Open-access Contribuições da disciplina História da Matemática para a formação de professores: uma análise à luz dos Conhecimentos Matemáticos para o Ensino*

Contributions of the subject History of Mathematics to Teacher Education: Analysis based on Mathematical Knowledge for Teaching

Resumo

Considerando o aumento da oferta de disciplinas específicas de História da Matemática (HM) nos cursos de formação de professores, realizamos esta investigação com objetivo de descrever e analisar as contribuições de uma disciplina de História da Matemática para a formação de professores, mais especificamente, para a mobilização de Conhecimentos Matemáticos para o Ensino. Assim, a pesquisa teve como foco os conhecimentos mobilizados por sete futuros professores, ao longo de um semestre da disciplina de HM presente no currículo de um curso de licenciatura de uma universidade federal, adotando como referência o modelo Conhecimento Matemático para o Ensino, proposto por Ball, Thames e Phelps em 2008, que é conhecido pela sigla MKT. Os dados da investigação emergiram a partir de gravações audiovisuais das aulas, do diário de campo, das atividades realizadas pelos estudantes e das entrevistas realizadas após o término da disciplina. As análises indicam que os licenciandos expressaram conhecimentos referentes aos três subdomínios do Conhecimento Específico do Conteúdo, sobretudo, relativo ao Conhecimento Especializado do Conteúdo aparecendo com maior frequência nas atividades acerca da Matemática na Antiguidade. Também, evidenciaram-se, de maneira expressiva, conhecimentos referentes a todos os subdomínios do Conhecimento Pedagógico do Conteúdo, de modo especial, aos subdomínios: Conhecimento do Conteúdo e dos Estudantes e Conhecimento do Conteúdo e Ensino. Assim, os resultados desta investigação indicam que a disciplina História da Matemática tem o potencial de possibilitar aos licenciandos a mobilização de relevantes conhecimentos para a docência e, portanto, tal disciplina pode contribuir para a formação inicial de professores.

História da Matemática; Formação Inicial de Professores; Conhecimento Matemático para o Ensino

Abstract

Considering the increase in the number of subjects related to the History of Mathematics (HM) in teacher education courses in Brazil, this investigation was conducted to describe and analyze the contributions of the subject History of Mathematics (HM) to teacher education and, more specifically, to the mobilization of Mathematical Knowledge for Teaching. Thus, this study focused on the knowledge utilized by seven future teachers over a semester on the subject of HM in the curriculum of a course at a federal university in Brazil, using the Mathematical Knowledge for Teaching model (MKT), proposed by Ball, Thames and Phelps in 2007, as a reference. The investigation data were obtained from audiovisual recordings of classes, a field diary, as well as activities carried out by students, and interviews carried out after the end of the course. The data obtained through the different instruments were compared and analyzed based on similarity groupings, taking the MKT domains as a reference. The analyses indicate that the undergraduates expressed knowledge regarding the three subdomains of Subject Matter Knowledge, especially regarding Specialized Content Knowledge, appearing more frequently in activities about Mathematics in Antiquity. Knowledge relating to all subdomains of Pedagogical Content Knowledge was also identified, especially the subdomains: Knowledge of Content and Students and Knowledge of Content and Teaching. Thus, the results of this investigation indicate that the subject HM has the potential to enable undergraduate students to impart relevant knowledge for teaching and, therefore, such a subject can contribute to the initial training of teachers.

History of Mathematics; Initial Teacher Education; Mathematical Knowledge for Teaching

1 Introdução

As questões relativas às articulações entre História da Matemática (HM) e formação de professores têm sido objeto de pesquisas brasileiras na área de Educação Matemática nas últimas décadas (Borges, 2019). Nesses trabalhos, encontramos uma vasta gama de justificativas favoráveis à inserção de abordagens históricas na formação de professores (Balestri, 2008; Miguel; Brito, 1996).

Dentre as justificativas para abordagem de tópicos relativos à HM, podemos apontar sua contribuição para: i) a compreensão de aspectos da natureza do conhecimento matemático, que colabora com a apropriação do professor de saberes relacionados à disciplina que ensina; ii) a compreensão de conteúdos matemáticos, que promove um entendimento mais amplo e significativo do próprio conteúdo matemático a ser lecionado; iii) a formação metodológica do professor, que permite que o docente faça escolhas entre diferentes perspectivas metodológicas e conceituais e, se necessário, realize adequações nelas para atingir a aprendizagem matemática; iv) o desenvolvimento de uma visão interdisciplinar do professor acerca do conhecimento, que o possibilita observar as relações existentes entre as várias áreas do conhecimento científico e como o conhecimento matemático pode contribuir para o desenvolvimento de outras ciências e vice-versa e; v) o entendimento de relações entre as subáreas da própria Matemática (Araman, 2011; Balestri, 2008)

Nesse contexto, nas últimas décadas, houve um aumento expressivo da oferta de disciplinas que abordam aspectos da HM nos cursos de formação de professores. Cavalari et al. (2022), ao estudarem os currículos de cursos de formação de professores de Matemática de universidades federais brasileiras, identificaram que tópicos de HM são abordados em disciplinas da área de Matemática, de Educação Matemática e, sobretudo, em disciplinas específicas de História da Matemática.

Em que pese o fato de que a existência de disciplina específica de História da Matemática seja a abordagem mais utilizada para a inserção dessa temática nos cursos de formação de professores e que existam muitas investigações acerca das contribuições da História da Matemática nesses cursos, identificamos que ainda são pouco numerosas as pesquisas que analisam especificamente as contribuições dessa disciplina para a formação de professores.

Nesta perspectiva, desenvolvemos a presente investigação com objetivo de descrever e analisar as contribuições de uma disciplina de História da Matemática para a formação de professores, mais especificamente, para a mobilização de Conhecimentos Matemáticos para o Ensino (Mathematical Knowledge for Teaching - MKT).

A escolha pela utilização do MKT se justifica pelo fato de que Jankvist et al. (2015) destacam a possibilidade da utilização desse modelo para as discussões relacionadas ao uso da HM na Educação Matemática e, consequentemente, na formação de professores. Além disso, tal modelo, para Pazuch e Ribeiro (2017), constitui-se como um dos referenciais mais presentes e citados em pesquisas voltadas ao conhecimento profissional docente no contexto da formação de professores que ensinam Matemática no Brasil e tal situação pode ser justificada pelo fato de esse modelo ser referente ao conhecimento matemático anterior à prática docente.

Para a apresentação dos resultados dessa investigação, expomos, inicialmente, uma revisão teórica sobre conhecimento matemático para o ensino; posteriormente, apresentamos os caminhos percorridos no desenvolvimento da pesquisa e as análises sobre os conhecimentos matemáticos para o ensino evidenciados por futuros professores ao longo de uma disciplina de HM na formação inicial de professores de Matemática.

2 Conhecimento Matemático para o ensino -MKT

Diversos pesquisadores têm se dedicado ao estudo dos conhecimentos necessários para a formação docente. Shulman (1986) contribuiu com estas discussões, ao definir e categorizar o conhecimento do professor nas três categorias, a saber: Conhecimento Curricular que se refere aos materiais e programas que servem como ferramentas do ofício para professores; Conhecimento do Conteúdo que é o conhecimento acerca da disciplina que o professor leciona, do seu conteúdo e suas estruturas, e Conhecimento Pedagógico do Conteúdo (PCK) que é um conhecimento específico de professores.

O PCK é relativo à articulação entre o conhecimento do conteúdo, o conhecimento dos estudantes e de formas de ensinar o conteúdo, buscando promover um caminho facilitador para a compreensão e apropriação dos conceitos ensinados na disciplina. A definição de PCK indica uma superação da visão de que, para ensinar, é necessário somente dominar o conteúdo a ser lecionado e avança no sentido de indicar uma combinação entre o conhecimento da matéria da disciplina e o conhecimento de como ensiná-la, incluindo os modos de apresentá-la e de abordá-la, visando torná-la mais compreensível para o aluno (Shulman, 1986). Destaca-se, entretanto, que, no trabalho de Shulman, não há um foco para uma área específica, como Física, Geografia ou Matemática.

Nesse contexto, alguns autores se dedicaram ao estudo do modelo original de Shulman, ampliando suas ideias com novas proposições natentativa de explicar os conhecimentos dos professores de Matemática. Partindo das ideias de Shulman (1986), Ball, Thames e Phelps (2008) propuseram um modelo para os conhecimentos de professores de Matemática, dando ênfase a dois domínios, o Conhecimento Específico do Conteúdo (SMK) e o Conhecimento Pedagógico do Conteúdo (PCK), os quais apresentamos na Figura 1, exposta a seguir.

Figura 1
Domínios do Conhecimento Matemático para o Ensino - MKT

O primeiro domínio, referente ao Conhecimento do Conteúdo (SMK), é subdividido em três subdomínios, a saber:

Conhecimento Comum do Conteúdo (CCK): é o conhecimento necessário ao professor, mas não é especial da sua carreira, por isso é utilizada a palavra comum. Dessa forma, esse conhecimento é usado por outros profissionais e não somente por professores.

De acordo com Ball, Thames e Phelps (2008), nesse domínio, são contemplados os conhecimentos que os professores precisam ter sobre o conteúdo que ensinam, que envolvem, por exemplo, reconhecer quando seus alunos dão respostas erradas ou quando o livro apresenta algum erro de definição.

Conhecimento Especializado do Conteúdo (SCK): é definido como o conhecimento e a habilidade matemática exclusivos do docente. Para Ball, Thames e Phelps (2008), ensinar exige um conhecimento matemático além daquele a ser ensinado aos alunos, exige uma compreensão diferente, não apenas perceber e identificar um erro, por exemplo, mas saber a sua natureza.

Segundo Jankvist et al. (2015), os conhecimentos referentes a esse subdomínio permitem que os professores se envolvam em tarefas particulares de ensino, incluindo representar com precisão ideias matemáticas, fornecer explicações matemáticas para regras e procedimentos comuns ou examinar e entender métodos incomuns para problemas. Também, “[...] inclui-se nesta categoria, o conhecimento das diferentes formas como os conteúdos podem ser encarados, dependendo da época histórica em que nos encontramos” (Mosvold; Jakobsen; Jankvist, 2014, p.52).

Conhecimento do Conteúdo no Horizonte (HCK): é o conhecimento que o professor possui acerca de como os tópicos de um conteúdo estão relacionados e como eles devem ser abordados com diferentes graus de profundidade, dependendo do ano de escolaridade. Para Ball e Bass (2002), o ensino pode ser mais hábil quando os professores têm uma perspectiva matemática dos conteúdos que estão em todas as direções, atrás e à frente, para os alunos.

O segundo domínio, que reúne conhecimento relacionado ao PCK, também, foi subdividido em três subdomínios, a saber:

Conhecimento do Conteúdo e dos Estudantes (KCS): é um subdomínio que combina conhecimento sobre estudantes e conhecimento sobre Matemática. Os professores devem antever o que os alunos provavelmente pensarão e o que considerarão confuso. Tal conhecimento envolve, também, ter familiaridade com os erros comuns dos estudantes ao aprender um determinado conteúdo e conhecer como os alunos aprendem Matemática (Jankvist et al., 2015; Ball; Thames; Phelps, 2008).

Conhecimento de Conteúdo e do Ensino (KCT): esse subdomínio combina conhecimento sobre ensino e conhecimento sobre Matemática. Ball, Thames e Phelps (2008), consideram que o conhecimento do ensino e do conteúdo é um amálgama que envolve uma ideia ou um procedimento matemático específico e os princípios pedagógicos para o seu ensino.

O planejamento do ensino de um conteúdo, a elaboração de uma sequência para o ensino de números inteiros, a decisão sobre exemplos para introduzir os números negativos ou aprofundá-lo e a determinação de uma estratégia de superação das dificuldades dos alunos quanto à regra de troca de sinais são situações que evidenciam o conhecimento do conteúdo e ensino.

Conhecimento do Conteúdo e do Currículo (KCC): esse subdomínio está relacionado a um dos domínios apresentados por Shulman, em 1986. Para Ball, Thames e Phelps (2008), o Conhecimento do Currículo é necessário ao professor para ajudá-lo a articular o conteúdo ensinado com outros pertencentes ao currículo, como por exemplo, os conteúdos estudados simultaneamente em outras disciplinas.

Ball, Thames e Phelps (2008) destacam que as linhas divisórias entre os domínios de conhecimentos do MKT são tênues e ressaltam que o MKT foi construído com o intuito de contribuir com a teoria de Shulman, não para sua substituição, considerando fundamental que os professores conheçam e sejam capazes de usar a Matemática que é necessária no trabalho de ensinar.

Além disso, de acordo com os autores deste construto teórico, os subdomínios Conhecimento do Conteúdo no Horizonte e Conhecimento do Conteúdo e do Currículo poderiam, eventualmente, tornar-se autônomos dos domínios SMK e PCK ou então, alternativamente, distribuir-se pelos outros quatro subdomínios já estabelecidos (Moreira; Ferreira, 2021). Nesse sentido, Ball, Thames e Phelps (2008) indicam a possibilidade de revisões e refinamentos do modelo proposto.

Em que pese estes fatores, entendemos que o MKT é adequado para analisar as contribuições da HM para a formação de professores de Matemática, tendo como ênfase a mobilização de conhecimentos por licenciandos ao longo de uma disciplina de História da Matemática. No próximo tópico, apresentamos o percurso metodológico adotado nesta pesquisa.

3 Percurso Metodológico

Com vistas a atingir os objetivos propostos e fundamentada nos referenciais teóricos, a coleta de dados da pesquisa foi realizada durante uma disciplina de História da Matemática de um curso de Matemática de uma Universidade Federal. Dessa forma, inicialmente, apresentamos a disciplina e, posteriormente, descrevemos os procedimentos de produção e análise dos dados.

A disciplina História da Matemática é obrigatória para bacharelandos e licenciandos em Matemática da Universidade e possui carga horária de 96 horas/aulas. Em 2021, estavam matriculados 16 bacharelandos e 12 licenciandos.

A ementa da disciplina prevê, conforme plano de ensino disponibilizado aos estudantes, a abordagem dos seguintes tópicos: Historiografia da Matemática; Matemática na Antiguidade; Matemática no período Grego-Helenístico; A Matemática na Idade Média na Europa; Índia e China; Matemática no renascimento europeu; Matemática nos séculos XVII e XVIII na Europa; Mulheres na História da Matemática.

Esta disciplina foi realizada de modo remoto, em decorrência do isolamento social imposto pela pandemia da Covid 19. Destaca-se que esse formato da disciplina dificultou a interação professor e aluno. Ao longo da disciplina, foram realizadas atividades síncronas no ambiente virtual Google Meet (aulas expositivas-dialogadas e apresentações de trabalhos) e variadas atividades assíncronas (individuais e em duplas/trios) postadas na plataforma moodle. No Quadro 1, são apresentadas estas atividades realizadas pelos estudantes no decorrer da disciplina.

Quadro 1
Atividades analisadas

Os participantes da investigação foram os sete licenciandos que aceitaram participar da pesquisa1. Com vistas a manter o anonimato dos estudantes, utilizamos os pseudônimos Josué, Eliseu, Elias, Noemi, Ester, Rute e Sara. Foi, inicialmente, realizada uma caracterização dos participantes com base em um questionário enviado por correio eletrônico.

Ao longo da disciplina, utilizamos variadas formas de coleta de dados. Elaboramos um diário de campo, construído na perspectiva proposta por Fiorentini e Lorenzato (2012), de modo a conter as reflexões da autora referentes a cada aula observada.

Realizamos também gravações audiovisuais das aulas, que permitiram que a autora, assim como indicado por Carvalho (1996), visse e revisse as interações ocorridas durante as atividades quantas vezes fossem necessárias, possibilitando a identificação de informações relevantes à pesquisa que, por vezes, não haviam sido observadas no momento em que ocorreram.

Analisamos, ainda, algumas atividades que foram realizadas pelos estudantes, a saber: AT1, AT2, AT4, AT5, AT6, AT7 e AT82. Destaca-se que priorizamos as análises das atividades, já que a realização da disciplina modo remoto, conforme já apontado, dificultou a interação professor e aluno.

Por fim, após o término da disciplina, realizamos entrevistas semiestruturadas, utilizando o ambiente virtual do Google Meet. Estas foram gravadas e transcritas. Embora tenhamos convidado todos os participantes para a entrevista, Elias não participou dessa etapa.

Em posse de todas essas informações, selecionamos os dados da pesquisa relativos aos trechos que apresentam indícios da mobilização de conhecimentos referentes aos domínios e subdomínios do MKT.

Confrontamos os dados provenientes dos distintos instrumentos de coleta de modo a identificar, nas falas e atividades dos estudantes, indícios de que eles mobilizaram determinados conhecimentos. Agrupamos esses dados tendo como referência os conhecimentos dos domínios e subdomínios do MKT, que estão apresentados no Quadro 2.

Quadro 2
identificação dos subdomínios do MKT por cores

Assim, foi possível identificar os conhecimentos referentes ao MKT que foram mobilizados pelos estudantes ao longo da disciplina, os quais serão apresentados no item subsequente.

4 Conhecimentos Matemáticos para o ensino evidenciados por futuros professores no estudo de aspectos da História da Matemática

Os Conhecimentos Matemáticos para o ensino que foram evidenciados pelos licenciandos ao longo da disciplina de HM são apresentados a seguir, tendo como referência os domínios e subdomínios do MKT.

4.1 Conhecimento Específico do Conteúdo mobilizados

O Conhecimento Específico do Conteúdo, conforme já apontado, envolve conhecer, saber justificar e relacionar conceitos matemáticos estudados na Educação Básica. Identificamos, em nossas análises, que os estudantes mobilizaram conhecimentos referentes aos três subdomínios do conhecimento do Conteúdo, conforme mostraremos a seguir.

O Conhecimento Comum do Conteúdo (CCK), na perspectiva de Ball, Thames e Phelps (2008), conforme exposto anteriormente, refere-se ao conhecimento matemático não exclusivo ao professor que leciona Matemática. Este foi identificado em atividades ou falas dos estudantes Elias, Ester e Rute, por meio das quais esses licenciandos mostraram saber resolver problemas envolvendo conceitos referentes à Matemática lecionada na Educação Básica ou expressaram entender tais conceitos.

Um exemplo desta situação foi identificado na aula síncrona relativa à Matemática na Antiguidade, mais especificamente com relação à temática Matemática no Egito. Nessa aula, observamos indícios de que o licenciando Elias expressou o Conhecimento Comum do Conteúdo ao encontrar uma solução correta para um problema utilizando somente frações unitárias. A professora havia solicitado que os estudantes resolvessem uma adaptação do problema 3 do Papiro de Ahmes: como dividir seis pães por dez homens3, e Elias explicou seu raciocínio:

Professora eu pensei assim: pega cinco pães, aí parte ao meio, aí cada homem vai receber meio pão. Vai sobrar um pão, aí você parte em dez pedacinhos e dá um para cada um. Cada homem vai receber meio pão e um pedacinho, ou seja, cada homem vai receber um meio mais um décimo (Elias, notas do diário de campo, grifo nosso, 2021).

Embora não tenhamos identificado indícios de mobilização do CCK nas atividades de Ester e Rute, destacamos que as próprias licenciandas reconheceram, nas entrevistas, que foram mobilizados tais conhecimentos, conforme pode ser identificado no trecho a seguir:

Acho que foi (sic) os conhecimentos os sobre números complexos que eu aprendi por exemplo, como que se chega na construção geométrica dos números complexos. Quando eu aprendi isso no ensino médio, eu aprendi assim, de uma forma pronta né...então eu não entendi o que acontecia. Na disciplina de HM eu aprendi o que aconteceu4 (Ester, entrevista, grifo nosso, 2021).

Entendemos, por meio desta fala de Ester, que a licencianda afirma que a disciplina contribuiu para que ela tivesse conhecimento sobre a representação geométrica dos números complexos, um assunto da Matemática da Educação Básica.

Já o Conhecimento Especializado do Conteúdo (SCK), de acordo com Ball, Thames e Phelps (2008), é um conhecimento específico dos professores que ensinam Matemática. Identificamos, nas análises das atividades e/ou nas entrevistas, indícios de que os licenciandos Elias, Noemi e Ester mobilizaram esse conhecimento ao longo da disciplina.

Elias expressou mobilizar o SCK ao saber usar uma abordagem não padrão para resolver uma equação do primeiro grau5, utilizando o método da falsa posição na atividade sobre a Matemática Egípcia (AT1), conforme mostrado na Figura 2.

Figura 2
Atividade de Elias sobre método da falsa posição

Compreende-se que as licenciandas Noemi e Ester expressam saber explicar e justificar conceitos e ideias matemáticas, aspecto do Conhecimento Especializado do Conteúdo, ao descreverem geometricamente, baseadas nas ideias de Argand/Gauss, o significado de multiplicar por i, conforme verificamos nos excertos a seguir:

[...] quando eu estudei números complexos no ensino médio, no 3º ano, eu não aprendi o significado geométrico de multiplicar por i. Assim, para saber os resultados das potências de i, eu memorizei os resultados de i^0, i^1, i^2 e i^3, já que o resultado das próximas potências seria algum dos resultados das potências anteriores. Mas eu nunca compreendi de fato o porquê desses resultados e, após conhecer as ideias de Argand, por exemplo, entendi o porquê (Ester, AT8, grifo nosso, 2021).

[...] ao multiplicar 1 por -1, estaria rotacionando 180º; dessa forma, ao rotacionar metade de 180º, ou seja, 90º, é o mesmo que multiplicar 1 por raiz de -1, ou seja, por i. Na imagem abaixo, ao multiplicar OB, que é 1, por i, dá OK, que é i. Rotacionando 90º novamente, que é o mesmo que multiplicar por i, dá ixi, que é -1. Da mesma forma, multiplicando -1 por i, dá –i e, por fim, multiplicando –i por i, dá 1. Ou seja, geometricamente, multiplicar por i é o mesmo que rotacionar 90º (Ester, AT8, 2021).

Figura 3
Atividade AT8 de Ester

Com relação ao Conhecimento do Conteúdo no Horizonte (HCK), Ball, Thames e Phelps (2008) enfatizam que este é caracterizado pelo entendimento de inter-relações entre termos e/ou tópicos, ao longo de toda extensão curricular. Essa característica do Conhecimento do Conteúdo no Horizonte pode ser identificada no trecho a seguir, retirado da Atividade 5, no qual Josué identifica conexões entre o conceito Curva de Agnesi e funções de probabilidade e a possibilidade de esta curva descrever alguns fenômenos físicos.

Também pode trabalhar modelagem de certos fenômenos físicos, funções de probabilidade utilizando a curva de Agnesi (Josué, AT5, 2021).

Entendemos que, nessa afirmação, o licenciando expressa o principal aspecto do Conhecimento do Conteúdo no Horizonte, que é relacionar conteúdos matemáticos que são lecionados em um determinado ano, com outros que já foram ensinados ou que serão abordados em outros momentos da vida escolar.

Com base nas análises apresentadas, ressaltamos que as atividades propostas na disciplina possibilitaram aos licenciandos: resolver problemas e compreender conceitos referentes à Matemática escolar; conhecer formas alternativas para resolver uma equação; formular explicações para procedimentos lecionados na Educação Básica; e mostrar conhecimento relativo a conceitos matemáticos lecionados em diferentes momentos na escola. Dessa forma, entendemos que tais atividades contribuíram para mobilizar e até mesmo ampliar os conhecimentos matemáticos dos futuros professores.

Apresentaremos, a seguir, as contribuições das atividades desta disciplina para a mobilização dos conhecimentos referentes aos subdomínios do PCK.

4.2 Conhecimento Pedagógico do Conteúdo – PCK

O Conhecimento Pedagógico do Conteúdo refere-se a conhecer: distintas formas de lecionar um conteúdo; o currículo; os estudantes e as relações destes com o conteúdo matemático. Identificamos, em nossas análises, que os estudantes mobilizaram conhecimentos referentes aos três subdomínios do PCK, conforme mostraremos a seguir.

O Conhecimento do Conteúdo e dos Estudantes (KCS), segundo Ball, Thames e Phelps (2008), é o conhecimento dos professores acerca dos estudantes e destes em relação à Matemática. Ele foi identificado em falas e atividades dos licenciandos Elias e Sara.

Elias, por exemplo, evidenciou um aspecto inerente a este subdomínio ao antever o que os alunos provavelmente pensarão, ao longo da abordagem do método da falsa posição em sala de aula.

Após algumas resoluções através do método deles (egípcio), vemos que ele é muito mais intuitivo e sem uma “receita de bolo” que é fortemente (sic) ensinados nas escolas, e até mesmo em algumas universidades. Logo, concluímos que trabalhar com o sistema de cálculo egípcio para crianças pode ser muito eficaz, pois eles irão investigar e chegar às formalizações que os livros didáticos chegam (Elias, AT1, grifo nosso, 2021).

Observamos que Sara e Elias têm conhecimentos que os permitem inferir o que os alunos considerarão interessante e motivador, ao afirmar que uma aula com uma abordagem histórica tem o potencial de animar, motivar, divertir e despertar a curiosidade dos estudantes, como pode ser identificado nos excertos a seguir:

[...] eu acho que pra menina, tem muitos aspectos que elas se identificam como incapazes de fazer nas áreas de exatas, eu acho que ter exemplo é pelo menos um ponto que ajuda a desenvolver curiosidade, [...] acho que [conhecer mulheres matemáticas] foi um incentivo a mais na aula e pode ser pra outras menininhas também (Sara, entrevista, grifo nosso, 2021).

Ela [a HM] pode ser usada como artifício de prender a atenção dos alunos, de tornar as aulas mais divertidas, de levar à construção de um raciocínio, e depois partir para uma formalização, etc. ... (Elias, AT2, 2021).

Em que pese o fato de que os licenciandos tenham o conhecimento, muito difundido, de que a inclusão da HM em sala de aula pode motivar os estudantes, destacamos a importância de ser cauteloso com tal ideia, já que “[...] a história, podendo motivar, não necessariamente motiva, e não motiva a todos igualmente e da mesma forma” (Miguel, 1993, p. 70). Nesse sentido, Souto (1997, p. 175) aponta que usar a HM em aulas de Matemática “[...] como instrumento de caráter apenas motivacional é restringir o seu potencial didático”.

Entendemos que a licencianda Sara evidenciou essa mesma característica do Conhecimento do Conteúdo e dos Estudantes na entrevista, ao relatar que, com base em sua experiência em atividades da disciplina (AT2 e AT8), ela pôde inferir que uma abordagem da HM pode contribuir para que o conteúdo lecionado fique mais fácil de ser compreendido pelos alunos. Isso pode ser exemplificado no trecho a seguir, no qual Sara se refere a AT8:

Eu lembro desta atividade [se referindo a AT8], porque quando eu fui ler o conteúdo, eu fiquei muito surpresa, com a forma que ele fazia pra multiplicar (-1) por (-1), eu não tinha visto essa forma antes, pra mim, multiplicar (-1) por (-1) dá isso e pronto, eu não tinha representação gráfica dela por exemplo.[...]. Isso eu respondi mais considerando minha experiência própria, de que eu não vivi isso e uma coisa que eu gostaria de ter vivido. Porque ficou muito mais claro. (Sara, entrevista, grifo nosso, 2021).

Embora não esteja explicito nas características do Conhecimento do Conteúdo e dos Estudantes, que elaboramos com base em Ball, Thames e Phelps (2008), inferimos que a licencianda Rute revela ter conhecimentos relativos a este subdomínio à medida que mostra ter conhecimento relativo às visões sobre a Matemática dos estudantes.

[...] Na minha experiência no PIBID e na escola quando eu (sic) tava estudando, eu via muito que os alunos e meus colegas viam a Matemática como uma ciência exata, pronta e difícil. Surgiu do nada e surgiu difícil (Rute, entrevista, grifo nosso, 2021).

Essas visões dos estudantes podem se refletir na forma como eles se relacionam com a Matemática podendo influenciar a aprendizagem matemática deles. Nesse sentido, destacamos que o conhecimento de tópicos da HM pode contribuir para o entendimento da Matemática como uma ciência humana e em constante construção, que pode favorecer que os estudantes desenvolvam uma melhor relação com a Matemática ou uma “predisposição afetiva com relação a Matemática” nas palavras de Tzanakis et al. (2000, p. 207).

Além disso, Elias destaca que:

Isso [aspectos da HM na idade média] me mostra, contribuindo para a minha formação pedagógica que temos que cada vez mais incentivar os alunos à não desistirem, pois haverá dificuldades no caminho, assim como houve na idade média, porém eles foram capazes de vencer as dificuldades, do mesmo modo que nossos alunos conseguiram tal feito (sic) (Elias, AT6, grifo nosso, 2021).

Essa ideia também está de acordo com Tzanakis et al. (2000, p. 207, tradução nossa), que indicam que o conhecimento acerca da HM contribui, dentre outros aspectos, para que os estudantes tomem consciência do valor da persistência e de “[...] desenvolver formas de pensamento criativas ou idiossincráticas”, e para que eles “[...] não desanimem com fracassos, erros, incertezas ou mal-entendimentos, reconhecendo que estes têm sido alicerces de trabalhos dos Matemáticos mais proeminentes”. Embora, nessa parte do texto, os autores não se refiram especificamente a estudantes do ensino superior ou de cursos de formação de professores, o estudo de tópicos da HM possibilitou que o participante reconhecesse esses aspectos e pensasse em utilizar esse conhecimento em sua futura prática profissional.

Já o Conhecimento do Conteúdo e do Ensino (KCT), segundo os estudos de Ball, Thames e Phelps (2008), refere-se à capacidade de fazer escolhas apropriadas de procedimentos, metodologias e recursos didáticos para um ensino de Matemática mais significativo. Tal conhecimento foi evidenciado por Rute, já que a estudante afirmou a possibilidade de levar a História da Matemática para a escola, com vistas a mostrar aos estudantes aspectos referentes à natureza da Matemática, apresentando, assim, a capacidade de fazer a escolha de utilizar essa abordagem e de justificá-la. Assim, evidencia-se um aspecto do Conhecimento do Conteúdo e do Ensino.

[...] o que eu fui refletindo ao longo da disciplina, foram coisas que a professora foi fazendo e que eu acho que a gente como futuro professor poderia aplicar em sala que são: trazer fragmentos da história pra poder mostrar (sic) pros alunos que a Matemática, ela não é algo que surgiu do nada... foi uma construção, pra mostrar pra eles que pessoas antes fizeram, conseguiram pensar, refletir, que não é assim uma matéria difícil sabe?! Eu creio que a HM pode ser um instrumento pra mostrar para os alunos que a Matemática é algo possível assim de se entender...que pessoas também tiveram dificuldades, que pessoas conseguiram achar caminhos diferentes6 (Rute, entrevista, grifo nosso, 2021).

Essas afirmações estão em consonância a Miguel (1997, p. 82), que indica que uma abordagem da História da Matemática pode contribuir para a desmistificação da ideia, comumente difundida, de que “[...] a matemática é harmoniosa, que está pronta e acabada”.

Além disto, tais afirmações de Rute corroboram a Miguel e Miorim (2008) que enfatizam que a abordagem histórica de conteúdos matemáticos pode contribuir para que os alunos percebam a Matemática como uma criação humana e conheçam as razões pelas quais as pessoas fazem Matemática.

Destacamos que todos os licenciandos demonstram interesse em utilizar abordagem histórica em suas aulas, sobretudo para iniciar o ensino de um conteúdo/tópico. Dessa forma, esses licenciandos expressam KCT ao fazer escolhas didáticas adequadas de abordagens para iniciar ou dar sequência a um conteúdo. Tal ideia pode ser observada nos excertos a seguir:

[...] eu creio que eu traria [a HM] assim, no início do conteúdo, mostrando para os alunos como foi construído, qual foi o processo daquele conteúdo sabe?! Como foi formalizado ao longo do tempo (Rute, entrevista, grifo nosso, 2021).

Eu acho que ... eu imagino que utilizaria no início de algum conceito novo sabe?! Ao introduzir um conceito novo, se eu perceber que eu posso utilizar a HM contando a história de qual povo, de qual localidade que isso surgiu, utilizaria com certeza, somente para introdução (Ester, entrevista, grifo nosso, 2021).

Além disso, observamos que faz parte do repertório dos participantes fazer escolhas de métodos e recursos diversos para elaboração de atividades para o ensino de Matemática, utilizando uma história da Matemática.

Com relação aos métodos, destaca-se que, em uma das aulas referentes à Matemática na Mesopotâmia, após a professora apresentar o método geométrico para resolução de equações do segundo grau, Elias expressou o KCT, ao indicar que este método poderia ser utilizado em aulas de Matemática, conforme mostrado a seguir:

Isso poderia ser aplicado em sala de aula, (se referindo ao método geométrico para resolução de equação do segundo grau) porque fugiria bem do que eu costumo dizer Matemática mecanizada, de passar fórmula e pedir pra reproduzir... (Elias, nota do diário de campo, grifo nosso, 2021).

Esse posicionamento de Elias está em consonância com Miguel e Miorim (2008), que afirmam que a HM pode se configurar como fonte de seleção de métodos adequados para o ensino de conceitos e conteúdos da Matemática Escolar. Assim, a abordagem de métodos ou episódios históricos considerados motivadores para a aprendizagem, pode constituir-se como um caminho para a inserção da HM em aulas de Matemática.

Com relação aos recursos, identificamos que os estudantes Rute e Josué apresentaram jogos e softwares que poderiam ser utilizados para incluir aspectos da HM no ensino de Matemática na Educação Básica, expressando, assim, o KCT. Os excertos apresentados a seguir exemplificam esta situação:

[...] também tentaria utilizar a metodologia com jogos. Dentro da experiência que eu tive, eu percebi que é possível sempre fazer umas ligações com a HM e etnomatemática com jogos. Claro que (sic) é necessárias algumas adaptações, mas é possível 7(Eliseu, entrevista, grifo nosso, 2021).

Eu trabalharia a pesquisa das biografias das mulheres na Matemática, posteriormente uma produção de cartazes com os principais fatos da trajetória de cada mulher e, por fim, iria propor uma gincana para que os alunos pudessem demonstrar os conhecimentos adquiridos (Rute, AT5, grifo nosso, 2021).

Antes de apresentar a curva [se referindo a curva de Agnesi] pode contextualizar, falar um pouco da trajetória acadêmica Maria Gaetana Agnesi, em seguida sim apresentar a curva e trabalhar no software Geogebra ou no próprio celular, já que existe disponível esse aplicativo (Josué, AT5, grifo nosso, 2021).

Destaca-se que os estudantes enfatizaram a relevância de incluir a biografias de mulheres matemáticas nas aulas na educação básica e apresentaram formas de fazê-la. Essa situação pode ter uma relação com o fato de que os estudantes, ao longo da disciplina, realizaram uma atividade dessa natureza.

[...] eu percebi o quanto essa atividade [estudo e apresentação de biografias de matemáticas] agrega positivamente para quem participa (Sara, AT5, 2021).

Observamos que todos os participantes, ainda que de uma forma superficial, conhecem formas de trabalhar a HM em sala de aula. Entretanto, enfatizamos que as ideias deles não são baseadas em suas experiências como docentes, mas em suas experiências como estudantes e em trabalhos desenvolvidos na escola durante a iniciação à docência, o estágio supervisionado ou a execução de projetos.

Merece destaque que os licenciandos se referem à HM como um recurso, ferramenta ou método para o ensino de Matemática. Cavalari et al. (2022, p. 18), ao analisarem ementas de cursos de formação de professores de Matemática, identificaram essa variedade de denominações e afirmam que “Tal diferença de denominação pode indicar a possibilidade e a relevância da realização de pesquisas buscando analisar e refletir acerca do papel da HM no ensino”.

Com relação ao Conhecimento do Conteúdo e do Currículo (KCC), Ball, Thames e Phelps (2008) esclarecem que este envolve conhecer as orientações curriculares, conhecer quais conceitos ou conteúdos matemáticos são, comumente, trabalhados (ou não) na Educação básica e relacionar conteúdos matemáticos com os de outras disciplinas lecionados no mesmo ano escolar. Com base nas atividades e no aprofundamento realizado posteriormente na entrevista, pudemos identificar que os licenciandos expressaram conhecimentos referentes a esse subdomínio.

Identificamos indícios da mobilização do Conhecimento do Conteúdo e do Currículo na AT6 e na entrevista dos licenciandos Josué e Noemi, nas quais eles expressaram ter conhecimento da Base Nacional Comum Curricular ao buscar estabelecer uma relação entre esse documento oficial e a obra “Os nove capítulos da arte matemática” da Matemática chinesa, conforme pode ser observado no trecho a seguir da entrevista de Noemi:

[...] a gente lembrava de uma parte da BNCC que falava sobre o cotidiano dos alunos. Então a gente tentou relacionar essa parte com a BNCC. [...] Porque os nove capítulos falam sobre coisas do cotidiano, eu achei que seria interessante relacionar (Noemi, entrevista, grifo nosso, 2021).

Compreende-se que os licenciandos evidenciaram possuir conhecimentos referentes ao Conteúdo e do Currículo, já que indicaram, nas AT4, AT5 e entrevista, conhecer uma ideia matemática que é, comumente, trabalhada na Educação Básica evidenciando uma das habilidades KCC. Para exemplificar essa ideia, apresentamos o excerto a seguir referente a AT4:

Os egípcios utilizavam um sistema de base 10, usando traços repetitivos para representar os números de 1 a 9 e outros símbolos para representar potências de base 10. A adição e a subtração eram dadas por agrupamentos simples, bastando apenas acrescentar os símbolos, no caso da soma e cancelar símbolos iguais, no caso da subtração do mesmo modo. Este processo é semelhante ao que é ensinado no Ensino Básico (Eliseu, Ester, Rute, AT4, 2021, grifo nosso).

De modo sintético, podemos enfatizar que, com referência ao domínio Conhecimento Específico do Conteúdo, foram identificados indícios do Conhecimento Comum do Conteúdo, Conhecimento Especializado do Conteúdo e Conhecimento do Conteúdo no Horizonte. Destes, o Conhecimento Especializado do Conteúdo evidenciou-se de forma mais expressiva. Destacamos ainda que o Conhecimento Específico do Conteúdo foi identificado, com maior frequência, nas atividades referentes à temática Matemática na Antiguidade.

Em relação ao domínio Conhecimento Pedagógico do Conteúdo, identificamos que os licenciandos evidenciaram conhecimentos referentes aos subdomínios, Conhecimento do Conteúdo e Estudantes, Conhecimentos do Conteúdo e do Ensino e Conhecimento do Conteúdo e Currículo. Identificamos conhecimentos referentes a esse domínio em quase todas as atividades analisadas. Esse fato merece destaque pois, no decorrer das aulas síncronas, não foram abordadas explicitamente questões relacionadas a formas de utilizar a HM em sala de aula, seus objetivos, tampouco justificativas, já que tal temática está prevista na ementa de outra disciplina do curso.

Neste sentido, destacamos a relevância da vivência de atividades com novas abordagens/metodologias na formação inicial para que os futuros professores ampliem seu arcabouço de conhecimentos referentes ao PCK. Especificamente com relação à HM, tal situação já havia sido indicada por Carvalho e Cavalari (2019).

Apresentamos, no Quadro 3, uma síntese dos resultados da investigação acerca dos domínios e subdomínios do MKT que foram evidenciados nas atividades da disciplina de HM.

Quadro 3
Síntese do MKT evidenciado/expresso nas atividades

Para finalizar, destacamos que esses conhecimentos, mobilizados ao longo da disciplina, não necessariamente foram desenvolvidos no decorrer dela e que o fato de os estudantes não demostrarem alguns dos subdomínios apresentados no modelo MKT não indica que eles não possuam tais conhecimentos, mas sim que estes não foram mobilizados no estudo, sendo que as atividades propostas não possibilitaram a sua mobilização e/ou que não pudemos identificar indícios deles ao longo da investigação.

5 Considerações Finais

A presente pesquisa teve como objetivo descrever e analisar as contribuições do estudo de atividades sobre História da Matemática na mobilização de conhecimentos matemáticos para o ensino. Com vistas a atingir este objetivo, investigamos os conhecimentos evidenciados por licenciandos ao longo de uma disciplina especificamente voltada para o estudo da História da Matemática. Nesse sentido, definimos como participantes da pesquisa alunos do curso de Licenciatura em Matemática de uma Universidade Federal.

Investigamos os Conhecimentos Específicos do Conteúdo e os Conhecimentos Pedagógicos do Conteúdo evidenciados/expressos em oito atividades propostas nessa disciplina (atividades sobre a Matemática na Antiguidade, Mulheres na Matemática, Matemática na Idade Média e sobre a Matemática no Renascimento Europeu) e nas entrevistas realizadas após o término da disciplina.

Com base nas análises realizadas, na disciplina de História da Matemática, foram evidenciados/expressos pelos licenciandos indícios de todos os subdomínios do Conhecimento Específico do Conteúdo, sendo a sua maior incidência nas atividades referentes à Matemática na Antiguidade. Os licenciandos revelaram ter conhecimentos referentes ao Conhecimento Especializado do Conteúdo; que envolve conhecer justificativas para conteúdo matemáticos, quando e como podem ser utilizados e como eles se relacionam entre si. Entendemos que esses conhecimentos contribuíram para melhorar conhecimentos matemáticos desses alunos.

Embora os licenciandos tenham descrito ter pouca experiência docente, em algumas atividades, eles evidenciaram ter conhecimentos referentes aos subdomínios do Conhecimento Pedagógico para o Ensino (PCK), com maior ênfase, o Conhecimento do Conteúdo e do Ensino junto com o Conhecimento do Conteúdo e dos Estudantes. Entendemos, portanto, que esses dois subdomínios estão intimamente relacionados.

Destacamos que os participantes da pesquisa apresentaram ter alguns conhecimentos referentes aos alunos e seu pensamento matemático ao ponto de antever possíveis dificuldades, mesmo que estas fossem, em muitos casos, baseadas em suas experiências como estudantes e em trabalhos desenvolvidos na escola em atividades de iniciação à docência, no estágio supervisionado ou em projetos. Eles também foram capazes de propor, ainda que sucintamente, abordagens e exemplificações para serem utilizadas em sala de aula, sendo assim, evidenciaram a principal caraterística do KCS.

Ao apresentar uma ideia de uma atividade, os licenciandos pensam como podem abordar os conteúdos e os procedimentos didáticos para condução do ensino de Matemática. Ball, Thames e Phelps (2008), em seus estudos, declaram a importância desse conhecimento para os professores de Matemática. Nessa perspectiva, as análises desta investigação, embora restritas a uma única turma, indicam que a abordagem de diferentes temáticas acerca da HM tem o potencial de possibilitar aos licenciandos a mobilização de conhecimentos matemáticos necessários à profissão docente.

Nesse sentido, destacamos a relevância da ampliação da discussão nos cursos de licenciatura em Matemática no Brasil e da realização de outras pesquisas envolvendo questões referentes ao Conhecimento Matemático para o Ensino (ou Conhecimentos de professores) e a disciplina de História da Matemática, que possam contribuir para observar e reduzir algumas lacunas que podem interferir na prática profissional dos futuros professores.

Referências

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  • 1
    A realização desta investigação foi submetida aprovada pelo Comitê de Ética em Pesquisa (CAAE: 42163921.7.0000.5099).
  • 2
    Destaca-se que, no caso das atividades em duplas/trios, foram analisadas somente aquelas em que todos os estudantes se configuravam como participantes da investigação.
  • 3
    Adaptação da tradução para o Problema 3 do Papiro de Ahmes.
  • 4
    Questão: por que você considera que estes conhecimentos te auxiliarão a lecionar Matemática?
  • 5
    Sendo considerada a padrão aquela que é a mais utilizada na Educação Básica no Brasil, referente a isolar a incógnita.
  • 6
    Questão: que conhecimentos matemáticos você considera que foram evidenciados e podem ter contribuído para sua formação, como professor, na disciplina de HM?
  • 7
    Questão: deixa-me ver se entendi, você usaria para introdução do conteúdo levando em conta o conhecimento prévio dos alunos? É isso?
  • *
    Este artigo apresenta resultados da dissertação intitulada A História da Matemática na formação inicial de professores: um estudo sobre os conhecimentos matemáticos para o ensino elaborada pela autora e orientada pelos coautores, defendida no Programa de Pós-Graduação em Educação em Ciências da Universidade Federal de Itajubá (UNIFEI).
  • Disponibilidade de dados:
    Os dados gerados ou analisados durante este estudo estão incluídos neste artigo publicado.
  • Editor-chefe responsável:
    Prof. Dr. Roger Miarka
  • Editor associado responsável:
    Prof. Dr. Roger Miarka

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Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    01 Ago 2025
  • Data do Fascículo
    2025

Histórico

  • Recebido
    01 Maio 2024
  • Aceito
    18 Dez 2024
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