Resumo
Este artigo tem como propósito elencar alguns elementos do processo histórico que remetem às possíveis situações que desencadearam o declínio que culminou no desaparecimento das matemáticas mistas e consequentemente, contribuiu para o surgimento e ascensão das matemáticas aplicadas. Por meio das fontes históricas desta pesquisa qualitativa, realizamos uma breve explanação de como eram concebidas as matemáticas mistas por meio das classificações matemáticas de Adrian Van Roomen (1561-1615), Francis Bacon (1561-1626), Diderot (1713-1784) e Jean le Rond d'Alembert (1717-1783). No decorrer da investigação histórica aqui apresentada, verificamos que as ciências físico-matemáticas foram introduzidas como uma forma de contornar as barreiras filosóficas, impostas pela metafísica quanto à abordagem de tópicos do mundo físico. Concluímos que, apesar de não haver um marco final das matemáticas mistas e um marco inicial das matemáticas aplicadas, as críticas formuladas pelo filósofo Immanuel Kant (1724-1804) em relação aos conhecimentos puros, a criação do campo da Mecânica Racional e o surgimento das matemáticas aplicadas, podem ter contribuído no processo de declínio das matemáticas mistas.
Palavras-chave:
Matemática Mista; Matemática Aplicada; Matemática Pura; Filosofia da Matemática; História da Matemática
Abstract
This article aims to outline some elements of the historical process of what were the possible situations that triggered the decline that culminated in the disappearance of mixed mathematics, and consequently, contributed to the emergence and rise of applied mathematics. Through the historical sources of this qualitative research, we provide a brief explanation of how mixed mathematics were conceived through the mathematical classifications of Adrian Van Roomen (1561-1615), Francis Bacon (1561-1626), Diderot (1713-1784) and Jean le Rond d'Alembert (1717- 1783). In the course of the historical investigation presented here, we verified that the physico-mathematics sciences were introduced as a way of getting around the philosophical barriers imposed by metaphysics regarding the approach to topics in the physical world. We conclude that - although there is no final landmark for mixed mathematics and a starting point for applied mathematics - the criticisms formulated by the philosopher Immanuel Kant (1724-1804) in relation to pure knowledge, the creation of the field of Rational Mechanics and the emergence of mathematics applied, may have contributed to the decline of mixed mathematics.
Keywords:
Mixed mathematics; Applied mathematics; Pure mathematics; Philosophy of mathematics; History of mathematics
1 Introdução
A pesquisa de Godoy (2019) aponta que não há consenso entre os historiadores da matemática e das ciências sobre o que exatamente provocou o abandono das matemáticas mistas em favor das matemáticas aplicadas. Alguns estudiosos sugerem que, nesse período de transição, não houve um evento ou momento específico que pudesse ser considerado o marco inicial da matemática aplicada ou que representasse o fim definitivo da matemática mista. Contudo, Godoy (2019) indica três elementos que contribuíram para o processo de desaparecimento das matemáticas mistas: as críticas formuladas pelo filósofo Immanuel Kant (1724-1804) em relação aos conhecimentos puros, a criação do campo da Mecânica Racional e o surgimento das matemáticas aplicadas.
Os resultados apresentados neste artigo derivam parcialmente de uma Tese de Doutorado elaborada por um integrante do Grupo de Pesquisa em História da Matemática (GPHM)1. Este artigo tem o intuito de articular aspectos filosóficos, classificações do conhecimento e redefinições institucionais no campo da matemática entre os séculos XVII e XIX com o propósito de apresentar um breve panorama de elementos que contribuíram para o declínio2 das matemáticas mistas e, consequentemente, resultaram no processo de ascensão das matemáticas aplicadas.
Com base nos estudos do historiador da matemática alemão Hans Wussing (1927-2011), Baroni e Nobre (1999) propuseram algumas categorias para classificar as produções em História da Matemática no Brasil: 1) História de problemas e conceitos; 2) Inter-relações entre Matemática, Ciências Naturais e Tecnologia; 3) Biografias; 4) Organizações institucionais; 5) A Matemática como parte da cultura humana; 6) Influências sociais no desenvolvimento da Matemática; 7) A Matemática como componente da formação geral do indivíduo; 8) Análise histórica e crítica de fontes literárias. Vale notar que as pesquisas frequentemente não se restringem a uma única categoria, podendo abranger elementos de mais de um grupo. Com base na classificação proposta por Baroni e Nobre (1999), este artigo se enquadra, sobretudo, na categoria das "inter-relações entre Matemática, Ciências Naturais e Tecnologia".
Esta pesquisa adota uma abordagem qualitativa, e para a coleta dos dados apresentados neste artigo, inicialmente realizamos uma pesquisa bibliográfica, que “permite ao pesquisador conhecer o que já foi estudado sobre o assunto” (Fonseca, 2002, p. 31). Além dessa etapa, recorremos à análise documental, pois, conforme Sá Silva, Almeida e Guindani (2009) ressaltam, essa técnica envolve a aplicação de métodos e procedimentos para a coleta, interpretação e análise de diferentes tipos de documentos. Nesse sentido, optamos por utilizar essa abordagem, pois, conforme apontado por Lüdke e André (1986), a análise documental pode ser uma ferramenta valiosa para a investigação de dados qualitativos, seja complementando informações obtidas por outros métodos, seja revelando novas perspectivas sobre um tema ou problema. Deste modo, todos os documentos utilizados neste trabalho serão encontrados nas fontes de pesquisas históricas. Segundo Barros, fonte histórica se trata de:
É tudo aquilo que, produzido pelo homem ou trazendo vestígios de sua interferência, pode nos proporcionar um acesso à compreensão do passado humano. Neste sentido, são fontes históricas tanto os já tradicionais documentos textuais (crônicas, memórias, registros cartoriais, processos criminais, cartas legislativas, obras de literatura, correspondências públicas e privadas e tantos mais) como também quaisquer outros que possam nos fornecer um testemunho ou um discurso proveniente do passado humano, da realidade um dia vivida que se apresenta como relevante para o presente do historiador (Barros, 2012, p.130).
Neste artigo, utilizaremos fontes históricas que possibilitem compreender o contexto e o processo histórico do declínio das matemáticas mistas e a ascensão das matemáticas aplicadas. Além disso, no decorrer da historiografia desta pesquisa, conforme indicado por Bloch (2002), o historiador deve ter um cuidado especial ao lidar com o passado, do qual não tem mais acesso direto, e que ele busca reconstruir por meio de pequenos detalhes muitas vezes ocultos nos registros escritos. Assim, ao longo do processo de elaboração deste trabalho, pretendemos seguir as evidências conforme elas se apresentarem.
2 As classificações dos conhecimentos matemáticos e as matemáticas mistas
A classificação dos conhecimentos humanos no mundo ocidental foi um tema estudado por diversos pensadores desde a Antiguidade. Ao longo da história, essas classificações variaram com base em diferentes critérios, “ora por seu objeto, ora por sua finalidade, ora por seu produto, ora pela maneira de ser cognoscível” (Bromberg, 2011, p.184). De maneira geral, na Antiguidade, os saberes que mais tarde seriam chamados de científicos estavam profundamente ligados à filosofia, sendo impensável naquela época conceber uma distinção entre as artes e as ciências sem considerar a filosofia.
No período medieval, a classificação dos conhecimentos humanos na Europa girava em torno da Teologia e com base nas chamadas sete artes liberais, que foram estabelecidas como o fundamento básico para o aprendizado no continente. A organização mais comum dessas artes era feita em dois grupos:
O Trivium (ou Artes Sermocinales ou Triviales) e o Quadrivium (ou Artes Reales ou Physicae, também Quadriviales). O Trivium, que significa ‘o cruzamento de três caminhos’, é constituído da Gramática, Retórica e Dialética (ou Lógica). Tais artes são consideradas elementares. Os assuntos matemáticos, Aritmética, Geometria, Astronomia e Música, compõem o Quadrivium que significa ‘o cruzamento de quatro caminhos’. As artes do Quadrivium são consideradas intermediárias, tendo como proposta a aquisição de um nível mais alto de conhecimento na Filosofia e na Teologia (Bertato; D’ottaviano, 2007, p. 505).
O Renascimento herdou as práticas medievais, incluindo o modelo das artes liberais. Além dessas, diversas artes mecânicas começaram a ser incorporadas. Darnton destaca que “reordenar o trivium e o quadrivium, as artes liberais e mecânicas, os studia humanitatis3 e todos os ramos do antigo currículo” (Darnton, 1986, p.250), essa questão foi considerada relevante, pois gerou intensos debates sobre o método e a organização do conhecimento. O autor acrescenta que, devido a essas tentativas de classificação, no século XVI:
surgiu uma tendência a comprimir o conhecimento em esquemas, usualmente diagramas tipográficos, que ilustravam os ramos e as bifurcações de disciplinas de acordo com o princípio da lógica ramista. Um impulso diagramático – uma tendência a mapear, delinear e ‘especializar’ segmentos do conhecimento (Darnton, 1986, p. 250).
Por meio dessa breve explanação, podemos observar que a classificação e o estudo dos conhecimentos humanos, incluindo os conhecimentos matemáticos, podem ter ocupado um papel significativo nas discussões entre os estudiosos do passado. Ressaltando que o objetivo deste artigo é concentrar-se no processo histórico que resultou na transição das matemáticas mistas para as matemáticas aplicadas, é pertinente, primeiramente, destacar o surgimento das matemáticas mistas4.
O estudo de Oliveira, Silva e Godoy (2021) revela que uma das primeiras5 ocorrências documentadas do termo matemáticas mistas apareceu na obra Universae Mathesis Idea6, publicada em 1602 pelo matemático holandês Adrian van Roomen (1561-1615), ao classificar uma parte das disciplinas matemáticas da época:
Pelo censo das MATEmáticas são compreendidas tanto aquelas que são verdadeiramente Matemáticas, quanto aquelas que podem ser ditas como que matemáticas. A MATEMÁTICA verdadeira é tanto a Principal ou primária, quanto a que serve ou Mecânica. A matemática principal é aquela que está segura da simples especulação da quantidade; ela é dupla, pura e impura, ou seja, mista (Oliveira; Silva; Godoy, 2021, p. 67, grifo nosso).
Por meio desta classificação matemática, vemos que as matemáticas mistas são introduzidas como uma subdivisão da Matemática Principal. Quanto ao objeto de estudo das matemáticas mistas, van Roomen considera que:
O objeto das [matemáticas] mistas é aquilo que pode ser quantificado, e ele é ou eterno ou corruptível. Eterno ou incorruptível é o mundo e suas partes integrantes, sobre as quais [versam] a Cosmografia, a Uranografia, a Geografia, a Astronomia e a Cronologia. Os objetos corruptíveis são as substâncias, sobre as quais [tratam] a Geodesia, a Óptica, a Eutimetria7 e a Música. (Oliveira; Silva; Godoy, 2021, p. 67).
É importante mencionar que o conjunto das disciplinas matemáticas que se desenvolveram naquele período, mostra uma pluralidade8 de conhecimentos matemáticos da época e podemos notar ainda que há ciências e disciplinas que, apesar de lidar com elementos da matemática – é o caso, por exemplo, da Astronomia, Cosmografia, Geografia, entre outras – atualmente constituem áreas de conhecimentos que não reconhecemos hoje como parte das matemáticas, mas que naquele período, ou seja, pelo menos na segunda metade do século XVI até meados do século XVIII, eram entendidas como tais.
2.1 Francis Bacon e as matemáticas mistas
Um estudioso cujas produções estão amplamente vinculadas à Filosofia das Ciências e que fez importantes contribuições para a classificação dos conhecimentos humanos foi o filósofo inglês Francis Bacon (1561-1626). Bacon procurou reorganizar todo o corpo de conhecimentos a partir de uma visão crítica ao Escolasticismo9, corrente dominante em sua época. Consideramos as obras The Advancement of Learning10 (O Progresso do Conhecimento)11, publicada em 1605, e De Dignitate et Augmentis Scientiarum (Sobre a Dignidade e o Avanço das Ciências), publicada12 em 1623, por apresentarem propostas de classificação dos conhecimentos humanos.
Na filosofia baconiana, Deus é a causa primeira, a perfeição. Contudo, as manifestações divinas na Terra se dão por meio de causas segundas, tais como por meio dos conhecimentos dados aos humanos:
O conhecimento humano é como as águas, as quais umas descem do alto e outras brotam de baixo; de um lado está informado pela luz da natureza, de outro inspirado pela revelação divina. A luz da natureza consiste nas ideias da mente e nas notícias dos sentidos; porque o conhecimento que o homem recebe do ensino é cumulativo e não original, como a água, que além de sua própria fonte se nutre de outros mananciais e correntezas (Bacon, 2007, p. 135-136).
Assim, o saber divino é distribuído de forma igualitária no espírito humano entre as “(...) três partes do entendimento humano, que é a sede do saber: a História à sua Memória, a Poesia à sua Imaginação e a Filosofia à sua Razão” (Bacon, 2007, p. 112).
O filósofo organiza as áreas do conhecimento em uma estrutura quase hierárquica, oferecendo uma classificação dos saberes científicos de sua época. Bacon posicionou as ciências matemáticas no domínio da Razão, dentro da Filosofia, como parte da Filosofia Natural, que integra as Ciências Naturais e se ramifica até a Metafísica. Nota-se que ele dividiu as ciências matemáticas em puras e mistas.
Bacon define a Matemática Pura da seguinte maneira: “A Matemática Pura pertencem aquelas ciências que lidam com a Quantidade Determinada, separada de todo axioma da filosofia natural; e estas ciências são duas, Geometria e Aritmética, a primeira ocupando-se da Quantidade contínua, e a segunda da Quantidade dividida” (Bacon, 2007, p.155). No que se refere à Matemática Mista, o filósofo define que13:
A Mista tem por objeto certos axiomas ou partes da filosofia natural, e considera a Quantidade determinada auxiliar e incidente a eles. Pois muitas partes da natureza não podem ser desveladas com sutileza suficiente, nem expostas com clareza suficiente, nem acomodadas ao uso com facilidade suficiente, se não for com o auxílio e intervenção da Matemática; deste tipo são a Perspectiva, a Música, a Astronomia, a Cosmografia, a Arquitetura, a Engenharia e diversas outras (Bacon, 2007, p.155).
O artigo de Godoy, Teixeira e Leite (2021) mostra que Francis Bacon, em sua obra de 1605, afirmava que as matemáticas puras não apresentavam deficiências e situava a Matemática, embora ligada à Metafísica, no mesmo nível da Física e da Metafísica. No entanto, em sua publicação de 1623, Bacon revisou sua visão, passando a criticar as matemáticas puras pela falta de novos avanços na Geometria desde a Antiguidade, além de destacar a necessidade de métodos mais eficientes para simplificar certos cálculos na Aritmética e o desenvolvimento de novos campos na Álgebra, que ele considerava incompleta.
Na obra publicada em 1605, Godoy, Teixeira e Leite (2021) relatam que Bacon não realiza críticas nem tece elogios às matemáticas mistas nos mesmos moldes das observações dirigidas às matemáticas puras. O filósofo apenas observa que, à medida que a natureza fosse sendo progressivamente desvelada pelo ser humano, surgiriam, forçosamente, novos tipos de matemáticas mistas. Já na publicação de 1623, ele mantém as previsões anteriormente formuladas e preserva a definição atribuída a esse campo do saber, destacando que os axiomas das matemáticas mistas correspondem, na verdade, a aspectos da Física, nos quais as quantidades são consideradas de acordo com cada parte da natureza, exigindo, para sua determinação, o suporte e a intervenção das ciências matemáticas:
Quanto ao mais, em matemática mista não encontro nenhuma parte deficiente, nesse momento. Mas previno que haverá no futuro, muitas outras, se os homens não ficarem ociosos. Sem dúvida, como a cada dia a física alcançará crescimento cada vez maior e criará novos axiomas, ela necessitará muitas vezes novos auxílios da matemática, e finalmente a matemática mista se tornará cada vez mais numerosa (Bacon, 1638, p. 262-263, tradução nossa)14.
Em relação à Matemática como um todo, Bacon (1638) passou a considerá-la uma ciência auxiliar, afirmando que deveria ser vista como um apêndice, serva da Física, e auxiliar da Metafísica, da Mecânica e da Magia. Diante dessas mudanças de perspectiva, observamos que o filósofo apresentou visões distintas sobre a Matemática ao longo do tempo, o que pode nos levar a pergunta: afinal, o que é a Matemática para Francis Bacon?
Entre a publicação de sua primeira obra e a segunda, decorreu um período de aproximadamente vinte anos, marcado pela efervescência da Revolução Científica. Foi nesse intervalo que ocorreram praticamente todas as formulações de novas concepções sobre os fenômenos naturais de Johannes Kepler (1571-1630) e Galileu Galilei (1564-1642). Kawajiri (1979) sugere que a mudança de perspectiva de Bacon em relação às matemáticas pode estar diretamente relacionada ao surgimento das ciências físico-matemáticas.
2.2 A introdução das ciências físico-matemáticas e a Encyclopédie
Durante o Iluminismo, com as inúmeras descobertas sobre os fenômenos da natureza, Godoy (2019) relata uma crescente rejeição de algumas concepções da Filosofia Natural Aristotélica. Nesse contexto, ele aponta que, por volta de meados do século XVII, um novo termo começou a surgir nas obras de matemáticos que defendiam a ideia de que a matemática poderia fornecer respostas para as questões físicas da natureza: as ciências físico-matemáticas. Schubring (1981) destaca que essa nova fase da matemática foi marcada por um paradoxo: como era possível manter a noção de ciência pura em uma época fortemente conectada ao desenvolvimento de máquinas? Em outras palavras, como os fenômenos do mundo físico poderiam ser explicados e/ou desenvolvidos por meio de tópicos metafísicos?
As ciências físico-matemáticas se expandiram consideravelmente no século XVII, investigando as interações simultâneas entre as questões físicas e matemáticas relacionadas à matéria e às causas naturais. Essa ciência promovia o uso da matemática como uma ferramenta essencial para a geração de conhecimento físico. Dear (1995) destaca que a físico-matemática desempenhou um importante papel na elevação do status das ciências matemáticas, estabelecendo uma parceria com a física sem romper a divisão disciplinar histórica entre as duas áreas, uma vez que a matemática era tradicionalmente classificada dentro do ramo da metafísica.
Dear (1995) observa que, a partir da década de 1630, o termo físico-matemática começou a aparecer com mais frequência nas publicações relacionadas às disciplinas pertencentes às matemáticas mistas. Já na década de 1660, Isaac Barrow (1630-1677) atribuiu um significado bastante útil à expressão em sua obra Mathematical Lectures15. Barrow seguiu a distinção tradicional entre matemática pura e mista, mas acrescentou que, no caso das matemáticas mistas, elas se referem aos acidentes físicos, em vez de tratar da natureza da quantidade em si. Algumas pessoas, segundo ele, passaram a chamar uma de suas subdivisões de físico-matemáticas. Essa distinção entre matemática mista e ciências físico-matemáticas se tornou ainda mais evidente na nova classificação dos conhecimentos humanos apresentada por Diderot e d'Alembert na Encyclopédie16 (Godoy, 2019).
Em relação aos conhecimentos matemáticos, Diderot e d'Alembert (2015a) argumentam que nem todas as áreas da Matemática17 possuem um objeto igualmente simples. Segundo eles, muitas dessas áreas não apresentam veracidade baseada em princípios necessariamente verdadeiros e auto evidentes, uma vez que várias se fundamentam em princípios físicos. No entanto, a Álgebra, a Geometria e a Mecânica se destacam, pois são baseadas em evidências, tratando do cálculo de grandezas e das propriedades gerais da extensão.
As quantidades ou grandezas podem ser definidas como aquilo que pode aumentar ou diminuir. Além disso, a quantidade pode ser considerada isoladamente, independentemente dos indivíduos reais ou abstratos que conhecemos. Seus efeitos, por sua vez, podem ser investigados com base em causas reais ou hipotéticas - mantendo as ciências matemáticas ramificadas à Metafísica - o que justifica a divisão da matemática em Matemática Pura, Matemática Mista e Físico-Matemáticas.
A Matemática Pura foi subdividida em Aritmética, que se divide em Aritmética Numérica e Álgebra (incluindo Álgebra Elementar e Infinitesimal, com elementos de Cálculo Diferencial e Integral), e Geometria, que abrange Geometria Elementar e Transcendental (relacionada à Teoria das Curvas). Diderot e d'Alembert (2015a) consideram que a Matemática Pura tem como objeto a quantidade abstrata, que pode ser numerável ou extensa. A quantidade abstrata numerável passou a ser o foco da Aritmética, enquanto a quantidade extensa tornou-se o objeto de estudo da Geometria.
A Matemática Mista foi dividida em Mecânica (subdividida em Estática e Dinâmica), Astronomia Geométrica (subdividida em Cosmografia, Cronologia e Gnomônica), Óptica (subdividida em Catóptrica, Dióptrica e Perspectiva), Acústica, Pneumática e Teoria das Probabilidades (Arte de Conjecturar). Nas matemáticas mistas, a quantidade é considerada de acordo com as suas divisões ou subdivisões:
A quantidade considerada nos corpos enquanto móveis ou tendendo para o movimento é o objeto da Mecânica18. [...] A quantidade considerada nos movimentos dos corpos celestes dá a Astronomia geométrica19. [...] A quantidade considerada na luz dá a Ótica; considerada no movimento da luz, os diferentes ramos da Ótica20. [...] A quantidade considerada no som, em sua intensidade, movimento, graus, reflexões, velocidade etc. dá a Acústica. A quantidade considerada no ar, seu peso, movimento, condensação, rarefação etc., dá a Pneumática. A quantidade considerada na possibilidade dos acontecimentos dá a arte de conjeturar, de onde nasce a análise dos jogos de azar (Diderot; D´alembert, 2015a, p.276-277).
Para obter os mais diversos e profundos conhecimentos sobre as propriedades dos corpos, Diderot e d'Alembert (2015a) consideram que é necessário mergulhar por completo no "mundo corporal". Foi mais ou menos dessa forma que surgiram todas as ciências chamadas Físico-Matemáticas. Ainda é dito que as ciências físico-matemáticas são tão numerosas quanto os ramos das matemáticas mistas, sendo assim denominadas as ciências que lidam com "as partes da Física em que se reúnem a observação e a experiência ao cálculo matemático, aplicando-se o cálculo aos fenômenos da natureza" (Diderot; D'alembert, 2015b, p. 51). Em outras palavras, essas ciências são generalizações de fenômenos do mundo físico com o auxílio de cálculos matemáticos, incorporando principalmente elementos das matemáticas puras para obter resultados. Por fim, fica uma pergunta: será que a introdução das ciências físico-matemáticas não foi o primeiro sinal de que as matemáticas mistas se tornariam obsoletas?
3 O desuso das matemáticas mistas e o surgimento das matemáticas aplicadas
As ciências físico-matemáticas permanecem como um campo de pesquisa na atualidade21, embora com pressupostos e significados diferentes dos que tinham quando foram introduzidas no século XVII. No entanto, a expressão matemática mista não é mais empregada para se referir aos diversos campos abarcados pelas ciências matemáticas. Muitos dos tópicos que antes pertenciam ao domínio da matemática agora são reconhecidos em outras áreas do conhecimento, como as ciências mecânicas, a óptica e a acústica, que hoje são exploradas pela Física.
O significado de conceitos como matemática mista teve mudanças ao longo da história e é relativo, mesmo dentro de um mesmo período, devido às diversas concepções filosóficas e matemáticas (re)formuladas. Um exemplo simples é a comparação entre a classificação das ciências proposta por Francis Bacon e aquela apresentada por Diderot e d'Alembert. Observa-se que a Arquitetura e a Engenharia faziam parte da classificação de Bacon; no entanto, na classificação posterior, essas disciplinas não estavam mais incluídas nas matemáticas mistas, em função das novas compreensões filosóficas que surgiram. Retomando o paradoxo relatado por Schubring (1981), podemos considerar, por exemplo, a Engenharia: como uma edificação pode ser considerada parte de uma ciência metafísica, se podemos construi-la, tocá-la ou enxergá-la de forma concreta?
No final do século XVIII e, especialmente, em meados do século XIX, o uso do termo matemática mista começou a diminuir, sendo gradualmente substituído pelo conceito de matemática aplicada. Assim, destacamos três fatores que, segundo Godoy (2019), contribuíram para o declínio das matemáticas mistas: o primeiro foi a filosofia de Immanuel Kant (1724-1804), que, ao criticar a razão pura, influenciou diretamente a metafísica e os conhecimentos considerados puros. O segundo fator foi, de certa forma, uma consequência do primeiro: diversos elementos das matemáticas mistas foram reconsiderados, questionando-se se ainda deveriam permanecer nessa categoria. Um exemplo disso é a mecânica racional, que passou a ser vista como aplicada ao mundo físico, deixando de pertencer às matemáticas mistas e sendo incorporada à Física. Por fim, o terceiro fator foi o surgimento das matemáticas aplicadas, que acabaram ocupando o espaço anteriormente reservado às matemáticas mistas.
3.1 Kant e a crítica da razão pura
Os historiadores Hacking (2014), Siegmund-Schultze (2013) e Brown (1991) consideram que a crítica kantiana aos conhecimentos puros teve implicações sobre como eram concebidas as ciências metafísicas. Uma vez que as matemáticas estavam ramificadas a essas ciências, tais implicações contribuíram para que mais e mais teorias das matemáticas puras fossem desenvolvidas com vistas à sua aplicação a uma quantidade crescente de dados obtidos empiricamente. Consequentemente, isso acabou por relegar a necessidade das chamadas matemáticas mistas.. Deste modo, Godoy (2019) apoia-se na obra Kritik der reinen Vernunft22 publicada originalmente no ano de 1781, para buscar elementos que ajudassem na compreensão de como a crítica ao racionalismo, desempenhou um papel fundamental na mudança do cenário que era enxergado a matemática pura, e consequentemente o que isso afetou no papel das matemáticas mistas.
Na perspectiva kantiana, todo conhecimento humano tem origem na experiência. Kant questiona: se não fosse pela experiência, o que mais poderia ativar a capacidade humana de compreender os objetos e seus significados? Somente por meio da experiência o ser humano é capaz de gerar suas próprias representações e aplicar sua faculdade intelectual, comparando, ligando ou separando os objetos, transformando as impressões brutas em conhecimento. Dessa forma, “na ordem do tempo, nenhum conhecimento precede em nós a experiência e é com esta que todo o conhecimento tem o seu início” (Kant, 2001, p.62).
No entanto, o fato de todo conhecimento começar com a experiência não implica que todo conhecimento derive dela. O conhecimento pode ser um composto entre o que recebemos das impressões sensíveis e o que nossa própria capacidade cognitiva produz por si mesma. Assim, Kant (2001) define que, se houver um conhecimento independente da experiência e de todas as impressões sensoriais, ele é denominado a priori, enquanto o conhecimento empírico, que tem sua origem na experiência, é classificado como a posteriori.
Nessa obra, Kant (2001) critica a razão pura aplicada às ciências, mas aqui nos limitaremos às ciências matemáticas. No caso da matemática, ele argumenta que a atividade matemática envolve tanto a construção quanto a experiência:
A matemática e a física são os dois conhecimentos teóricos da razão que devem determinar a priori o seu objeto, a primeira de uma maneira totalmente pura e a segunda, pelo menos, parcialmente pura, mas também por imperativo de outras formas de conhecimento que não as da razão (Kant, 2001, p.41-42).
Godoy (2019) aponta que na perspectiva kantiana, a matemática pode ser concebida como um exemplo de até onde se pode avançar no conhecimento a priori, como uma ciência cujo campo abrange a certeza, indo além dos limites da experiência. Em outras palavras, a matemática estabelece uma universalidade rigorosa, com a segurança de que não será refutada pela experiência:
A matemática fornece o exemplo mais brilhante de uma razão pura que se estende com êxito por si mesma, sem o auxílio da experiência. Os exemplos são contagiosos, especialmente para esta faculdade, que se sente naturalmente lisonjeada por ter noutros casos a mesma felicidade que teve num caso particular. Por isso, a razão pura espera poder alargar-se, no uso transcendental, com a mesma felicidade e solidez que conseguiu no uso matemático, sobretudo se aplicar aí o mesmo método, que neste caso foi de tão evidente utilidade (Kant, 2001, p.591).
Na metafísica – lembrando que a matemática estava classificada dentro desta ciência – a capacidade de conhecimento a priori jamais ultrapassaria os limites da experiência; contudo, essa afirmação não faz sentido para Kant. A prova disso pode ser verificada quando consideramos o conhecimento racional por meio da comprovação experimental, uma vez que esse conhecimento “apenas se referir a fenômenos e não às coisas em si que, embora em si mesmas reais, se mantêm para nós incognoscíveis” (Kant, 2001, p.48), ou seja, impossível de se conhecer. Para que os conhecimentos se tornem cognoscíveis, devem ser reconhecidos pela forma a priori da intuição externa e interna, ou seja, a noção de espaço e tempo, respectivamente, que o sujeito transcendente23 carrega consigo como atributo da faculdade mental.
Godoy (2019) aponta que o espaço e o tempo não representam coisas em si mesmas; referem-se apenas aos objetos enquanto considerados como fenômenos. Dessa forma, o conhecimento pode ser adquirido por meio da experiência, seja em relação aos objetos em si, seja por meio de nossa intuição sensível desses objetos. Portanto, o tempo e o espaço, quando analisados em conjunto, constituem as formas puras de toda intuição, tornando-se, por exemplo, fontes de obtenção dos conhecimentos das matemáticas puras: é precisamente essa síntese sucessiva da imaginação, por meio da criação de figuras, que fundamenta as grandezas extensivas (quanta), isto é, a geometria; e quando o objeto é abstraído de sua natureza e representado por uma notação que expressa todas as grandezas em geral - os números - a matemática também constrói a pura grandeza (quantitas), caracterizando-se pela aritmética. Deste modo, devido à possibilidade de elementos das matemáticas puras serem capazes de retratar e explicar o mundo real desde fenômenos da natureza a fatos do cotidiano, dentro da perspectiva kantiana, podemos nos indagar “Como é possível conceber a matemática pura como um conhecimento puro?”, ou seja, enfatizando a aplicabilidade da matemática a elementos tanto a priori e a posteriori, derivados da experiência.
No caso da metafísica, Kant (2001) questiona sua capacidade de representar o mundo real, mas pondera que:
a metafísica, embora não seja real como ciência, pelo menos existe como disposição natural (metaphysica naturalis), pois a razão humana, impelida por exigências próprias, que não pela simples vaidade de saber muito, prossegue irresistivelmente a sua marcha para esses problemas, que não podem ser solucionados pelo uso empírico da razão nem por princípios extraídos da experiência. Assim, em todos os homens e desde que neles a razão ascende à especulação, houve sempre e continuará a haver uma metafísica (Kant, 2001, p.76-77).
Uma vez que, se a matemática, a física e o conhecimento empírico são fundamentais para atender às necessidades da humanidade, a partir da leitura de Kant (2001) podemos levantar a seguinte questão: como é possível a metafísica enquanto ciência? Em síntese, Kant aponta que a metafísica deveria assumir um papel mais especulativo na mediação do conhecimento racional dos conceitos, sendo utilizada, sobretudo, para prevenir erros nas situações experienciadas no mundo físico, em vez de apenas ampliar o escopo das ciências puras. Dessa forma, Godoy (2019) conclui que as críticas de Kant aos conhecimentos puros resultaram em uma flexibilização filosófica, permitindo que as teorias da matemática pura fossem cada vez mais desenvolvidas e aplicadas a dados obtidos de maneira física e empírica.
3.2 A mecânica racional
Durante os séculos XVII e XVIII, a mecânica e suas ramificações faziam parte das matemáticas mistas, inicialmente na classificação de Bacon, em 1605, e posteriormente na Encyclopédie de Diderot e d'Alembert, em 1751. Segundo Diderot e d'Alembert (2015b), o principal objetivo da mecânica era determinar as leis fundamentais do movimento, fossem elas decorrentes de causas naturais ou ações humanas. Como essas leis do movimento eram compreendidas como conceitos matemáticos, isso pode explicar por que a mecânica foi classificada como uma ciência matemática.
Pulte (2013, p. 682) argumenta que o papel da mecânica nas ciências matemáticas não se limitava a ser uma "matemática aplicada à ciência", mas sim uma ciência propriamente dita, essencialmente relacionada a entidades matemáticas. Em outras palavras, a mecânica era considerada uma parte da matemática organizada de forma dedutiva. Além disso, Godoy (2019) menciona que, devido a razões internas e externas, a compreensão dos conceitos de mecânica começou a se transformar drasticamente no final do século XVIII, especialmente ao longo do século XIX.
Tais razões externas levaram ao entendimento de que a mecânica deixou de ser parte das ciências matemáticas e passou a integrar o conjunto das ciências físicas. Essa mudança ocorreu principalmente em função das alterações nas relações entre as visões a priori e a posteriori da álgebra, geometria e mecânica, influenciadas pelos defensores da filosofia kantiana.
Entre as razões internas que podem ter contribuído para a migração das ciências mecânicas da matemática estão os resultados apresentados na obra Méchanique Analytique de Joseph Louis Lagrange (1736-1813), publicada em 1788. Essa obra se destacou pelo fato de que os princípios mecânicos nela desenvolvidos passaram a ser tratados como axiomas formais da ciência, em vez de serem considerados meramente como leis da natureza. Segundo Pulte (1998), o objetivo de Lagrange24 era reduzir a teoria mecânica e os problemas relacionados a essa ciência a fórmulas gerais. No entanto, essas formulações não poderiam ser vistas como teorias abstratas de matemáticas mistas ou ciências físico-matemáticas, mas sim como teorias que expressavam a crença de que as matemáticas eram intrínsecas às estruturas da própria natureza. Assim, a mecânica passou a ser entendida como um novo ramo de análise, fundamentado na convicção de que o cálculo seria o método adequado para descobrir as leis da natureza e suas relações lógicas.
De acordo com Godoy (2019), estes fatores parecem ter contribuído para que no decorrer do século XIX, um processo de retração da evidência matemática e da certeza ocorresse, e a geometria física, bem como as ciências físico-matemáticas e as matemáticas mistas, fossem afetadas por esse processo. O desenvolvimento da mecânica racional, que passou a ser vista como uma ciência genuinamente física, com a matemática desempenhando um papel mais instrumental, aplicada aos resultados dessa nova ciência, pode ter sido um dos elementos que levaram à reconsideração da relevância das matemáticas mistas no contexto dos novos avanços do mundo moderno.
3.3 As primeiras aparições das matemáticas aplicadas
No estudo de Godoy (2019), é mencionado que o historiador Siegmund-Schultze (2013) realizou uma pesquisa para identificar a primeira ocorrência do termo matemática aplicada em diferentes idiomas. Independentemente do idioma, o resultado apontou que a primeira aparição do termo foi na página 5 da obra Prolegomena25 de Johann Friedrich Weidler (1691-1755), publicada em 1718. Nessa obra, Weidler faz a seguinte afirmação: "Mathesis applicata, quam nonnulli mixta appellant"26.
Siegmund-Schultze (2013) também investigou a primeira ocorrência do termo matemática aplicada em outras línguas. No caso do alemão, o termo apareceu pela primeira vez nos títulos de duas publicações: Leipziger Magazin für reine und angewandte Mathematik27 (1786–1789) e Archiv der reinen und angewandte Mathematik28 (1794–1800), ambas editadas pelo matemático Karl Friedrich Hindenburg (1741-1808). Godoy (2019) acrescenta que, quando o Journal für die reine und angewandte Mathematik29 (conhecido simplesmente como Crelle) foi fundado na Alemanha em 1826, sob a direção do matemático August Leopold Crelle (1780-1855), desde o início de suas atividades, um dos periódicos mais influentes da Alemanha e da Europa já utilizava o termo matemática aplicada em vez de matemática mista.
De acordo com Godoy (2019), no cenário francês, a expressão matemática mista permaneceu em uso durante o século XVIII, influenciada pela publicação da Encyclopédie de Diderot e d'Alembert. Conforme Siegmund-Schultze (2013), o Marquês Jean Antoine Nicolas de Condorcet (1743-1794) – que foi discípulo matemático de d'Alembert – foi responsável pela primeira aparição do termo matemática aplicada no idioma francês. Atuando como secretário da Academia Real desde a década de 1770, ele sugeriu, em um de seus relatórios sobre a criação de futuros centros de estudo, chamados Instituts, a contratação de “Um professor de matemática pura. Um professor de matemática aplicada, que compreenderá em suas aulas os elementos da mecânica, da óptica, da astronomia e das aplicações elementares mais úteis do cálculo e da geometria às ciências físicas, morais e políticas”. (Condorcet, 1792, citado por Siegmund-Schultze, p. 663, 2013, tradução nossa).
Em uma publicação póstuma em 1794 intitulada Esquisse d'un tableau historique des progrès de l'esprit humain30, Condorcet sugere uma nova classificação dos conhecimentos humanos, e consequentemente os campos relacionados à matemática. Godoy (2019) relata que nesta nova categorização do conhecimento matemático, embora Condorcet (1794) não apresente uma grande distinção da definição tradicional de matemática como uma ciência abstrata, é interessante notar que ele introduziu outro critério de divisão: objetos de investigação preocupados com fenômenos fora da mente; dessa maneira, tornou-se possível agrupar fenômenos sociais e naturais dentro da mesma categoria.
A classificação de Condorcet (1794) dividiu a matemática em Mathématiques proprement dites (Matemática propriamente dita)31 e Mathématiques phisique (Matemática física)32 . A categoria Mathématiques proprement dites, é subdivida em Ciência da Grandeza (composta por Ciência da Grandeza em geral e Ciência dos números)33 e a Arte de Medição (englobada por Ciência da Extensão, Repouso e Movimento)34, enquanto o grupo das Mathématiques phisique, é ramificado em Ciência da Natureza (formada por Medida da natureza em repouso, Leis da Natureza e Explicações de fenômenos e conjunturas e causas)35 e Ciência da Natureza Empregada (constituída por Ciências das relações morais ou políticas e Ciência do uso dos corpos). Essa classificação não utiliza os termos matemática mista nem matemática aplicada. No entanto, as ideias apresentadas tendem a se aproximar mais das aplicações da matemática. Conforme Brown (1991), a partir de 1875, as teorias matemáticas deixaram de ser mistas com experiências e passaram a ser aplicadas de forma matemática às mesmas.
Segundo Godoy (2019), é relevante destacar que os termos matemática aplicada e matemáticas mistas coexistiram até o final do século XIX, quando o primeiro passou a ganhar ampla aceitação entre a comunidade matemática, substituindo gradualmente o segundo. No entanto, estabelecer um consenso sobre a definição precisa de matemáticas aplicadas não é um processo simples:
Enquanto a noção de matemática mista ainda estava em uso no início do século, a noção de matemática aplicada logo assumiu. No entanto, não é uma tarefa fácil obter uma ideia precisa do significado do século XIX dessa noção. Na maioria dos trabalhos de pesquisa feitos por matemáticos, é tomado como uma noção autoexplicativa, e em enciclopédias e trabalhos similares sobre matemática não há concordância compartilhada sobre o significado da palavra e o modo como a matemática aplicada difere da matemática pura (Lützen, 2013, p.688, tradução nossa).
Ferreirós (2013) concorda com Lützen (2013) que definir36 o conceito de matemática aplicada no século XIX é uma tarefa complexa. Ele acrescenta que David Hilbert (1862-1943) considerava números, conjuntos, funções e estruturas como objetos puros da matemática, independentes do mundo real. Contudo, o significado de abstrato37 também era um tema em discussão na época. No século XIX, prevalecia a noção de que existiam partes abstratas da matemática, atribuídas ao campo das matemáticas puras, e tipos específicos de grandezas, como o tempo e o movimento, que eram caracterizados como pertencentes às matemáticas mistas. No entanto, com a ascensão gradual das matemáticas aplicadas, essas acabaram por substituir as matemáticas mistas, já que "a matemática aplicada passou a ser cada vez mais vista como parte de uma disciplina matemática, enquanto a matemática mista tinha sido algo entre a matemática e outras ciências” (Siegmund-Schultze, 2013, p. 663, tradução nossa) - ciências estas, que muitas já não eram mais entendidas como matemáticas.
4 Considerações Finais
No contexto da razão filosófica, a matemática mista não era concebida simplesmente como uma aplicação da matemática pura aos fenômenos naturais. Tanto a matemática pura quanto a mista eram consideradas partes integrantes da Filosofia Natural e estavam vinculadas à Metafísica, entendida como o estudo das relações fixas e imutáveis. Sob essa ótica, a matemática mantinha-se inapta a fornecer explicações em termos materiais ou causais. Hacking (2014), no entanto, sugere que também pode ter existido uma concepção segundo a qual as relações tratadas pela matemática pura eram aquelas acessadas exclusivamente pelo pensamento, sem qualquer envolvimento com a experiência empírica. Nesse sentido, a matemática assumiria um caráter misto sempre que dependesse de premissas provenientes da observação. Assim, enquanto a matemática pura permaneceria livre de elementos estranhos à razão, a matemática mista incorporaria componentes oriundos da experiência.
Com base nessas concepções, este artigo retomou o debate historiográfico acerca do declínio das matemáticas mistas e da ascensão das matemáticas aplicadas, aprofundando questões já sinalizadas por Godoy (2019), agora com foco na articulação entre três vetores históricos que, ao operarem conjuntamente, fundamentaram a reconfiguração do conhecimento matemático entre os séculos XVII e XIX e contribuíram para o esvaziamento gradual da noção de matemáticas mistas:
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a crítica de Immanuel Kant aos conhecimentos puros, que impactou diretamente a concepção de metafísica da época, resultando em novas percepções sobre as possibilidades de aplicação dos tópicos das matemáticas puras a dados empíricos;
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a reformulação da mecânica clássica, que questionou o pertencimento das ciências mecânicas ao domínio matemático, culminando na criação da mecânica racional e em sua incorporação progressiva ao campo da Física, contribuindo para o esvaziamento da quantidade de áreas do conhecimento que compunham as matemáticas mistas;
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o surgimento gradual das matemáticas aplicadas, que reforçou a tendência de que os tópicos matemáticos estavam cada vez mais relacionados à aplicação de técnicas nas ciências naturais.
Adicionalmente, a análise da Encyclopédie permitiu compreender que a introdução das ciências físico-matemáticas pode ter antecipado o esvaziamento progressivo da noção de matemática mista, ao constituir um indício de inflexão epistemológica, ao integrar o cálculo matemático à observação sistemática dos fenômenos naturais. Tal articulação entre razão e experiência contribuiu para redefinir o lugar da matemática no interior das ciências, conferindo-lhe um papel instrumental cada vez mais associado à prática científica. Nesse sentido, este artigo indica a necessidade de aprofundar estudos que investiguem a criação das ciências físico-matemáticas - ora articuladas à metafísica, ora vinculadas à prática experimental - como uma perspectiva teórica relevante para a compreensão mais refinada das tensões classificatórias que marcaram a reorganização dos conhecimentos matemáticos entre os séculos XVII e XIX.
A racionalização formal da mecânica, expressa na obra Méchanique Analytique de Lagrange, revelou-se central para a migração da mecânica do domínio das matemáticas mistas para o das ciências físicas. A matematização das leis do movimento não apenas conferiu autonomia científica à mecânica, como também reposicionou seus fundamentos teóricos sob um novo paradigma, que contradizia sua tradicional filiação às matemáticas mistas, orientado por princípios de generalidade e abstração formal. Estudos que se proponham a examinar a circulação, recepção e apropriação do Méchanique Analytique em distintos contextos, podem contribuir para uma compreensão mais profunda das transformações que marcaram a modernidade científica.
Por fim, a emergência e consolidação do campo das matemáticas aplicadas no século XIX configurou-se não como mera continuidade, mas como substituição funcional das matemáticas mistas, no âmbito de uma nova racionalidade científica marcada pela especialização e pela aplicação técnica. Nesse sentido, torna-se evidente a necessidade de novas investigações que examinem a institucionalização da matemática aplicada em diferentes contextos nacionais, suas conexões com os projetos de modernização científica e tecnológica, bem como as tensões epistemológicas e curriculares geradas por esse processo. Tais estudos podem lançar luz sobre os modos diversos pelos quais a matemática se reconfigurou como saber aplicado ao longo da ciência moderna e contemporânea.
Dessa forma, este artigo abordou elementos históricos que contribuíram para a transição entre dois regimes de pensamento: um fundamentado em vínculos especulativos entre a matemática e a filosofia natural, e outro orientado pela operacionalidade, abstração formal e aplicabilidade científica. Sustenta-se, nesse sentido, que o desaparecimento das matemáticas mistas não constitui um evento isolado, mas sim um processo gradual de redefinição epistemológica, institucional e classificatória da matemática no interior das ciências modernas. Tal compreensão demanda a superação de abordagens lineares ou teleológicas, abrindo espaço para investigações voltadas às tensões históricas que moldaram as transformações do pensamento matemático ao longo do tempo.
Agradecimentos
Este trabalho foi financiado por fundos nacionais advindos do Conselho Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico (CNPq) por meio de uma bolsa de doutorado atribuída ao primeiro autor. Processo: 141432/2016-0.
Referências
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-
Disponibilidade de dados:
Os dados gerados ou analisados durante este estudo estão incluídos neste artigo publicado.
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1
O GPHM, fundado em 1995, é composto por professores do Departamento de Matemática, bem como por estudantes da Graduação em Matemática e do Programa de Pós-Graduação em Educação Matemática da UNESP – Rio Claro. Este grupo desempenhou um papel fundamental na consolidação da História da Matemática no Brasil, uma vez que seus membros e ex-membros participaram ativamente da criação do Seminário Nacional de História da Matemática (SNHM), cuja primeira edição ocorreu em 1995, em Recife-PE, e contribuíram para a fundação da Sociedade Brasileira de História da Matemática (SBHMat) em 1999 (Baroni; Teixeira; Nobre, 2011).
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2
É fundamental destacar que, ao abordar o declínio da matemática mista, estamos nos referindo essencialmente ao esvaziamento desse campo da matemática, resultante da migração das ciências que o compunham para outras áreas do conhecimento, bem como ao desuso dessa nomenclatura.
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3
Estudo da humanidade.
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4
Para mais informações sobre as origens e inspirações do termo matemáticas mistas, consulte Godoy, Teixeira e Leite (2021).
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5
Kawajiri (1979), Brown (1991), Hacking (2014) e outros historiadores afirmam que Francis Bacon (1561-1626) foi o primeiro a utilizar o termo matemáticas mistas em 1605. No entanto, Godoy (2019) aponta que Adrian van Roomen já havia empregado essa expressão em 1602. Ainda assim, devido à ausência de evidências e referências conclusivas, não se pode afirmar com certeza que van Roomen tenha sido o criador do termo matemática mista. No entanto, é seguro concluir que Bacon não foi o autor original da expressão.
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6
O título completo da obra em questão é Universae mathesis idea qua mathematicae universim sumptae natura, praestantia, usus et distributio brevissime proponuntur, que pode ser traduzido para o português como “Ideia de todo o conhecimento através do qual são propostas a natureza, a excelência e a distribuição da matemática tomada do geral".
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7
Eutimetria é uma área da Geometria que se dedica ao estudo das linhas.
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8
Entende-se que “não se trata apenas na pluralidade no sentido de que cada pessoa compreende um objeto de maneira diferente, mas antes no sentido de que se podia conceber a matemática não como um objeto, uma disciplina, mas como um conjunto de disciplinas relacionadas, as matemáticas, no plural” (Gonçalves, 2012, p, p. 33).
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9
“Termo que significa originariamente doutrina da escola e que designa os ensinamentos de filosofia e teologia ministrados nas escolas eclesiásticas e universidades na Europa durante o período medieval. sobretudo entre os sécs. IX e XVII. A escolástica caracteriza-se principalmente pela tentativa de conciliar os dogmas da fé cristã e as verdades reveladas nas Sagradas Escrituras com as doutrinas filosóficas clássicas. destacando-se o platonismo e o aristotelismo”. (Japiassú; Marcondes, 2001, p, p.65).
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No período de Bacon, o latim era a língua predominante para textos científicos e filosóficos. Leitão (2004) observa que era raro encontrar obras publicadas no idioma vernáculo. Embora Bacon já tivesse publicado textos em latim, sua intenção com o projeto Grande Instauração era ir além, promovendo uma reforma no conhecimento e no avanço das ciências, visando combater questões teológicas e ideais da época. Seu objetivo era resolver problemas do Estado inglês e atender à demanda mercantil por meio do "domínio do conhecimento e do aprimoramento de técnicas, através da colaboração entre diferentes participantes, unindo a filosofia à técnica" (Shirayama, 2016, p, p. 43). Dessa forma, pode-se especular que a decisão de “publicar seu livro na língua vernácula poderia se relacionar com a ideia de disseminar sua filosofia. Afinal, ele tinha como premissa o envolvimento desde os artesãos, que até então eram pouco valorizados pelas instituições ligadas à ciência, até os políticos”. (Shirayama, 2016, p, p.45).
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11
Para o estudo da obra The Advancement of Learning, de 1605, utilizamos como base a versão traduzida para o português a partir do original. Portanto, ao longo deste trabalho, as referências a Bacon (2007) correspondem a essa tradução da obra de 1605.
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12
Para o estudo da obra Sobre a Dignidade e o Avanço das Ciências, utilizamos a edição reimpressa em 1638, baseada na publicação original em latim de 1623. Desse modo, as referências feitas a Bacon (1638) correspondem, na verdade, ao conteúdo da obra de 1623.
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13
Hacking (2014) observa que as relações estudadas na matemática pura são aquelas analisadas exclusivamente pelo pensamento, sem recorrer a experimentos. Assim, a matemática seria considerada mista quando exigisse premissas derivadas da experiência. Nessa perspectiva, a Matemática Pura não incorpora nenhum elemento externo à razão, enquanto a Matemática Mista inclui aspectos empíricos, conhecidos apenas por meio da experiência.
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Caeterum in mathematicis mixtis integras aliquas portiones desideratas iam non repetio, sed multas in posterum praedico, si Homines non ferientur. Prout enim physica, majora indies incrementa capiet, & nova axiomata educet, eo mathematicae operâ novâ, in multis indigebit, & plures demum fient mathematicae mixtae.
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15
Aulas de Matemática.
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Conforme Godoy e Leite (2018), a Encyclopédie foi originalmente publicada entre 1751 e 1765, em 17 volumes. Jean le Rond d'Alembert (1717-1783) e Denis Diderot (1713-1784) atuaram como editores da obra até 1759, quando Diderot passou a contar com o auxílio de Louis de Jacourt (1704-1779) e Paul-Henry Thiry, Barão D’Holbach (1723-1789), na edição. A Encyclopédie teve a participação de grandes pensadores da época na tarefa de classificar o conhecimento, envolvendo aproximadamente 140 colaboradores.
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17
D'Alembert foi o responsável pelo verbete sobre Matemática na Encyclopédie e a definiu como: “ciência que tem por objeto as propriedades da grandeza enquanto calculáveis ou mensuráveis. Matemáticas, no plural, é hoje em dia o termo mais utilizado do que Matemática no singular. Quase não se diz mais Matemática, prefere-se Matemáticas. A opinião mais comum deriva a palavra matemática de uma palavra grega que significa ciência, pois, com efeito, pode-se considerar as Matemáticas como a ciência por excelência, pois contêm os únicos conhecimentos certos concedidos às nossas luzes naturais; dizemos às nossas luzes naturais, para que não se incluam aqui as verdades da fé e os dogmas teológicos. [...] No fundo, pouco importa qual origem se dê a essa palavra, desde que se tenha uma ideia justa do que são as Matemáticas”. (Diderot; D´alembert, 2015b, p.114).
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18
“A Mecânica tem dois ramos, a Estática e a Dinâmica. A Estática tem por objeto a quantidade considerada nos corpos em equilíbrio e tendendo apenas ao movimento. A Dinâmica tem por objeto a quantidade considerada nos corpos atualmente em movimento. A Estática e a Dinâmica têm cada uma duas partes. A Estática divide-se em Estática propriamente dita, que tem por objeto a quantidade considerada nos corpos sólidos em equilíbrio e apenas tendendo ao movimento, e Hidrostática, que tem por objeto a quantidade considerada nos corpos fluidos em equilíbrio e apenas tendendo ao movimento. A Dinâmica divide-se em Dinâmica propriamente dita, que tem por objeto a quantidade considerada nos corpos sólidos atualmente em movimento, e em Hidrodinâmica, que tem por objeto a quantidade considerada nos corpos fluidos atualmente em movimento. Mas, se considerarmos a quantidade nas águas atualmente movidas, a Hidrodinâmica toma então o nome de Hidráulica. Poder-se-ia referir a navegação à Hidrodinâmica, e a balística, ou o jato das bombas, à Mecânica” (Diderot; D´alembert, 2015a, p. 276).
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19
“E, por conseguinte, a Cosmografia ou descrição do Universo, que se divide em Uranografia ou descrição do céu, em Hidrografia ou descrição das águas, e em Geografia, de onde, ainda, a Cronologia e a Gnomônica ou arte de construir quadrantes” (Diderot; D´alembert, 2015a, p.276).
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20
“Luz movida em linha reta, Ótica propriamente dita; luz refletida num único e mesmo meio, Catóptrica; luz partida passando de um meio a outro, Dióptrica. É à Ótica que se deve referir a perspectiva” (Diderot; D´alembert, 2015a, p.276).
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21
Diversos programas e cursos da área de física e alguns na área de matemática aplicada se utilizam do termo Física-matemática nos dias de hoje como disciplinas e áreas de pesquisa no âmbito da Graduação e Pós-graduação.
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22
Crítica da Razão Pura. Neste artigo, foi considerado uma versão traduzida em português, Kant (2001).
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23
Refere-se ao sujeito que possui as condições que tornam a experiência possível.
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24
É importante destacar que as ideias de Lagrange não foram imediatamente aceitas sem questionamentos. A noção de aplicabilidade que ele propôs enfrentou contestações, especialmente por parte daqueles que defendiam a visão kantiana. Para uma análise mais detalhada, consulte Godoy (2019) e Pulte (1998). Da mesma forma, a crítica de Immanuel Kant aos conhecimentos puros encontrou resistência por parte de filósofos e cientistas que defendiam outras abordagens epistemológicas.
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25
Prolegômenos.
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26
Matemática aplicada, que não dependem das mistas.
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27
Revista de Leipzig de matemática pura e aplicada. Em português, a cidade de Leipzig pode ser denotada por Lípsia.
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28
Arquivo de matemática pura e aplicada.
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29
Jornal (Periódico) de Matemática Pura e Aplicada.
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30
Esboço de um quadro histórico do progresso da mente humana.
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31
A categoria Mathématiques proprement dites se dedicava à investigação teórica de entidades abstraídas pela mente, sem depender de fenômenos externos. Isso incluía disciplinas como geometria, aritmética e as teorias de análise, aplicadas ao cálculo ou à aproximação de quantidades.
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A divisão Mathématiques phisique referia-se aos campos resultantes da aplicação da matemática aos "fenômenos observáveis", ou seja, às ciências naturais e a áreas relacionadas à vida e à sociedade humana.
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Science de la grandeur; Science de la grandeur en général; Science des nombres.
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Art de mesurer: Science de l´étendue; repos; moviment.
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Science de la nature: mesure de la nature en repos; loix de la nature; explication des Phénomènes et conjonctures de causes.
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Apesar da dificuldade em definir as matemáticas aplicadas no período, Lützen (2013) comenta que “o objetivo da matemática aplicada é lidar com o funcionamento da natureza física e, em particular, descobrir hipóteses sobre as causas dos fenômenos naturais” (Lützen, 2013, p, p. 688, tradução nossa).
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De modo geral, Ferreirós (2013) destaca que as quantidades abstratas eram associadas ao campo das matemáticas puras, enquanto certas grandezas específicas, como o tempo e o movimento, eram classificadas como pertencentes às matemáticas mistas. Nesse contexto, a matemática aplicada emerge quando essas estruturas são utilizadas em conexão com outras disciplinas, como física, engenharia, biologia ou economia.
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Editor-chefe responsável:
Prof. Dr. Roger Miarka
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Editora associada responsável:
Profa. Dra. Maria Laura Magalhães Gomes
Disponibilidade de dados
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Datas de Publicação
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Publicação nesta coleção
28 Nov 2025 -
Data do Fascículo
2025
Histórico
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Recebido
10 Nov 2024 -
Aceito
16 Jul 2025
