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O manejo da dor pediátrica e a percepção da equipe de enfermagem à luz do Modelo Sócio Comunicativo da Dor

RESUMO

JUSTIFICATIVA E OBJETIVOS:

A dor é uma experiência multidimensional e seu tratamento depende tanto da sensibilidade dos profissionais quanto de sua competência na escolha das estratégias para mensuração e alívio. A enfermagem possui papel fundamental nesse processo, sendo que a avaliação da dor, de maneira sistematizada, proporciona à criança medidas terapêuticas adequadas. O objetivo deste estudo foi analisar os registros sobre a avaliação da dor e analgesia nos prontuários e compreender a percepção da equipe de enfermagem quanto ao tratamento da dor da criança hospitalizada.

MÉTODOS:

Pesquisa qualitativa, descritiva exploratória realizada em um hospital universitário estadual e de nível terciário. A coleta de dados contemplou prontuários de crianças hospitalizadas em unidade de internação pediátrica e entrevista semiestruturada individual com 24 membros da equipe de enfermagem. Para a análise dos dados, utilizou-se a análise temática proposta por Minayo. A análise foi realizada à luz do marco conceitual Social Communication Model of Pain.

RESULTADOS:

Foram analisados 80 prontuários, e mesmo com a dor sendo considerada como quinto sinal vital, a maior parte dos registros da dor em prescrições de enfermagem permaneceu em branco. Os relatos das participantes resultaram em três categorias: naturalização da dor na criança hospitalizada; responsabilização da enfermagem diante do quinto sinal vital; manejo da dor.

CONCLUSÃO:

Prestar o cuidado frente ao processo doloroso de uma criança exige habilidades do profissional para identificar, avaliar, utilizar instrumentos adequados, compreender sentimentos envolvidos no processo e significar o cuidado na priorização da assistência à dor pediátrica.

Descritores:
Dor; Enfermagem pediátrica; Mensuração da dor; Registros de enfermagem

ABSTRACT

BACKGROUND AND OBJECTIVES:

Pain is a multidimensional experience, and its management depends on both the professional’s sensitivity and their ability to choose strategies for measurement and relief. The nursing team plays a fundamental role in this process since the assessment of pain in a systematic way provides the right therapeutic measures to the child. The present study aimed to evaluate pain and analgesia in the medical records and to understand the perception of the nursing team regarding the management of pain in hospitalized children.

METHODS:

Qualitative, descriptive, exploratory research carried out in a tertiary level state university hospital. Data collection included patients hospitalized in a pediatric inpatient unit and a semi-structured interview with 24 members of the nursing team. A thematic analysis proposed by Minayo was used for data analysis. The analysis was performed following the Social Communication Model of Pain.

RESULTS:

Eighty medical records were analyzed, and although pain is considered the fifth vital sign, most of the nurse prescriptions for pain remain blank in the medical records The participants’ reports resulted in three categories: the naturalness of the pain in hospitalized children; the responsibility of the nursing team before the 5th vital sign; pain management.

CONCLUSION:

Paying attention to the painful process of a child requires some skills from the professional to identify, assess, use proper instruments, understand the feelings involved in the process, and entail care in the prioritization of pediatric pain management.

Keywords:
Nursing records; Pain; Pain measurement; Pediatric nursing

INTRODUÇÃO

A Associação Internacional para o Estudo da Dor (IASP) define a dor como “uma experiência sensorial e emocional desagradável associada à lesão tecidual real ou potencial, ou descrita em termos de tal lesão”11 IASP. Classification of chronic pain. Descriptions of chronic pain syndromes and definitions of pain terms Seattle: IASP Press; 1994;2:209-14.. A dor é sempre subjetiva, pois cada indivíduo aprende a aplicação do termo por meio de experiências relacionadas às lesões prévias22 Williams AC, Craig KD. Updating the definition of pain. Pain. 2016;157(11):2420-3.. Mesmo com os avanços nas evidências científicas sobre a dor pediátrica, as crianças ainda são consideradas como o grupo mais vulnerável e exposto às experiências dolorosas durante a hospitalização33 Stevens BJ, Yamada J, Promislow S, Stinson J, Harrison D, Victor JC, et al. Implementation of multidimensional knowledge translation strategies to improve procedural pain in hospitalized children. Implement Sci. 2014;9:120..

Considerando a dor como um fenômeno multidimensional e considerando a valorização da queixa e sua subjetividade no cuidado humanizado, incluiu-se a dor como 5º sinal vital a fim de amenizar o sofrimento e assegurar melhor assistência ao paciente44 Blasi DG, Candido LK, Tacla MT, Ferrari RA. Avaliação e manejo da dor na criança: percepção da equipe de enfermagem. Semina Cienc Biol Saude. 2015;36(Suppl 1):301-10..

A criança com dor pode estar exposta a uma desestabilização dos demais sinais vitais (SSVV) e a verificação da dor como 5º sinal vital possibilita a identificação de sinais de desconforto e instabilidade. Porém, na maioria dos casos, observou-se que a avaliação e o controle da dor ainda não estão incorporados na rotina da equipe de enfermagem, visto que apenas a verificação clássica dos SSVV ocorre de maneira institucionalizada55 Araujo LC, Romero B. Pain: evaluation of the fifth vital sign. A theoretical reflection. Rev Dor. 2015;16(4):291-6..

As crianças possuem particularidades na manifestação da dor, portanto, os profissionais precisam compreender os estágios de seu desenvolvimento e as variações de faixas etárias para poder utilizar instrumentos de avaliação e estratégias de manejo da dor de acordo com essas particularidades66 Doca FN, Costa Júnior AL, Finley GA, Linhares MB. Pain in pediatric inpatients: prevalence, characteristics, and management. Psychol Neurosci. 2017;10(4):394-403..

Além disso, é preciso compreender as especificidades de fatores causais múltiplos, além da doença tecidual77 Hampton AJD, Hadjistavropoulos T, Gagnon MM. Contextual influences in decoding pain expressions: effects of patient age, informational priming, and observer characteristics. Pain. 2018;159(11):2363-74.. Considerando isso, a dor passou a ser compreendida como uma experiência angustiante associada à lesão real ou potencial ao tecido com componentes sensoriais, emocionais, cognitivos e sociais22 Williams AC, Craig KD. Updating the definition of pain. Pain. 2016;157(11):2420-3..

Sendo assim, só é possível compreender o fenômeno doloroso da criança hospitalizada a partir do momento em que se entende que a dor é subjetiva, ou seja, cada criança experimenta e expressa de maneira individual. Portanto, cabe à pessoa que está avaliando essa dor, compreender o significado que a criança atribui à própria dor para poder realizar um manejo adequado para cada situação.

Partindo desses princípios, tendo em vista que o manejo da dor está direcionado tanto para quem a sente quanto para quem assiste, existem modelos que buscam compreender a dor na sua multidimensionalidade. Um desses modelos, adotado como marco conceitual desta pesquisa, é o Social Communication Model of Pain (SCMP)88 Craig KD. The social communication model of pain. Can Psychol. 2009;50(1):22-32..

O SCMP foi desenvolvido com o objetivo de compreender o episódio de dor integrando os níveis biológico, psicológico e social. A compreensão do modelo se dá por meio de uma sequência temporal linear de uma lesão tecidual ou estresse. Diante disso, a experiência da dor pode sofrer inferências a respeito da interpretação da dor, por quem a sente e pela pessoa que pode influenciá-la88 Craig KD. The social communication model of pain. Can Psychol. 2009;50(1):22-32..

As decisões sobre o manejo da dor estão relacionadas com a avaliação que o profissional faz diante de uma situação e o papel da equipe de enfermagem no manejo da dor, o que inclui avaliação, plano de estratégias farmacológicas e não farmacológicas, registro da dor e implementação e avaliação da resposta do paciente às intervenções99 Miftah R, Tilahun W, Fantahun A, Adulkadir S, Gebrekirstos K. Knowledge and factors associated with pain management for hospitalized children among nurses working in public hospitals in Mekelle City, North Ethiopia: cross sectional study. BMC Res Notes. 2017;10(1):122..

Considerando que o manejo da dor envolve desde o momento de sua identificação no registro de enfermagem, envolvendo os aspectos multidimensionais de quem a sente e do profissional que assiste e da utilização dos instrumentos adequados para a sua avaliação, o presente estudo permeia o questionamento de como o manejo da dor da criança hospitalizada está sendo percebido pela equipe de enfermagem.

Nesse contexto, objetivou-se analisar os registros das equipes de enfermagem e médica quanto à avaliação da dor pediátrica e identificar a percepção da equipe de enfermagem quanto ao manejo da dor de crianças hospitalizadas à luz do Modelo de Sócio Comunicação da Dor.

MÉTODOS

Pesquisa descritiva qualitativa embasada no SCMP. A pesquisa foi realizada em uma Unidade de Internação Pediátrica (UIP) de um hospital universitário estadual, público e de nível terciário no sul do Brasil.

A coleta de dados foi feita entre 2016 e 2017 com informações adquiridas em duas etapas: a primeira acerca dos registros das equipes de enfermagem e médica quanto à avaliação da dor da criança hospitalizada e prescrições das medidas de alívio, contemplando por meio de um instrumento elaborado pela pesquisadora, o registro da dor como 5º sinal vital; o registro da dor em prescrição médica e anotação de enfermagem; a analgesia prescrita e a analgesia realizada pela equipe de enfermagem.

Os dados da primeira etapa foram coletados de maneira retrospectiva, referentes ao período de agosto a outubro de 2016, período selecionado levando em consideração a maior taxa de ocupação da unidade no referido ano. Cada prontuário, independente do tempo pregresso de internação, foi analisado por sete dias ou até a alta hospitalar.

A amostra referente aos prontuários teve como critério de inclusão os prontuários de crianças que estiveram hospitalizadas na UIP por no mínimo 48h; presença da prescrição médica; presença da anotação de enfermagem. Excluídos os prontuários de crianças que foram a óbito.

A amostra resultou em 80 prontuários e 360 prescrições médicas e anotações de enfermagem.

Para a análise dos dados foi utilizado o Software Microsoft Office Excel®, no qual foi criada uma planilha com os dados e realizadas as inferências sobre eles.

Já a segunda etapa da coleta de dados, fundamentada no SCMP, contemplou dados de caracterização dos participantes e questões relacionadas à naturalização da dor; o reconhecimento da dor como sinal vital; o conhecimento frente as escalas de avaliação e a escolha das medidas para alívio da dor. Os dados foram coletados por meio de entrevista semiestruturada pela pesquisadora principal, com abordagem individual em local reservado com duração média de 15 minutos, sendo captadas por gravador digital para posterior transcrição na íntegra.

A amostra teve como critérios de inclusão ter experiência com enfermagem pediátrica por no mínimo um ano e excluídas da amostra as que se encontravam em férias ou licença no período da coleta. Compuseram a amostra 15 profissionais da equipe de enfermagem dos diferentes turnos de trabalho.

Para a análise dos dados, utilizou-se a análise temática na qual, após a leitura exaustiva do material, emergiram unidades de significação e núcleos de sentido que significaram algo frente ao objeto analisado. Foram seguidas as três etapas da análise dos dados: pré-análise; exploração do material e tratamento dos resultados obtidos e interpretação1010 Minayo MCS. Pesquisa social: teoria, método e criatividade. 30nd ed.Petrópolis, RJ: Vozes; 2016..

Após a análise dos dados, emergiram três categorias: naturalização da dor na criança hospitalizada; responsabilização da enfermagem diante do 5º sinal vital; manejo da dor.

Os preceitos éticos foram seguidos diante da assinatura do Termo de Consentimento Livre e Esclarecido (TCLE) e por questão de sigilo e privacidade, os nomes foram substituídos pela abreviação da classe profissional seguido de número, seguindo uma ordem crescente conforme a realização das entrevistas.

O projeto de pesquisa foi submetido ao Comitê de Ética em Pesquisa Envolvendo Seres Humanos da Universidade Estadual de Londrina, pautado na resolução 510/2016 do Conselho Nacional de Saúde (Brasil, 2016). Obteve parecer favorável nº 1.816.082, CAAE 61380316.5.0000.52.

RESULTADOS

A análise dos prontuários evidenciou que 56% (n=45) das crianças hospitalizadas no período selecionado eram do sexo masculino e 44% (n=35) do sexo feminino. Em relação à idade, variou entre 29 dias e cinco anos. A média de tempo de internação foi de cinco dias e os diagnósticos mais prevalentes foram: recém-nascidos pré-termo (RNPT) (n=16) e lesões e consequências de causas externas (n=11).

Em relação aos registros da equipe de enfermagem, verificou-se que 90% (n=324) apresentavam a dor como zerada ou em branco. Desse número, 57% (n=205) apresentavam registro de episódio de dor, sendo administrado fármaco conforme prescrição médica.

Quanto às prescrições médicas, 60% (n=216) continham mais de uma opção analgésica e verificou-se que 80% (n=288) incluíam dipirona, 75% (n=270) paracetamol, 25% (n=90) apresentavam opioides (morfina e tramadol), 2% (n=7) cetamina e 2,7% (n=10) não apresentavam analgesia prescrita.

O manejo da dor na perspectiva da equipe de enfermagem

As participantes atuavam há mais de 10 anos na área pediátrica e a média de idade foi de 46 anos. A análise dos relatos resultou em três categorias: naturalização da dor na criança hospitalizada; responsabilização da enfermagem diante do 5º sinal vital; manejo da dor.

Categoria 1- Naturalização da dor na criança hospitalizada

Nesta categoria, exprime-se a experiência pessoal da dor contemplada no SCMP, os substratos biológicos para percepção da dor, a história de vida que pode impactar e determinar o significado e a compreensão afetiva da dor. A naturalização da dor traduz a percepção que cada profissional traz consigo, seus valores e objetivos, podendo estar associada com a formação profissional e/ou experiências anteriores que marcaram sua trajetória.

Quando questionadas sobre a presença da dor durante a hospitalização, algumas profissionais acreditavam que o fato de a criança estar hospitalizada faz com que seja natural a presença da dor, seguindo o raciocínio de que se a criança está internada, consequentemente sentirá dor. 

Se ela está internada é porque ela tem algum problema de saúde...provavelmente ela vai ter alguma dor. Já é esperado que ela sinta dor. Eu acho normal (AUX04).

O mínimo possível... mas tem certas dores que foge do controle da gente. Não temos o que fazer (TEC08).

Eu penso assim, dependendo do que ela tiver, se isso for motivo para dor, é normal que ela chore e sinta dor. Eu já vivi muito isso com as crianças e sei que é normal (AUX02).

Por outro lado, alguns participantes relataram que a criança hospitalizada não deve sentir dor porque os profissionais devem adotar medidas e a instituição fornecer o necessário para aliviar a dor da criança.

Não, de maneira alguma ela deve sentir dor. Se ela está no hospital não é para sentir dor. Não é normal sentir dor tendo como aliviar. Não é nisso que eu acredito (TEC09).

Eu acho que é assim, uma preocupação que a gente tem é de que a criança internada não pode sentir dor. Tem uma criança internada no hospital com toda infraestrutura, não pode deixar. Pelo menos, não foi assim que eu aprendi (ENF04).

Categoria 2 - Responsabilização da enfermagem diante do 5º sinal vital

Na segunda categoria observou-se a relação entre a percepção do profissional frente a dor e os fatores extrínsecos, conforme proposto pelo SCMP, ou seja, o modelo reconhece a complexidade por meio de múltiplas fontes de entrada, incluindo não apenas comportamentos expressivos da pessoa com dor, mas também uma gama de fatores contextuais dos quais os observadores participam.

Ao questionar sobre o reconhecimento da dor como sinal vital, os relatos demonstraram a não priorização da avaliação da dor como 5º sinal vital, referindo a sobrecarga de trabalho e as demais tarefas como prioridade.

Sim, eu tenho feito. Vou ser bem sincera. Ultimamente tenho sido insuficiente porque está muito corrido. Você não tem tempo para nada, você pega um ali, você medica o outro. Aí no automático, como você viu os sinais vitais antes, aí você colocou zero. Porque assim, eu estava na enfermaria, então para mim, o mais importante é medicar, correr atrás da medicação [...] um chora com dor e aí você troca o curativo. Agora que você perguntou, eu deixei passar batido (AUX01).

Eu sei que a dor pode ser considerada como um sinal vital igual à temperatura, frequência cardíaca, mas na correria de todas as tarefas, acabo deixando passar e só anoto quando a criança chora com dor mesmo (TEC08).

Dentro do hospital sim, é porque é assim, sempre que nos é solicitado, a gente toma uma providência, então acho que sim. E aí eu anoto nas duas prescrições, eu às vezes não anoto atrás não [espaço dedicado a anotação dos sinais vitais], mas na frente eu sempre anoto. Só anoto quando ela teve dor mesmo. A gente até sabe que precisa anotar na hora dos outros sinais, mas é muita demanda aqui (AUX02).

Categoria 3 - Manejo da dor

A terceira categoria relaciona-se com os fatores intrínsecos e extrínsecos que influenciam o profissional frente ao manejo da dor proposto pelo SCMP, sendo que, o modelo atribui ao manejo uma complexidade referente à experiência de dor; a variável verbal e não verbal; as manifestações fisiológicas da dor; as reações dos observadores quando se esforçam para avaliar e compreender a dor da criança; e os julgamentos complexos associados a decisões para realizar ou não os cuidados.

Os seguintes relatos referentes à identificação e alívio da dor demonstram uma sequência de percepções, desde o momento da observação do fenômeno doloroso até a escolha da estratégia a ser utilizada. Observa-se a não idealização da dor como sinal vital, perpassando pela ideia do registro apenas em momentos de dor e finalizando com a escolha da estratégia farmacológica como única opção.

Avaliar a dor, eu avalio. Eu tento né? Olho bem pra criança, penso no que ela pode estar sentindo, penso se pode ser birra, fome, aí quando eu vejo que não é nada disso, aí sei que é dor né? Dá pra saber quando é dor com a experiência que eu tenho já, são muitos anos vendo criança com dor (ENF03).

Eu anoto na hora dos sinais vitais ... porque geralmente a criança está tranquila e quando ela sente dor, aí eu coloco se é um, dois, três, o grau de dor. Mas pra falar a verdade, não é sempre que eu lembro de anotar a dor não, passa batido (AUX05).

Eu faço sempre o mais simples. Se é uma criança mais simples, se não está escrito o que é pra começar. Aí se tiver, eu faço conforme está prescrito. Por exemplo, hoje tinha prescrito dipirona e morfina para o menino, aí começo pela dipirona primeiro (AUX03).

Quanto à avaliação da dor, o SCMP enfatiza a relação dos treinamentos e formações que o profissional traz consigo, instrumentos padronizados na instituição e percepção do profissional. Quando abordado sobre os instrumentos utilizados, observou-se que os profissionais fundamentam as avaliações da dor em seus conhecimentos prévios e próprias percepções.

Tenho utilizado escala assim, a criança fica chorosa, incomodada. É mais para criança pequena né? Quando ela é maiorzinha, ela mesmo fala para gente (TEC07).

Como são os bebezinhos mesmo, a gente vê pelo comportamento deles. Quando eles se mexem muito, se torcem, eles ficam muito inquietos. Mais pela irritação deles mesmo. Quando está com dor, está com febre, aí já vai tudo junto (TEC04).

Tipo assim, com uma criança maior você pergunta, você está com pouca dor, com média dor ou com bastante dor? Aí você avalia mais ou menos... Pouca dor é menos de cinco, aí média dá uns cinco; aí bastante você coloca 10 (ENF02).

Os relatos frente às intervenções para alívio da dor da criança permearam a não padronização e exclusivamente farmacológicas.

Começo pelo mais fraco. Se tem uma morfina e uma dipirona, vou fazer a dipirona primeiro. Depois, se não melhorar, a gente faz o mais forte (AUX08).

Começo com paracetamol, aí a dipirona e, no último caso, a morfina. A morfina é mais forte, bem mais forte (TEC10).

Se uma criança que não é pós-operatório, eu começo com dipirona. Se é uma criança que está no pós-operatório imediato, eu já acho que tem que ser uma dose assim de morfina ou tramal que está prescrito a critério médico. Aí você chama a enfermeira e questiona se pode fazer ou não. E se o médico diz que não, aí você vai para o paracetamol. É esse o critério (TEC011).

DISCUSSÃO

Os dados obtidos no presente estudo indicaram que mesmo com a implantação da dor como 5º sinal vital desde 2007, os registros de enfermagem relacionados à avaliação da dor, ainda se encontram incompletos e observou-se que não existe uma padronização dos critérios para a elaboração das prescrições médicas. Além disso, ficou claro que os profissionais estão sensibilizados com a importância da avaliação dor na criança, porém, utilizam critérios próprios e não a consideram como 5º sinal vital.

O SCMP proposto por Craig88 Craig KD. The social communication model of pain. Can Psychol. 2009;50(1):22-32. explicita quatro etapas sequenciadas, conceitualmente distintas, mas interativas, após um evento doloroso inicial: (1) experiência de dor da criança, (2) expressão de dor da criança, (3) avaliação de dor por um cuidador, e (4) ações tomadas (ou não) por outros que teriam impacto sobre a dor da criança.

Embora a dor seja subjetiva, a atividade comportamental permite inferências observadoras. As demonstrações de dor das crianças acarretam reações espontâneas nos observadores, assim como o potencial de empatia e julgamento clínico22 Williams AC, Craig KD. Updating the definition of pain. Pain. 2016;157(11):2420-3..

Os relatos demonstram que os profissionais naturalizam a dor durante a hospitalização, o que não os tornam cruéis, mas corrobora com a afirmação do SCMP de que as crenças dos profissionais interferem diretamente no processo de decodificação da dor.

Naturalizar ou não a dor vai além do ser empático, permeia atos, comportamentos, crenças e atitudes do profissional de enfermagem que precisa estar sensível ao sofrimento da criança e compreender que ela pode reagir fisicamente e emocionalmente ao processo doloroso1111 Silva JA. The challenge of pain. Psychol Neurosci. 2014;7(1):1-2..

Assim como evidenciado nos relatos, os profissionais partem de concepções próprias para a avaliação da dor e a expressão da dor determina principalmente, mas não exclusivamente, a avaliação do observador, e essa reação, por sua vez, terá um impacto no manejo da dor, dependendo da reação.

Em relação ao que o observador avaliará, encontram-se as expressões da criança e o componente do modelo que engloba a expressão infantil e a avaliação do cuidador é o cerne e exemplifica a crença de que a dor é fundamentalmente uma experiência social22 Williams AC, Craig KD. Updating the definition of pain. Pain. 2016;157(11):2420-3..

A valorização da dor pelo profissional e instituição contempla o contexto situacional dos fatores interpessoais e a vertente profissional dos fatores intrapessoais propostos pelo SCMP. Na UIP do presente estudo, a dor foi instituída como 5º sinal vital com o intuito de incorporar a rotina da equipe de enfermagem, visto que a presença da dor pode desencadear alterações fisiológicas na criança.

Porém, os relatos demonstraram a priorização de outras tarefas frente à avaliação da dor, corroborando a afirmação de que o cuidado da enfermagem focado no cumprir tarefas deixa de lado a significação no cuidado de enfermagem na perspectiva de apresentar zelo, atenção, solicitude1212 Vale EG, Pagliuca LM. [Construction of a nursing care concept: contribution for undergraduate nursing education]. Rev Bras Enferm. 2011;64(1):106-13. Portuguese, English..

Pensar na prioridade no cuidado é compreender que o papel da equipe de enfermagem vai além da administração do analgésico, é a compreensão da multidimensionalidade da dor de quem a sente e daquele que a assiste. É ressignificar o cuidado de enfermagem à criança com dor no sentido de zelar pelo seu bem-estar tornando a hospitalização menos traumática1313 Carlino E, Benedetti F. Different contexts, different pains, different experiences. Neuroscience. 2016;53(1):19-26..

O manejo da dor pediátrica inclui desde o reconhecimento da dor até o momento em que o profissional define quais estratégias deve utilizar para aliviá-la. Para que essa sequência de eventos possa ser realizada de maneira adequada, o profissional de enfermagem necessita compreender a importância do seu papel nesse processo e reconhecer o quanto está preparado para realizar esse manejo1414 Sekhon KK, Fashler SR, Versloot J, Lee S, Craig KD. Children's behavioral pain cues: implicit automaticity and control dimensions in observational measures. Pain Res Manag. 2017;2017:3017837..

Esse preparo é evidenciado no SCMP como os treinamentos profissionais envolvidos nos fatores intrapessoais do profissional, que na prática é ilustrado como conteúdos transmitidos, capacitações institucionais e conhecimentos prévios88 Craig KD. The social communication model of pain. Can Psychol. 2009;50(1):22-32..

Um manejo adequado da dor inicia-se com a avaliação e compreensão dos problemas levando em consideração a singularidade do paciente. Um estudo realizado com 261 enfermeiros de três hospitais públicos mostrou que 88,8% acreditam que é importante avaliar e documentar a dor, enquanto 11,2% acreditam não ser importante. Porém, 72% relataram não realizar a avaliação utilizando protocolos e escalas padronizadas, e atribuíram esse fato à falta de treinamento e experiências prévias com crianças hospitalizadas99 Miftah R, Tilahun W, Fantahun A, Adulkadir S, Gebrekirstos K. Knowledge and factors associated with pain management for hospitalized children among nurses working in public hospitals in Mekelle City, North Ethiopia: cross sectional study. BMC Res Notes. 2017;10(1):122..

Dessa mesma maneira, a equipe de enfermagem da UIP acredita na importância da avaliação e documentação da dor, porém sua prática é fundamentada em seus próprios costumes, crenças e atitudes em detrimento do conhecimento científico disponível e padronizações institucionais.

Um estudo realizado na UIP em questão em 2015 observou que durante os anos subsequentes, com a implantação da dor como sinal vital, foram feitas capacitações por profissionais do núcleo de educação e treinamentos pelos enfermeiros residentes para a utilização dos instrumentos. Porém, os profissionais permanecem justificando a não utilização pelo fato de não terem conhecimento44 Blasi DG, Candido LK, Tacla MT, Ferrari RA. Avaliação e manejo da dor na criança: percepção da equipe de enfermagem. Semina Cienc Biol Saude. 2015;36(Suppl 1):301-10..

Ainda relacionado à UIP, em 2011, um estudo analisou 385 prontuários de crianças hospitalizadas e verificou que 51,4% não tiveram a intensidade de sua dor quantificada1616 Riddell RP, Racine NM, Craig KD, Campbell L. Psychological theories and biopsychosocial models in paediatric pain. In: McGrath P, Stevens B, Walker S, Zempsky W. Paediatric Pain. Oxford, 1st ed. New York: Oxford University Press; 2018. 85-94p.. Da mesma maneira, um estudo realizado33 Stevens BJ, Yamada J, Promislow S, Stinson J, Harrison D, Victor JC, et al. Implementation of multidimensional knowledge translation strategies to improve procedural pain in hospitalized children. Implement Sci. 2014;9:120. em um hospital canadense, verificou que em uma UIP, em 24h, não houve nenhuma documentação da avaliação da dor.

O SCMP88 Craig KD. The social communication model of pain. Can Psychol. 2009;50(1):22-32. se refere à etapa da avaliação e registro da dor como a terceira etapa sequencial das quatro etapas existentes, conceitualmente distintas, mas interativas, após um evento doloroso inicial. O modelo proposto afirma que ao não realizar uma avaliação fidedigna ou registro dela, pode influenciar na quarta etapa, que consiste na tomada de ação frente a dor.

Como em todas as fases do processo, os julgamentos dos cuidadores e as decisões para fornecer e prestar cuidados são mutuamente influentes. As ações que um cuidador toma também podem afetar sua avaliação. Além disso, como um cuidador administra a dor de uma criança também pode retornar ao início da sequência e impactar na forma como a experiência de dor de uma criança é construída1717 Health Organization. WHO guidelines on the pharmacological treatment of persisting pain in children with medical illnesses. Geneva, World Health Organization, 2012..

Frente às ações que o profissional decide tomar e considerando que a administração da analgesia é a última etapa da sequência linear proposta pelo SCMP, as prescrições médicas também têm um papel importante, visto que, os profissionais optam por determinadas terapias farmacológicas, e necessitam estar adequadas à faixa etária e ao diagnóstico.

Nos relatos e nas prescrições médicas analisadas, observou-se a falta de padronização na escolha dos fármacos, tanto pela equipe de enfermagem quanto pela equipe médica no momento de prescrever os analgésicos.

Em contrapartida a esse achado, nas diretrizes sobre o tratamento farmacológico da dor em crianças houve uma atualização da escada analgésica, recomendando-se o uso do tratamento analgésico em dois passos, de acordo com o grau de gravidade da dor da criança.

Essa estratégia consiste em uma escolha de categoria de fármacos analgésicos de acordo com o nível de intensidade da dor na criança: para crianças avaliadas com dor leve, o paracetamol e o ibuprofeno devem ser considerados como primeiras opções; já as avaliadas com dor moderada a intensa, a administração de um opioide deve ser considerada.

A Organização Mundial da Saúde também recomenda que sejam utilizadas as estratégias não farmacológicas, o que vem ao encontro do SCMP que afirma que, muitas vezes, o evento disparador da dor pediátrica está intimamente associado com medo, ansiedade e estresse1717 Health Organization. WHO guidelines on the pharmacological treatment of persisting pain in children with medical illnesses. Geneva, World Health Organization, 2012..

Dentre as medidas não farmacológicas mais comumente utilizadas pode-se citar métodos de distração, relaxamento e conforto; bolsa de água quente; sucção não nutritiva; carinho; acalanto; atividades lúdicas e conversa explicativa sobre a dor. Porém, evidenciou-se no presente estudo que a cultura organizacional associada à falta de empoderamento por parte dos profissionais remete a escolhas de medidas exclusivamente farmacológicas para o alívio da dor pediátrica.

CONCLUSÃO

Os profissionais de enfermagem estão sensibilizados com o alívio da dor, porém, apenas ofertar capacitação sobre os instrumentos de avaliação da dor, por mais importante que seja, não é suficiente para alcançar uma continuidade do cuidado e aliviar a dor da criança hospitalizada.

A realização de um manejo adequado da dor depende diretamente da articulação entre fatores intrínsecos e extrínsecos daquele que sente a dor e daquele que a assiste, conforme os pressupostos do Modelo de Comunicação Social da Dor.

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Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    27 Fev 2020
  • Data do Fascículo
    Jan-Mar 2020

Histórico

  • Recebido
    16 Jul 2019
  • Aceito
    16 Dez 2019
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