RESUMO
JUSTIFICATIVA E OBJETIVOS A desregulação da modulação descendente da dor, caracterizada por um desequilíbrio entre as vias facilitatórias e inibitórias, desempenha um papel fundamental no desenvolvimento e na persistência da dor crônica. O paradigma da modulação condicionada da dor (CPM - conditioned pain modulation) é um método bem estabelecido para avaliar o controle descendente da dor em humanos. O receptor 5-HT3 (5-HT3R) está relacionado com a facilitação descendente da dor e tem sido associado a estados de dor persistente. Este estudo fisiológico duplo-cego e cruzado teve como objetivo investigar os efeitos da inibição do 5-HT3R com ondansetrona nos limiares térmicos e mecânicos de dor, avaliados por meio de teste sensitivo quantitativo (QST - quantitative sensory testing), e no CPM (estímulo térmico) em adultos saudáveis.
MÉTODOS Dezessete voluntários saudáveis foram submetidos a avaliações de QST e CPM no início do estudo e após receberem uma infusão de 8 mg de ondansetrona ou solução salina (NaCl 0,9%) endovenosas. Uma semana depois, eles foram reavaliados usando o tratamento oposto seguindo o mesmo protocolo. As alterações no QST e na CPM antes e depois de cada intervenção foram analisadas por meio de testes t pareados ou testes de Wilcoxon(limiar de significância: p<0,05).
RESULTADOS A ondansetrona não apresentou efeito significativo nas medidas do QST, mas aumentou significativamente o CPM em comparação com a solução salina.
CONCLUSÃO Esses achados sugerem que a inibição do 5-HT3R aumenta a inibição endógena da dor sem alterar os limiares de dor aguda, destacando seu papel potencial na modulação central da dor.
Descritores:
Antagonistas do receptor de serotonina 5-HT3; Dor; Ondansetrona; Sensibilização do sistema nervoso central
DESTAQUES
Este estudo fisiológico duplo-cego e cruzado teve como objetivo investigar os efeitos da inibição do 5-HT3R com ondansetrona nos limiares de dor térmica e mecânica, avaliados por meio de teste sensitivo quantitativo (QST), e na modulação condicionada da dor (CPM) em adultos saudáveis.
Neste estudo, a ondansetrona não teve efeito significativo nas medidas do QST, mas aumentou significativamente a CPM em comparação com a solução salina (NaCl 0,9%).
Esses achados sugerem que o antagonismo do 5-HT3R pela ondansetrona aumenta a inibição endógena da dor sem alterar os limiares de dor aguda, destacando seu papel potencial na modulação central da dor.
ABSTRACT
BACKGROUND AND OBJECTIVES Dysregulation of descending pain modulation, characterized by an imbalance between facilitator and inhibitory pathways, plays a key role in the development and persistence of chronic pain. The conditioned pain modulation (CPM) paradigm is a well-established method for assessing descending pain control in humans. The 5-HT3 receptor (5-HT3R) is implicated in descending pain facilitation and has been associated with persistent pain states. This double-blind, crossover physiological study aimed to investigate the effects of 5-HT3R inhibition with ondansetron on thermal and mechanical pain thresholds, assessed via quantitative sensory testing (QST), and on CPM (thermal stimulus) in healthy adults.
METHODS Seventeen healthy volunteers underwent quantitative sensory testing (QST) and conditioned pain modulation (CPM) assessments at baseline and following an intravenous infusion of either 8 mg ondansetron or saline (NaCl 0.9%). One week later, they were reassessed using the opposite treatment following the same protocol. Changes in QST and CPM before and after each intervention were analyzed using paired t-tests or Wilcoxon matched-pairs signed-rank tests (significance threshold: p<0.05).
RESULTS Ondansetron had no significant effect on QST measures, but significantly enhanced CPM compared to saline.
CONCLUSION These findings suggest that 5-HT3R inhibition enhances endogenous pain inhibition without altering acute pain thresholds, highlighting its potential role in central pain modulation.
Keywords:
Serotonin 5-HT3 receptor antagonists; Pain; Ondansetron; Central nervous system sensitization
HIGHLIGHTS
This double-blind, crossover physiological study aimed to investigate the effects of 5-HT3R inhibition with ondansetron on thermal and mechanical pain thresholds, assessed by quantitative sensory testing (QST), and on conditioned pain modulation (CPM) in healthy adults
In this study, ondansetron had no significant effect on QST measurements, but significantly increased CPM compared to saline solution (0.9% NaCl)
These findings suggest that 5-HT3R antagonism by ondansetron increases endogenous pain inhibition without altering acute pain thresholds, highlighting its potential role in central pain modulation
INTRODUÇÃO
A desregulação da modulação descendente da dor, caracterizada por um desequilíbrio entre as vias facilitatórias e inibitórias, desempenha um papel fundamental na patogênese e na persistência da dor crônica (DC)1. Assim, a restauração do processamento central da dor é uma estratégia de tratamento promissora para melhorar os resultados dos pacientes2-4.
Uma compreensão abrangente dos mecanismos moleculares subjacentes à transmissão e modulação da dor no sistema nervoso é fundamental para o avanço das opções de tratamento para pacientes com DC. Tal conhecimento pode promover o desenvolvimento de intervenções direcionadas para abordar a plasticidade observada nos sistemas facilitatórios e moduladores nesses indivíduos5.
As vias descendentes não são exclusivamente inibitórias; elas também podem facilitar a dor6. As vias serotoninérgicas, por exemplo, exercem efeitos inibitórios e facilitatórios no processamento nociceptivo na medula espinhal7. Essas respostas dependem dos receptores 5-HT específicos ativados, de sua distribuição no sistema nervoso e do fato de a condição de dor ser aguda ou crônica7,8.
Entre os subtipos de receptores 5-HT, o receptor 5-HT3 (5-HT3R) tem atraído atenção especial. Estudos destacam sua função proeminente no sistema facilitatório descendente da dor e seu envolvimento em várias condições de dor persistente, incluindo dor inflamatória, dor pós-operatória, hipersensibilidade visceral, dor neuropática, dor do câncer e hiperalgesia induzida por opioides8. A ondansetrona, uma substância antagonista altamente seletiva do 5-HT3R, comumente usada como antiemético para pacientes cirúrgicos e quimioterápicos, demonstrou efeitos analgésicos em modelos animais9,10.
O paradigma da modulação condicionada da dor (CPM) é um método amplamente utilizado para avaliar a modulação descendente da dor em humanos11. A CPM é um teste psicofísico baseado no conceito de “dor inibindo a dor”, no qual a intensidade de um estímulo teste doloroso, é reduzida durante ou imediatamente após a aplicação de um estímulo de condicionamento.
Recentemente, as pesquisas têm se concentrado em avaliar a confiabilidade da CPM. Embora a CPM tenha demonstrado ser uma medida confiável, sua confiabilidade é fortemente influenciada pelos parâmetros de estimulação e pelas escolhas metodológicas, as quais devem ser cuidadosamente consideradas pelos pesquisadores12,13. A magnitude dessa redução na percepção da dor é chamada de efeito CPM11. Estudos demonstraram que a CPM é menos eficaz em pacientes com dor neuropática de várias etiologias2,14-16.
A hipótese do presente estudo é que a inibição do 5-HT3R com ondansetrona aumentaria o sistema descendente de modulação da dor, melhorando a CPM em voluntários saudáveis. Para testar essa hipótese, foi realizado um estudo de intervenção fisiológica usando um projeto cruzado cego no qual a sensibilidade e a CPM foram avaliadas antes e depois da administração de ondansetrona ou solução salina em humanos.
MÉTODOS
Procedimentos experimentais
Estudo cruzado, randomizado e duplo-cego, aprovado pelo Comitê de Ética em Pesquisa institucional (Institutional Review Board) (Número de protocolo: 56649116.0.0000.5259). Todos os experimentos foram conduzidos de acordo com a Declaração de Helsinque e o Temo de Consentimento Livre e Informado por escrito foi obtido de todos os participantes. O ensaio clínico foi registrado no Registro Brasileiro de Ensaios Clínicos - ReBEC (U1111-1232-3630)17.
Características dos voluntários
Dezessete indivíduos saudáveis de ambos os sexos, com idade entre 18 e 40 anos, participaram do estudo (amostra de conveniência). A pesquisa foi realizada no Laboratório de Avaliação de Sensibilidade da Clínica de Dor do Hospital Universitário Pedro Ernesto - Universidade do Estado do Rio de Janeiro.
Para atenuar possíveis influências térmicas nos testes, a temperatura ambiente foi mantida em 22 °C e todas as condições de avaliação foram padronizadas. Os seguintes critérios de exclusão foram considerados: doenças crônicas ou o uso de analgésicos, antidepressivos, benzodiazepínicos ou qualquer outro fármaco psicoativo nos 14 dias anteriores aos testes. As características demográficas registradas incluíram sexo (feminino e masculino), idade (anos), índice de massa corporal (IMC = massa corporal dividida pelo quadrado da altura do corpo) e raça autodeclarada (branca e não branca).
Teste sensorial quantitativo (QST)
A sensibilidade térmica foi avaliada após a familiarização e a demonstração18. O estudo usou um equipamento de teste térmico (Medoc TSA-2001; Medoc, Israel), que empregou um dispositivo Peltier com uma superfície ativa de 30×30 mm. A intensidade do estímulo foi aumentada ou diminuída gradualmente a partir de uma linha de base de 32 °C (1 °C/s, limites de coorte: 0 °C e 50 °C) até que o indivíduo pressionasse um botão de resposta, registrando a temperatura e retornando-a à linha de base. Os testes foram realizados na área antebraquial anterior não dominante. Os pesquisadores avaliaram os limiares de detecção de calor e frio (quatro estímulos cada), bem como os limiares de dor de calor e frio (três estímulos cada), com os valores médios usados para análise.
Limiar de detecção de frio (CDT) e limiar de detecção de calor (WDT)
Os voluntários foram instruídos a pressionar o botão de parada quando percebessem uma mudança na temperatura da pele para mais fria (CDT) e para quente (WDT). A média de quatro estímulos foi usada como CDT e WDT.
Limiar de dor ao frio (CPT) e limiar de dor ao calor (HPT)
Os voluntários foram instruídos a pressionar o botão de parada quando percebessem uma mudança na temperatura da pele de uma sensação fria para uma sensação de queimação, ardência, perfuração ou dor (CPT) e de uma sensação quente para uma sensação de queimação, ardência, perfuração ou dor (HPT). A média de três estímulos foi usada como CPT e HPT.
Limiar de dor por pressão (PTT)
A PPT ou pressão de pico (PP) foi medida com um algômetro de pressão manual (Medoc Algometer, Medoc Ltd., Ramat Yishai, Israel, 2021) usando uma sonda com uma superfície circular de 1 cm2. A dor por pressão foi avaliada na mesma área em que foi realizado o teste sensitivo térmico. A pressão foi aplicada perpendicularmente contra a pele a uma taxa de 50 kPa/s, e os participantes foram instruídos a pressionar um botão quando a sensação de pressão mudasse para uma sensação de queimação, ardência, perfuração ou dor. A média de três estímulos foi considerada como o limiar de dor por pressão.
Modulação condicionada da dor (CPM)
A CPM foi calculada como a diferença na pontuação da dor, usando uma escala numérica de dor (NPS) de 0 a 100, entre dois estímulos de teste nociceptivos idênticos induzidos antes, na linha de base e paralelamente a um estímulo nociceptivo remoto condicionado. O estímulo de teste foi um estímulo térmico de contato de 30x30 mm (TSA-2001, Medoc, Israel) aplicado no antebraço anterior não dominante. A intensidade do estímulo de teste foi predeterminada individualmente, com base no parâmetro psicofísico de uma pontuação de dor de 60, que foi o estímulo térmico que induziu uma sensação dolorosa de 60 pontos na NPS. Após 15 minutos, a mão contralateral foi imersa em uma bacia com água quente a uma temperatura de 46,5 °C (Cooling bath, Carci, Brasil) por 60 segundos (estímulo nociceptivo condicionado) e, durante os últimos 30 segundos, o estímulo de teste foi repetido. Os participantes foram solicitados novamente a pontuar a intensidade da dor. A CPM foi determinada como a diferença entre o segundo e o primeiro valor de intensidade da dor após os dois estímulos. Assim, um valor de CPM menor ou mais negativo foi considerado uma CPM mais eficiente.
Randomização
A randomização foi realizada por um médico não envolvido no projeto, usando um envelope lacrado que especificava a infusão do tratamento para a primeira semana - ondansetrona ou solução salina isotônica (NaCl 0,9%). O médico preparou a solução e a forneceu ao pesquisador. Nem o voluntário nem o pesquisador sabiam qual solução foi administrada. A identificação da solução administrada a cada voluntário só foi revelada no final do estudo.
Tratamentos
Ondansetrona: Uma antagonista de 5-HT3R, a ondansetrona (8 mg em 20 mL de solução salina)19 foi administrado por via intravenosa durante 15 minutos. Um eletrocardiograma de linha de base foi realizado em todos os participantes para garantir um intervalo QTc normal.
Controle (solução salina isotônica): NaCl 0,9% (20 mL) foi administrado por via intravenosa durante 15 minutos.
Projeto experimental (Figura 1)
Os testes foram realizados em quatro períodos:
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Período 1: As medições de CPT, WPT, CPT, HPT e CPM foram realizadas 10 minutos após a inserção do cateter intravenoso (linha de base);
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Período 2: Imediatamente após o período 1 e a randomização, os voluntários receberam uma injeção intravenosa de 8 mg de ondansetrona em 20 mL de solução salina ou 20 mL de solução salina. As medições de CPT, WPT, CPT, HPT e CPM foram repetidas 30 minutos após a administração da solução;
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Período 3: Uma semana depois, as medições de CPT, WPT, CPT, HPT e CPM foram feitas 10 minutos após a inserção do cateter intravenoso (linha de base);
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Período 4: Imediatamente após o período 3, os voluntários receberam a solução oposta à que receberam na semana anterior. Assim, cada participante recebeu ambas as soluções, servindo como controle (crossover), resultando em 34 experimentos. As medições de CPT, WPT, CPT, HPT e CPM foram repetidas 30 minutos após a administração da solução.
Para aumentar a confiabilidade, as comparações foram realizadas em cada sessão, com a análise da linha de base realizada antes da administração de cada solução20.
Depois da randomização, 17 voluntários saudáveis foram submetidos ao QST e exames de modulação condicionada da dor (CPM) durante a primeira semana, antes e depois da infusão de solução salina ou ondansetrona.Uma semana depois, os mesmos voluntários foram submetidos novamente a exames de QST e CPM, antes e depois de receberem a solução oposta à da primeira semana. O estudo foi duplamente cego.
Análise estatística
Os dados foram apresentados como média (DP), mediana [IQR] ou proporção. O teste de Shapiro-Wilk foi usado para avaliar a normalidade dos dados. As alterações em CDT, WDT, CPT, HPT, PP e CPM foram calculadas na linha de base e após a infusão das soluções estudadas (ondansetrona ou solução salina). A CPM foi expressa como uma alteração percentual em relação à linha de base. As diferenças entre as condições foram analisadas com o uso de testes t pareados para dados normalmente distribuídos ou testes de Wilcoxon para dados não normalmente distribuídos. As análises estatísticas foram realizadas com o STATA 18, com p<0,05 considerado estatisticamente significativo.
RESULTADOS
Características dos voluntários
A Tabela 1 resume as características dos voluntários. Um total de dezessete participantes foi incluído no estudo, sendo que nove (52,9%) eram do sexo masculino. A idade média dos voluntários foi de 32 [29-33] anos, e o IMC médio (DP) foi de 25,2 (±3,0) kg/m2. Nenhum paciente foi removido do estudo.
Todos os pacientes foram acompanhados até a conclusão do estudo. Não houve efeitos adversos relacionados ao fármaco ou aos testes empregados.
Efeitos da inibição do receptor serotoninérgico 5-HT3 na sensibilidade à dor e na modulação condicionada da dor (CPM)
A Tabela 2 e a Figura 2 ilustram a sensibilidade à dor e os resultados da CPM antes (linha de base) e depois das administrações de ondansetrona ou solução salina.
Detecção térmica e intensidade da dor
Não foram observadas diferenças significativas nas alterações de CDT, WDT, CPT, HPT e PTT antes e depois da infusão de solução salina ou ondansetrona.
Modulação condicionada da dor (CPM)
A ondansetrona melhorou significativamente a CPM, enquanto a solução salina não. A mudança na CPM, avaliada como uma proporção em relação à linha de base, foi maior após a infusão de ondansetrona (91,6% [83,3%-106,2%]) em comparação com a infusão de solução salina (104,5% [92,8%-111,1%]), com um valor de p de 0,013.
Os valores de CPM são apresentados como razões em relação aos valores basais. Dezessete voluntários (n=17) foram submetidos a um exame de CPM no início do estudo. Após a randomização, receberam uma injeção de solução salina ou ondansetrona, seguida por outro exame de CPM. Uma semana depois, os mesmos voluntários foram submetidos novamente ao exame de CPM no início do estudo e após receberem a solução oposta da semana anterior (um estudo cruzado).
Os valores de CPM estão apresentados como proporções em relação aos valores de linha de base. Dezessete voluntários (n=17) foram submetidos a um exame de CPM na linha de base. Após a randomização, eles receberam uma injeção de solução salina ou ondansetrona, seguida de outro exame de CPM. Uma semana depois, os mesmos voluntários foram submetidos novamente ao exame de CPM na linha de base e após receberem a solução oposta da semana anterior (um estudo cruzado).
DISCUSSÃO
O estudo demonstrou que a inibição do 5-HT3R com ondansetrona aumentou a modulação condicionada da dor (CPM) sem afetar os limiares de detecção térmica, os limiares de dor térmica ou os limiares de dor por pressão. Tais achados sugerem uma possível função terapêutica para a inibição do 5-HT3R na restauração do processamento central da dor. Até onde é de conhecimento dos autores, este é o primeiro estudo a mostrar que a inibição do 5-HT3R pode melhorar a CPM em humanos.
O receptor 5-HT3 é amplamente distribuído nos sistemas nervosos periférico e central. Diferentemente de outros subtipos de receptores 5-HT, que são acoplados à proteína G, o 5-HT3R é um canal iônico conectado a um ligante que, após a ativação, induz uma rápida despolarização neuronal21. Esse receptor foi identificado em várias regiões importantes, incluindo a área postrema, o núcleo do trato solitário, o núcleo motor dorsal do vago, o núcleo caudado, o núcleo accumbens, a amígdala, o hipocampo, o córtex entorrinal, o córtex frontal, o córtex cingulado e o corno dorsal da medula espinhal. Essas regiões estão criticamente envolvidas na regulação do reflexo de vômito, no processamento da dor, nos mecanismos de recompensa e no controle da ansiedade22. Na medula espinhal, o 5-HT3R está especialmente concentrado nas camadas superficiais do corno dorsal, onde faz mediação das vias excitatórias do tronco cerebral e modula a excitabilidade espinhal por meio de seus efeitos nos neurônios espinhais23.
Os resultados indicam que a inibição do receptor 5-HT3R não alterou a sensibilidade da dor a estímulos térmicos ou de pressão, o que se alinha com evidências anteriores da função limitada do receptor na modulação da dor aguda. Por exemplo, a administração concomitante de ondansetrona com paracetamol não melhorou a analgesia em pacientes submetidos à cirurgia abdominal24. Por outro lado, um estudo recente descobriu que a ondansetrona reduziu a dor pós-operatória precoce após apendicectomia. Além disso, uma pesquisa anterior16 demonstrou que a interrupção do 5-HT3R - genética ou farmacologicamente - reduziu a nocicepção persistente, mas não a aguda, após lesão tecidual em camundongos25. Esses achados sugerem que a inibição do 5-HT3R pode não modular significativamente a dor fisiológica aguda, embora tenha sido relacionada com a dor inflamatória8.
A melhora na CPM após a administração de ondansetrona no estudo sugere que o 5-HT3R pode desempenhar um papel na facilitação serotoninérgica central da nocicepção. Estudos anteriores demonstraram que o 5-HT3R contribui para a facilitação nociceptiva na medula espinhal23,25, o que é consistente com observações em humanos e com dados de modelos animais. Em estudos com animais, a modulação descendente da dor é frequentemente avaliada por meio do paradigma DNIC (Diffuse Noxious Inhibitory Controls - Controles Inibitórios Nocivos Difusos)26. Em um modelo de neuropatia induzida por ligadura do nervo espinhal em ratos, o DNIC foi abolido, mas restaurado após o tratamento com ondansetrona27.
Investigações recentes destacaram a função dos neurônios que expressam NK1 nas lâminas I-III da medula espinhal, que são principalmente nociceptivos específicos e se projetam para a área parabraquial e o tronco cerebral. Esses neurônios são essenciais para a transmissão da dor, e as evidências sugerem que a facilitação descendente mediada por 5-HT3R aumenta o processamento central da dor espinhal, principalmente em estados de DC, como a neuropatia. A lesão dos neurônios que expressam NK1 diminui as respostas dos neurônios espinhais, imitando os efeitos da ondansetrona espinhal e aqueles observados em animais com nocaute do 5-HT3R. Isso corrobora o envolvimento do 5-HT3R na modulação da nocicepção por meio de alças espinhais do tronco encefálico19. Em um modelo de neuropatia induzida por quimioterapia em ratos, foi observada uma expressão aumentada de 5-HT3R no corno dorsal superficial (lâminas I-II) por meio de imunohistoquímica, e a ondansetrona intratecal reverteu a hiperalgesia mecânica e ao frio28. Ademais, foi demonstrado que uma única injeção de ondansetrona reduziu os escores de dor por até duas horas em pacientes com dor neuropática crônica19.
As vias descendentes envolvidas no DNIC devem ser ativadas por estímulos nocivos, possuir campos receptivos amplos, conectar-se diretamente à medula espinhal e ser capazes de inibir a atividade dos neurônios de ampla faixa dinâmica (WDR - Wide Dynamic Range)29. Embora o mecanismo exato da inibição da WDR ainda não esteja claro, ele pode envolver a inibição pós-sináptica, a ativação de circuitos inibitórios espinhais ou a modulação pré-sináptica de entradas nociceptivas. Essas características ressaltam a importância de uma via DNIC intacta - e, por extensão, da CPM - para a inibição eficaz da dor. As ferramentas farmacológicas são frequentemente usadas para investigar a CPM, especialmente em indivíduos saudáveis com sistemas de modulação da dor endógena presumivelmente intactos. Assim, os resultados do presente estudo demonstram que a inibição do 5-HT3R pode aumentar a CPM, sugerindo seu potencial como alvo terapêutico para melhorar o controle da dor endógena30.
Uma revisão abrangente31 reuniu evidências substanciais que apoiam o uso de agonistas dos receptores 5-HT(1A) e 5-HT(7), bem como de antagonistas dos receptores 5-HT(2A) e 5-HT(3), como agentes promissores para o tratamento de várias condições de dor31. No entanto, são necessárias mais pesquisas para replicar os achados do presente estudo em pacientes com dor neuropática e para determinar se a inibição do receptor 5-HT3R pode melhorar a CPM e reduzir a dor nessa população32,33.
O presente estudo apresentou algumas limitações que devem ser reconhecidas. Em primeiro lugar, o tamanho relativamente pequeno da amostra pode afetar a generalização dos resultados, embora ofereça informações valiosas sobre os efeitos da modulação serotoninérgica na percepção da dor. Em segundo lugar, embora tenham sido observadas melhoras de curto prazo na CPM, o desenho do estudo não permitiu avaliar a duração desses efeitos, o que pode ser crucial para a compreensão das implicações terapêuticas de longo prazo. Ademais, a natureza inerentemente subjetiva do relato da dor, que pode variar significativamente entre indivíduos, pode introduzir variabilidade na avaliação da intensidade da dor. Apesar dessas limitações, as descobertas fornecem contribuições significativas para a compreensão dos mecanismos de modulação da dor e destacam direções para pesquisas futuras.
CONCLUSÃO
O estudo demonstrou que a inibição do 5-HT3R pela ondansetrona em adultos saudáveis aumenta a modulação condicionada da dor (CPM) sem alterar as respostas à dor fisiológica aguda, destacando o importante papel que esses receptores podem desempenhar no processamento central da dor. Embora esses achados sejam promissores, mais pesquisas são necessárias para confirmar os resultados em pacientes com DC. Estudos futuros devem investigar a duração e a sustentabilidade dos efeitos observados. De todo modo, as percepções preliminares contidas no presente estudo oferecem uma base valiosa para explorar os antagonistas de 5-HT3R como uma estratégia terapêutica no tratamento da DC, potencialmente abrindo caminho para novas intervenções no tratamento da dor.
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Fontes de fomento:
Fundação Carlos Chagas Filho de Amparo à Pesquisa do Estado do Rio de Janeiro FAPERJ (E-26/111.826/2013). Verba usada para a compra do aparelho (Medoc TSA-2001; Medoc, Israel).
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Editado por
-
Editor associado responsável:
Renato Leonardo de Freitas https://orcid.org/0000-0003-1799-5326
Datas de Publicação
-
Publicação nesta coleção
18 Ago 2025 -
Data do Fascículo
2025
Histórico
-
Recebido
03 Nov 2024 -
Aceito
17 Maio 2025




