Resumo
Neste artigo, construído a partir da produção de dados com estudantes adolescentes brasileiros e colombianos, propõe-se uma tipologia de sonhos. A construção dessa tipologia teve por base a análise de confluências entre os sonhos apresentados pelos estudantes durante entrevistas, seus contextos e discussão teórica, e é inspirada em referenciais teóricos do campo da educação crítica e da filosofia, e se expande em outras direções. Ela se fundamenta, também, nas características em comum presentes nas histórias de vida dos estudantes, assim como nas características dos seus sonhos. Nessa tipologia, os sonhos são divididos em sonho como necessidade, sonho como oportunidade, sonho como alteridade e sonho como fruição. Desenvolve-se, no texto, o argumento de que esses tipos de sonhos se referem a um dos fundamentos do que se entende por motivos para aprender, e que esses motivos podem ser importantes para entender como os sonhos se manifestam no ambiente escolar e nas aulas de matemática. Também, são realizadas discussões a respeito do jovem em desvantagem social no contexto latino-americano e seu papel relegado a não ser, na filosofia tradicionalmente branco-eurocêntrica.
Sonhos; Tipologia de sonhos; Foreground; Adolescentes; Motivos para aprender
Abstract
This paper was created based on data production with Brazilian and Colombian adolescent students, with the aim of proposing a typology of dreams. The construction of this typology was grounded in the analysis of confluences between dreams presented by students during interviews, their contexts, and theoretical discussion, and it is inspired by theoretical references from the field of critical education and philosophy and expands in other directions. It is also based on common characteristics present in the students' life history, as well as the characteristics of their dreams. In this typology, dreams are divided into dream as a necessity, dream as an opportunity, dream as alterity and dream as fruition. The text develops the argument that these types of dreams are one of the foundations of what is understood as motives for learning and that this can be an important reflection of understanding how dreams manifest themselves in the school environment and in mathematics classes. Discussions are also held regarding young people at a social disadvantage in the Latin American context and their role relegated to not being, in the traditionally white-Eurocentric philosophy.
Dreams; Typology of dreams; Foreground; Teenagers; Motives for learning
1 Introdução
Lixiana é uma estudante de 17 anos advinda de uma comunidade pobre e rural da Nicarágua. Ao fornecer respostas para uma entrevista a uma organização internacional, revelou como entende os seus sonhos nos tempos atuais, em meio a uma pandemia de Covid-191: “Meus sonhos não mudaram, o que mudou é o tempo que eu tenho para realizá-los [...] são coisas que vou ter que postergar, mas sempre tenho em mente que eu vou fazê-las”2 (Plan, 2020).
Tomando como ponto de partida a fala de Lixiana, podemos supor que jovens, ainda que tenham origens humildes, sonham. Mergulhando mais a fundo, especialmente na realidade de jovens latino-americanos em desvantagem social, como Lixiana, temos por hipótese que esses jovens precisam sonhar, pois eles encontram nos sonhos combustível para prosseguir com a vida. Também supomos que a escola (ou universidade) pode ter um papel em suas vidas que vai além de oferecer conhecimento técnico: pode ser entendida como um importante espaço para os sonhos desses jovens.
Nesse sentido, com vistas a entender o papel do sonho para esses jovens e refletir sobre possibilidades na escola, algumas questões podem ser realizadas: Como é a vida dos jovens em desvantagem social? Que tipo de sonhos eles possuem e que reflexões emergem sobre o papel da escola no que diz respeito ao tema dos sonhos? Que reflexões podem ser estabelecidas para as aulas de matemática a partir do entendimento dos sonhos desses jovens? Visando refletir sobre essas e outras perguntas, realizei uma pesquisa3 com 17 estudantes de duas escolas diferentes. A produção de dados se deu em 2019 com jovens entre 15 e 17 anos de idade, advindos de uma escola da região periférica no Estado de São Paulo e de uma escola, também periférica, da cidade de Bogotá, Colômbia. Na ocasião, realizei grupos de discussão4 e entrevistas semiestruturadas com alguns desses estudantes. Durante as entrevistas, tomei contato com as respostas dos jovens a respeito de perguntas relacionadas às suas histórias de vida, experiências na escola, sonhos e aspirações para o futuro e ideias a respeito de injustiças. As respostas dos participantes foram organizadas e foi realizado o movimento de encontrar similaridades e pontos de divergência, com inspiração nos métodos da análise de conteúdo, história de vida e história oral temática, assim como outras inspirações advindas da revisão de literatura e experiências pessoais. Dessa forma, para esse artigo, faço uso da organização das respostas de oito estudantes (quatro de cada escola) relativas às entrevistas.
No que se refere às bases teóricas, esse trabalho se fundamentou em autores da educação e educadores matemáticos do campo da crítica, em que destaco Paulo Freire e Ole Skovsmose; assim como fundamentos do filósofo existencialista Emmanuel Lévinas. Ainda assim, outros tantos pensadores serviram de inspiração para esse trabalho e foram consultados à medida que os estudos foram se desdobrando em novas possibilidades.
A seguir, debruço-me em contar um pouco sobre a história de vida e sonhos de uma estudante participante da entrevista: Andrea5. Em seguida, tendo essa estudante como ponto de partida, apresento algumas características da história de vida e sonhos dos demais jovens desse estudo. Nas demais seções, reflito sobre esses dados e construo caminhos teóricos que me levaram a pensar em uma tipologia de sonhos para jovens em desvantagem social, assim como as implicações disso para a escola e para as aulas de matemática, em especial.
2 Um exemplo: a jovem Andrea
Andrea é uma jovem colombiana de 15 anos de idade. Mora na periferia da cidade de Bogotá, junto com sua mãe, padrasto, avós maternos e dois irmãos mais velhos. Sua mãe é dona de casa e seu padrasto trabalha na construção civil. Segundo Andrea, a situação financeira da família não é boa, além de ser bastante inconstante, a depender de haver trabalho para os serviços prestados pelo seu padrasto.
A jovem não fala com o pai biológico desde muito pequena e, segundo ela, ele vive atualmente com outra família e mora longe dela. Seus genitores se conheceram quando trabalhavam no campo, em Chocó6, e Andrea disse que, nessa época, ele tratava muito mal a sua mãe.
Suas boas recordações da infância estão relacionadas ao tempo que passava com sua mãe e familiares e aos filmes que assistia com o padrasto; todos esses eram momentos bastante agradáveis. Andrea revelou que ajuda a mãe nas tarefas domésticas desde pequena e que esse também é um momento agradável para ela. Já uma recordação ruim dessa época está relacionada à morte da avó paterna, pois Andrea disse ter sofrido muito com esse acontecimento.
Quanto à adolescência, a jovem disse estar vivendo uma boa experiência, namorando seriamente um rapaz há dois anos, que porventura teve de largar os estudos na Educación Media7 para começar a trabalhar. Como hobbies, Andrea destacou gostar de ouvir música e ler.
No que diz respeito às experiências escolares, a jovem disse considerar-se estudiosa e ter uma boa relação com os professores. Andrea também disse que conta com poucos amigos na escola, mas que os considera bons amigos por sempre a apoiarem e darem a ela bons conselhos. Ela realiza um curso técnico em Sistemas8 na própria escola, no contraturno, e estuda inglês fora da escola.
No que diz respeito aos sonhos, Andrea tem como primeira opção ser advogada. Ela se justificou, dizendo que quer defender as mulheres, crianças e as famílias em necessidade. Destacou também que, na sua opinião, o que seu pai fez com sua mãe a deixou muito zangada, e esse fato também colaborou para que ela queira seguir o Direito como carreira profissional. Apesar dessa escolha, ela pensa que pode começar a trabalhar com sistemas primeiro, para poder guardar dinheiro e ter a oportunidade de fazer a faculdade sonhada posteriormente. Além de ser advogada, Andrea relatou que seu maior sonho é ajudar a mãe a conhecer o México. Ainda sobre o tema viagens, ela tem o sonho de conhecer a cidade de Paris, o Brasil, assim como viajar para algumas cidades colombianas. Dentre elas, Andrea destacou a cidade de Medellín, que ela sonha em conhecer por conta das histórias sobre Pablo Escobar que costuma ler, e a cidade de San Andrés, por conta da beleza do mar. Andrea disse não conhecer o mar.
Em um futuro um pouco mais distante, a jovem afirmou que se imagina fazendo faculdade, possuindo uma moto, ainda morando com a mãe e o padrasto e formando uma família, tendo um companheiro e filhos.
Por fim, quando lhe perguntei sobre injustiças no mundo, ela destacou que considera muito injusto a culpabilização de pessoas inocentes, a impunidade para os políticos corruptos, a desigualdade econômica e o racismo.
3 História de vida e sonhos de estudantes em desvantagem social
Após a explanação sobre Andrea, dedico esta seção para sintetizar as respostas dos demais participantes da pesquisa. Assim como a jovem, os demais participantes nasceram em famílias simples, com parcos recursos financeiros, sendo que para muitos deles faltou durante a infância alimento ou o afeto de algum integrante da família. Eles possuem, de maneira geral, ao menos dois irmãos e é digno de nota como o apoio da família é destacado como peça fundamental na vida desses jovens, assim como as amizades.
A maioria dos genitores desses jovens exerce profissões que não exigem muita escolaridade e que possuem pouco prestígio social, e dou destaque às profissões relacionadas à construção civil, limpeza, atendimento em estabelecimento comercial e trabalho no campo.
Embora não tenha ficado totalmente claro nas respostas de Andrea, durante a sua infância, ela ou algum membro da sua família parece ter enfrentado episódio(s) de violência em relação ao pai. E da mesma forma que Andrea, quase todos os participantes dessa pesquisa retrataram ter sofrido ou presenciado no seio da família algum tipo de violência, seja abandono, preconceito de gênero, abuso emocional ou sexual, agressão física ou ainda, bullying9. Outros enfrentaram a perda violenta de entes queridos e alguns tiveram que assumir responsabilidades da vida adulta muito cedo, como cuidar da casa, dos irmãos ou trabalhar. Também evidencio uma problemática relação com o pai que tanto Andrea como muitos outros jovens participantes da pesquisa destacaram.
Além disso, muitos estudantes revelaram terem vivido em diferentes casas e cidades durante a vida, seja por motivo econômico, seja pela separação dos genitores e novos rearranjos familiares, ou ainda, seja por motivo de desplazamiento10, relacionado a contextos políticos e de segurança. A constante mudança de moradia, para esses estudantes, significou estudar em várias escolas e gerou dificuldade para alguns deles na aprendizagem e em estabelecer laços de amizade.
Da mesma forma que Andrea, ao serem questionados sobre lembranças boas da infância e adolescência, em primeiro lugar, os estudantes se referem a momentos agradáveis com a família e, em segundo lugar, às boas experiências com a escola. Já quando questionados sobre momentos ruins nesse período, eles estão majoritariamente ligados a discussões na família, e também a problemas de saúde.
No que se refere ao questionamento sobre os sonhos, foi comum entre os estudantes associar a resposta a essa pergunta a uma profissão. E apesar de Andrea ser a única a dizer que queria ser advogada, ela está longe de estar sozinha em escolher uma profissão com a intenção de ajudar outras pessoas. Os que escolheram ser médicos, ou psicólogos, ou policiais, ou ainda enfermeiros, também apresentaram essa mesma razão. E mesmo que outros não tenham expressado essa mesma razão para suas escolhas profissionais, geralmente manifestaram ter o sonho de ajudar pessoas de alguma forma, podendo ser essas pessoas pertencentes a sua família, mas também à comunidade ou fora dela.
No entanto, assim como Andrea, outros sonhos também estavam relacionados às possibilidades que os estudos recentes poderiam oportunizar. No caso da estudante, cursar o técnico em Sistemas oferecido pela escola lhe oportunizaria isso. No âmbito dos demais estudantes, isso pode ser percebido por meio de outros cursos técnicos oferecidos pela escola, como o técnico em Alimentos e o curso em Recreação Comunitária. Também outros cursos foram destacados, como o de idiomas e o treino em esportes: todas essas atividades proporcionadas pelas escolas poderiam ajudá-los a realizar sonhos.
Outros sonhos que foram apresentados pelos estudantes pareciam ser, de alguma forma, um pré-requisito para a realização de outros, já que forneceriam condições financeiras para que novos sonhos pudessem ser realizados. Entre eles, podemos citar: conseguir ser aprovado em uma universidade pública; estabilizar-se na escola que cursavam correntemente, concluir os estudos no Ensino Médio/ Educación Media, ou ainda, conseguir um emprego quanto antes fosse possível.
Por fim, é digno de nota que o sonho de viajar também esteve presente nas respostas de muitos jovens, assim como nas de Andrea. Entendendo esses sonhos como expressões de liberdade, prazer, imaginação e inspiração, incluo outros sonhos apresentados pelos participantes que vão nessa mesma direção, tais como aprender sempre mais, ser escritor e realizar-se em alguma profissão que admira muito. E por fim, apresento os sonhos que se relacionam com o aspecto identitário e de sobrevivência, como poder vestir o que quiser, seguir em frente com a vida e, ainda, conseguir ser eu mesma.
Nas subseções a seguir, tomando como ponto de partida os sonhos dos jovens, suas origens e contextos, realizo uma construção teórica que me levou a identificar algumas categorias para os tipos de sonhos de jovens em desvantagem social.
3.1 Considerações teóricas a respeito dessas histórias e sonhos
O primeiro ponto que gostaria de destacar é a respeito do impacto da trajetória desses jovens em seu futuro. É evidente que as experiências que elas e eles tiveram em suas vidas foram significativas e, sem dúvida, deixaram marcas em sua história. No entanto, ainda que parte delas tenha sido difícil na infância ou adolescência, tanto financeiramente como psicologicamente, isso não significou que suas vidas pararam por ali. O desejo de seguir em frente esteve presente, experiências foram ressignificadas e há muitos projetos para o futuro. Em outras palavras, está claro que backgrounds influenciam, mas não são fatores determinantes para o presente e o porvir. E a razão para isso pode ser a capacidade desses jovens de ressignificar as suas histórias e seus foregrounds.
Mas o que são foregrounds (ou foreground)? Segundo Skovsmose (2014), são os horizontes de futuro que os jovens criam para si, que podem ser cheios de esperanças, sonhos e anseios, assim como podem ser obstruídos por medos, frustrações e expectativas. Nenhum foreground é completamente claro e transparente; isso vai depender da relação que as pessoas estabelecem consigo mesmas, da consciência da história que escreveu e escreve no mundo, assim como do entendimento sobre o seu papel transformador ou limitador no fluxo da vida. Dessa forma, de maneira geral, foregrounds se apresentam como opacos, indefinidos, refletindo também, a inconstância na forma como se enxerga o futuro.
Pela história de Andrea, é possível perceber que ela não sabe como será o seu futuro; mas nem por isso deixa de ter expectativas e estabelecer planos. A experiência de possível violência e abandono que viveu na infância parece ter sido relevante para a escolha por ser advogada. Dessa forma, é plausível dizer que essa experiência fez solo na formação de sua subjetividade, foi ressignificada e se tornou fator importante em seu foreground. Outros estudantes trilham um caminho parecido: viveram experiências marcantes em sua história e projetaram sonhos que se constituem como possibilidades advindas da ressignificação dessas experiências. E sem sombra de dúvidas, a experiência de violência e/ou rejeição na infância, para consigo mesmo ou com algum familiar, é fator comum a todos os jovens que fizeram parte desse trabalho, os quais externaram o sonho de ajudar pessoas. Assim, para além de ser uma marca da individualidade desses jovens, presente na formação de sua subjetividade, esses sonhos fazem parte do foregrounds de todos os participantes da pesquisa. Está aqui o segundo ponto que gostaria de destacar: foregrounds podem ser coletivos (Biotto Filho; Skovsmose, 2012). E outros exemplos disso poderiam ser evidenciados, como o que virá a seguir.
Todos os jovens brasileiros entrevistados, que estudavam na mesma escola e faziam o mesmo curso técnico (em Alimentos), manifestaram a possibilidade de, futuramente, trabalhar em uma das áreas que o curso enfatizava. Assim, evidencia-se que a oportunidade de realizar tal curso gerou novas possibilidades para o futuro de todos esses estudantes. Dessa forma, é possível entender que o sonho de ser um profissional da área de Alimentos faz parte de seus foregrounds coletivos.
Ademais, é válido ressaltar que sonhos como oportunidades fazem parte daquilo que Freire chama de sonhos possíveis e inéditos viáveis (Freire, 1987, 1992). Quando o ser tem consciência do seu lugar no mundo e de sua história, ele enxerga os fatores limitantes, assim como pode encontrar as brechas que possibilitem a formação de novidades, de inéditos. Assim, a realização de sonhos é possível, por meio dos caminhos que levam a inéditos que possam ser viáveis. Dessa forma, sonhos são como oportunidades na medida que o jovem é capaz de identificar os espaços vazios por entre as situações-limites de sua vida, de forma a expandir-se por esses espaços e alcançar inéditos-viáveis.
Nesse sentido, não é por acaso que os estudantes entrevistados associaram sonhos a escolhas profissionais. Para jovens em desvantagem social, o mundo parece ser visto como dado, determinado, e isso tem uma razão: no contexto histórico em que vivem, muitos dos seus direitos são retirados; elas e eles são privados de desfrutar a vida na sua plenitude e são estreitadas as suas possibilidades de ser. Por isso, segundo Cassab (2015), a atividade profissional configura-se como uma forma de apropriar-se do mundo que lhes é negado. É pela atividade profissional que os jovens pobres esperam ter a oportunidade de socializar no mundo e com o mundo, ao mesmo tempo que criam caminhos para construir a sua subjetividade. É, portanto, por meio do trabalho, que jovens identificam uma oportunidade de criar e transformar a sociedade, assim como a si mesmos.
Voltando à temática da subjetividade, aproveito para incluir um novo conceito: o de alteridade. Segundo Lévinas (1980), a alteridade é a relação de transcendência que se estabelece entre o ser e o outro. Essa relação de transcendência se dá pelos desejos de bondade e justiça. E para Lévinas, o desejo de bondade pode ser entendido como um movimento de responsabilidade para com o outro, de forma que seja desinteressado e ético.
Entendo que os sonhos que envolvem ajudar crianças, familiares e pessoas em geral são um exercício de alteridade, visto que o jovem, a partir da consulta à sua própria história, observa o outro. E nesse observar e relacionar-se com esse outro, percebe alguém – o outro – que é completamente diferente de si, mas que carrega a mesma vulnerabilidade. E dessa forma, esse jovem se enche de desejo de responsabilidade e justiça, sonhando em ajudar esse outro. Assim, o terceiro ponto que destaco é que, entre os diversos sonhos possíveis de serem sonhados, estão os sonhos como alteridade.
Outros tipos de sonhos também são possíveis de serem observados. Tratarei desse assunto na subseção a seguir, tendo como pano de fundo um contexto que é comum a todas e todos os jovens participantes da pesquisa: o fato de serem latino-americanos.
3.2 Opressão e Liberdade: sonhos latino-americanos
A violência pela qual Andrea e outros jovens desse estudo sofreram não se resume ao abandono, agressões ou abusos ocorridos no seio da família: ela é muito mais estruturante e se dá no aspecto cultural, social e econômico. Como bem diz Freire (1987, 1992), vivemos em um mundo que pode ser dividido em classes sociais onde, para alguns, tudo lhes é possível – os opressores – e para outros, falta a mínima dignidade de vida – os oprimidos.
Isso se dá de uma forma bastante cruel quando pensamos no contexto latino-americano. O histórico de colonização, marcado pela exploração dos países que compõem esse bloco, por meio da subjugação e morte da população originária (dentre outras formas), deu-se de maneira a negar aos que nesses territórios viviam o seu lugar no mundo. Comunidades foram dizimadas e culturas foram apagadas, por meio da imposição da língua, da religião, dos valores e costumes europeus. Mesmo que, séculos depois e ainda precariamente, as nações que constituem a América Latina tenham se estabelecido como nações de direitos, a violência estrutural que essas populações carregam advindas da herança colonial é latente. E continua muito presente.
É nesse sentido que Dussel (2000) e Zimmermann (1987), partindo do conceito de ser, inspirado em Lévinas, entendem que para nós, latino-americanos, é dado o papel de não ser.11 Os processos que fazem parte da construção do continente americano, ainda que não homogêneos, têm em comum o apagamento da liberdade e da história pelos colonizadores europeus. Para eles, nem direito a ser os povos originários tinham, então só lhes restou o lugar do não ser. Em outras palavras, colocaram as populações originárias latino-americanas no papel da barbárie e da marginalidade. Cercearam a sua liberdade, e essas populações não tinham validados os seus saberes, cultura e pensamentos: esse anulamento é o que constituiu a relação de opressão. Até o presente, as nações latino-americanas carregam fortes resquícios dessa opressão.
E um dos resquícios é, sem dúvida, a pobreza. A realidade socioeconômica dos estudantes que fizeram parte dessa pesquisa corresponde à realidade de parte significativa da população latino-americana: vivem nas periferias das cidades, em ambientes de insegurança, advindos de famílias modestas financeiramente, com poucos e incertos recursos, cujos genitores possuem baixa escolaridade. E diante dessa condição, não é à toa que sonhos como conseguir terminar o Ensino Médio, estabilizar na escola, seguir em frente, ou ter um emprego, ou ainda ajudar minha mãe com tudo que ela precisa façam parte dos sonhos desses jovens. Vejam o caso do namorado de Andrea: largou os estudos na Educación Média precocemente para ingressar no mundo do trabalho. Para esse e tantos jovens, ademais de entender que o sonho é adquirir novos objetos ou bens, ou mesmo melhorar a sua condição social, seus objetivos são, primeiramente, permanecerem vivos, darem conta de sustentar a condição financeira de suas famílias e continuar os estudos, se possível. E nesse sentido, entendendo o papel de sobrevivência que os sonhos dos jovens possam representar em suas vidas, proponho que eles sejam denominados de sonhos como necessidade.
Como diz Bregman (2018, p. 50) “é impossível fugir temporariamente da pobreza”. O que para alguns jovens é natural, como ter as três refeições no dia, concluir o Ensino Médio, ou ainda ter tempo livre para se divertir, para outros jovens essa é uma realidade a ser almejada. Ter uma vida de escassez como background redimensiona foregrounds e faz com que as pessoas precisem estabelecer prioridades entre os seus sonhos. E aqueles que, de alguma forma, sustentam a continuidade da vida e servem de pré-requisito para a realização de outros porvires são os sonhos como necessidade.
Ainda que carregue fortes resquícios da colonização histórica e sofra com o desigual impacto dos sistemas capitalista e neoliberal na contemporaneidade, as populações latino-americanas buscam se reconstruir e se reconstroem. Assim como a história da estudante Andrea influenciou o seu presente e suas perspectivas de futuro, mas não os determinou, o mesmo acontece com o presente e o futuro das populações de nosso continente. Apesar da tentativa de apagamento, sua cultura e valores ainda vingam e se reinventam todos os dias.
Há dois fios que podem ser identificados como condutores desse movimento de reinvenção: o fio da esperança e o fio da fruição. O fio da esperança é o que permite aos seres humanos identificarem-se como inacabados, inconclusos e colocarem-se em movimento contínuo de querer ser mais. Segundo Freire (1983), educar-se e sonhar são resultados do movimento de ser mais das mulheres e homens que, reconhecendo-se como inconclusas e inconclusos, querem transcender-se e reumanizar-se. Assim, é o fio da esperança, aliado à consciência de sua história, que serve como combustível para a libertação dos oprimidos e a construção de um mundo melhor.
Já o fio da fruição está embebido nos sentidos. Segundo Lévinas (1980), é por meio da fruição que o ser estabelece as primeiras relações entre a exterioridade e a sua subjetividade. O conceito de fruição, que também pode ser entendido como contentamento, gozo, ou ainda realização e epifania, está intimamente ligado ao sentir. O ser humano primeiro sente, depois entende; a fruição antecede o entendimento e o fruir estaria relacionado ao alimentar-se do mundo, independentemente de sua compreensão (Miranda, 2011). Apesar de inspirar-me nessa perspectiva, também acrescento uma perspectiva inversa a essa, que não rivalize o fruir e o entender o mundo. Uma perspectiva que entende que a plena compreensão de algo pode, também, despertar a epifania do sentir e, por essa razão, ser uma experiência de fruição. Dessa forma, o fio do fruir estaria ligado ao desfrutar, independentemente do entendimento ou não sobre algo; estaria conectado à satisfação em viver a vida de forma imersa em sensibilidade e com imaginação.
Nesse sentido, entendo que alguns sonhos apresentados pelos jovens que fizeram parte da pesquisa são resultados de experiências de fruição com o mundo ou representam o desejo de que essa fruição aconteça. Assim, por exemplo, viajar e conhecer lugares novos estariam dentro dessa categoria, assim como seguir carreiras em áreas que dão prazer aos estudantes, ou que oportunizem o desfrutar da vida. Comprar uma moto, ter um apartamento, também poderiam se encaixar nesse tipo de sonho, que denomino de sonho como fruição. Estes sonhos não estão conectados diretamente à satisfação de uma necessidade social, mas sim ao prazer e à alegria.
Por fim, penso ser importante apresentar um último argumento relativo aos sonhos como fruição: eles podem sim estar relacionados aos desejos impostos pela sociedade capitalista e neoliberal. É fato que o capitalismo pode ser entendido como um grande inibidor dos sonhos. Tal qual Rodrigues (2008, p. 68), entendo que vivemos em “uma sociedade que desvaloriza e que tenta menosprezar e não legitimar o direito ao sonho e à imaginação criadora”, ainda mais para os pobres e latino-americanos. Assim, sonhos de transformação social, coletivos, são entendidos como impossíveis e substituídos por sonhos cada vez mais consumistas e individualistas.
No entanto, apesar de compreender essa perspectiva, entendo que não é dado aos jovens em desvantagem social o mesmo direito ao sonho como fruição que é dado aos jovens privilegiados. Todos eles vivem em uma mesma sociedade capitalista, mas ao rico é entendido como natural e é incentivado que compre e consuma tudo que for do seu desejo. Já aos pobres esse desejo é privado, pois se espera que essas pessoas usem seus recursos financeiros somente para atender às suas necessidades básicas. Assim, para além de toda opressão social a que estão submetidos, aos jovens em desvantagem social é, muitas vezes, negado o direito de fruir a vida.
3.3 Tipologia de sonhos para jovens em desvantagem social
As reflexões estabelecidas nas seções anteriores, que partiram do estudo da história de vida de jovens brasileiros e colombianos que fizeram parte da pesquisa, levaram-me a identificar padrões entre seus sonhos. A partir das conexões entre suas histórias, contextos e aspirações, cheguei à seguinte tipologia de sonhos para jovens em desvantagem social:
- Sonhos como necessidade: dizem respeito aos sonhos que se fundam no contexto social e econômico problemático ao qual esses jovens pertencem, com a intenção de manter a dignidade da vida e a possibilidade de estabelecer novos sonhos.
- Sonhos como oportunidade: dizem respeito aos sonhos advindos da consciência histórica do seu lugar no mundo, a partir da identificação de situações-limite e da possibilidade de inéditos viáveis. São os sonhos possíveis que, para os jovens na faixa etária entrevistada, estão bastante relacionados à busca profissional.
- Sonhos como alteridade: dizem respeito aos sonhos para o outro, que pode ser representado pela família, comunidade, crianças ou quaisquer outros grupos de pessoas. Trata-se de um tipo de sonho que tem suas raízes na identificação e relação entre a própria história desses jovens e as histórias de outras pessoas que, por mais que sejam entendidas como o outro, também compartilham vulnerabilidades semelhantes.
- Sonhos como fruição: dizem respeito aos sonhos que se fundam no desejo do contentamento, gozo e satisfação com a vida. São sonhos que acionam os sentidos e a imaginação, que podem ou não estar relacionados a aprendizagens e ao conhecimento, mas estão, sobretudo, associados ao prazer.
A Figura 1 é uma alegoria representativa dessa tipologia de sonhos. Por meio dela, busco descrever a conexão que existe entre esses tipos e as suas funções para o ser: os sonhos como oportunidade e como alteridade são retratados em tons semelhantes da mesma cor, o que indica a tênue relação entre eles, ao mesmo tempo que representa a dual relação eu-outro; os sonhos como necessidade são representados pela imagem do coração, já que dizem respeito ao cerne para que todos os demais sonhos possam existir; e os como fruição são desenhados na forma de caminhos (ou veias) que se abrem entre os diversos sonhos, e que permitem a expansão deles.
Entendo que esses sonhos divididos em tipos nos ajudam a entender melhor como eles se formam, suas origens e motivações. No entanto, as linhas que os separam são tênues, e é bem possível em um momento entender, por exemplo, um sonho como necessidade, mas em outro, como uma oportunidade. Ou mesmo um sonho como oportunidade pode, também, ter um caráter lúdico e ser reconhecido como fruição. Dessa forma, essa tipologia não se presta a fornecer uma classificação rígida nem mesmo definitiva, mas sim, um caminho para compreender mais a fundo o que os sonhos dos jovens podem nos revelar sobre eles mesmos e sobre suas vidas.
A seguir, apresento novas inter-relações entre essa tipologia de sonhos e os conceitos principais que fazem parte desse trabalho, com o objetivo de estabelecer razões para uma possível importância dessa tipologia na escola e nas aulas de matemática.
3.4 Sonhos como motivos para aprender
Segundo Freire (2000, p. 54), “sonhos são projetos pelos quais se luta” e esses projetos são coletivos. Assim, todo sonho, segundo o autor, possui uma perspectiva política e é consequência do inacabamento do ser, e resultado de sua busca por ser mais. Como esse trabalho possui forte inspiração freiriana, as origens dos sonhos também são entendidas como advindas do inacabamento humano e resultado do movimento de transcendência, ao qual Freire chama de ser mais. No entanto, apesar de considerar que sonhar é um exercício político, especialmente para os jovens em desvantagem social, dadas as relações de opressão às quais esses jovens estão submetidos, as razões pelas quais elas e eles expressam esses sonhos não precisam estar amparadas necessariamente nesse exercer político. Elas podem estar amparadas na formação de suas próprias subjetividades e nas suas relações com o outro.
Os resultados que apresento nesse trabalho, fruto das respostas das entrevistas de jovens, revelam isso: que os sonhos desses jovens estão atrelados a aspectos sociais, políticos e econômicos, mas também às suas relações consigo mesmos e com a exterioridade. Sonhos como necessidade, como oportunidade, como alteridade e como fruição dizem respeito a essa complexidade de aspectos, e que podem ser observados em seus foregrounds.
Sonhos são projeções particulares que o ser realiza dentro do seu foreground. Foregrounds são opacos horizontes de futuro que, como relatei anteriormente, são influenciados pelo background pessoal, mas também pelo lugar ocupado no mundo pelo ser, o seu contexto histórico e social, e a sua subjetividade. Sonhos constituem-se como parte desses foregrounds, podendo ser entendidos como os alvos para onde se direcionam as intenções de futuro.
Segundo Skovsmose (2014), foregrounds também podem ser entendidos como o espaço dentro e para além do mundo-vida12 onde se direcionam as intencionalidades das pessoas. E as intencionalidades são fenômenos mentais, onde se constituem as razões, propósitos e objetivos; as intencionalidades dão forma às ações humanas. Assim, são as intencionalidades que direcionam as ações, tendo por base os foregrounds.
Aprofundando esse tema, Skovsmose escreve que, na escola, os motivos que levam jovens a aprender são as suas intencionalidades. Dessa forma, os motivos que levam jovens a aprender, para além de estarem relacionados aos seus backgrounds, estão relacionados ao seus foregrounds. Assim, foregrounds fornecem razões para que jovens queiram, desejem, tentem, objetivem aprender. Roncato (2021) está de acordo com Skovsmose e acrescenta:
Um aluno poderia responder positivamente aos estudos porque os considera importantes para as conquistas de seus desejos, aspirações de futuro, porque o assunto tratado lhe interessa, o ambiente é propício a essa realização. Essas elucidações representam possíveis direções e o foreground de uma pessoa pode ser um espaço direcionado às intencionalidades (Roncato, 2021, p. 47).
Assim como Skovsmose (2014) e Roncato (2021), também considero importante a relação entre foreground e os motivos para aprender. Mais que isso, tal como descrevo nesse texto, entendo que sonhos são parte do foreground humano e, por consequência, sonhos podem fornecer motivos para que os jovens queiram aprender. Assim, sonhos como necessidade, oportunidade, alteridade e fruição podem ser entendidos como razões para que os estudantes voltem sua intencionalidade para a aprendizagem escolar. Dessa forma, por exemplo, o sonho de dar orgulho aos genitores, de ser uma advogada, de concluir o Ensino Médio, de ser policial ou, ainda, de viajar o mundo, pode fornecer motivos para que jovens queiram aprender na escola (ou mesmo fornecer motivos para que eles não queriam aprender).
E o que isso poderia significar, tendo em vista o trabalho de professores e da escola? Acredito que aqui estão dadas importantes pistas para entender o papel desses agentes diante dos jovens e seus sonhos. Tratarei mais sobre isso na próxima subseção.
4 Os sonhos dos jovens e a escola
Após essa compreensão sobre os tipos de sonho, cabe-nos pensar sobre o papel da escola no que diz respeito a esse assunto. Quando se coloca em jogo a vida e sonhos de jovens em desvantagem social, é preciso entender que o espaço escolar representa muito mais do que simplesmente um local onde se põe em prática um currículo. Além da demanda por conteúdos, os backgrounds e foregrounds desses estudantes revelam muitas outras demandas. Indo ao encontro da tipologia apresentada, uma escola que se preocupe com os sonhos de estudantes em desvantagem social deveria estar atenta aos motivos que levam os estudantes a quererem aprender.
Assim, quando se pensa em sonhos como necessidade, isso revela que jovens podem buscar a escola e exercitar a aprendizagem para satisfazer necessidades básicas de sua vida. Da mesma forma, jovens podem não querer aprender por entenderem que a escola não fornece espaços para que suas necessidades sejam satisfeitas. Nesse sentido, é importante que a escola ofereça, por exemplo, um ambiente acolhedor e seguro, de forma que elas e eles possam ter sua dignidade garantida ali, seja por meio da escuta, do diálogo, da oferta do conhecimento, do afeto, ou mesmo do alimento.
Por outro lado, quando se pensa em sonhos como oportunidade, isso significa que jovens podem estar na escola para compreender suas situações-limite e buscar inéditos viáveis, novas possibilidades, realizar sonhos possíveis. E para adolescentes em desvantagem social, esses sonhos estariam bastante relacionados a profissões. Assim, é fundamental que a escola seja um espaço de oportunidades, e de diversas formas: seja para desenvolver habilidades já existentes, seja para aprender novas habilidades. No sentido contrário, se o jovem não vir a escola como um espaço que lhe dê oportunidades, isso também pode lhe fornecer motivos para não querer aprender.
Já quando se entende os sonhos dos jovens como alteridade, isso revela que os motivos que levam jovens a aprender não precisam estar diretamente ligados a satisfazer a si mesmos, mas também podem estar relacionados à realização de sonhos do outro. Dessa forma, jovens podem querer aprender para dar contentamento aos familiares, à professora ou ao professor, ou às pessoas próximas e queridas. Assim como jovens podem intencionar aprender para realizar sonhos de sua comunidade.
Por fim, quando se pensa em sonhos como fruição, especialmente para jovens em desvantagem social, isso significa que a escola tem potencial para fornecer leveza, alegria e inspiração para a vida desses jovens. Nesse sentido, entre os motivos que levam jovens a querer aprender estão razões que vão além do satisfazer necessidades econômicas e sociais, pois estão baseadas também no exercício da imaginação e do sentir, que se faz, também, no transgredir e no festejar. E se o jovem não encontra no ambiente escolar espaços para o fruir, ele pode não ver motivos para querer aprender nesse lugar.
Dessa forma, entender os sonhos dos jovens pode ser uma importante ferramenta da escola e dos professores para acessar meios de engajar na aprendizagem os estudantes em desvantagem social. Além disso, ter conhecimento sobre esses sonhos oferece importante oportunidade para que a comunidade escolar possa se envolver diretamente na realização deles.
5 Algumas considerações
Jovens em desvantagem social sonham, e como afirmei no início desse texto, eles precisam sonhar. Acredito que, diante de toda a discussão realizada até aqui, por meio das trajetórias reais de jovens brasileiros e colombianos e diálogos com autores inspiradores, contestar essa afirmação está fora de questão. Também acredito que o estudo realizado em detalhes sobre os tipos de sonhos desses jovens contribui para que, além de advogar pelo direito e defesa de seus sonhos, possamos compreender as suas origens e pensar em possibilidades de contribuição, como algumas das quais abordei nas subseções anteriores.
Iniciei as reflexões teóricas a partir do conceito de foreground que, como foi descrito, trata-se de um aspecto humano múltiplo e opaco, visto que os horizontes de futuro incluem diversas possibilidades, que não se mostram de maneira transparente. Entendo que, a partir do momento em que relaciono foregrounds com sonhos e, por meio da produção de dados com jovens, procuro desvendar a natureza e origens de seus sonhos, algumas nuvens que obscurecem os foregrounds puderam se afastar e se estabeleceu a possibilidade de enxergar os horizontes de futuro desses jovens com alguma transparência. É fato que não é possível saber de antemão quais serão os sonhos de jovens em desvantagem social; mas é possível estabelecer previsões sobre o tipo de sonhos que eles terão, e por isso, esse trabalho se dedicou a identificar uma tipologia para esses sonhos.
Evidentemente, a tipologia aqui apresentada não é um conhecimento fechado e inquestionável. Muito pelo contrário, por ter sido construída com base no diálogo com a vida real de jovens, ela está suscetível às mudanças que a vida real pode proporcionar. Além do mais, por também aliançar-se no diálogo com autores e com minha própria experiência, essa tipologia reflete, de alguma forma, as crenças, anseios e sonhos desses autores e de mim mesma. Ainda assim, acredito que, tratando-se de movimento inédito ou ainda pouco explorado por autores na área de educação, é um exercício relevante e necessário.
A partir da tipologia, que reconhece que os sonhos dos jovens estão relacionados a necessidades, oportunidades, alteridade e fruição, relacionei os seus sonhos com motivos para aprender, e apresentei algumas reflexões que possibilitam evidenciar como esses motivos entram em ação na escola. Saliento que esse texto se propôs a abrir a discussão sobre os tipos de sonhos dos estudantes e os motivos para aprender na escola, mas não se propôs a apresentar propostas específicas para a efetivação disso. Na verdade, entendo que não existe resposta certa: as respostas vão se construindo nas relações entre as pessoas, por meio dos encontros entre seus backgrounds e foregrounds. Essas respostas se mostram por meio do diálogo entre professor-aluno, por meio das estratégias de ensino utilizadas pelas professoras e professores, por meio dos espaços que a escola proporciona para isso, e por meio do viver e do sonhar de todos os agentes que estão nesse ambiente. Essas respostas também podem ser construídas dentro das aulas de matemática. Todos os aspectos evidenciados na subseção anterior podem ser pensados, também, para as aulas dedicadas a essa disciplina.
Ainda assim, é sabido que as aulas de matemática apresentam certas particularidades. O primeiro ponto diz respeito à dureza com que, algumas vezes, esse componente curricular é tratado na escola. É sabido que a matemática é uma das disciplinas mais responsáveis por reprovação, e não faltam depoimentos de adultos (ao menos, brasileiros) que apontam ter, entre outras razões, abandonado a escola por causa da disciplina. E essa característica pode afastar os jovens da realização de seus sonhos.
Outro ponto diz respeito à própria natureza do conhecimento matemático. A tal dureza com que é comumente tratada na escola não diz respeito somente aos métodos de ensino, mas também às intrínsecas características dessa ciência. Anda impera hoje uma visão absolutista da matemática, que a mantém fechada em si mesma, e carregando o fardo de supostamente representar o ápice da razão e da verdade.13 Essas características corroboram para que a disciplina de matemática seja colocada em um pedestal, ao mesmo tempo que a afasta das pessoas, dos estudantes: dessa forma, afastando-a dos seus sonhos.
Mas não precisa ser assim. As aulas de matemática podem ser espaços mais acessíveis às vidas dos jovens, levando em consideração os seus backgrounds e foregrounds. Além disso, as aulas de matemática podem representar, também, um espaço de crítica à sociedade. É sabido que a estrutura social e econômica é soberana, opressora e cruel. Nesse sentido, é salutar que os jovens possam encontrar na escola e, particularmente nas aulas de matemática, um espaço de conscientização de seu lugar no mundo, e possam pensar em possibilidades de agir nesse mundo. Para tanto, os estudos relacionados à educação matemática crítica, de Ole Skovsmose, e sobre o ensino de matemática para a justiça social, de Eric Gutstein (2012), podem ser importantes fontes de inspiração.14
Ainda assim, reitero que não existem respostas definitivas para pensar nos sonhos e suas relações com a escola e as aulas de matemática. E em se tratando de jovens em desvantagem social, pertencentes à América Latina, essas respostas muito provavelmente não serão as mesmas que seriam dadas para os jovens mais privilegiados, ou advindos de regiões historicamente colonizadoras. E isso não significa que essas respostas serão piores ou melhores: significa simplesmente que esses jovens partem de um lugar diferente, terão um caminhar diferente e, por isso, chegarão a um lugar distinto. Os que foram relegados à categoria do não-ser, como escreve Dussel (2000), não podem ou devem ambicionar o ser. Aos não-seres do mundo estão abertas todas as possibilidades, que vão para-além-do-ser ou, quem sabe, para outro-ser.
Porque, acima de tudo, esse estudo parte do princípio de que a vida é história, é processo e, como dizia Freire, não está dada. A vida de Lixiana não está dada; a de Andrea também não; a vida dos demais jovens participantes da pesquisa, também não está. Suas vidas são fortemente influenciadas pelos seus contextos econômicos, sociais e culturais, mas ainda assim, são únicas e potentes. Ainda que, relegados à categoria de não-ser, esses jovens não vão sucumbir. Os sonhos desses jovens revelam que o tecido da sua vida é costurado pelos fios da esperança, emaranhado no tear da luta e realçado pelo fio da fruição. Seus foregrounds e sonhos estão em pleno desenvolvimento. Cabe-nos estarmos ao lado deles no tecer da vida, abrindo caminhos por entre os seus foregrounds e colaborando para que sempre tenham muitos motivos para aprender.
Referências
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» https://link.springer.com/content/pdf/10.1007/978-3-319-12688-3.pdf - BREGMAN, R. Utopia para realistas. Tradução de Leila Couceiro. Rio de Janeiro: Sextante, 2018.
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- ZIMMERMANN, R. América Latina - o não-ser: uma abordagem filosófica a partir de Enrique Dussel (1962-1976). Petrópolis: Vozes, 1987.
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1
A pandemia mundial de que a estudante fala se refere à doença Covid-19, causada pelo coronavírus, que se estendeu principalmente entre os anos de 2020 e 2023.
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2
Tradução nossa.
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3
Este trabalho é parte de uma pesquisa de doutorado (Soares, 2022) que teve o apoio da Deutscher Akademischer Austauschdienst (DAAD), com programa de financiamento n. 2020/21 (57507870).
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4
Para saber mais informações sobre os resultados obtidos com os grupos de discussão, que problematizaram os espaços para os sonhos dos jovens nas aulas de matemática, ler Soares (2023).
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5
Não há nenhuma razão em especial para essa escolha; outra ou outro participante da pesquisa poderia ter esse mesmo destaque. Adiciono que todos os nomes de participantes apresentados aqui foram alterados, para preservar a confidencialidade dos dados.
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6
Departamento da Colômbia, distante de Bogotá.
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7
Antigo Bachillerato, equivalente ao Ensino Médio no Brasil.
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8
Curso técnico que aborda conhecimentos da área de tecnologia e informação.
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9
É um termo de origem inglesa, e já popularmente utilizado ao redor do mundo, que diz respeito à atos de violência física ou psicológica de forma repetitiva e que envolvem, geralmente, crianças e jovens, normalmente em ambiente escolar.
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10
É um fenômeno de deslocamento forçado de famílias e populações inteiras do campo, com a intenção de salvar-se do conflito armado que perdura há muitas décadas na Colômbia. Ver mais em Pardo (2018).
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11
Dussel é argentino, Zimmermann é brasileiro (ambos latino-americanos, portanto), e Lévinas, franco-lituano (europeu).
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12
Para saber sobre mundo-vida, ver Skovsmose (2014).
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13
Para mais informações sobre essas concepções e a visão absolutista da matemática, sugiro ler Ernest (1991).
- 14
Datas de Publicação
-
Publicação nesta coleção
07 Abr 2025 -
Data do Fascículo
2025
Histórico
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Recebido
06 Fev 2024 -
Aceito
23 Set 2024


Fonte: autoria própria, 2022