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Estamos mesmo translacionando o conhecimento da dor para a prática clínica?

A pesquisa científica na área da saúde se faz de distintas maneiras, desde a pesquisa pré-clínica laboratorial (pesquisa básica), passando pelos estudos observacionais e ensaios clínicos (pesquisa clínica) para, então, ser diretamente aplicada à população (pacientes). Não é seguro fazer a transição direta do estudo de células individuais ou sistemas orgânicos para o teste em pacientes, abrindo espaço para a pesquisa translacional. Esta se destina a estabelecer conexão entre pesquisa básica e inovação em saúde, de modo a gerar produtos, tais como vacinas, fármacos, terapias não farmacológicas, equipamentos ou, ainda, serviços e políticas que possam beneficiar a população. Neste contexto, a pesquisa translacional objetiva a aplicação dos achados de pesquisas laboratoriais e estudos pré-clínicos para idealização e desenvolvimento de ensaios clínicos, bem como adoção de melhores práticas clínicas11 Translation Research | NIOSH | CDC. www.cdc.gov. 2020-02-24.
www.cdc.gov....
,22 What is Translational Research? | UAMS Translational Research Institute”. tri.uams.edu..

Embora a nomenclatura seja recente, essa discussão sobre a ligação entre o conhecimento científico básico e o desenvolvimento de produtos e processos inovadores tem origem em práticas antigas de investigação e se estabeleceu após o Projeto Genoma Humano, em 1990, fortalecendo-se a partir da publicação de um editorial do Journal of the American Medical Association (JAMA), em 2002, ao discutir a necessidade de aplicar avanços adquiridos por meio da pesquisa básica para melhorar a saúde dos pacientes através de novidades nas áreas de prevenção, diagnóstico, prognóstico e tratamento de doenças. Em 2003, o National Institute of Health (NIH), nos Estados Unidos, começou a priorizar a pesquisa translacional33 Zerhouni EA. Translational and clinical science time for a new vision. N Engl J Med. 2005;353(15):1621-3. e, em 2022, a Associação Internacional para o Estudo da Dor (IASP) lançou a campanha mundial intitulada Global Year for Translating Pain Knowledge to Practice, que, em português, pode ser traduzida como Ano Global para translacionar ou traduzir o conhecimento da dor para a prática e visa aumentar a conscientização sobre o conhecimento da dor e como ela pode beneficiar aqueles que vivem com dor.

Além da nova terminologia, desenvolveu-se também uma sistematização para a sua prática por meio de metodologias aperfeiçoadas e sistemas de informação mais eficazes, a exemplo de sistemas em rede. Mas, como assegurar que as descobertas geradas por meio da pesquisa básica gerem ganhos para a saúde da população humana?

Em termos mais elucidativos, um pesquisador da área básica da dor pode identificar, por exemplo, um receptor importante para uma determinada terapia analgésica. Com base nesta informação, pesquisadores da ciência translacional podem avaliar uma série de combinações terapêuticas para desenvolver um fármaco ou uma intervenção não farmacológica, a fim de atingir o efeito esperado, realizando avaliações em modelos laboratoriais com animais e determinando o protocolo com sugestão de dose, de efeito terapêutico e de efeitos adversos ou toxicidade. Então, testados o efeito e a segurança da terapia, pesquisadores da ciência aplicada podem iniciar ensaios clínicos em humanos que tenham condições específicas de dor para testar a eficácia, a responsividade e a segurança clínica. Embora presuma-se que a pesquisa translacional deve ser esse elo entre ciência básica e aplicada, na maioria dos casos, não há articulação entre as duas.

Frequentemente, o conhecimento produzido via ciência básica não é bem aproveitado ou, ainda, no máximo, seu aproveitamento ocorre de maneira muito lenta e pouco promissora. Com o advento da pesquisa translacional, observa-se uma tendência à continuidade do trabalho do pesquisador com a articulação entre o laboratório e a clínica.

No entanto, no atual cenário mundial da pesquisa translacional, existe um verdadeiro hiato entre a pesquisa básica, o pronto acesso dos pacientes a novos produtos e a prestação de assistência, tornando-se um enorme desafio a ser superado. Nos últimos anos, o investimento nesse tipo de pesquisa tem crescido muito e diversas descobertas sobre a neurociência da dor aconteceram, porém o impacto na aplicação de novos diagnósticos e terapias para dor não tem atingido progresso correspondente no que se refere ao desenvolvimento de novos diagnósticos e intervenções de longo prazo para o tratamento da dor crônica, não produzindo marcos terapêuticos na mesma proporção.

Este é um problema icônico, visto que a prevalência de pessoas afetadas pela dor crônica tem aumentado muito em quaisquer faixas etárias, o que aumenta o impacto econômico mundial da dor e, na contramão, não tem ocorrido importantes avanços no que concerne a intervenções para manejo da dor há cerca de 20 anos. Por outro lado, também não se tem observado tamanho progresso de estratégias metodológicas de pesquisa translacional quanto ao desenvolvimento e avaliação de modelos pré-clínicos até o delineamento e execução de ensaios clínicos.

Em que proporção a dor em animais de laboratório se assemelha com a condição humana? Modelos pré-clínicos de dor mimetizam a condição de dor crônica na mesma magnitude que a dor aguda? Estaríamos acomodados aos modelos já existentes? É chegada ou passada a hora de refletirmos e buscarmos novas opções metodológicas para maior compreensão dos novos conceitos em dor de forma a promover efetiva otimização translacional? As perguntas realizadas e respondidas em estudos pré-clínicos são relevantes para estudos de diagnóstico ou tratamento clínico? As perguntas mais adequadas e relevantes têm sido feitas pelos cientistas? A solução de problemas de saúde reais tem sido considerada na ciência básica contemporânea? Quem está fazendo e testando as perguntas? Qual o nível de articulação entre cientistas e clínicos? Essas perguntas são importantes e, embora não haja respostas prontas ou únicas nos diferentes cenários, disparam uma importante reflexão.

Apesar da sua importância, o conhecimento adquirido por meio da ciência básica não deve ser assumido de forma ipsis litteris para promover melhor assistência aos pacientes, ou seja, não é possível assegurar que os fenômenos que acontecem em animais de laboratório se replicam e reproduzem exatamente da mesma maneira e na mesma proporção em seres humanos com dor clínica. Não é tão simples assim! Essa compreensão rasa talvez contribua para o fracasso do potencial translacional da ciência.

Não obstante, faz-se necessária cautela ao criticar a ciência translacional ou os cientistas, visto que distintos fatores que afetam o progresso precisam ser considerados, tais como falta de modelos de dor relevantes; estratégias de avaliação limitadas; diferenças de espécies entre animais de laboratório e seres humanos; falhas de relato, de execução, de análise e/ou de interpretação de ensaios clínicos; restrições regulatórias e divergências entre países.

Não há dúvidas de que a compreensão de mecanismos fisiopatológicos das doenças, assim como os mecanismos de ação de intervenções farmacológicas e não farmacológicas para dor, especialmente da dor crônica, são importantes e acrescentam valor e segurança ao raciocínio clínico dos profissionais, assim como induzem o raciocínio de cientistas para idealização de novas hipóteses e investigações, no intuito de gerar avanços na área clínica que refletem o investimento de tempo e recursos financeiros.

Entretanto, no contexto atual, provavelmente a mais adequada e viável estratégia seja realizar o raciocínio translacional reverso, a partir da verificação de ocorrências com os pacientes e, então, proposição de modelos de dor e métodos de avaliação condizentes com a situação-problema. Esta direção do pensamento de retroalimentação (da clínica para a ciência) favorece o aperfeiçoamento da ciência básica, promovendo avanço e efetiva contribuição para a saúde da população humana.

O conhecimento sobre dor não pode morrer na bancada da ciência básica. Ele precisa de continuidade para ser promissor ao ponto de influenciar, em dado momento, a assistência ao paciente com dor. Por outro lado, embora a tomada de decisão clínica seja pautada na eficácia terapêutica oriunda de ensaios clínicos randomizados e, em maior escala, de revisões sistemática com meta-análise, o conhecimento produzido por meio das ciências básica e translacional são imprescindíveis para prover os profissionais especialistas em dor com informações precisas e confiáveis sobre não somente o que e como funciona, mas porque funciona.

Nesse sentido, a relevância clínica deve ser a prioridade da tomada de decisão de pesquisadores da ciência translacional da dor. Simultaneamente, é necessário compreender a complexidade dos fenômenos e a magnitude dos problemas em saúde, assumindo que os futuros avanços da atuação clínica no cenário da dor crônica deverão ser resolvidos por equipes que envolvam a interdisciplinaridade, de forma colaborativa, por meio de múltiplos saberes e complementação de competências, e cientistas engajados para juntos buscarem a solução para um único problema. Ademais, as organizações, sociedades, instituições e agências de financiamento devem incentivar e induzir a liderança para que os cientistas percebam e foquem na necessidade de técnicas e estratégias inovadoras com ênfase em metas clínicas reais para o manejo da dor. Todos estes fatores, tomados em conjunto, tendem a favorecer o sucesso futuro da pesquisa translacional na área da dor.

REFERENCES

  • 1
    Translation Research | NIOSH | CDC. www.cdc.gov. 2020-02-24.
    » www.cdc.gov
  • 2
    What is Translational Research? | UAMS Translational Research Institute”. tri.uams.edu.
  • 3
    Zerhouni EA. Translational and clinical science time for a new vision. N Engl J Med. 2005;353(15):1621-3.

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    01 Jul 2022
  • Data do Fascículo
    Apr-Jun 2022
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