes que atravessam e assolam o ser professora ou professor.
Sobre os coletivos docentes como caminhos de formação, os autores alertam que os movimentos de resistência só poderão se estabelecer, de fato, em coletivos docentes, se isso se der sob uma perspectiva político-cultural. Segundo eles, em nossa área, a perspectiva essencialmente cooperativa tem estado presente, mas, nela, o foco se mantém nas contribuições que a vivência no grupo traz para o desenvolvimento dos saberes docentes de cada participante individualmente. A justificativa dos autores é a de que o trabalho em coletivos docentes conduzido segundo uma perspectiva político-cultural possibilita a cada participante uma compreensão de si próprio e de suas ações, opções e atitudes, como sujeito e como profissional, em contextos ampliados, envolvendo culturas profissionais docentes sob uma dimensão política que venha situar essas ações, opções e atitudes nos papeis sociais próprios de seu ofício. Nesse sentido, argumentam:
[...] os caminhos de resistência podem ultrapassar a centralidade em cada professora ou professor, em cada sala de aula, para a conversão da docência como ação coletiva e politicamente engajada. Pensamos que somente a partir do entendimento de suas ações, escolhas e posturas em contextos políticos e sociais mais amplos, professoras e professores podem (re)existir como profissionais, fortalecer suas identidades e tomar para si a primeira pessoa das narrativas sobre seus próprios processos formativos e sobre suas práticas, bem como a autoridade sobre seus próprios saberes – em um movimento decolonial (Giraldo; Fernandes, 2019, p. 481)
Além dos processos de constituição das identidades docentes, as ações metodológicas ligadas ao ensino, sejam as que ocorrem em espaços voltados à formação de professores, sejam as que ocorrem na escola, caracterizam-se como um outro caminho de resistência identificado nos trabalhos de pesquisas analisados e articulados por esses dois autores . Em ambos os casos, segundo eles, “estão em jogo [...] tentativas de decolonização desses espaços pela promoção do diálogo de saberes em sua coexistência no tempo e no espaço” (Giraldo; Fernandes, 2019, p. 484).
As articulações sobre caminhos de resistência possíveis potencializam um tensionamento nos espaços e modelos institucionalizados de formação de professoras e professores sob uma dimensão político-cultural: “de quem é, para quem é e em que está referenciada a formação?”. Tais tensionamentos podem promover espaços de resistência e potência por parte dos atores dos espaços educacionais institucionalizados, sobretudo aqueles de grupos sociais subalternizados ou historicamente excluídos (negros, indígenas, camponeses etc), que reivindicam “a primeira pessoa das narrativas que produzem sentidos para esses espaços” (Giraldo; Fernandes, 2019, p. 489).
Um último caminho de resistência identificado e discutido pelos autores que articularam os textos do GT é aquele que sugere a matemática como desobediência político epistêmica, articulando os caminhos referentes às políticas de identidade e às metodologias.
Os caminhos de resistência vinculados às políticas de identidade e às metodologias indicam, de modo mais ou menos contundente, segundo os autores, a emergência de serem revisitados os sentidos ético, estético e/ou político que transpassam a formação de professoras e professores que ensinam matemática. Para eles, isso implica um desafio na medida em que os sentidos atribuídos à formação estão ligados, de modo indissociável, aos sentidos atribuídos à matemática que, por sua vez, constituem o próprio padrão colonial de poder. Em suas palavras, “os sentidos ético, estético e/ou político que constituem a matemática são perpassados por traços do projeto colonial, definindo-a como elemento de extrema importância para conformação da colonialidade” (Giraldo; Ferandes, 2019, p. 491).
Assim, se, como professores, somos resultado e agentes dessas marcas que se manifestam em uma matemática a serviço do projeto colonial, então também habitamos o lado obscuro da modernidade (Mignolo, 2017), sendo, muitas vezes, perpetuadores dessa escuridão. A contraposição à subalternação da profissão docente à matemática implica, por sua vez, um sentido político para a formação de professores e professoras que, primeiramente, considere seriamente a resistência em relação à primazia da apresentação naturalizada da matemática, que a situa como condição do progresso e como antecedente à vida e à natureza. A partir desta, outras duas frentes para um caminho de resistência se abrem: uma que luta contra a colonialidade do poder, em uma hierarquização dos corpos que designa a matemática como algo advindo de uma inspiração isolada de pessoas com talento inato; e uma segunda, que confronta a colonialidade da vida e da natureza, responsável por colocar a matemática como instrumento mantenedor de dualismos como natureza/cultura, mente/corpo, abstrato/concreto, racional/emocional, entre outros. Nesse sentido, e seguindo as indicações de Matos e Quintaneiro (2019, p. 571), tais caminhos de resistência implicam “uma exposição problematizada das matemática(s) que evidencie os múltiplos processos históricos, sociais e culturais de produção do conhecimento matemático, que determinaram a maneira como a(s) matemática(s) estão estabelecidas hoje”, sendo tais conhecimentos matemáticos, acrescentaríamos, produzidos por matemáticos ou não.
Para além desses direcionamentos para a criação de caminhos resistência associados a sentidos ético, estético e/ou político que transpassam a formação de professoras e professores que ensinam matemática, os autores identificaram, a partir de alguns dos textos debatidos no GT, proposições para um sentido ético que supere a moral, transformando conhecimentos adquiridos em instrumentos que favoreçam a produção de invenções sem causas, de escuta e afirmação de diferenças. Quanto a essa produção de uma outra política de formação de professores, os autores sugerem, com Santos e Corrêa (2019) e Walsh (2013), que não é possível suplantar a colonialidade apenas no âmbito cultural, é necessário problematizar as “condições ontológicas e existenciais; incidir e intervir em; interromper, transgredir, desencaixar e transformar de maneira que se superem ou se desfaçam as categorias identitárias em suas mais variadas dimensões” (Matos; Quintaneiro, 2019, p. 682), e estendem o convite já feito por Cammarota, Rotondo e Clareto (2019) para interromper, pela matemática, “o bom funcionamento da ordem da distribuição dos corpos em comunidade” e entrar no jogo da verdade como autores, e não como reprodutores, ocupando e fortalecendo-se junto a regras arbitrárias, praticando a liberdade, inventando matemáticas e mundos, concedendo um estilo à vida, questionando “Que matemática se constitui neste lugar? Que vida se afirma com esta matemática?” (Matos; Quintaneiro, 2019, p. 682).
O segundo dossiê temático focalizando os estudos decoloniais circulou na Revista Internacional de Pesquisa em Educação Matemática (RIPEM) , em 2021. O número intitulado “Decolonialidade e Educação Matemática” foi organizado por Victor Giraldo e constituiu-se visando a promover um espaço de compartilhamento de investigações e estudos teóricos ou empíricos sobre o tema (Giraldo, 2021). Na chamada para esse dossiê temático enfatizou-se que as perspectivas decoloniais não se constituem como referenciais teóricos ou tendências de pesquisa do campo, mas como posturas epistêmicas e políticas com o potencial de situar posicionamentos teóricos e delinear caminhos de pesquisa.
Sugeria-se, ainda, que as articulações e abordagens propostas nos textos não necessariamente precisavam estar explicitamente alinhadas com perspectivas de(s)coloniais, sendo esperadas problematizações envolvendo aspectos de saberes, práticas, subjetividades, intersubjetividades, corporeidades, relações raciais, sociais ou de gênero associados a projetos de poder de referência hegemônica. No editorial desse dossiê temático, Giraldo (2021) enfatiza a importância de estarmos atentos, como educadores matemáticos pesquisadores, aos aspectos que se referem à nossa história, como enfatizamos anteriormente, ainda neste texto, ao mobilizar o estudo de Gomes (2014), sobre a pesquisa relativa à formação de professores de matemática brasileiras. Ele afirma:
Porque não há nada nestes territórios que esteja fora de sua história, nada que possa se manter neutro em suas narrativas ou isento de seus carregos coloniais [...] alegações de neutralidade e isenção são, quase sempre, disfarces para estratégias de ocupação de nichos políticos e de manutenção de privilégios. Então, onde situamos e que papel construímos para a Educação Matemática nestes territórios? Que posições assumimos como pesquisadoras e pesquisadores em Educação Matemática, professoras e professores que ensinam matemática? (Giraldo, 2021, p.04).
Os apontamentos dos textos que constituíram esse dossiê temático, segundo Giraldo (2021), permitiram reflexões na direção da questão que deu nome ao seu editorial: o que queremos dizer por decolonizar currículos) em matemática? Nessa direção, o autor aponta indicações para a construção de uma Educação Matemática sobre o avesso do mesmo lugar, ou seja, “uma Educação Matemática dos que não são ouvidos, dos que estão lá, mas não são vistos” (p. 05). Para tanto, reconhece como objetivo fundamental do dossiê a indicação da potência das perspectivas decoloniais no alargamento dos sentidos convencionais em Educação Matemática, em diálogo com perspectivas teóricas e epistemológicas já consolidadas do campo.
3 Palavras finais
Nesse texto, a tentativa de aproximar os estudos sobre História Oral – ou, de modo mais geral, os estudos sobre narrativas, desenvolvidos sob certo viés – daqueles sobre decolonialidade, tem a pretensão de contribuir para um projeto de firmar vidas invisibilizadas ou não anunciadas no campo da Educação Matemática. Nossa pauta inclui a possibilidade de promover a reverberação de histórias de educação matemática de professores e estudantes apartados dos territórios que as circunstâncias tornaram consagrados e que o poder naturalizou como próprios para alguns grupos, justificando assim a exclusão de muitas vozes, suas práticas de matemática e de educação, escolarizadas e não escolarizadas, nas mais diversas realidades e contextos brasileiros.
Não se afirma que a opção pela História Oral, já em princípio, é um projeto decolonial por compartilharem, ambos – História Oral e estudos decoloniais –, preceitos que defendem a diferença e a necessidade de não apenas respeitar a diferença, a diversidade e a pluralidade, mas de promovê-las. Não se trata também de considerar a História Oral como uma abordagem meramente teórica e/ou procedimental, voltada só a compreender o que está posto, ou como uma estratégia apartada de uma perspectiva de vida, que se propõe apenas a fundamentar ou desenvolver uma ou outra prática ou campo de investigação. Nem todo projeto em História Oral é, por si, decolonial, do mesmo modo como também não estão naturalmente vinculadas a uma proposta decolonial as iniciativas de pesquisa ou intervenção que produzem e operam com narrativas, de modo geral. Se os estudos sobre decolonialidade propõem uma perspectiva de vida que atravessa as práticas investigação e o ambiente acadêmico, a defesa e a promoção da História Oral, como a pensamos, sustentam propósito aparentado, tendo como eixo fundamental a importância da subjetividade e os modos próprios de cada um ver, analisar, situar-se e interferir num mundo dinâmico, sempre em mutação. Não se trata de analisar a criação ou o desenvolvimento de instituições, de materiais e práticas. Não se trata de apenas conhecer e compreender as justificativas, as ações, os modos de enfrentamento do mundo, as imposições, os cerceamentos, os embates: trata-se de conhecer, registrar, operar e compreender o modo como as pessoas, seres situados espaço-temporalmente, vivendo em comunidade, criam e sustentam instituições, elaboram materiais, justificam e desenvolvem suas práticas, enfrentam o mundo, promovem ou se afastam de embates, aceitam ou recusam cerceamentos, inventam estratégias de ação e de controle, promovem ou limitam liberdades. Nesse sentido, sob nossa perspectiva, a História Oral que propomos e praticamos tem sido uma forma de executar um projeto cuja perspectiva é decolonial.
Em Silva e Souza (2023), ao discutirmos sobre injustiças e desobediências epistêmicas no trabalho com narrativas na formação de professores, enfatizamos a ação contínua do Grupo História Oral e Educação Matemática - Ghoem, interessada em performances não essencializadas que delineiam o que chamamos de Educação Matemática. Entre a procura inquieta por respostas às questões dos/das pesquisadores/as e a a tentativa de discernir sob quais modos uma comunidade, estabelecida como interlocutora, indaga/experiencia o mundo, optamos pela posição política de permanecer com questões cuja potência para o que se procura parece ser maior do que a da possibilidade ou tentativa de meramente dar respostas (Silva; Souza, 2023, p. 51):
Que vozes são ouvidas para além das categorizações sugeridas pelas teorias (muitas delas europeias) com as quais dialogamos? Enquanto buscamos enquadrar vidas dentro dessas categorias, quais processos de exclusão, injustiça e invisibilidade operamos? O que nossas pesquisas têm produzido (de Matemática, Educação Matemática, corpos, políticas...) para além de relatórios e títulos?
De nossa parte, continuamos nossas jornadas pelas vias da filosofia da carne e osso, buscando inscrever vidas intra-históricas na Educação Matemática.
Referências
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Datas de Publicação
-
Publicação nesta coleção
07 Abr 2025 -
Data do Fascículo
2025
Histórico
-
Recebido
29 Nov 2023 -
Aceito
16 Ago 2024
