Acessibilidade / Reportar erro

Aspectos práticos do uso da cannabis medicinal em dor crônica

RESUMO

JUSTIFICATIVA E OBJETIVOS:

As evidências têm revelado um papel importante sobre o uso da cannabis medicinal e da interação do sistema endocanabinoide com outros fármacos para o tratamento de dor crônica neuropática e nociplástica. O objetivo deste estudo foi prover atualização sobre os dados publicados quanto a doses e cuidados com o uso dos canabinoides que mostrem interação na fisiopatologia da dor crônica e seu tratamento.

CONTEÚDO:

Foi realizada uma revisão baseada em pesquisa na base de dados Medline, Pubmed com uso dos unitermos “cannabis e dor”, “endocannabinoid”, “neuropathic pain”, “nociplastic pain” e “drug interactions”.

CONCLUSÃO:

A interação farmacológica com os canabinoides requer aprofundamento do conhecimento científico e as doses são individuais, o que dificulta a criação de um protocolo para tratamento.

Descritores:
Cannabis; Dor; Dor crônica

ABSTRACT

BACKGROUND AND OBJECTIVES:

Evidence has revealed an important role in the use of medical cannabis, and the interaction of the endocannabinoid system with other drugs for the treatment of chronic neuropathic and nociplastic pain. The objective of this review is to bring an update on published data on doses and care with the use of cannabinoids that demonstrate the interaction in the pathophysiology of chronic pain and its treatment.

CONTENTS:

A research-based review was carried out in the MEDLINE, PUBMED database using the keywords “cannabis and pain”, “endocannabinoid”; “neuropathic pain”; “nociplastic pain”; “drug interactions”.

CONCLUSION:

Drug interaction with cannabinoids requires further scientific knowledge and doses are individual, which makes it difficult to create a protocol for treatment.

Keywords:
Cannabis and pain; Endocannabinoid; Neuropathic pain; Nociplastic pain and drug interactions

DESTAQUES

Canabinoides para tratamento de dor crônica, a cada dia vem se firmando como tratamento adjuvante, saber administrá-lo depende de um diagnóstico preciso sobre os sinais e sintomas dolorosos.

Uso de fitocanabinoides para sintomas dolorosos, muitas vezes, não é específico, não segue um protocolo fixo.

Efeitos adversos com o uso de fitocanabinoides são mais comuns do que se imagina, quanto mais se descobre sobre tratamentos e doses, mais longa fica a lista de interações farmacológicas.

INTRODUÇÃO

A cannabis medicinal é uma classe nova de fármacos e, de acordo com a situação regulatória atual no Brasil, recebe a denominação de “produtos à base de cannabis”. Como todo novo fito fármaco, sua integração na prática clínica é feita ainda com cautela pelos prescritores médicos, já que se sabe da individualidade de respostas clínicas e interações farmacológicas possíveis. Outro aspecto importante a ser considerado na prescrição é a presença de vários componentes ativos e sinérgicos, os quais podem ter efeitos clínicos diversos11 Aguiar DP, Souza CP, Barbosa WJ, Santos-Júnior FF, Oliveira AS. Prevalência de dor crônica no Brasil: revisão sistemática. BrJP. 2021;4(3):257-26.,22 Maione S, Costa B, Di Marzo V. Endocannabinoids: a unique opportunity to develop multitarget analgesics. Pain. 2013;154(Suppl 1):S87-S93..

O THC é responsável pela maioria dos efeitos farmacológicos e adversos da cannabis, incluindo seu efeito psicoativo através de sua via a sinalização por meio de receptores CB1 e CB2. No seu uso clínico, destacam-se, principalmente, a atividade analgésica, antiespasmódica, antiemética, estimulante do apetite e para diminuição da motilidade intestinal22 Maione S, Costa B, Di Marzo V. Endocannabinoids: a unique opportunity to develop multitarget analgesics. Pain. 2013;154(Suppl 1):S87-S93.,33 Russo EB, Marcu J. Cannabis pharmacology: the usual suspects and a few promising leads. Adv Pharmacol. 2017;80:67-134..

O canabidiol ou CBD, é um dos fitocanabinoides que não tem o efeito psicotrópico semelhante ao do THC. Ele atua por meio de mecanismos diferentes, com ação indireta sobre os receptores CB1 e CB2 e efeitos diretos em outros alvos como canais de potencial de receptor transitório (TRP), no receptor ativado por proliferador de peroxissoma, entre outros. Os efeitos clínicos principais do CBD são analgesia, anticonvulsivante, anti-inflamatório, antipsicótico e ansiolítico33 Russo EB, Marcu J. Cannabis pharmacology: the usual suspects and a few promising leads. Adv Pharmacol. 2017;80:67-134..

Portanto, para simplificar e organizar o processo de escolha de produto, dose inicial, titulação e acompanhamento do paciente, serão descritos os aspectos práticos que envolvem a prescrição dos fármacos à base da cannabis, focando no tratamento da dor crônica de acordo com artigos científicos de relevância44 Blake A, Wan BA, Malek L, DeAngelis C, Diaz P, Lao N, Chow E, O’Hearn S. A selective review of medical cannabis in cancer pain management. Ann Palliat Med. 2017;6(Suppl 2):S215-S22..

De forma geral, precisa-se entender se existe indicação clínica para cada paciente especificamente. Caso a indicação seja confirmada, deve-se investigar se existe alguma contraindicação relativa, interações farmacológicas, se usou previamente como uso adulto ou como medicinal e/ou outros cuidados que se deve tomar ao eleger o canabinoide ideal44 Blake A, Wan BA, Malek L, DeAngelis C, Diaz P, Lao N, Chow E, O’Hearn S. A selective review of medical cannabis in cancer pain management. Ann Palliat Med. 2017;6(Suppl 2):S215-S22..

Depois, determina-se qual canabinoide ideal ou suas combinações deve-se escolher, qual a classe de produtos está mais indicada, ou seja, um produto de espectro completo ou full spectrum, um isolado, ou outro conhecido como espectro broad, pensando sempre na composição do produto e a proporção entre os canabinoides. Finalmente, escolhe-se a dose inicial a ser prescrita e o produto que iremos indicar33 Russo EB, Marcu J. Cannabis pharmacology: the usual suspects and a few promising leads. Adv Pharmacol. 2017;80:67-134.,44 Blake A, Wan BA, Malek L, DeAngelis C, Diaz P, Lao N, Chow E, O’Hearn S. A selective review of medical cannabis in cancer pain management. Ann Palliat Med. 2017;6(Suppl 2):S215-S22..

Para a se determinar se existe a indicação, deve-se considerar a queixa de dor crônica primária ou secundária, lembrando que está se falando de uma segunda linha de tratamento. Caso a queixa seja de dor aguda, os canabinoides provavelmente não farão parte da prescrição, pois existem fármacos de primeira linha, apesar de haver pesquisas de um braço para dor aguda em andamento22 Maione S, Costa B, Di Marzo V. Endocannabinoids: a unique opportunity to develop multitarget analgesics. Pain. 2013;154(Suppl 1):S87-S93.,55 Freynhagen R, Parada HA, Calderon-Ospina CA, Chen J, Rakhmawati Emril D, Fernández-Villacorta FJ, Franco H, Ho KY, Lara-Solares A, Li CC, Mimenza Alvarado A, Nimmaanrat S, Dolma Santos M, Ciampi de Andrade D. Current understanding of the mixed pain concept: a brief narrative review. Curr Med Res Opin. 2019;35(6):1011-8..

Concomitante com a queixa principal de dor crônica, se deve também explorar na história clínica, exame físico, laboratorial e imagens, outras comorbidades que podem estar associadas direta ou indiretamente com a queixa principal. Por exemplo, a existência de doenças inflamatórias, distúrbios do sono ou de humor, dificuldades cognitivas entre outras. Pacientes com dor crônica costumam apresentar fortes componentes emocionais associados aos sintomas como o catastrofismo e alterações fisiopatológicas muito importantes, tanto na via ascendente como na via descendente da dor. A dor representa para o paciente o que ele perde de qualidade de vida, de capacidade de interação com o mundo. Portanto, tratamentos com fármacos multifatoriais, como o caso dos canabinoides com o sistema endocanabinoide, são muito favoráveis para pacientes com dor crônica66 Mücke ok M, Phillips T, Radbruch L, Petzke F, Häuser W. Cannabis-based medicines for chronic neuropathic pain in adults. Cochrane Database Syst Rev. 2018;3(3):CD012182..

Os canabinoides podem ser utilizados em vários tipos de queixas de pacientes, tais como dor crônica neuropática, dor crônica nociplástica, dores mistas, tolerabilidade a alguns fármacos, distúrbios do sono, outras indicações (epilepsia, ansiedade, doenças neurodegenerativas, doenças autoimunes etc.)

O tratamento de pacientes com dor crônica pode ser um desafio terapêutico importante para o médico. Os canabinoides entram neste contexto para pacientes multifatoriais. Um artigo recente publicado na revista Pain, uma das referências principais em publicações sobre dor no mundo, mostrou que o CBD tem mais de 65 alvos terapêuticos. Os canabinoides agem em todas as vias da dor, em áreas responsáveis por transmissão, modulação ou percepção da dor22 Maione S, Costa B, Di Marzo V. Endocannabinoids: a unique opportunity to develop multitarget analgesics. Pain. 2013;154(Suppl 1):S87-S93.,77 MacCallum CA, Russo EB. Practical considerations in medical cannabis administration and dosing. Eur J Intern Med. 2018;49(1):12-9.. A escolha do canabinoide específico para os sintomas que necessitam de tratamento está resumida na tabela 1.

Tabela 1.
Principais indicações do THC, CBD e suas combinações, de acordo com os sintomas principais e com o efeito terapêutico desejado.

Apesar do CBD ser eleito o tratamento inicial, o delta-9-tetrahidrocanabinol (THC) tem se mostrado eficaz em alguns casos de difícil controle álgico, principalmente quando a dor está associada a espasticidade muscular, como, por exemplo, em esclerose múltipla ou pacientes que tenham sofrido lesões cérebro-corticais, com perdas de funções motoras dos membros, levando a espasticidade88 Bhaskar ok A, Bell A, Boivin M, Briques W, Brown M, Clarke H, Cyr C, Eisenberg E, de Oliveira Silva RF, Frohlich E, Georgius P, Hogg M, Horsted TI, MacCallum CA, Müller-Vahl KR, O’Connell C, Sealey R, Seibolt M, Sihota A, Smith BK, Sulak D, Vigano A, Moulin DE. Consensus recommendations on dosing and administration of medical cannabis to treat chronic pain: results of a modified Delphi process. J Cannabis Res. 2021;3(1):22..

O canabinoide que tem o potencial analgésico mais importante é o delta-9-THC. Este princípio ativo liga-se diretamente aos receptores de anandamida (canabinoide endógeno) do sistema endocanabinoide, retromodulando a liberação de neurotransmissores na fenda sináptica. Este mecanismo também é responsável pelos efeitos adversos conhecidos do uso indiscriminado de THC. Estes efeitos adversos são dose-dependentes. Portanto, consegue-se minimizar estes sintomas indesejados, titulando as doses, ou seja, começando com doses baixas e aumentando as doses diárias de forma lenta e progressiva99 Health Canada. Information for Health Care Professionals. [cited 2014 Nov 25]; Available from: http://www.hc-sc.gc.ca/dhp-mps/marihuana/med/infoprof-eng.php
http://www.hc-sc.gc.ca/dhp-mps/marihuana...
.

Outros canabinoides disponíveis também têm atividade analgésica, com menor impacto sobre a atenção, controle motor e outros sintomas adversos típicos do THC. Estes outros canabinoides, como o delta-8-THC, o canabinol (CBN) e o canabigerol (CBG) apresentam efeito analgésico, pois são intrinsecamente relacionados ao delta-9-THC. O CBG é considerado a origem de todos os canabinoides, incluindo o THC, e apresenta algumas das características de seu metabólito mais famoso. O CBN é um produto da degradação do delta-9-THC pelo tempo ou temperatura elevada. Portanto, pode-se avaliar no momento da prescrição deve-se considerar produtos à base de CBN ou CBG em substituição ao THC para se obter o efeito analgésico desejado77 MacCallum CA, Russo EB. Practical considerations in medical cannabis administration and dosing. Eur J Intern Med. 2018;49(1):12-9.,88 Bhaskar ok A, Bell A, Boivin M, Briques W, Brown M, Clarke H, Cyr C, Eisenberg E, de Oliveira Silva RF, Frohlich E, Georgius P, Hogg M, Horsted TI, MacCallum CA, Müller-Vahl KR, O’Connell C, Sealey R, Seibolt M, Sihota A, Smith BK, Sulak D, Vigano A, Moulin DE. Consensus recommendations on dosing and administration of medical cannabis to treat chronic pain: results of a modified Delphi process. J Cannabis Res. 2021;3(1):22..

O CBD também apresenta um efeito analgésico, porém de menor intensidade do que o THC. Muito provavelmente, a analgesia por CBD é alcançada pela sua ação anti-inflamatória em sinergia com as pequenas quantidades de THC (<0,3%) presentes nos produtos de espectro completo (full espectro), juntamente com os outros componentes ativos da planta (terpenos, flavonoides, fitoesterois e outros), ao que se chama de efeito entourage99 Health Canada. Information for Health Care Professionals. [cited 2014 Nov 25]; Available from: http://www.hc-sc.gc.ca/dhp-mps/marihuana/med/infoprof-eng.php
http://www.hc-sc.gc.ca/dhp-mps/marihuana...
.

Sabe-se da necessidade de uma quantidade de 4 a 6 vezes maior do componente ativo isolado, para obtermos o mesmo efeito terapêutico quando utilizamos um extrato completo da planta. O efeito entourage foi bem demonstrado em um trabalho sobre os princípios ativos da cannabis33 Russo EB, Marcu J. Cannabis pharmacology: the usual suspects and a few promising leads. Adv Pharmacol. 2017;80:67-134.,77 MacCallum CA, Russo EB. Practical considerations in medical cannabis administration and dosing. Eur J Intern Med. 2018;49(1):12-9.,99 Health Canada. Information for Health Care Professionals. [cited 2014 Nov 25]; Available from: http://www.hc-sc.gc.ca/dhp-mps/marihuana/med/infoprof-eng.php
http://www.hc-sc.gc.ca/dhp-mps/marihuana...
.

Nos pacientes com DN é onde se tem mais evidências clínicas publicadas. Nestes pacientes, em geral, utiliza-se o CBD em concentrações maiores em relação ao THC, aumentando a dose dos canabinoides lentamente. As evidências científicas, demonstram que a presença do THC, mesmo em baixas doses, pode trazer resultados melhores em pacientes com neuropatias induzidas pelo vírus da imunodeficiência humana, quimioterapia ou diabetes55 Freynhagen R, Parada HA, Calderon-Ospina CA, Chen J, Rakhmawati Emril D, Fernández-Villacorta FJ, Franco H, Ho KY, Lara-Solares A, Li CC, Mimenza Alvarado A, Nimmaanrat S, Dolma Santos M, Ciampi de Andrade D. Current understanding of the mixed pain concept: a brief narrative review. Curr Med Res Opin. 2019;35(6):1011-8.,1010 Sihota A, Smith BK, Ahmed SA, Bell A, Blain A, Clarke H, Cooper ZD, Cyr C, Daeninck P, Deshpande A, Ethans K, Flusk D, Le Foll B, Milloy MJ, Moulin DE, Naidoo V, Ong M, Perez J, Rod K, Sealey R, Sulak D, Walsh Z, O’Connell C. Consensus-based recommendations for titrating cannabinoids and tapering opioids for chronic pain control. Int J Clin Pract. 2021;75(8):e13871..

Nomenclatura de produtos à base de canabinoides

A importância prática da nomenclatura é devido a forma como se refere a cada tipo de produto, baseada na concentração dos canabinoides e o tipo de purificação ao qual o produto foi submetido, retirando canabinoides específicos ou então deixando apenas um destes componentes (produto isolado)1010 Sihota A, Smith BK, Ahmed SA, Bell A, Blain A, Clarke H, Cooper ZD, Cyr C, Daeninck P, Deshpande A, Ethans K, Flusk D, Le Foll B, Milloy MJ, Moulin DE, Naidoo V, Ong M, Perez J, Rod K, Sealey R, Sulak D, Walsh Z, O’Connell C. Consensus-based recommendations for titrating cannabinoids and tapering opioids for chronic pain control. Int J Clin Pract. 2021;75(8):e13871..

Os produtos de espectro amplo ou espectro broad, também contém todos os componentes da planta, com exceção do THC. O produto sofre um processo de purificação para retirar um dos canabinoides, também chamados de isolados e são utilizados em situações muito específicas e portanto não teremos o efeito entourage1010 Sihota A, Smith BK, Ahmed SA, Bell A, Blain A, Clarke H, Cooper ZD, Cyr C, Daeninck P, Deshpande A, Ethans K, Flusk D, Le Foll B, Milloy MJ, Moulin DE, Naidoo V, Ong M, Perez J, Rod K, Sealey R, Sulak D, Walsh Z, O’Connell C. Consensus-based recommendations for titrating cannabinoids and tapering opioids for chronic pain control. Int J Clin Pract. 2021;75(8):e13871.,1111 Naik H, Trojian TH. Therapeutic potential for cannabinoids in sports medicine: current literature review. Curr Sports Med Rep. 2021;20(7):345-50..

Efeito entourage

Quando se usa extratos completos da planta que contenham canabinoides principais como CBD e THC com os canabinoides secundários, flavonoides, terpenos, açucares, e outros componentes da planta, os efeitos são potencializados e recebe o nome de efeito entourage ou comitiva.

Isto justifica os resultados superiores dos produtos de espectro completo em relação aos produtos isolados. Utilizando produtos de origem conhecida e certificada, de espectro full ou broad, consegue-se alcançar os efeitos farmacológicos desejados com menor dose e com menos efeitos adversos1212 Miller GF, DePadilla L, Jones SE, Bartholow BN, Sarmiento K, Breiding MJ. The association between sports- or physical activity-related concussions and suicidality among US high school students, 2017. Sports Health. 2021;13(2):187-97..

Contraindicações

As contraindicações são quase todas relacionadas ao THC e são dose-dependentes.

Existem grupos de pessoas nos quais deve-se ter precaução no uso da cannabis medicinal:

  • pessoas com menos de 25 anos têm contraindicação relativa, pois existem indicações que altas doses diárias de THC podem interferir no desenvolvimento cognitivo que ocorre até esta idade;

  • se na história do paciente identificam transtorno de uso de substâncias de uso adulto;

  • nos transtornos de saúde mental como esquizofrenia e psicoses que não estejam controlados, o THC está contraindicado, pois pode desencadear crises em doses maiores;

  • doença cardíaca instável: um dos efeitos adversos do THC é o aumento da frequência cardíaca e, portanto, nos pacientes com doença cardíaca instável deve-se evitar o uso de cannabis medicinal;

  • o uso inalado é contraindicado em pacientes com doença respiratória instável. Lembrando que a inalação ou mesmo a vaporização é proibida no Brasil e nunca devem ser indicadas pelo médico, embora se saiba que em outros países existem vaporizadores aprovados para uso medicinal;

  • na gravidez e lactação não existem dados de segurança que suportem o uso de cannabis medicinal. Existem relatos de recém-nascidos de mães que faziam o uso crônico de cannabis fumada, que vieram a termo com peso inferior à média populacional;

  • pode ocorrer o aumento das enzimas hepáticas com o uso de CBD em pacientes que tenham alguma disfunção hepática prévia. Portanto, é importante identificar pacientes com história prévia de hepatotoxicidade e solicitar um perfil laboratorial da função hepática antes de iniciar o tratamento com CBD e a cada 3 meses1111 Naik H, Trojian TH. Therapeutic potential for cannabinoids in sports medicine: current literature review. Curr Sports Med Rep. 2021;20(7):345-50.,1212 Miller GF, DePadilla L, Jones SE, Bartholow BN, Sarmiento K, Breiding MJ. The association between sports- or physical activity-related concussions and suicidality among US high school students, 2017. Sports Health. 2021;13(2):187-97..

Determinação da dose na prática clínica

As formas farmacêuticas disponíveis no Brasil para administração de produtos à base de canabinoides são óleos, tinturas, cápsula gel, cremes, supositórios e recentemente patch de uso tópico. Os óleos, como MCT (medium chain triglycerides), óleo de coco e azeite de oliva, são os veículos mais utilizados e trazem a vantagem de facilitar a titulação dos produtos nas fases iniciais de tratamento, facilitando quantidade de miligramas através do número de gotas a ser utilizado a cada horário e dia. Produtos de origem conhecida e certificada sempre trazem a informação que quantos miligramas de cada canabinoide, tem uma gota ou em 1 mL. Esta informação é vital para se prescrever e calcular a titulação1212 Miller GF, DePadilla L, Jones SE, Bartholow BN, Sarmiento K, Breiding MJ. The association between sports- or physical activity-related concussions and suicidality among US high school students, 2017. Sports Health. 2021;13(2):187-97..

Orientações no tratamento com canabinoides:

  • Determinação de quais doenças e sintomas queremos tratar. Existe indicação?

  • Existe alguma contraindicação ou interação farmacológica possível?

  • Qual canabinoide deve ser privilegiado (CBD ou THC) ou o uso de um produto balanceado?

  • Qual o melhor tipo de produto a ser utilizado (full, broad ou isolado)?

  • Escolher a concentração de cada canabinoide e escolher o produto.

  • Os receituários são brancos não carbonado com as informações necessárias que a ANVISA exige, azul ou amarelo dependendo do produto.

  • Determine quais são os objetivos clínicos e os “objetivos do paciente” para o tratamento e quais os resultados esperados para que seja possível determinar o sucesso ou a falha da intervenção, além de gerenciar as expectativas do paciente1313 Fitzcharles MA, Petzke F, Tölle TR, Häuser W. Cannabis-based medicines and medical cannabis in the treatment of nociplastic pain. Drugs. 2021;81(18):2103-16..

Quando se inicia e titula-se a cannabis medicinal, não mude ou adicione outros fármacos.

Se outros fármacos tiverem suas doses alteradas ou forem introduzidos novos fármacos, será impossível determinar se o paciente está tendo efeitos adversos da mudança do fármaco prévio ou se os efeitos adversos são devido à introdução da cannabis. Estabilize a dose de cannabis antes de mudar outros fármacos em uso. Deve-se lembrar de começar com a dose mais baixa e avançar devagar – “Start Low – Go Slow1313 Fitzcharles MA, Petzke F, Tölle TR, Häuser W. Cannabis-based medicines and medical cannabis in the treatment of nociplastic pain. Drugs. 2021;81(18):2103-16..

Esta conduta deve ser customizada para várias condições. Caso o paciente relate uma experiência prévia ruim, é provável que seja um metabolizador lento de THC e, portanto, deve-se ser cuidadoso com a dose inicial e titulação, ou mesmo considerar-se o uso de CBG. Deixe os objetivos de tratamento muito claros para o paciente, e documente1414 Luckett T, Phillips J, Lintzeris N, Allsop D, Lee J, Solowij N, Martin J, Lam L, Aggarwal R, McCaffrey N, Currow D, Chye R, Lovell M, McGregor I, Agar M. Clinical trials of medicinal cannabis for appetite-related symptoms from advanced cancer: a survey of preferences, attitudes and beliefs among patients willing to consider participation. Intern Med J. 2016;46(11):1269-75..

Caso ocorram efeitos adversos, são atenuados pela titulação lenta da cannabis por um período de duas a quatro semanas e pelo uso de produtos com maior proporção de CBD em relação ao THC. O CBD modifica a curva de biodisponibilidade do THC, tornando-a mais baixa e prolongada em relação ao tempo, e desta forma, minimiza os efeitos adversos do THC. A dose ideal geralmente permanece estável e não necessita doses crescentes ao longo do tempo. Se houver tolerância, revise se o paciente está confundindo euforia com o controle dos sintomas. Se tolerante aos efeitos fisiológicos da cannabis, sugerir um curto “feriado de fármaco” de 48h é geralmente suficiente para melhorar sua resposta ao tratamento1515 Nugent SM, Morasco BJ, O’Neil ME, Freeman M, Low A, Kondo K, Elven C, Zakher B, Motu’apuaka M, Paynter R, Kansagara D. The effects of cannabis among adults with chronic pain and an overview of general harms: a systematic review. Ann Intern Med. 2017;167(5):319-31..

São escassos os trabalhos publicados sobre como dosar e administrar os produtos de cannabis medicinal. Foi publicado um artigo extenso, com uma boa revisão com foco no THC, e sugeriram doses iniciais e escalonamento de dose deste canabinoide, com pouca referência ao CBD77 MacCallum CA, Russo EB. Practical considerations in medical cannabis administration and dosing. Eur J Intern Med. 2018;49(1):12-9.,1515 Nugent SM, Morasco BJ, O’Neil ME, Freeman M, Low A, Kondo K, Elven C, Zakher B, Motu’apuaka M, Paynter R, Kansagara D. The effects of cannabis among adults with chronic pain and an overview of general harms: a systematic review. Ann Intern Med. 2017;167(5):319-31..

Cada paciente pode ter um perfil distinto de expressão de receptores do sistema endocanabinoide, além do metabolismo hepático dos canabinoides que varia individualmente. Estas particularidades tornam fundamental encontrar a dose individualizada para cada paciente1616 Busse JW, Vankunkelsven P, Zeng L, Heen AF, Marglen A, Campbell F, Granan LP, Artgeerts B, Buchbinder R, Coen M, Juurlink D, Samer C, Siemieniuk B, Nimisha K, Cooper L, Brown J, Lytvyn L, Zaraatkar D, Wang L, Guyatt GH, Vandvik PO, Agoritsas T. Medical cannabis or cannabinoids for chronic pain: a clinical practice guideline. BJM. 2021;374:n2040.. De acordo com o último consenso sobre tratamento de cannabis medicinal feito em 2018 por estudiosos de vários países, surgiram três tipos de protocolos de titulação diferentes organizadas por tipos de pacientes e suas condições:

  1. protocolo de rotina: pacientes adultos, não polifarmácia, sem experiência ou experiência prévia positiva com canabinoides.

  2. protocolo conservador: pacientes idosos e frágeis, ou com experiência prévia ruim com canabinoides ou em uso de polifarmácia.

  3. protocolo rápido: pacientes com experiência prévia positiva com cannabis e que necessitem de doses mais importantes de canabinoides1616 Busse JW, Vankunkelsven P, Zeng L, Heen AF, Marglen A, Campbell F, Granan LP, Artgeerts B, Buchbinder R, Coen M, Juurlink D, Samer C, Siemieniuk B, Nimisha K, Cooper L, Brown J, Lytvyn L, Zaraatkar D, Wang L, Guyatt GH, Vandvik PO, Agoritsas T. Medical cannabis or cannabinoids for chronic pain: a clinical practice guideline. BJM. 2021;374:n2040..

O paciente pode referir melhora dos sintomas ou outras condições que afetem positivamente sua qualidade de vida. Por exemplo, “a dor continua aqui, mas consigo gerenciar melhor e realizar as tarefas domésticas”. É neste ponto que se estabiliza a dose e mantém-se este paciente em observação e seguimento1010 Sihota A, Smith BK, Ahmed SA, Bell A, Blain A, Clarke H, Cooper ZD, Cyr C, Daeninck P, Deshpande A, Ethans K, Flusk D, Le Foll B, Milloy MJ, Moulin DE, Naidoo V, Ong M, Perez J, Rod K, Sealey R, Sulak D, Walsh Z, O’Connell C. Consensus-based recommendations for titrating cannabinoids and tapering opioids for chronic pain control. Int J Clin Pract. 2021;75(8):e13871.,11 Aguiar DP, Souza CP, Barbosa WJ, Santos-Júnior FF, Oliveira AS. Prevalência de dor crônica no Brasil: revisão sistemática. BrJP. 2021;4(3):257-26..

Lembrar que os óleos contendo canabinoides, levam cerca de 1 a 2h para fazerem efeito e mantêm-se no metabolismo por 6 a 8h. Deve-se sempre estar atentos para a dose de THC, a qual, mesmo baixa, poderá eventualmente causar algum efeito colateral indesejável1616 Busse JW, Vankunkelsven P, Zeng L, Heen AF, Marglen A, Campbell F, Granan LP, Artgeerts B, Buchbinder R, Coen M, Juurlink D, Samer C, Siemieniuk B, Nimisha K, Cooper L, Brown J, Lytvyn L, Zaraatkar D, Wang L, Guyatt GH, Vandvik PO, Agoritsas T. Medical cannabis or cannabinoids for chronic pain: a clinical practice guideline. BJM. 2021;374:n2040.. No consenso os experts, foi acordado que, quando o paciente chega na dose de 40 mg ao dia de CBD full espectro e os objetivos do tratamento não foram atingidos, deve-se considerar adicionar um segundo produto que contenha uma quantidade de THC mais importante do que o primeiro produto1616 Busse JW, Vankunkelsven P, Zeng L, Heen AF, Marglen A, Campbell F, Granan LP, Artgeerts B, Buchbinder R, Coen M, Juurlink D, Samer C, Siemieniuk B, Nimisha K, Cooper L, Brown J, Lytvyn L, Zaraatkar D, Wang L, Guyatt GH, Vandvik PO, Agoritsas T. Medical cannabis or cannabinoids for chronic pain: a clinical practice guideline. BJM. 2021;374:n2040.,1717 Sugiura T, Kondo S, Sukagawa A, Nakane S, Shinoda A, Itoh K, Yamashita A, Waku K. 2-Arachidonoylglycerol: a possible endogenous cannabinoid receptor ligand in brain. Biochem Biophys Res Commun. 1995;215(1):89-97..

Outro aspecto prático, raramente mencionado em literatura, mas que se observa na prática clínica, é a administração de produtos à base de cannabis com alimentos gordurosos. Por ser lipofílico, os canabinoides têm sua absorção otimizada ao serem administrados junto com alimentos desta natureza e aumentam significativamente sua biodisponibilidade, da ordem de 6% (sem alimentos gordurosos) para 30% (com alimentos gordurosos), e o número de doses ao dia depende da cobertura que queremos dar para cada paciente. Óleos contendo canabinoides, levam cerca de 1 a 2h para fazerem efeito e mantem-se no metabolismo por 6 a 8h. Deve-se sempre estar atentos para a dose de THC, a qual, mesmo baixa, poderá eventualmente causar algum efeito adverso indesejável1616 Busse JW, Vankunkelsven P, Zeng L, Heen AF, Marglen A, Campbell F, Granan LP, Artgeerts B, Buchbinder R, Coen M, Juurlink D, Samer C, Siemieniuk B, Nimisha K, Cooper L, Brown J, Lytvyn L, Zaraatkar D, Wang L, Guyatt GH, Vandvik PO, Agoritsas T. Medical cannabis or cannabinoids for chronic pain: a clinical practice guideline. BJM. 2021;374:n2040..

Vale notar que o consenso de dose administração foi desenvolvido para o uso em pacientes adultos. A indicação de uso pediátrico deve levar em conta os riscos e benefícios a serem obtidos com a terapia com canabinoides. Não existem comprovações clínicas de que as doses utilizadas de forma medicinal possam afetar negativamente o desenvolvimento da cognição99 Health Canada. Information for Health Care Professionals. [cited 2014 Nov 25]; Available from: http://www.hc-sc.gc.ca/dhp-mps/marihuana/med/infoprof-eng.php
http://www.hc-sc.gc.ca/dhp-mps/marihuana...
,1616 Busse JW, Vankunkelsven P, Zeng L, Heen AF, Marglen A, Campbell F, Granan LP, Artgeerts B, Buchbinder R, Coen M, Juurlink D, Samer C, Siemieniuk B, Nimisha K, Cooper L, Brown J, Lytvyn L, Zaraatkar D, Wang L, Guyatt GH, Vandvik PO, Agoritsas T. Medical cannabis or cannabinoids for chronic pain: a clinical practice guideline. BJM. 2021;374:n2040.

Na prática clínica, pode-se diferir destes protocolos quando já se tem experiência com a prescrição de cannabis medicinal. Por exemplo, ao invés de iniciar o uso de THC quando o paciente atinge 40 mg de CBD sem sucesso, pode-se seguir a titulação de CBD full ou broad espectro até 80 mg a 100 mg antes de iniciar o THC. Este nível de CBD é chamado de sweet spot, em que a maioria dos pacientes já apresenta alguma resposta clínica. Caso o paciente não relate melhora com esta dose de CBD, deve-se iniciar o THC16.16 Busse JW, Vankunkelsven P, Zeng L, Heen AF, Marglen A, Campbell F, Granan LP, Artgeerts B, Buchbinder R, Coen M, Juurlink D, Samer C, Siemieniuk B, Nimisha K, Cooper L, Brown J, Lytvyn L, Zaraatkar D, Wang L, Guyatt GH, Vandvik PO, Agoritsas T. Medical cannabis or cannabinoids for chronic pain: a clinical practice guideline. BJM. 2021;374:n2040.

Os efeitos adversos do THC são diminuídos quando utilizado CBD associado1616 Busse JW, Vankunkelsven P, Zeng L, Heen AF, Marglen A, Campbell F, Granan LP, Artgeerts B, Buchbinder R, Coen M, Juurlink D, Samer C, Siemieniuk B, Nimisha K, Cooper L, Brown J, Lytvyn L, Zaraatkar D, Wang L, Guyatt GH, Vandvik PO, Agoritsas T. Medical cannabis or cannabinoids for chronic pain: a clinical practice guideline. BJM. 2021;374:n2040..

Interações farmacológicas

O tratamento de pacientes com dor crônica utilizando canabinoides, deve obedecer aos princípios farmacológicos levando em conta as interações farmacológicas possíveis, as leis vigentes no país, pois podem interagir e modificar a biodisponibilidade de anticonvulsivantes, antidepressivos, opioides e muitos outros1616 Busse JW, Vankunkelsven P, Zeng L, Heen AF, Marglen A, Campbell F, Granan LP, Artgeerts B, Buchbinder R, Coen M, Juurlink D, Samer C, Siemieniuk B, Nimisha K, Cooper L, Brown J, Lytvyn L, Zaraatkar D, Wang L, Guyatt GH, Vandvik PO, Agoritsas T. Medical cannabis or cannabinoids for chronic pain: a clinical practice guideline. BJM. 2021;374:n2040.,1717 Sugiura T, Kondo S, Sukagawa A, Nakane S, Shinoda A, Itoh K, Yamashita A, Waku K. 2-Arachidonoylglycerol: a possible endogenous cannabinoid receptor ligand in brain. Biochem Biophys Res Commun. 1995;215(1):89-97..

O uso racional dos fármacos à base de cannabis, o aumento escalonado da dose, a escolha correta do composto ativo, são as bases principais do tratamento seguro. Existem poucos dados sobre interação farmacológica com cannabis medicinal. Porém sabemos que seu metabolismo se dá no fígado através do citocromo CYP450, a mesma via metabólica utilizado por muitos outros fármacos. A maioria das interações farmacológicas são associadas com o uso concomitante de depressores do SNC (álcool, sedativos-hipnóticos). Não existem estudos específicos de interações farmacológicas com a cannabis e sim observações em estudos com outros objetivos primários e secundários. As interações podem aumentar e mesmo diminuir a quantidade de fármacos circulantes. Isto é muito importante para o manejo clínico dos pacientes com outros fármacos em uso. Os indutores do CYP450 como a rifampicina diminuem a concentração máxima e a área sob a curva do THC e do CBD, enquanto os inibidores do CYP450, como o cetoconazol, aumentam esta relação1818 Häuser W, Petzke F, Fitzcharles MA. Efficacy, tolerability and safety of cannabis-based medicines for chronic pain management – an overview of systematic reviews. Eur J Pain. 2018;22(3):455-70.. Teoricamente, por competir pela mesma via de metabolização, o THC pode diminuir as concentrações séricas de:

  • clozapina,

  • haloperidol,

  • duloxetina,

  • ciclobenzapina,

  • olanzapina,

  • ciclosporina,

  • teofilina.

O CBD pode aumentar as concentrações séricas de:

  • haloperidol,

  • antipsicóticos,

  • benzodiazepínicos,

  • antidepressivos tricíclicos,

  • bloqueadores de canal de cálcio,

  • atorvastatina e sinvastatina,

  • betabloqueadores,

  • anti-histamínicos,

  • antirretrovirais,

  • opioides,

  • clobazam,

  • macrolidios,

  • sildenafil,

  • ciclosporina,

  • tamoxifeno,

  • varfarina.

A maioria das interações farmacológicas estão associadas com o uso concomitante de depressores do SNC como o álcool e benzodiazepínicos. De todos os fármacos, somente a pimozida, apresenta contraindicação absoluta ao uso concomitante com cannabis medicinal, pelo seu risco aumentado do alargamento do intervalo QT no eletrocardiograma1717 Sugiura T, Kondo S, Sukagawa A, Nakane S, Shinoda A, Itoh K, Yamashita A, Waku K. 2-Arachidonoylglycerol: a possible endogenous cannabinoid receptor ligand in brain. Biochem Biophys Res Commun. 1995;215(1):89-97..

Após a divulgação destas observações, tornou-se prática clínica a solicitação de exames de função hepática (TGO, TGP, bilirrubinas, gama glutamiltransferase, fosfatase alcalina, desidrogenase lática, proteínas totais e tempo de protrombina) para todos os pacientes que referirem hepatopatia prévia ou em atividade. O acompanhamento é feito baseado no perfil original e nas repetições dos exames a cada três meses. Caso algum dos parâmetros esteja apresentando modificações, deve-se parar o uso do CBD e investigar as causas.

A dor oncológica é um sintoma difícil de controlar apenas com canabinoides, os quais são utilizados como adjuvantes, pois potencializam os efeitos de opioides88 Bhaskar ok A, Bell A, Boivin M, Briques W, Brown M, Clarke H, Cyr C, Eisenberg E, de Oliveira Silva RF, Frohlich E, Georgius P, Hogg M, Horsted TI, MacCallum CA, Müller-Vahl KR, O’Connell C, Sealey R, Seibolt M, Sihota A, Smith BK, Sulak D, Vigano A, Moulin DE. Consensus recommendations on dosing and administration of medical cannabis to treat chronic pain: results of a modified Delphi process. J Cannabis Res. 2021;3(1):22., e consequentemente, a oportunidade de redução de dose dos opioides1818 Häuser W, Petzke F, Fitzcharles MA. Efficacy, tolerability and safety of cannabis-based medicines for chronic pain management – an overview of systematic reviews. Eur J Pain. 2018;22(3):455-70..

Em pacientes com dor oncológica e outros sintomas, a tendência é iniciar o tratamento adjuvante com CBD espectro full com baixas doses de THC. Avalie as condições clínicas e a resposta destes pacientes não só da dor, mas também da anorexia, ansiedade, insônia e na percepção da doença, as quais podem beneficiar-se da intervenção com canabinoides1818 Häuser W, Petzke F, Fitzcharles MA. Efficacy, tolerability and safety of cannabis-based medicines for chronic pain management – an overview of systematic reviews. Eur J Pain. 2018;22(3):455-70.,1919 Serrano A, Parsons LH. Endocannabinoid influence in drug reinforcement, dependence and addiction-related behaviors. Pharmacol Ther. 2011;132(3):215-41..

Segurança – considerações

Não existem receptores canabinoides no tronco cerebral. Isto é importante porque é onde está localizado o centro neuronal de controle cardiorrespiratório. Como a cannabis não causa depressão dos centros respiratórios, não existem relatos de morte pelo uso da cannabis. O mesmo não pode ser dito dos opioides, cujos receptores são abundantes nesta área do encéfalo e sabidamente causam depressão respiratória e morte1919 Serrano A, Parsons LH. Endocannabinoid influence in drug reinforcement, dependence and addiction-related behaviors. Pharmacol Ther. 2011;132(3):215-41..

Uma forma de avaliar a segurança do uso da cannabis medicinal, é através de sua toxicidade, comparando a proporção entre a dose letal e a dose farmacológica (ou efetiva). Assim, quanto maior a diferença entre a dose efetiva e a dose letal, mais segura é a substância2020 Castaneto MS, Gorelick DA, Desrosiers NA, Hartman RL, Pirard S, Huestis MA. Synthetic cannabinoids: epidemiology, pharmacodynamics, and clinical implications. Drug Alcohol Depend. 2014;144(1):12-41..

As drogas de uso adulto mais tóxicas como o GHB (gama-hidroxibutirato) e heroína, tem esta proporção entre doses efetiva e letal menor do que 10. O maior agrupamento de substâncias psicoativas tem uma dose letal que é 10 a 20 vezes a dose efetiva: isso inclui cocaína, MDMA (ecstasy) e álcool. Como não há relatos de mortes conhecidas em relação a ingestão ou inalação relacionadas a cannabis, a sua dose letal permanece desconhecida (ou apenas possível na teoria até que apareça algum estudo provando o contrário), tornando-a uma substância relativamente livre de riscos em termos de toxicidade2020 Castaneto MS, Gorelick DA, Desrosiers NA, Hartman RL, Pirard S, Huestis MA. Synthetic cannabinoids: epidemiology, pharmacodynamics, and clinical implications. Drug Alcohol Depend. 2014;144(1):12-41.,2121 Aizpurua-Olaizola O, Elezgarai I, Rico-Barrio I, Zarandona I, Etxebarria N, Usobiaga A. Targeting the endocannabinoid system: future therapeutic strategies. Drug Discov Today. 2017;22(1):105-10..

Acompanhamento do paciente na prática clínica

Após iniciar o tratamento, sugere-se que os pacientes devam ser acompanhados de perto para verificar possíveis modificações na condição clínica e possível ocorrência de algum efeito adverso advindo do uso de canabinoides ou mesmo interações farmacológicas, em até 15 dias após o início do tratamento. Neste tempo, na grande maioria dos casos e os efeitos benéficos podem já estar sendo sentidos, caso seja necessário, deve-se fazer algum ajuste de doses, distribuição das doses durante os horários do dia ou mesmo orientar o paciente a seguir com a titulação2121 Aizpurua-Olaizola O, Elezgarai I, Rico-Barrio I, Zarandona I, Etxebarria N, Usobiaga A. Targeting the endocannabinoid system: future therapeutic strategies. Drug Discov Today. 2017;22(1):105-10..

Após a primeira consulta de retorno, o acompanhamento pode ser espaçado de acordo com as necessidades médico-paciente. Deve-se lembrar que este acompanhamento é apenas uma orientação geral, pois cada paciente necessitará de seguimento específico de acordo com sua doença, grau de acometimento e necessidade de contato com a equipe médica2020 Castaneto MS, Gorelick DA, Desrosiers NA, Hartman RL, Pirard S, Huestis MA. Synthetic cannabinoids: epidemiology, pharmacodynamics, and clinical implications. Drug Alcohol Depend. 2014;144(1):12-41..

Também é importante, no acompanhamento, saber se o consumo do fármaco está sendo feito de forma correta. Para isso, sempre se pergunta quantas gotas ou mililitros o paciente está tomando em cada período e quanto falta para terminar o frasco. Com isso, pode-se entender se o paciente está se expondo excessivamente ou mesmo ingerindo uma sub-dose em relação à prescrição. Pode see identificado o distúrbio de abuso de cannabis e tentar corrigir as doses. Se forem identificados efeitos adversos do THC, pode ser reduzida a dose deste componente ou aumentar a dose de CBD2121 Aizpurua-Olaizola O, Elezgarai I, Rico-Barrio I, Zarandona I, Etxebarria N, Usobiaga A. Targeting the endocannabinoid system: future therapeutic strategies. Drug Discov Today. 2017;22(1):105-10..

CONCLUSÃO

A cannabis medicinal pode ser considerada uma classe terapêutica nova e segura, pois a diferença entre a dose farmacológica e a dose letal é >1000 vezes (por exemplo o álcool é 10x).

No Brasil, estão disponíveis apenas produtos nas formas farmacêuticas de óleo, capsulas gel ou tópicos; não é permitida a inalação. O uso de canabinoides também pode aliviar a ansiedade, melhorar a qualidade do sono e potencializar os efeitos de outros analgésicos, mas não são tratamentos de primeira linha. Por via oral, o início de ação se dá entre 1 e 3 horas e o efeito se mantém por 6 a 8 horas. Isto é importante na prescrição para se decidir a que horas e quantas vezes titular as doses durante o dia.

Os efeitos adversos e as contraindicações relativas relacionadas ao THC são dose-dependentes e os efeitos adversos do THC podem ser minimizados com o aumento da administração concomitante de CBD e que as principais indicações são tratamento da dor crônica neuropática e nociplástica, distúrbios de sono, ansiedade, depressão, sintomas de doenças neurodegenerativas, convulsões e pacientes paliativos.

As contraindicações relativas são principalmente para pessoas com menos de 25 anos para o THC, transtornos de abuso de substâncias, transtornos de saúde mental, como esquizofrenia e psicoses que não estejam controlados, doença cardíaca instável, gravidez e lactação, que o CBD pode aumentar o nível das enzimas hepáticas em pacientes que tenham alguma disfunção hepática prévia. Ao contrário de muitos pacientes imaginam, não é necessário sentir efeitos de euforia para que tenhamos os efeitos farmacológicos.

REFERENCES

  • 1
    Aguiar DP, Souza CP, Barbosa WJ, Santos-Júnior FF, Oliveira AS. Prevalência de dor crônica no Brasil: revisão sistemática. BrJP. 2021;4(3):257-26.
  • 2
    Maione S, Costa B, Di Marzo V. Endocannabinoids: a unique opportunity to develop multitarget analgesics. Pain. 2013;154(Suppl 1):S87-S93.
  • 3
    Russo EB, Marcu J. Cannabis pharmacology: the usual suspects and a few promising leads. Adv Pharmacol. 2017;80:67-134.
  • 4
    Blake A, Wan BA, Malek L, DeAngelis C, Diaz P, Lao N, Chow E, O’Hearn S. A selective review of medical cannabis in cancer pain management. Ann Palliat Med. 2017;6(Suppl 2):S215-S22.
  • 5
    Freynhagen R, Parada HA, Calderon-Ospina CA, Chen J, Rakhmawati Emril D, Fernández-Villacorta FJ, Franco H, Ho KY, Lara-Solares A, Li CC, Mimenza Alvarado A, Nimmaanrat S, Dolma Santos M, Ciampi de Andrade D. Current understanding of the mixed pain concept: a brief narrative review. Curr Med Res Opin. 2019;35(6):1011-8.
  • 6
    Mücke ok M, Phillips T, Radbruch L, Petzke F, Häuser W. Cannabis-based medicines for chronic neuropathic pain in adults. Cochrane Database Syst Rev. 2018;3(3):CD012182.
  • 7
    MacCallum CA, Russo EB. Practical considerations in medical cannabis administration and dosing. Eur J Intern Med. 2018;49(1):12-9.
  • 8
    Bhaskar ok A, Bell A, Boivin M, Briques W, Brown M, Clarke H, Cyr C, Eisenberg E, de Oliveira Silva RF, Frohlich E, Georgius P, Hogg M, Horsted TI, MacCallum CA, Müller-Vahl KR, O’Connell C, Sealey R, Seibolt M, Sihota A, Smith BK, Sulak D, Vigano A, Moulin DE. Consensus recommendations on dosing and administration of medical cannabis to treat chronic pain: results of a modified Delphi process. J Cannabis Res. 2021;3(1):22.
  • 9
    Health Canada. Information for Health Care Professionals. [cited 2014 Nov 25]; Available from: http://www.hc-sc.gc.ca/dhp-mps/marihuana/med/infoprof-eng.php
    » http://www.hc-sc.gc.ca/dhp-mps/marihuana/med/infoprof-eng.php
  • 10
    Sihota A, Smith BK, Ahmed SA, Bell A, Blain A, Clarke H, Cooper ZD, Cyr C, Daeninck P, Deshpande A, Ethans K, Flusk D, Le Foll B, Milloy MJ, Moulin DE, Naidoo V, Ong M, Perez J, Rod K, Sealey R, Sulak D, Walsh Z, O’Connell C. Consensus-based recommendations for titrating cannabinoids and tapering opioids for chronic pain control. Int J Clin Pract. 2021;75(8):e13871.
  • 11
    Naik H, Trojian TH. Therapeutic potential for cannabinoids in sports medicine: current literature review. Curr Sports Med Rep. 2021;20(7):345-50.
  • 12
    Miller GF, DePadilla L, Jones SE, Bartholow BN, Sarmiento K, Breiding MJ. The association between sports- or physical activity-related concussions and suicidality among US high school students, 2017. Sports Health. 2021;13(2):187-97.
  • 13
    Fitzcharles MA, Petzke F, Tölle TR, Häuser W. Cannabis-based medicines and medical cannabis in the treatment of nociplastic pain. Drugs. 2021;81(18):2103-16.
  • 14
    Luckett T, Phillips J, Lintzeris N, Allsop D, Lee J, Solowij N, Martin J, Lam L, Aggarwal R, McCaffrey N, Currow D, Chye R, Lovell M, McGregor I, Agar M. Clinical trials of medicinal cannabis for appetite-related symptoms from advanced cancer: a survey of preferences, attitudes and beliefs among patients willing to consider participation. Intern Med J. 2016;46(11):1269-75.
  • 15
    Nugent SM, Morasco BJ, O’Neil ME, Freeman M, Low A, Kondo K, Elven C, Zakher B, Motu’apuaka M, Paynter R, Kansagara D. The effects of cannabis among adults with chronic pain and an overview of general harms: a systematic review. Ann Intern Med. 2017;167(5):319-31.
  • 16
    Busse JW, Vankunkelsven P, Zeng L, Heen AF, Marglen A, Campbell F, Granan LP, Artgeerts B, Buchbinder R, Coen M, Juurlink D, Samer C, Siemieniuk B, Nimisha K, Cooper L, Brown J, Lytvyn L, Zaraatkar D, Wang L, Guyatt GH, Vandvik PO, Agoritsas T. Medical cannabis or cannabinoids for chronic pain: a clinical practice guideline. BJM. 2021;374:n2040.
  • 17
    Sugiura T, Kondo S, Sukagawa A, Nakane S, Shinoda A, Itoh K, Yamashita A, Waku K. 2-Arachidonoylglycerol: a possible endogenous cannabinoid receptor ligand in brain. Biochem Biophys Res Commun. 1995;215(1):89-97.
  • 18
    Häuser W, Petzke F, Fitzcharles MA. Efficacy, tolerability and safety of cannabis-based medicines for chronic pain management – an overview of systematic reviews. Eur J Pain. 2018;22(3):455-70.
  • 19
    Serrano A, Parsons LH. Endocannabinoid influence in drug reinforcement, dependence and addiction-related behaviors. Pharmacol Ther. 2011;132(3):215-41.
  • 20
    Castaneto MS, Gorelick DA, Desrosiers NA, Hartman RL, Pirard S, Huestis MA. Synthetic cannabinoids: epidemiology, pharmacodynamics, and clinical implications. Drug Alcohol Depend. 2014;144(1):12-41.
  • 21
    Aizpurua-Olaizola O, Elezgarai I, Rico-Barrio I, Zarandona I, Etxebarria N, Usobiaga A. Targeting the endocannabinoid system: future therapeutic strategies. Drug Discov Today. 2017;22(1):105-10.

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    25 Set 2023
  • Data do Fascículo
    2023

Histórico

  • Recebido
    08 Set 2022
  • Aceito
    21 Jul 2023
Sociedade Brasileira para o Estudo da Dor Av. Conselheiro Rodrigues Alves, 937 Cj2 - Vila Mariana, CEP: 04014-012, São Paulo, SP - Brasil, Telefones: , (55) 11 5904-2881/3959 - São Paulo - SP - Brazil
E-mail: dor@dor.org.br