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Papel do gênero na percepção e expressão da dor: revisão integrativa

RESUMO

JUSTIFICATIVA E OBJETIVOS:

A identidade de gênero e o seu papel aparentam influenciar a resposta à dor experimental, embora ainda não seja claro a magnitude dessa influência. Assim, o objetivo deste estudo foi investigar a influência do construto gênero (identidade/papel de gênero) na experiência da dor mediante a seleção e análise de estudos clínicos sobre o tema.

CONTEÚDO:

Foi desenvolvida uma busca nas bases de dados Medline (via Pubmed), LILACS (via BVS), PsycINFO. A busca foi desenvolvida com os seguintes descritores: tender identity, pain, gender role combinados pelo operador booleano AND/OR (gender identity) AND pain OR (gender role) AND pain. Os idiomas selecionados foram inglês, português e espanhol. Ao final da seleção, 11 estudos foram incluídos. Todas as investigações recuperadas sobre a temática compreenderam estudos clínicos laboratoriais. Em relação à influência da identidade e papel de gênero na percepção dolorosa, a maioria dos estudos (91%) encontraram que essa variável foi fator contribuinte para as diferenças observadas na percepção (tolerância/limiar de dor) e necessidade de comunicar a dor.

CONCLUSÃO:

Em dor experimental, maior feminilidade ou papéis sociais femininos estão associados a menores limiares e menor tolerância à dor, assim como maior propensão de comunicar a sensação dolorosa. Esses resultados independem do tipo de estímulo, da etnia ou orientação sexual.

Descritores:
Dor; Gênero e saúde; Identidade de gênero

ABSTRACT

BACKGROUND AND OBJECTIVES:

Gender seems to play a role in influencing the response to experimental pain, although this influence is not very clear yet. Therefore, the objective of the present review was to investigate the contribution of the gender construct (gender identity/role) in the experience of pain through the selection and analysis of clinical studies on the subject.

CONTENTS:

A search was carried out in the databases Medline (via Pubmed), LILACS (via BVS), and PsycINFO. The search used the following descriptors: gender identity, pain, gender role combined by the Boolean operator AND/OR (gender identity) AND pain AND gender role AND pain, in English, Portuguese and Spanish. At the end of the selection, 11 studies were included for this review. All the investigations recovered on the subject are clinical laboratory studies. Regarding the influence of the gender identity and its role in pain perception, most of the studies (91%) show that this variable was a contributing factor to the differences observed in perception (tolerance/pain threshold) and the need to communicate the pain.

CONCLUSION:

In experimental pain, a higher degree of femininity or female social roles are associated with lower thresholds and less tolerance to pain, as well as a greater natural tendency to communicate pain sensation. These results are independent of the type of stimulus, ethnicity, or sexual orientation.

Keywords:
Gender and health; Gender identity; Pain

INTRODUÇÃO

A dor é um sintoma presente em uma ampla gama de condições médicas e pode ter um impacto significativo na qualidade de vida e no funcionamento geral de uma pessoa11 Breivik H, Collett B, Ventafridda V, Cohen R, Gallacher D. Survey of chronic pain in Europe: prevalence, impact on daily life, and treatment. Eur J Pain. 2006;10(4):287-333. As mulheres apresentam maior prevalência de diagnósticos relacionados à dor crônica11 Breivik H, Collett B, Ventafridda V, Cohen R, Gallacher D. Survey of chronic pain in Europe: prevalence, impact on daily life, and treatment. Eur J Pain. 2006;10(4):287-333

2 Fillingim RB, King CD, Ribeiro-Dasilva MC, Rahim-Williams B, Riley JL 3rd. Sex, gender, and pain: a review of recent clinical and experimental findings. J Pain. 2009;10(5):447-85.

3 Greenspan JD, Craft RM, LeResche L, Arendt-Nielsen L, Berkley KJ, Fillingim RB, et al. Studying sex and gender differences in pain and analgesia: a consensus report. Pain. 2007;132(Suppl1):S26-45.
-44 Cimmino MA, Ferrone C, Cutolo M. Epidemiology of chronic musculoskeletal pain. Best Pract Res Clin Rheumatol. 2011;25(2):173-83., e pesquisas têm mostrado consistentemente diferenças entre os sexos, como a percepção, descrição e expressão da dor, o uso de estratégias de enfrentamento e o benefício de diferentes tratamentos22 Fillingim RB, King CD, Ribeiro-Dasilva MC, Rahim-Williams B, Riley JL 3rd. Sex, gender, and pain: a review of recent clinical and experimental findings. J Pain. 2009;10(5):447-85.,55 Hurley RW, Adams MC. Sex, gender, and pain: an overview of a complex field. Anesth Analg. 2008;107(1):309-17.

6 Bernardes SF, Keogh E, Lima ML. Bridging the gap between pain and gender research: a selective literature review. Eur J Pain. 2008;12(4):427-40.
-77 Bartley EJ, Fillingim RB. Sex differences in pain: a brief review of clinical and experimental findings. Br J Anaesth. 2013;111(1):52-8.. As diferenças biológicas podem contribuir para as diferenças observadas entre os sexos22 Fillingim RB, King CD, Ribeiro-Dasilva MC, Rahim-Williams B, Riley JL 3rd. Sex, gender, and pain: a review of recent clinical and experimental findings. J Pain. 2009;10(5):447-85.,33 Greenspan JD, Craft RM, LeResche L, Arendt-Nielsen L, Berkley KJ, Fillingim RB, et al. Studying sex and gender differences in pain and analgesia: a consensus report. Pain. 2007;132(Suppl1):S26-45.,77 Bartley EJ, Fillingim RB. Sex differences in pain: a brief review of clinical and experimental findings. Br J Anaesth. 2013;111(1):52-8.. Fatores genéticos, assim como fatores hormonais, atuam como mediadores de dor específicos do sexo22 Fillingim RB, King CD, Ribeiro-Dasilva MC, Rahim-Williams B, Riley JL 3rd. Sex, gender, and pain: a review of recent clinical and experimental findings. J Pain. 2009;10(5):447-85.,33 Greenspan JD, Craft RM, LeResche L, Arendt-Nielsen L, Berkley KJ, Fillingim RB, et al. Studying sex and gender differences in pain and analgesia: a consensus report. Pain. 2007;132(Suppl1):S26-45.,55 Hurley RW, Adams MC. Sex, gender, and pain: an overview of a complex field. Anesth Analg. 2008;107(1):309-17.. Estudos apontam que as respostas à dor nas mulheres são afetadas pelo ciclo menstrual, gravidez e uso de contraceptivo oral55 Hurley RW, Adams MC. Sex, gender, and pain: an overview of a complex field. Anesth Analg. 2008;107(1):309-17.,88 Barsky AJ, Peekna HM, Borus JF. Somatic symptom reporting in women and men. J Gen Inter Med. 2001;16(4):266-75.

9 Keogh E. Sex and gender differences in pain: a selective review of biological and psychosocial factors. J Men's Health Gender. 2006;3(3):236-43.
-1010 Racine M, Tousignant-Laflamme Y, Kloda LA, Dion D, Dupuis G, Choinière M. A systematic literature review of10 years of research on sex/gender and pain perception -part 2: do biopsychosocial factors alter pain sensitivity differently in women and men? Pain. 2012;153(3):619-35., o que pondera que os hormônios estão relacionados à resposta à dor. Adicionalmente, a resposta aos antagonistas dos receptores opioides pode gerar uma diferença entre as experiências de dor entre homens e mulheres33 Greenspan JD, Craft RM, LeResche L, Arendt-Nielsen L, Berkley KJ, Fillingim RB, et al. Studying sex and gender differences in pain and analgesia: a consensus report. Pain. 2007;132(Suppl1):S26-45.,55 Hurley RW, Adams MC. Sex, gender, and pain: an overview of a complex field. Anesth Analg. 2008;107(1):309-17.,1010 Racine M, Tousignant-Laflamme Y, Kloda LA, Dion D, Dupuis G, Choinière M. A systematic literature review of10 years of research on sex/gender and pain perception -part 2: do biopsychosocial factors alter pain sensitivity differently in women and men? Pain. 2012;153(3):619-35..

A dor é, por definição, sempre subjetiva1111 Merskey H, Bogduk N. Classification of chronic pain, IASP Task Force on Taxonomy. Seattle, WA: International Association for the Study of Pain Press (Also available online at www.iasp-painorg). 1994.
www.iasp-painorg...
. As escalas, amplamente utilizadas para avaliar a dor em pesquisas e na prática clínica22 Fillingim RB, King CD, Ribeiro-Dasilva MC, Rahim-Williams B, Riley JL 3rd. Sex, gender, and pain: a review of recent clinical and experimental findings. J Pain. 2009;10(5):447-85.,1212 Richardson J, Holdcroft A. Gender differences and pain medication. Womens Health. 2009;5(1):79-90.,1313 Hoffmann DE, Tarzian AJ. The girl who cried pain: a bias against women in the treatment of pain. J Law Med Ethics. 2001;29(1):13-27., mensuram o relato de dor, que, por sua vez, pode ser influenciado por fatores psicossociais, como o gênero. Desde tenra idade, meninos e meninas são socializados ao longo das normas de gênero de como responder à dor. Meninos e homens aprendem a ser durões, tolerar a dor e sustentar experiências dolorosas, enquanto meninas e mulheres são socializadas para serem sensíveis, cuidadosas e para verbalizar o desconforto1414 Myers CD, Riley JL 3rd, Robinson ME. Psychosocial contributions to sex-correlated differences in pain. Clin J Pain. 2003;19(4):225-32..

Os termos “sexo” e “gênero” referem-se a dois fatores distintos, mas que são relacionados. O sexo engloba um conjunto de atributos biológicos, como os cromossomos, a expressão genética e os aspectos anatômicos. O gênero refere-se às atitudes, sentimentos e comportamentos que uma dada cultura associa ao sexo biológico de uma pessoa. Está relacionado a um contexto complexo, sendo dependente de fatores psicológicos, psicossociais, culturais e políticos, sendo definido como uma construção sociocultural de papéis, normas, comportamentos, identidades e relações de poder1515 Marmot M, Friel S, Bell R, Houweling TA, Taylor S. Closing the gap in a generation: health equity through action on the social determinants of health. Lancet. 2008;372(9650):1661-9.,1616 Day S, Mason R, Tannenbaum C, Rochon PA. Essential metrics for assessing sex & gender integration in health research proposals involving human participants. PLoS One. 2017;12(8):e0182812.. A identidade de gênero refere-se ao sentido interno de uma pessoa de ser homem, mulher, feminina ou masculina, ou outro. Expressão de gênero refere-se à forma como uma pessoa comunica a identidade de gênero a outras pessoas por meio de comportamento, roupas, penteados, voz ou características do corpo. Por sua vez, o papel do gênero refere-se à maneira como a sociedade, em determinada época ou cultura, considera a feminilidade/masculinidade do indivíduo1717 Fidler F. The American Psychological Association publication manual sixth edition: implications for statistics education. Data and context in statistics education: towards an evidence-based society. 2010..

Apesar do crescimento da literatura sobre o tema, poucos estudos foram conduzidos com o objetivo de identificar a influência do gênero na dor. A compreensão dos mecanismos associados a essas diferenças poderá, no futuro, fornecer dados mais realistas aos estudos epidemiológicos e direcionar para tratamentos mais específicos.

O objetivo deste estudo foi investigar a contribuição do construto gênero (identidade/papel de gênero) na experiência da dor, mediante a seleção e análise de estudos clínicos sobre o tema.

CONTEÚDO

Com vistas ao alcance dos objetivos propostos, optou-se por uma revisão integrativa da literatura, método que proporciona a síntese de conhecimentos, pois possibilita reunir resultados de estudos significativos. As etapas que orientaram o seu desenvolvimento foram: 1- elaboração da pergunta norteadora, 2- estabelecimento de critérios de inclusão e exclusão de artigos, 3- definição das informações a serem extraídas dos estudos selecionados, 4- análise crítica dos estudos incluídos, 5- análise, síntese e apresentação dos resultados1818 Souza MT, Silva MD, Carvalho Rd. Integrative review: what is it? How to do it? Einstein. 2010;8(1):102-6. English, Portuguese..

A pergunta norteadora da pesquisa foi: “qual a contribuição do gênero nas respostas e experiências de dor em ambos os sexos”? A seleção dos estudos foi limitada a publicações nos idiomas inglês, português e espanhol. Revisões e meta-análises foram excluídas da amostra. A última consulta às publicações foi realizada entre junho e agosto de 2018. As bases selecionadas foram o Medline (via Pub-med), LILACS (via BVS), e PsycINFO. A busca foi desenvolvida com os seguintes descritores: ‘gender identity, ‘gender role e ‘pain combinados pelo operador booleano OR1AND (((gender identity[-MeSH Terms]) OR gender roles[MeSH Terms])) AND pain[MeSH Terms]. Foram incluídos estudos originais envolvendo humanos, sem limite de idade, que em sua metodologia tenha sido utilizado algum instrumento para avaliar a identidade de gênero ou o papel de gênero, e/ou feminilidade e/ou masculinidade, e a relação com a dor.

A seleção das publicações foi conduzida em três fases: seleção dos títulos por dupla leitura; resumos; análise qualitativa dos textos na íntegra. O processo de análise para a avaliação e seleção dos artigos foi realizado por duas pesquisadoras, de forma independente, com posterior confronto dos resultados para a obtenção dos textos selecionados por consenso. Em casos de divergência ou dúvidas quanto à inclusão do trabalho, houve a participação de um terceiro pesquisador avaliador.

Ao final do processo de seleção foram identificados 123 artigos listados no Medline e quatro no LILACS, sendo quatro duplicados. Após a seleção dos títulos por dupla leitura, 42 artigos foram selecionados, e 81 artigos foram excluídos. Após a leitura dos títulos e resumos desses artigos, 27 referências foram selecionadas para realizar a leitura completa. Onze estudos foram incluídos para síntese qualitativa. O processo de seleção dos estudos pode ser observado nafigura 1.

Figura 1
Identificação dos estudos conforme as bases de dados e critérios de elegibilidade1919 Moher D, Liberati A, Tetzlaff J, Altman DG. Preferred reporting items for systematic reviews and meta-analyses: the PRISMA statement. PLoS Med. 2009;6(7):e1000097.

Os títulos foram excluídos por: não contemplarem o tema (81); estudos em que avaliavam apenas o sexo (15); estudos em que não avaliaram a relação entre o gênero e a dor (16) e duplicados (4).

Ao final da seleção, 11 estudos foram incluídos. Todas as investigações recuperadas sobre a temática compreenderam estudos laboratoriais. Em relação aos anos de publicação, a distribuição se deu com um artigo para os anos 2002, 2003, 2004, 2006, 2012, 2013, 2014 e dois para os anos de 2009 e 2011. Na análise dos países que investigaram o tema, observou-se a seguinte disposição: Estados Unidos (7), Israel (2) e Reino Unido (2).

A amostra dos estudos variou de 67 a 548 participantes. Sobre a faixa etária, 10 estudos foram desenvolvidos com indivíduos adultos (18-45 anos) e apenas um com crianças (8-18 anos). Em relação ao desenho dos estudos, todos os artigos foram do tipo estudo clínico, com nove prospectivos não randomizado, um prospectivo randomi-zado e um retrospectivo não randomizado.

Foram identificados sete instrumentos diferentes para avaliar a identidade e papel de gênero. A maioria (seis) utilizou o Gender Role Expectation of Pain (GREP). O Bem Sex-Role Inventory (BSRI) foi utilizado em dois estudos, enquanto os outros estudos utilizaram instrumentos distintos: Personal Attributes Questionnaire, Hipermas-culinity Index, Child Sex-Role Inventory e Balanced Inventory of Desirable Responding. Um estudo aplicou questões sobre a expressão do gênero, sobre o nível de masculinidade/feminilidade preferido para um parceiro romântico, como a pessoa se descreve em relação à masculinidade/feminilidade.

Para a análise da dor, o instrumento mais utilizado foi a escala analógica visual (EAV) em sete artigos. Outras pesquisas aplicaram instrumentos diferentes: Short-Form of the McGill Pain Questionnaire, Pain Tolerance Assessment e Quantitative Somatosensory Testing. Apenas um estudo não fez uso de um instrumento padronizado. O limiar de dor foi mensurado de forma sensitiva, através da aferição do tempo de tolerância de dor.

Todos os estudos foram desenvolvidos em indivíduos saudáveis, nos quais a dor foi provocada por diferentes tipos de estímulos. O estímulo mais frequentemente utilizado foi o térmico (seis estudos). Além desse, outros estudos provocavam a sensação dolorosa através de pressão, isquemia e/ou choque elétrico. Em relação à influência da identidade e papel de gênero na percepção dolorosa, a maioria dos estudos (91%) encontraram que essa variável foi fator contribuinte para as diferenças observadas na percepção (tolerância/limiar de dor) e necessidade de comunicar a dor. Os resultados estão apresentados na tabela 1.

Tabela 1
Distribuição dos estudos

DISCUSSÃO

O objetivo principal desta revisão foi identificar se o gênero (identidade ou papéis de gênero) influencia na percepção dolorosa. Através dos critérios utilizados para a inclusão dos estudos, apenas investigações de dor experimental em indivíduos saudáveis puderam ser recuperadas. A maioria dos estudos apontou que o gênero foi fator contribuinte para as diferenças observadas na percepção dolorosa, apesar dos diferentes estímulos aplicados. De maneira geral, os resultados indicaram uma associação entre maior grau de feminilidade e maior percepção do estímulo doloroso, independente do sexo. Para os indivíduos com maior grau de masculinidade, observaram-se maiores limiares e tolerância à dor, além de menor propensão de comunicá-la.

Em todos os estudos analisados, as variáveis levadas em consideração na dor experimental incluíram: método de indução da dor, mensura-ções de dor utilizadas, influências do ambiente laboratorial, aparência tipificada do experimentador e possíveis vieses individuais. Devido às múltiplas fontes de variabilidade, ficou evidente que padrões inconsistentes de responsividade à dor existam na literatura. Acredita-se que as diferenças no relato de dor experimental de homens e mulheres resultem de uma influência do ambiente laboratorial, onde os cons-trutos psicossociais são ativados diferencialmente entre os sexos. As diferenças podem ser decorrentes, principalmente, de padrões de socialização específicos do gênero, no que diz respeito às crenças de dor, expectativas e comportamentos subsequentes. Assim, espera-se que os homens que aderem ao papel de gênero masculino subnotifiquem a dor. Por outro lado, seguir um papel de gênero feminino permitiria que as mulheres verbalizassem seu relato de dor. No entanto, esses relatos são principalmente especulativos e a falta de controles nos estudos dificulta as conclusões sobre as diferenças entre os sexos.

Embora mecanismos biológicos tenham sido postulados para explicar essas variabilidades, sugere-se que a aprendizagem social pode ser uma influência mais forte na resposta à dor. No curso da puberdade, diferenças incipientes de gênero na tolerância à dor parecem especialmente atribuíveis à diminuição do limiar de dor em meninas. Os limiares decrescentes para as meninas podem refletir mudanças específicas na percepção da dor e na avaliação da dor associada à puberdade (devido às influências hormonais ou mudanças nas orientações do papel de gênero). Outro ponto que deve ser ressaltado é que a resistência à dor não foi influenciada pelo limiar de dor do indivíduo. Espera-se que uma pessoa que relate experiências de dor precocemente durante um estímulo também apresente diminuição da resistência. Porém, parece haver baixa correlação entre limiar de dor e resistência3232 Pool GJ, Schwegler AF, Theodore BR, Fuchs PN. Role of gender norms and group identification on hypothetical and experimental pain tolerance. Pain. 2007;129(1-2):122-9.. As normas sociais ditam que os homens devem ser estoicos, tornando improvável que relatem a dor ou a expressem emocionalmente. Por outro lado, as normas sociais permitem que as mulheres sejam emocionalmente expressivas quando estão com dor e procurem atendimento médico para remediá-las. Assim, deve-se ser capaz de prever comportamentos relacionados à dor do grupo de gênero de um indivíduo e a importância relativa de aderir às normas do grupo.

Para a análise do gênero, a maioria dos estudos aplicou o instrumento GREP, idealizado para verificar as diferenças sexuais em relação às expectativas de dor, tanto para os outros como para si próprios. Esse instrumento analisa cinco fatores: sensibilidade à dor, vontade de relatar a dor, autorrelato de sensibilidade à dor, autorrelato de resistência à dor, e resistência estereotipada à dor. Os resultados deste estudo apontaram que, em todas as intervenções, o GREP mediou as diferentes reações à dor, tanto para homens como para mulheres. Na base da teoria da aprendizagem social, os homens devem tolerar dores mais intensas. As mulheres também consideram os homens, em geral, como mais tolerantes à dor, menos dispostos a relatar dor e menos sensíveis a ela3232 Pool GJ, Schwegler AF, Theodore BR, Fuchs PN. Role of gender norms and group identification on hypothetical and experimental pain tolerance. Pain. 2007;129(1-2):122-9..

Em menor proporção, para a avaliação do gênero, o instrumento BSRI foi aplicado em dois estudos. Um dos estudos apontou que, embora o gênero tenha sido preditor de tolerância à dor, não foi preditor das diferenças de dor entre os sexos. Na realidade, os autores afirmaram que o construto identificado pelo BSRI é uma medida global relacionada a traços de personalidade. Considerando que o comportamento de dor ligado ao gênero é flexível e dependente do contexto, portanto, o BSRI não avaliaria os aspectos de gênero que são especificamente elucidados na tarefa de dor experimental3333 Robinson ME, Riley III JL, Myers CD, Papas RK, Wise EA, Waxenberg LB, et al. Gender role expectations of pain: relationship to sex differences in pain. J Pain. 2001;2(5):251-7.. Em outro estudo que utilizou o mesmo estímulo doloroso (frio) e o instrumento BSRI para a avaliação do gênero, observou que os homens relataram menor sensibilidade à dor e menos ansiedade em relação às mulheres, mas apenas quando “preparados” com um papel de gênero feminino. Exemplificando, a capacidade de suportar a dor pode ser amplificada pela presença de uma sugestão feminina. Os homens mostrariam maior tolerância a um estímulo de dor experimental após serem antecipadamente informados de que as mulheres têm maior tolerância nessa tarefa3434 Kim HJ, Yang GS, Greenspan JD, Downton KD, Griffith KA, Renn CL, et al. Racial and ethnic differences in experimental pain sensitivity: systematic review and meta-analysis. Pain. 2017;158(2):194-211..

Conforme observou-se nos resultados (Tabela 1), uma parcela menor de estudos analisou outras possíveis variáveis de confusão, como diferenças étnicas e culturais, e orientação sexual. Entretanto, elas não influenciaram a resposta à dor. Em revisão sistemática sobre diferenças raciais e étnicas na sensibilidade à dor experimental, os autores observaram que as diferenças experimentais e raciais/étnicas na sensibilidade experimental à dor são mais pronunciadas em experiências de dor supra liminares do que em limiares. Isso pode ser importante porque medidas de dor supralimiares foram relatadas como uma das tarefas experimentais mais relevantes para a dor clínica3434 Kim HJ, Yang GS, Greenspan JD, Downton KD, Griffith KA, Renn CL, et al. Racial and ethnic differences in experimental pain sensitivity: systematic review and meta-analysis. Pain. 2017;158(2):194-211..

O presente estudo elucidou alguns aspectos pertinentes à dor experimental, cujo comportamento difere sobremaneira da dor clínica, especialmente crônica. Vale salientar que o limiar da dor e as classificações da intensidade da dor são comumente consideradas indicativas da característica sensorial-discriminativa da dor, enquanto a tolerância e as classificações de desconforto são consideradas indicativas dos aspectos afetivos e motivacionais da dor. A partir dos resultados deste estudo, assinala-se a importância de novos estudos em dor clínica que avaliem o construto gênero, em seus aspectos de autoidentificação e comportamentais para o entendimento da maior prevalência e maior risco de dor crônica no sexo feminino. Fatores como qualidades do examinador também devem ser melhor reportados nos estudos. Ainda que seja difícil controlar todas as variáveis de confusão, torna-se fundamental identificar os aspectos biológicos e sociais relativos ao gênero dos participantes para melhor compreensão do fenômeno.

CONCLUSÃO

Em dor experimental, maior feminilidade ou papéis sociais femininos parecem estar associados a limiares menores de tolerância à dor e menor tolerância à dor, assim como maior propensão de comunicar a sensação dolorosa. Estes resultados independem do tipo de estímulo, da etnia ou orientação sexual.

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Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    27 Fev 2020
  • Data do Fascículo
    Jan-Mar 2020

Histórico

  • Recebido
    12 Jul 2019
  • Aceito
    18 Set 2019
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