Acessibilidade / Reportar erro

Avaliação do comprometimento cognitivo em pacientes com migrânea episódica

RESUMO

JUSTIFICATIVA E OBJETIVOS:

A proposta deste estudo foi avaliar a presença de déficits cognitivos em pacientes com migrânea episódica e grupo controle, e comparar com os resultados previamente descritos na literatura.

MÉTODOS:

Foram incluídos pacientes com migrânea episódica, segundo os critérios da International Headache Society, e selecionado um grupo controle pareado por sexo, idade e escolaridade. Os pacientes foram questionados sobre a frequência e intensidade de crises, fármacos, comorbidades. Posteriormente, foi realizada a avaliação neuropsicológica através do Montreal Cognitive Assessment, do teste do relógio, teste da fluência verbal e Stroop teste. As principais variáveis influenciadoras de distúrbios cognitivos foram analisadas (transtorno depressivo, transtorno de ansiedade, distúrbios do sono, uso de fármacos).

RESULTADOS:

Foram avaliados 30 pacientes com migrânea episódica e 30 controles. Os pacientes com migrânea episódica apresentaram uma performance no Montreal Cognitive Assessment teste (p=0,53), teste do relógio (p=0,80), teste da fluência verbal (p=0,44) e Stroop teste (p=0,97) semelhante ao grupo controle. Pacientes com enxaqueca crônica (30 pacientes e 30 controles) realizaram um teste de Montreal Cognitive Assessment teste (p=0,00), teste de fluência verbal (p=0,00) e teste de Stroop (p=0,00) menor que o grupo controle. As principais variáveis influenciadoras de distúrbios cognitivos foram estudadas através de regressão linear e nenhuma dessas variáveis apresentou-se como fator de influência no Montreal Cognitive Assessment.

CONCLUSÃO:

Os pacientes com migrânea episódica não apresentaram déficits cognitivos em comparação com um grupo controle.

Descritores:
Cefaleia; Disfunção cognitiva; Migrânea

ABSTRACT

BACKGROUND AND OBJECTIVES:

The purpose of this study was to evaluate the presence of cognitive deficits in patients with episodic migraine and control group, and to compare with the results previously described in the literature.

METHODS:

Patients with episodic migraine were included according to the International Headache Society criteria, and a control group was selected, matched by sex, age, and schooling. Patients were asked about the frequency and intensity of headaches, medications used, and comorbidities. Afterwards, a neuropsychological assessment was applied using the Montreal Cognitive Assessment, the clock drawing test, the verbal fluency test, and the Stroop test. The main variables influencing cognitive dysfunctions were analyzed (depressive disorder, anxiety disorder, sleep disorder, use of medication).

RESULTS:

Thirty patients with episodic migraine and 30 controls were evaluated. Patients with episodic migraine had a performance in the Montreal Cognitive Assessment test (p=0.53), the clock drawing test (p=0.80), the verbal fluency test (p=0.44) and the Stroop test (p=0.97) similar to the control group. Patients with chronic migraine (30 patients and 30 controls) performed a Montreal Cognitive Assessment test (p=0.00), verbal fluency test (p=0.00) and Stroop test (p=0.00) lower than the group control. The main variables influencing cognitive disorders were studied by linear regression, and none of these variables was an influencing factor in the Montreal Cognitive Assessment test.

CONCLUSION:

Patients with episodic migraine did not present cognitive deficits compared to a control group.

Keywords:
Cognitive dysfunctions; Headache; Migraine

INTRODUÇÃO

De modo geral, a cefaleia é um sintoma frequente na população, sendo a sua prevalência ao longo da vida de 93% nos homens e 99% nas mulheres. A cefaleia é a principal razão para consultas neurológicas em atendimentos ambulatoriais. Estima-se que 5 a 10% da população procure um médico durante a vida devido à cefaleia11 Rasmussen BK. Epidemiology of headache. Cephalalgia. 2001;21(7):774-7.,22 Becker WJ, Gladstone JP, Aube M. Migraine prevalence, diagnosis, and disability. Can J Neurol Sci, 2007;34(4):3-9.. As principais cefaleias primárias são a do tipo tensional e a migrânea. A migrânea é um tipo de dor craniana com duração de 4 a 72 horas, caracterizada por forte intensidade, latejante ou pulsátil, piorando com as atividades diárias, sendo unilateral em 2/3 dos casos, podendo ser acompanhada de sintomas tais como náuseas, vômitos, fotofobia e fonofobia. Pode haver cinco fases detectáveis numa crise típica de migrânea: pródromo ou sintomas premonitórios, aura, cefaleia, sintomas associados (náuseas, fotofobia) e pósdromo (fadiga, exaustão)33 Speciali JG, Silva WF. Cefaléias. São Paulo: Lemos Editorial; 2002. 493p.

4 The International Classification of Headache Disorders: 3rd ed. Cephalalgia. 2013;33(Suppl 9):644-58.
-55 Giazomozzi AR, Vindas AP, Silva AA Jr, Bordini CA, Buonanotte CF, Roesler CA, et al. Latin American consensus on guidelines for chronic migraine treatment. Arq Neuropsiquiatr. 2013;71(7):478-86..

Pacientes com dor crônica frequentemente relatam queixas cognitivas que dificultam situações sociais e atividades da vida diária. Segundo meta-análise publicada em 2013, os autores concluíram que há maior alteração em testes cognitivos de pacientes com dor crônica quando comparados a voluntários normais, apesar de significativa heterogeneidade dos estudos incluídos na análise66 Berryman C, Stanton TR, Jane Bowering K, Tabor A, McFarlane A, Lorimer Moseley G. Evidence for working memory deficits in chronic pain: a systematic review and meta-analysis. Pain. 2013;154(8):1181-96.. Foi sugerido também que pesquisas futuras sejam realizadas, bem como métodos padronizados de testes.

Vários estudos analisaram a associação entre migrânea e função cognitiva, mas os resultados desses estudos são variados. Alguns estudos transversais não encontraram diferenças entre os pacientes com migrânea e controles77 McKendrick AM, Badcock DR, Badcock JC, Gurgone M. Motion perception in migraineurs: abnormalities are not related to attention. Cephalalgia. 2006;26(9):1131-6.

8 Leijdekkers ML, Passchier J, Goudswaard P, Menges LJ, Orlebeke JF. Migraine patients cognitively impaired? Headache. 1990;30(6):352-8.

9 Gaist D, Pedersen L, Madsen C, Tsiropoulos I, Bak S, Sindrup S, et al. Long-term effects of migraine on cognitive function: a population-based study of Danish twins. Neurology. 2005;64(4):600-7.

10 Jelicic M, van Boxtel MP, Houx PJ, Jolles J. Does migraine headache affect cognitive function in the elderly? Report from the Maastricht Aging Study (MAAS). Headache. 2000;40(9):715-9.
-1111 Pearson AJ, Chronicle EP, Maylor EA, Bruce LA. Cognitive function is not impaired in people with a long history of migraine: a blinded study. Cephalalgia. 2006;26(1):74-80., enquanto outros demonstraram evidências de pior desempenho cognitivo entre os pacientes com migrânea1212 Santos-Lasaosa S, Viloria-Alebesque A, Morandeira-Rivas C, Lopes Del Val LJ, Bellosta-Diago E, Velezquez-Benito A. Mnemonic complaints and chronic migraine. Rev Neurol. 2013;57(4):145-9. Spanish.

13 Hooker WD, Raskin NH. Neuropsychologic alterations in classic and common migraine. Arch Neurol. 1986;43(7):709-12.

14 Zeitlin C, Oddy M. Cognitive impairment in patients with severe migraine. Br J Clin Psychol. 1984;23(Pt 1):27-35.
-1515 Pellegrino Baena C, Goulart AC, Santos IS, Suemoto CK, Lotufo PA, Bensenor IJ. Migraine and cognitive function: baseline findings from the Brazilian longitudinal study of adult health: ELSA-Brasil. Cephalalgia. 2017. 333102417737784. [Epub ahead of print].. Uma variedade de testes foi usada para avaliar a função cognitiva e muitos desses estudos eram pequenos, o que pode limitar sua capacidade de detectar diferenças entre os grupos.

Estudos envolvendo ressonância nuclear magnética (RNM) convencional constataram que pacientes com migrânea tem risco aumentado de lesões isquêmicas em substância branca, chamadas algumas vezes de “substrato de migrânea”. Esse risco existe para pacientes com e sem aura, sendo aumentado em pacientes com migrânea com aura e migrânea crônica. Foram demonstrados efeitos cumulativos da migrânea no sistema nervoso central (SNC), embora a implicação funcional desses resultados ainda permanece obscura. A longo prazo, acredita-se que essas lesões causariam déficits cognitivos nesses pacientes1616 Schwedt TJ, Dodick DW. Advanced neuroimagem of migraine. Lancet Neurol. 2009;8(6):560-8..

Existem fatores confundidores importantes ao se avaliar um paciente com migrânea e queixas cognitivas. Em primeiro lugar, muitos desses pacientes apresentam transtorno depressivo ou transtorno de ansiedade envolvidos, comorbidades que são relacionadas a déficits atencionais e desempenho prejudicado em testes cognitivos. Em segundo lugar, alguns fármacos utilizados com frequência pelos pacientes com migrânea, como o topiramato, já foram comprovadamente descritos como causadores de déficits cognitivos1717 Lee S, Sziklas V, Andermann F, Farnham S, Risse G, Gustafson M, et al. The effects of adjunctive topiramate on cognitive function in patients with epilepsy. Epilepsia. 2003;44(3):339-47.,1818 Yasuda CL, Centeno M, Vollmar C, Stretton J, Symms M, Cendes F, et al. The effect of topiramate on cognitive fMRI. Epilepsy Res. 2013;105(1-2):250-5.. Um estudo publicado em 2013, avaliando 30 pacientes com migrânea crônica e 30 controles saudáveis, detectou baixo desempenho em testes cognitivos nos pacientes com migrânea crônica, aparentemente sem relação com outros fatores1212 Santos-Lasaosa S, Viloria-Alebesque A, Morandeira-Rivas C, Lopes Del Val LJ, Bellosta-Diago E, Velezquez-Benito A. Mnemonic complaints and chronic migraine. Rev Neurol. 2013;57(4):145-9. Spanish..

Os resultados de RNM funcional em pacientes usando topiramato e controles encontraram déficits em áreas da rede de linguagem. Esses dados sugerem um mecanismo pelo qual esse fármaco prejudica o processamento cognitivo durante a função da linguagem, tanto para uso crônico quanto para dose única1818 Yasuda CL, Centeno M, Vollmar C, Stretton J, Symms M, Cendes F, et al. The effect of topiramate on cognitive fMRI. Epilepsy Res. 2013;105(1-2):250-5.. Outro estudo duplamente encoberto controlado, publicado em 2011, detectou que o topiramato causa déficits cognitivos dose-dependentes, a partir de seis semanas de uso1919 Loring DW, Williamson DJ, Meador KJ, Wiegand F, Hilihan J. Topiramate dose effects on cognition: a randomized double-blind study. Neurology. 2011;76(2):131-7..

Assim, o presente estudo objetivou avaliar a presença de déficits cognitivos em pacientes com migrânea episódica e compará-los com resultados previamente descritos na literatura. Objetivou, também, avaliar os principais fatores desencadeantes de distúrbios cognitivos presentes na população com migrânea, tais como, transtorno depressivo, transtorno de ansiedade, uso de fármacos que atuam no SNC como topiramato, sono não reparador, uso abusivo de álcool, antecedente de traumatismo craniano e outras comorbidades.

MÉTODOS

Foi realizado um estudo descritivo transversal, desenvolvido na Faculdade de Medicina do Centro Universitário Barão de Mauá, com alunos deste curso. Foram incluídos alunos de ambos os sexos, com idade mínima de 18 anos, com migrânea episódica com ou sem aura (distúrbios neurológicos transitórios que acompanham a cefaleia) de acordo com os critérios da International Headache Society (IHS): dor com duração de 4 a 72 horas, caracterizada por forte intensidade, latejante ou pulsátil, piorando com as atividades diárias, podendo ser acompanhada de sintomas tais como náuseas, vômitos, fotofobia e fonofobia, ocorrendo por menos de 15 dias no mês. Os critérios de exclusão envolveram pacientes com disfunção orgânica cerebral que impedissem de responder aos questionários, pacientes que não concordaram em assinar o Termo de Consentimento Livre e Esclarecido (TCLE).

Os alunos foram entrevistados pessoalmente para a avaliação de dados demográficos e dados clínicos, além de testes neuropsicológicos para a avaliação cognitiva. Foi recrutado um grupo controle (GC) de pacientes pareados por sexo, idade e escolaridade, sem diagnóstico de migrânea.

Considerando que estudo prévio encontrou diferenças significativas em testes cognitivos pelo Montreal Cognitive Assessment (MoCa) aplicados em mulheres com migrânea crônica e controles (grupos de 30 casos e 30 controles) (Tabela 1). Foi realizado um cálculo amostral considerando a diferença entre os resultados no teste MoCa entre os dois grupos e o desvio padrão dos resultados (Tabela 2). Para um poder de teste de 90% de acurácia, foi estimado que os grupos “migrânea” e “controle” deveriam ter, pelo menos, 27 integrantes cada. A comparação entre os grupos se baseou no teste t de Student, e a equação para o cálculo amostral foi n=2σ2Zα/2+Zβ2μ1μ22, onde µ1 e µ2 são as médias do escore de MoCa nos grupos com e sem migrânea, respectivamente, e σ é o desvio padrão da população, obtido a partir do estudo de Ferreira et al.2020 Ferreira KS, Teixeira CT, Cáfaro C, Oliver GZ, Carvalho GL, Carvalho LA, et al. Comprometimento cognitivo em pacientes com migrânea crônica é independente do uso de topiramato e comorbidades. Headache Med. 2017;3(8):89.

Tabela 1
Descritiva do escore de Montreal Cognitive Assessment em cada grupo2020 Ferreira KS, Teixeira CT, Cáfaro C, Oliver GZ, Carvalho GL, Carvalho LA, et al. Comprometimento cognitivo em pacientes com migrânea crônica é independente do uso de topiramato e comorbidades. Headache Med. 2017;3(8):89.
Tabela 2
Tamanhos amostrais considerando a comparação dos dois grupos

Todos os tamanhos amostrais aqui apresentados foram calculados considerando-se um teste de hipóteses bilateral, o maior desvio padrão (2,6), com nível de significância de 5% e com variações no poder do teste de 70 a 90% e diferença mínima de 2,3 (encontrada no estudo).

DADOS CLÍNICOS

Foram avaliados por meio de entrevista dados como idade, sexo, diagnóstico da cefaleia, frequência e intensidade de crises de cefaleia, doses de fármacos utilizados e uso de analgésicos. Os pacientes também foram avaliados quanto às comorbidades como transtorno depressivo e transtorno de ansiedade (Manual Diagnóstico e Estatístico de Transtornos Mentais - DSM-5)2121 American Psychiatry Association. Diagnostic and statistical manual of mental disorders - DSM - 5. 5th ed. Washington: American Psychiatric Association, 2013., aspectos do sono (“Você tem algum tipo de problema de sono como insônia, sono não reparador ou apneia do sono?”), uso de fármacos (“você utiliza algum tipo de fármaco de uso contínuo?”), e outras comorbidades que foram previamente diagnosticadas por outros médicos, como hipotireoidismo, diabetes e hipertensão, além de questões sobre impacto na qualidade de vida desses pacientes.

Posteriormente, os pacientes foram submetidos a uma avaliação neuropsicológica que incluiu o teste MoCa validado para o português2222 Memória CM, Yassuda MS, Nakano, EY, Forlenza OV. Brief screening for mild cognitive impairment: validation of Brazilian version of the Montreal cognitive assessment. Int J Geriatr Psychiatry. 2013;28(1):34-40., fluência verbal, teste Stroop (para atenção e memória de trabalho)2323 Stroop JR. Studies interference in serial verbal reactions. J Exp Psychol. 1935;18:643-62..

Este estudo foi aprovado pelo Comité de Ética do Centro Universitário Barão de Mauá, CAAE 38707014.3.0000.5378 (2015).  

Análise estatística

Os dados foram analisados pelo programa SPSS versão 18.02424 SAS/ STAT User´s Guide, Version 8, Cary, NC: SAS Institute Inc., 1999. R version 2.8.0 copyright© 2008. the r foundation for statistical computing.. Na análise das variáveis categóricas foi aplicado o teste Qui-quadrado ou o Exato de Fisher, conforme a frequência esperada nas células. Na análise das variáveis numéricas foram aplicados os testes de Kolmogorov-Smirnov para definir o tipo de distribuição das variáveis; para aquelas que tiveram uma distribuição normal foram usados testes paramétricos como o teste t de Student ou a Análise de Variância (ANOVA). As variáveis que não apresentaram distribuição normal foram avaliadas com teste não paramétrico de Mann-Whitney. Para correlacionar duas ou mais variáveis foi utilizada a análise de regressão logística binária e regressão linear.

RESULTADOS

Um total de 64 alunos foram abordados. Três controles foram excluídos por apresentarem cefaleia tensional intensa e frequente. Um aluno foi excluído por estar sem crises de migrânea há mais de um ano. Enfim, 60 alunos foram incluídos no estudo, sendo 30 com migrânea episódica e 30 controles. Os dados demográficos do grupo migrânea episódica (GME) e grupo controle (GC) estão descritos na tabela 3.

Tabela 3
Dados demográficos dos pacientes em ambos os grupos

Com relação às características da migrânea e impacto nas atividades diárias e atividades de trabalho, os resultados estão descritos na tabela 4.

Tabela 4
Características da cefaleia no grupo migrânea episódica

Entre os fármacos utilizados pelo GME, 18 (60%) pacientes utilizavam anticoncepcionais, 2 (6,7%) topiramato, 2 (6,7%) antidepressivos, 3 (10%) betabloqueadores, 1 (3,3%) flunarizina e 1 (3,3%) clorpromazina. Os analgésicos mais utilizados foram dipirona (15 - 50%), ergotamina (2 - 6,7%) e anti-inflamatórios não hormonais (5 - 16,7%). A frequência do uso de analgésicos foi de 4,4±4,2 dias/mês. Apenas 2 (11,1%) faziam uso abusivo de ergotamina.

Entre os pacientes do GC, os fármacos mais utilizados foram anticoncepcionais (18 - 60%), antidepressivos (1- 3,3%).

As comorbidades mais frequentes no GME foram transtorno de ansiedade generalizada (10 - 33,3%), transtorno depressivo maior (2 - 6,7%), hipotireoidismo (3 - 10%), sono não reparador (12 - 40%) e hipertensão (1 - 3,3%). Não houve pacientes com diabetes ou traumatismo craniano prévio. O uso de cafeína esteve presente em 12 - 40% e o uso de álcool em 9 - 27%.

As comorbidades mais frequentes no GC foram transtorno de ansiedade generalizada (6 - 20%), sono não reparador (5 - 16,7%), hipotireoidismo (2 - 6,7%). Nenhum paciente relatou transtorno depressivo maior, hipertensão, diabetes, traumatismo craniano prévio. O uso de cafeína esteve presente em 10 - 30% e o uso de álcool em 16 - 53,3%).

Entre os pacientes entrevistados, 2 (6,7%) tinham queixas de alteração da memória no GME e 2 (6,7%) no GC. Com relação aos testes cognitivos aplicados, os principais resultados estão descritos na tabela 5. Quando aplicada a regressão linear, utilizando o MoCa como variável dependente e migrânea episódica, transtorno de ansiedade, transtorno depressivo, uso de topiramato e sono não reparador como variáveis independentes, nenhuma dessas variáveis apresentou-se como fator de influência no MoCa (Tabela 6).

Tabela 5
Pacientes com migrânea episódica e controles: médias de pontuações em testes neuropsicológicos
Tabela 6
Modelo de regressão linear, onde o teste Montreal Cognitive Assessment foi a variável dependente, controlada pelas variáveis independentes

DISCUSSÃO

Este trabalho descreveu e analisou os aspectos cognitivos em pacientes com migrânea episódica e controles sem migrânea, pareados por sexo, idade e escolaridade, além de avaliar os principais fatores desencadeantes de distúrbios cognitivos presentes, tais como, transtorno depressivo, transtorno de ansiedade, uso de topiramato, sono não reparador.

O tema cognição e dor crônica vem sendo estudado mais recentemente em alguns trabalhos. Landrø et al.2525 Landrø NI, Fors EA, Våpenstad LL, Holthe Ø, Stiles TC, Borchgrevink PC. The extent of neurocognitive dysfunction in a multidisciplinary pain centre population. Is there a relation between reported and tested neuropsychological functioning? Pain. 2013;154(7):972-7. identificaram algumas possíveis razões para esses déficits, incluindo a presença de sintomas depressivos (os quais estão presentes em 40 a 50% dos pacientes com dor crônica) e uso de fármacos2626 Silberstein SD, Hulihan J, Karim MR, Wu SC, Jordan D, Karvois D, et al. Efficacy and tolerability of topiramate 200 mg/d in the prevention of migraine with/without aura in adults: a randomized, placebo-controlled, double-blind, 12-week pilot study. Clin Ther. 2006;28(7):1002-11.. Outro estudo, realizado por nosso grupo de pesquisa, já havia demonstrado déficits cognitivos em pacientes com migrânea crônica em comparação com o GC2020 Ferreira KS, Teixeira CT, Cáfaro C, Oliver GZ, Carvalho GL, Carvalho LA, et al. Comprometimento cognitivo em pacientes com migrânea crônica é independente do uso de topiramato e comorbidades. Headache Med. 2017;3(8):89.. Um estudo prospectivo avaliou os participantes para enxaqueca com e sem aura para função cognitiva. Três testes cognitivos foram utilizados: a Lista de Palavras da bateria Consortium to Establish a Registry for Alzheimer Disease (CERAD), os testes de fluência verbal e de Trilhas. Pacientes com migrânea sem aura foram associados a um pior desempenho cognitivo1515 Pellegrino Baena C, Goulart AC, Santos IS, Suemoto CK, Lotufo PA, Bensenor IJ. Migraine and cognitive function: baseline findings from the Brazilian longitudinal study of adult health: ELSA-Brasil. Cephalalgia. 2017. 333102417737784. [Epub ahead of print]..

O mecanismo exato que sustenta a relação complexa entre dor crônica e cognição não foi completamente compreendido. Há uma relação direta entre atenção, retenção transitória de informações, memória imediata e a atividade de neurônios do córtex pré-frontal. Qual seria a base fisiológica desse achado? Em primeiro lugar, as mesmas redes neurais que são utilizadas para muitas funções cognitivas são também usadas para funções nociceptivas. Em segundo lugar, sensações corporais podem levar o indivíduo a um estado de hipervigilância e desviar a atenção de outras tarefas cognitivas. Isso dificulta uma resposta eficaz às novas informações. Esses resultados sustentam o “modelo neurocognitivo da dinâmica de atenção à dor’’66 Berryman C, Stanton TR, Jane Bowering K, Tabor A, McFarlane A, Lorimer Moseley G. Evidence for working memory deficits in chronic pain: a systematic review and meta-analysis. Pain. 2013;154(8):1181-96..

No presente estudo, os pacientes do GME apresentaram um desempenho no MoCa semelhante ao GC. Houve também desempenho semelhante no grupo migrânea com relação ao GC nos testes fluência verbal, teste de Stroop, e não se encontrou estatística significativa no teste de Mann-Whitney.

Esses dados são diferentes daqueles encontrados em estudo anterior que avaliou pacientes com migrânea crônica e um GC, encontrando prejuízos em tarefas que utilizam a atenção (teste de Stroop), a linguagem (fluência verbal) e habilidades visuoespaciais (desenho do relógio)2020 Ferreira KS, Teixeira CT, Cáfaro C, Oliver GZ, Carvalho GL, Carvalho LA, et al. Comprometimento cognitivo em pacientes com migrânea crônica é independente do uso de topiramato e comorbidades. Headache Med. 2017;3(8):89.. Os resultados também diferem de outros estudos que evidenciaram alterações cognitivas em pacientes com migrânea1212 Santos-Lasaosa S, Viloria-Alebesque A, Morandeira-Rivas C, Lopes Del Val LJ, Bellosta-Diago E, Velezquez-Benito A. Mnemonic complaints and chronic migraine. Rev Neurol. 2013;57(4):145-9. Spanish.

13 Hooker WD, Raskin NH. Neuropsychologic alterations in classic and common migraine. Arch Neurol. 1986;43(7):709-12.

14 Zeitlin C, Oddy M. Cognitive impairment in patients with severe migraine. Br J Clin Psychol. 1984;23(Pt 1):27-35.
-1515 Pellegrino Baena C, Goulart AC, Santos IS, Suemoto CK, Lotufo PA, Bensenor IJ. Migraine and cognitive function: baseline findings from the Brazilian longitudinal study of adult health: ELSA-Brasil. Cephalalgia. 2017. 333102417737784. [Epub ahead of print]. e se assemelham a estudos que não encontraram essas alterações77 McKendrick AM, Badcock DR, Badcock JC, Gurgone M. Motion perception in migraineurs: abnormalities are not related to attention. Cephalalgia. 2006;26(9):1131-6.

8 Leijdekkers ML, Passchier J, Goudswaard P, Menges LJ, Orlebeke JF. Migraine patients cognitively impaired? Headache. 1990;30(6):352-8.

9 Gaist D, Pedersen L, Madsen C, Tsiropoulos I, Bak S, Sindrup S, et al. Long-term effects of migraine on cognitive function: a population-based study of Danish twins. Neurology. 2005;64(4):600-7.

10 Jelicic M, van Boxtel MP, Houx PJ, Jolles J. Does migraine headache affect cognitive function in the elderly? Report from the Maastricht Aging Study (MAAS). Headache. 2000;40(9):715-9.
-1111 Pearson AJ, Chronicle EP, Maylor EA, Bruce LA. Cognitive function is not impaired in people with a long history of migraine: a blinded study. Cephalalgia. 2006;26(1):74-80.. Contudo, acredita-se que uma avaliação com maior número de pacientes poderia ser útil para explicar melhor esses resultados.

Embora se tenha um número de pacientes pequeno, pode-se trabalhar com uma amostra pareada por sexo, escolaridade e idade. Além disso, um modelo de regressão linear foi utilizado para controlar as possíveis variáveis confundidoras. Essas variáveis, como transtorno de ansiedade, transtorno depressivo, uso de medicações, distúrbios do sono, por influenciarem na cognição, são grandes desafios para os estudos clínicos que abordam a temática dor crônica. No presente estudo foi possível analisar essas variáveis que atuariam como confundidoras nos resultados do MoCa teste através de regressão linear. Com relação à avaliação da migrânea episódica, transtorno de ansiedade, transtorno depressivo, uso de topiramato e sono não reparador, nenhuma dessas variáveis influenciou o teste MoCa. Assim, este estudo traz informações novas à literatura pertinente ao tema.

CONCLUSÃO

Os resultados levam a acreditar que os pacientes com migrânea episódica não apresentam déficits cognitivos em comparação com um grupo controle.

  • Fontes de fomento: não há.

REFERENCES

  • 1
    Rasmussen BK. Epidemiology of headache. Cephalalgia. 2001;21(7):774-7.
  • 2
    Becker WJ, Gladstone JP, Aube M. Migraine prevalence, diagnosis, and disability. Can J Neurol Sci, 2007;34(4):3-9.
  • 3
    Speciali JG, Silva WF. Cefaléias. São Paulo: Lemos Editorial; 2002. 493p.
  • 4
    The International Classification of Headache Disorders: 3rd ed. Cephalalgia. 2013;33(Suppl 9):644-58.
  • 5
    Giazomozzi AR, Vindas AP, Silva AA Jr, Bordini CA, Buonanotte CF, Roesler CA, et al. Latin American consensus on guidelines for chronic migraine treatment. Arq Neuropsiquiatr. 2013;71(7):478-86.
  • 6
    Berryman C, Stanton TR, Jane Bowering K, Tabor A, McFarlane A, Lorimer Moseley G. Evidence for working memory deficits in chronic pain: a systematic review and meta-analysis. Pain. 2013;154(8):1181-96.
  • 7
    McKendrick AM, Badcock DR, Badcock JC, Gurgone M. Motion perception in migraineurs: abnormalities are not related to attention. Cephalalgia. 2006;26(9):1131-6.
  • 8
    Leijdekkers ML, Passchier J, Goudswaard P, Menges LJ, Orlebeke JF. Migraine patients cognitively impaired? Headache. 1990;30(6):352-8.
  • 9
    Gaist D, Pedersen L, Madsen C, Tsiropoulos I, Bak S, Sindrup S, et al. Long-term effects of migraine on cognitive function: a population-based study of Danish twins. Neurology. 2005;64(4):600-7.
  • 10
    Jelicic M, van Boxtel MP, Houx PJ, Jolles J. Does migraine headache affect cognitive function in the elderly? Report from the Maastricht Aging Study (MAAS). Headache. 2000;40(9):715-9.
  • 11
    Pearson AJ, Chronicle EP, Maylor EA, Bruce LA. Cognitive function is not impaired in people with a long history of migraine: a blinded study. Cephalalgia. 2006;26(1):74-80.
  • 12
    Santos-Lasaosa S, Viloria-Alebesque A, Morandeira-Rivas C, Lopes Del Val LJ, Bellosta-Diago E, Velezquez-Benito A. Mnemonic complaints and chronic migraine. Rev Neurol. 2013;57(4):145-9. Spanish.
  • 13
    Hooker WD, Raskin NH. Neuropsychologic alterations in classic and common migraine. Arch Neurol. 1986;43(7):709-12.
  • 14
    Zeitlin C, Oddy M. Cognitive impairment in patients with severe migraine. Br J Clin Psychol. 1984;23(Pt 1):27-35.
  • 15
    Pellegrino Baena C, Goulart AC, Santos IS, Suemoto CK, Lotufo PA, Bensenor IJ. Migraine and cognitive function: baseline findings from the Brazilian longitudinal study of adult health: ELSA-Brasil. Cephalalgia. 2017. 333102417737784. [Epub ahead of print].
  • 16
    Schwedt TJ, Dodick DW. Advanced neuroimagem of migraine. Lancet Neurol. 2009;8(6):560-8.
  • 17
    Lee S, Sziklas V, Andermann F, Farnham S, Risse G, Gustafson M, et al. The effects of adjunctive topiramate on cognitive function in patients with epilepsy. Epilepsia. 2003;44(3):339-47.
  • 18
    Yasuda CL, Centeno M, Vollmar C, Stretton J, Symms M, Cendes F, et al. The effect of topiramate on cognitive fMRI. Epilepsy Res. 2013;105(1-2):250-5.
  • 19
    Loring DW, Williamson DJ, Meador KJ, Wiegand F, Hilihan J. Topiramate dose effects on cognition: a randomized double-blind study. Neurology. 2011;76(2):131-7.
  • 20
    Ferreira KS, Teixeira CT, Cáfaro C, Oliver GZ, Carvalho GL, Carvalho LA, et al. Comprometimento cognitivo em pacientes com migrânea crônica é independente do uso de topiramato e comorbidades. Headache Med. 2017;3(8):89.
  • 21
    American Psychiatry Association. Diagnostic and statistical manual of mental disorders - DSM - 5. 5th ed. Washington: American Psychiatric Association, 2013.
  • 22
    Memória CM, Yassuda MS, Nakano, EY, Forlenza OV. Brief screening for mild cognitive impairment: validation of Brazilian version of the Montreal cognitive assessment. Int J Geriatr Psychiatry. 2013;28(1):34-40.
  • 23
    Stroop JR. Studies interference in serial verbal reactions. J Exp Psychol. 1935;18:643-62.
  • 24
    SAS/ STAT User´s Guide, Version 8, Cary, NC: SAS Institute Inc., 1999. R version 2.8.0 copyright© 2008. the r foundation for statistical computing.
  • 25
    Landrø NI, Fors EA, Våpenstad LL, Holthe Ø, Stiles TC, Borchgrevink PC. The extent of neurocognitive dysfunction in a multidisciplinary pain centre population. Is there a relation between reported and tested neuropsychological functioning? Pain. 2013;154(7):972-7.
  • 26
    Silberstein SD, Hulihan J, Karim MR, Wu SC, Jordan D, Karvois D, et al. Efficacy and tolerability of topiramate 200 mg/d in the prevention of migraine with/without aura in adults: a randomized, placebo-controlled, double-blind, 12-week pilot study. Clin Ther. 2006;28(7):1002-11.

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    Jul-Sep 2018

Histórico

  • Recebido
    31 Jan 2018
  • Aceito
    11 Jun 2018
Sociedade Brasileira para o Estudo da Dor Av. Conselheiro Rodrigues Alves, 937 Cj2 - Vila Mariana, CEP: 04014-012, São Paulo, SP - Brasil, Telefones: , (55) 11 5904-2881/3959 - São Paulo - SP - Brazil
E-mail: dor@dor.org.br