A dor crônica permanece sendo um dos maiores desafios da medicina contemporânea, afetando cerca de 20% da população adulta mundial. Seus impactos vão além do sofrimento individual, impondo limitações funcionais e custos socioeconômicos significativos. Apesar dos avanços em farmacologia e neurociência, a prevenção e o manejo eficaz ainda representam uma lacuna crítica.
Evidências emergentes sugerem que o início da vida desempenha um papel central na vulnerabilidade à dor crônica. Experiências dolorosas precoces e alterações no sistema serotoninérgico podem remodelar os circuitos de modulação da dor, favorecendo a sensibilização central e aumentando o risco de síndromes dolorosas no futuro. Modelos pré-clínicos e dados clínicos mostram que insultos neonatais, desde procedimentos invasivos em unidades de terapia intensiva (UTI), até adversidades psicossociais, podem programar trajetórias de risco ou resiliência, com repercussões duradouras sobre humor, sono e resposta ao estresse1.
A serotonina, neurotransmissor chave na modulação da dor, exerce efeitos complexos e bidirecionais. Perturbações durante janelas críticas de desenvolvimento podem reduzir a inibição descendente, alterar o equilíbrio entre receptores e comprometer a plasticidade sináptica, criando um terreno pró-nociceptivo. Intervenções precoces farmacológicas ou ambientais demonstram que é possível modular esse risco, mas também alertam para os efeitos paradoxais de certos fármacos, como os inibidores seletivos da recaptação de serotonina (ISRS), durante o desenvolvimento.
O conceito de programação do desenvolvimento, segundo o qual experiências precoces moldam trajetórias de saúde ao longo da vida, está consolidado em áreas como endocrinologia e psiquiatria. Na pesquisa em dor, essa perspectiva ganha cada vez mais força. Estudos em roedores mostram que insultos neonatais, como punções repetidas com agulha (pinprick), inflamação induzida por carragenina ou separação materna, resultam em hiperalgesia persistente e maior resposta a estímulos dolorosos posteriores na vida adulta2-4.
O sistema serotoninérgico desempenha papel central nesse processo: neurônios do núcleo da rafe dorsal projetam-se para múltiplas regiões corticais, subcorticais e espinhais, modulando a nocicepção de forma inibitória ou facilitadora, dependendo do subtipo de receptor ativado5. Alterações nesse sistema durante o período de desenvolvimento crítico reduzem a inibição descendente e desequilibram a sinalização via receptores 5-HT1A/1B e 5-HT2/3, promovendo hiperexcitabilidade central e maior sensibilidade à dor.
Estudos pré-clínicos mostram que a fluoxetina, um inibidor seletivo da recaptação de serotonina (ISRS), pode ter efeitos paradoxais: quando administrada em fases críticas do desenvolvimento, aumenta hipersensibilidade térmica e mecânica em alguns modelos, mas também normaliza a hiperalgesia induzida por estresse pré-natal em outros6,7. Esses achados refletem a complexidade da farmacologia serotoninérgica: o efeito final depende da idade, do contexto de estresse e do subtipo de receptor predominante, destacando a necessidade de cautela na prescrição neonatal de ISRS.
Além disso, intervenções que reduzem a serotonina, como depleção por pCPA ou 5,7-DHT, demonstram que baixos níveis do neurotransmissor comprometem a modulação inibitória da dor, aumentam a hiperalgesia inflamatória e reduzem a eficácia de analgésicos opioides8,9. A interação entre serotonina, eixo HPA e plasticidade sináptica sugere um mecanismo integrativo pelo qual adversidades precoces programam a vulnerabilidade à dor crônica.
Esses achados sugerem que políticas e práticas de saúde podem se beneficiar ao incluir estratégias preventivas precoces. Isso inclui otimizar a analgesia neonatal, reduzir procedimentos dolorosos desnecessários, fortalecer o cuidado parental e monitorar com cautela o uso de fármacos serotoninérgicos. Investir em biomarcadores e intervenções direcionadas pode permitir identificar crianças em maior risco e atuar antes que a dor se torne crônica.
Entender o papel da serotonina e das experiências precoces na dor crônica vai além da ciência básica, configurando um dilema de saúde pública e orientando a necessidade de políticas de cuidado desde os primeiros dias de vida. Ao agir precocemente, poderemos não apenas tratar, mas prevenir a dor crônica, reduzindo seu impacto global e promovendo uma sociedade mais saudável e resiliente.
Referências
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Datas de Publicação
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Publicação nesta coleção
10 Nov 2025 -
Data do Fascículo
2025
