Acessibilidade / Reportar erro

Risco de abuso de opioides em ambulatório de dor crônica não oncológica

RESUMO

JUSTIFICATIVA E OBJETIVOS:

A dor crônica tem se tornado uma doença extremamente prevalente e um motivo cada vez mais recorrente para procura de atendimento médico. Tem sido tratada com opioides possibilitando o abuso de seu uso. Este estudo teve como objetivo analisar o perfil de risco para abuso de opioides em pacientes ambulatoriais com dor crônica.

MÉTODOS:

Estudo transversal com 72 pacientes atendidos em ambulatório de um hospital público no período de julho e agosto de 2019. As variáveis analisadas foram idade, sexo, comorbidades, fármacos em uso e aspectos relacionados à dor como intensidade, localização anatômica, etiologia e necessidade de se afastar do trabalho. Além disso, foi aplicado um questionário para avaliar o risco de abuso de opioides.

RESULTADOS:

Foram analisados 72 pacientes com dor crônica, sendo a maioria mulheres (84,7%). A média de idade foi de 52,8 anos. Os pacientes foram classificados em três grupos conforme o risco de abuso de opioides: alto (21%), moderado (29%) e baixo (50%). Houve associação do aumento do risco com o uso de opioides (p=0,004) e com a presença de depressão (p=0,003).

CONCLUSÃO:

Metade dos pacientes apresentou baixo risco para abuso de opioides. O aumento do risco de abuso de opioides está relacionado à presença de depressão ou sintomas depressivos. Não foi observada relação entre o uso de benzodiazepínico e o aumento no risco de abuso para opioides. Pacientes considerados de alto risco para abuso de opioides têm mais chances de desenvolverem comportamentos aberrantes. É preciso conhecer o perfil de risco do paciente para aumentar a segurança e eficácia do tratamento da dor crônica.

Descritores:
Analgésicos opioides; Dor crônica; Gestão de riscos; Uso indevido de medicamentos sob prescrição

ABSTRACT

BACKGROUND AND OBJECTIVES:

Chronic pain has become an extremely prevalent disease and an ever more recurrent reason for seeking medical attention. It has been treated with opioids, opening the possibility for abuse. This study’s objective was to analyze the risk profile for opioid abuse in chronic pain outpatients.

METHODS:

Cross-sectional study with 72 patients seen in an outpatient clinic of a public hospital in the period of July and August 2019. The variables analyzed were age, gender, comorbidities, drugs in use, and aspects related to pain such as intensity, anatomical location, etiology, and need to be absent from work. In addition, a questionnaire was applied to assess the risk of opioid abuse.

RESULTS:

The study analyzed 72 patients with chronic pain, most of whom were women (84.7%). The mean age was 52.8 years. Patients were classified into three groups according to the risk of opioid abuse: high (21%), moderate (29%) and low (50%). There was an association of increased risk with opioid use (p=0.004) and presence of depression (p=0.003).

CONCLUSION:

Half of the patients presented low risk for opioid abuse. Increased risk for opioid abuse is related to the presence of depression or depressive symptoms. No relationship was observed between benzodiazepines use and increased risk for opioid abuse. Patients considered at high risk for opioid abuse are more likely to develop aberrant behaviors. Knowing the patient’s risk profile is necessary to increase the safety and effectiveness of chronic pain treatment.

Keywords:
Analgesics opioids; Chronic pain; Prescription drug misuse; Risk management

INTRODUÇÃO

A dor crônica (DC) é uma condição de saúde multidimensional definida como uma dor que persiste ou recorre por mais de três meses, não sendo considerada um sintoma, mas doença, impactando diretamente na qualidade de vida11 Treede RD, Rief W, Barke A, Aziz Q, Bennett MI, Benoliel R, et al. Chronic pain as a symptom or a disease: the IASP Classification of Chronic Pain for the International Classification of Diseases (ICD-11). Pain. 2019;160(1):19-27..

Estima-se que a DC acomete 34,5% da população em geral, ou seja, aproximadamente três em cada 10 pessoas22 Breivik H, Collett B, Ventafridda V, Cohen R, Gallacher D. Survey of chronic pain in Europe: prevalence, impact on daily life, and treatment. Eur J Pain. 2006;10(4):287-333.. No Brasil, esses números não se mostram muito diferentes já que cerca de 37% da população brasileira refere possuir esse tipo de dor33 Giacomello CM, Paula TA, Ferreira LB, Kunde MA, Bastos PW, Teer R, et al. Chronic pain: mechanism based management. Acta Méd. 2018: 39(1):13-21.. Está mais associada a mulheres, idosos, fumantes, pessoas com menos de 4 anos de estudo formal e ansiedade ou depressão44 Maia Costa Cabral D, Sawaya Botelho Bracher ES, Dylene Prescatan Depintor J, Eluf-Neto J. Chronic pain prevalence and associated factors in a segment of the population of São Paulo City. J Pain. 2014;15(11):1081-91..

É um dos motivos mais comuns para a procura de atendimento médico, pois interfere em vários aspectos da vida do paciente, como social, laboral, sexual, equilíbrio emocional e sono55 de Souza JB, Grossmann E, Perissinotti DMN, de Oliveira Junior JO, da Fonseca PRB, Posso IP. Prevalência de dor crônica, tratamentos, percepção e interferência nas atividades da vida: pesquisa de base populacional brasileira. Pain Res Manag. 2017;2017:4643830.. Dessa forma, o seu tratamento torna-se imprescindível para a melhora na qualidade de vida.

Assim, o uso de opioides constitui uma das opções de tratamento, pois existe eficácia comprovada com relação ao seu uso a curto prazo em dores neuropáticas e musculoesqueléticas. Porém, ainda existem controvérsias sobre a sua eficiência e a sua segurança no uso a longo prazo66 Kalso E, Edwards JE, Moore RA, McQuay HJ. Opioids in chronic non-cancer pain: systematic review of efficacy and safety. Pain. 2004;112(3):372-80.. Somado a isso também existe a questão dos efeitos adversos relacionados ao uso de opioides, entre eles: constipação, retenção urinária, efeito cardiovascular e alguns efeitos sobre o sistema imune77 Kraychete DC, Garcia JB, Siqueira JT. Recommendations for the use of opioids in Brazil: Part IV. Adverse opioid effects. Rev Dor. 2014;15(3):215-23..

Os opioides exercem seus efeitos analgésicos predominantemente por ligação aos receptores µ, os quais estão densamente concentrados em regiões do cérebro onde regulam a percepção da dor, incluindo respostas emocionais induzidas pela dor e em regiões de recompensa cerebral, oferecendo sensação de prazer e bem-estar, analgesia e euforia, podendo levar ao uso inadequado do fármaco, caracterizando abuso, uma das maiores preocupações do tratamento88 Trescot AM, Boswell MV, Atluri SL, Hansen HC, Deer TR, Abdi S, et al. Opioid guidelines in the management of chronic non-cancer pain. Pain Physician. 2006;9(1):1-39.. O termo abuso pode ser definido como o mau uso com consequências e para modificar ou controlar o comportamento ou estado mental de maneira ilegal ou prejudicial a si mesmo77 Kraychete DC, Garcia JB, Siqueira JT. Recommendations for the use of opioids in Brazil: Part IV. Adverse opioid effects. Rev Dor. 2014;15(3):215-23..

Nos últimos anos foi visto um grande aumento na prescrição de analgésicos opioides, principalmente nos Estados Unidos. Um estudo mostrou que no início de 2006 foram feitas 47 milhões de prescrições deste fármaco por trimestre e no fim de 2013 esse número chegava a 60 milhões. Entre 1997 e 2005, houve um aumento de 933% no número de prescrições de metadona. Além disso, o número de mortes não intencionais por overdose de opioides revela um crescimento bastante significante: subiu 129% entre 1999 e 2002. Ademais, indivíduos em uso crônico de opioides tendem a ter mais problemas psiquiátricos, como depressão e ansiedade e comportamentos aberrantes99 Webster LR, Webster RM. Predicting aberrant behaviors in opioid-treated patients: preliminary validation of the Opioid Risk Tool. Pain Med. 2005;6(6):432-42.,1010 Barclay JS, Owens JE, Blackhall LJ. Screening for substance abuse risk in cancer patients using the Opioid Risk Tool and urine drug screen. Support Care Cancer. 2014;22(7):1883-8..

Com relação ao Brasil, o número de prescrições de opioides também teve aumento significativo principalmente com a codeína e oxicodona, porém ainda existe baixa prescrição de opioides para paciente com DC resultante da falta de treinamento em manejo da dor nos currículos médicos brasileiros1111 Krawczyk N, Greene MC, Zorzanelli R, Bastos FI. Rising trends of prescription opioid sales in contemporary Brazil, 2009-2015. Am J Public Health. 2018;108(5):666-8.,1212 Moreira de Barros GA, Calonego MAM, Mendes RF, Castro RAM, Faria JFG, Trivellato SA, et al. The use of analgesics and risk of self-medication in an urban population sample: cross-sectional study. Rev Bras Anestesiol. 2019;69(6):529-36..

Assim, é necessário estratificar os pacientes em grupos de risco para o abuso desses fármacos. Uma das formas de realizar esse rastreio é utilizar o Opioid Risk Tool (ORT), que classifica o paciente em baixo, moderado ou alto risco, para tentar determinar quais pacientes têm maior risco de desenvolver abuso de opioides, permitindo estratificar e identificar os pacientes de alto risco antes do início e durante o tratamento com opioides com o propósito de estabelecer níveis apropriados de monitoramento, optar por outro tipo de tratamento ou tratar possíveis transtornos de abuso dessas substâncias99 Webster LR, Webster RM. Predicting aberrant behaviors in opioid-treated patients: preliminary validation of the Opioid Risk Tool. Pain Med. 2005;6(6):432-42.,1313 Carvalho RC, Maglioni CB, Machado GB, Araujo JE, Silva JR, Silva ML. Prevalence and characteristics of chronic pain in Brazil: a national internet-based survey study. Rev Dor. 2018;1(4):331-8..

O presente estudo teve o objetivo realizar a estratificação do risco quanto ao abuso de opioides nos pacientes de ambulatório de DC não oncológica e associar fatores biopsicossociais a esse risco.

MÉTODOS

Estudo transversal realizado com 72 pacientes atendidos no Ambulatório de Dor do Hospital Universitário da Universidade Federal de Sergipe (HU-UFS), entre julho e agosto de 2019. Não é considerado um estudo piloto, pois sua amostra é maior do que a esperada para estudo piloto.

Os dados coletados a partir do prontuário médico e em entrevista com o paciente proporcionaram informações referentes a idade, sexo, comorbidades, fármacos em uso, aspectos relacionados a dor como intensidade, a qual foi mensurada com a escala analógica visual (EAV), localização anatômica, etiologia, necessidade de afastamento do trabalho e o ORT traduzido (Tabela 1).

Tabela 1
Opioid Risk Tool traduzido

Esse questionário avalia o histórico pessoal e familiar em alcoolismo, tabagismo, abuso de drogas ilícitas e fármacos, idade, histórico de abuso sexual, histórico de transtornos mentais e depressão, pontuando diferentemente, dependendo do sexo e classificando em baixo, moderado ou alto risco para abuso de opioides a depender da pontuação obtida: risco alto para zero a três pontos, moderado para quatro a sete pontos e baixo risco para maior que sete pontos.

O diagnóstico de depressão foi feito através da Hospital Anxiety and Depression Scale (HADS)1414 Castro MM, Quarantini L, Batista-Neves S, Kraychete DC, Daltro C., Miranda-Scippa A. Validity of the hospital anxiety and depression scale in patients with chronic pain. Rev Bras Anestesiol. 2006;56(5):470-7.. Além disso, o ORT ainda não foi validado e adaptado transculturalmente para a língua portuguesa, o que caracteriza uma limitação do presente estudo. Somado a isso, também é importante destacar que a pequena amostra de um serviço isolado não pode ser extrapolada para a realidade de um país continental como o Brasil, com isso é de suma importância a investigação mais detalhada e novos estudos mais abrangentes.

A amostra do estudo foi de conveniência. Os critérios de inclusão foram pacientes maiores de 18 anos, em tratamento de dor não oncológica há, pelo menos, seis meses e que possuíam entendimento para responder o questionário, além de aceitar participar por meio da assinatura do Termo de Consentimento Livre e Esclarecido (TCLE). Os critérios de exclusão foram: pacientes menores de 18 anos, ter dor não oncológica com duração menor que seis meses, não possuir entendimento para responder o questionário e a recusa para participar da pesquisa.

O estudo foi aprovado em 28/06/2019 pelo Comitê de Ética em Pesquisa da Universidade Federal de Sergipe sob o n° CAAE: 14385019.4.0000.5546.

Análise estatística

Foi utilizado o teste Qui-quadrado de Pearson. O nível de significância adotado para rejeição da hipótese de nulidade foi de 5% (p≤0,05).

RESULTADOS

Foram entrevistados um total de 72 pacientes diagnosticados com DC que faziam acompanhamento ambulatorial específico no HU. A idade média dos pacientes foi 52,8 anos, sendo a mínima e máxima 26 e 87 anos, respectivamente. Dos 72 pacientes, 84,7% eram mulheres.

Os locais mais frequentes de dor relatados foram região lombar, dores generalizadas, cabeça, face ou cervical, membros inferiores, abdômen, membros superiores, região torácica e região pélvica (Tabela 2).

Tabela 2
Distribuição dos pacientes conforme o local de dor

As etiologias de DC mais frequentes foram síndrome miofascial, fibromialgia, DC pós-cirúrgica e DC pós-trauma (Tabela 3).

Tabela 3
Distribuição dos pacientes conforme etiologia da dor crônica

Segundo o ORT, 50,0% dos pacientes foram classificados como de baixo risco, 29,2% de moderado risco e 20,8% de alto risco para abuso de opioides (Tabela 4).

Tabela 4
Distribuição dos pacientes conforme risco para abuso de opioides

O uso de benzodiazepínicos diariamente foi bastante comum, sendo notado em 37,5% dos pacientes entrevistados, enquanto o uso de algum tipo de opioides foi visto em 13,9%.

Foi percebida uma associação entre o uso de opioides e o aumento no risco para abuso deste fármaco (p=0,004). Além disso, houve forte associação entre o paciente possuir depressão e o aumento no perfil de risco do ORT (p=0,003) (Tabela 5).

Tabela 5
Distribuição dos pacientes conforme uso de opioides, presença de depressão e perfil de risco segundo o Opioid Risk Tool

Não se notou a associação entre uso de benzodiazepínicos e aumento no risco de abuso para opioides (p=0,464). No entanto, há associação entre o uso desse tipo de fármaco e a presença de depressão (p=0,06).

DISCUSSÃO

Os pacientes e médicos tem preocupações diferentes quanto aos efeitos adversos do tratamento com opioides. Os médicos temem a overdose, enquanto os pacientes temem o vício. Assim, torna-se necessário uma compreensão compartilhada dos riscos e benefícios que esse tratamento pode vir a trazer1515 Hurstak EE, Kushel M, Chang J, Ceasar R, Zamora K, Miaskowski C, et al. The risks of opioid treatment: perspectives of primary care practitioners and patients from safety-net clinics. Subst Abus. 2017;38(2):213-21..

A DC tem sido muito associada ao sexo feminino. A amostra deste estudo revelou que a maioria dos pacientes eram mulheres. Em outro estudo brasileiro com uma amostra de 27.000 pacientes, foi observado esse mesmo padrão. Do total de pacientes com DC, 84,6% eram mulheres1616 Vieira EB, Garcia JB, Silva AA, Araújo RL, Jansen RC, Bertrand AL. Chronic pain, associated factors, and impact on daily life: are there differences between the sexes. Cad Saude Publica. 2012;28(8):1459-67.. Resultados similares podem ser encontrados em estudo44 Maia Costa Cabral D, Sawaya Botelho Bracher ES, Dylene Prescatan Depintor J, Eluf-Neto J. Chronic pain prevalence and associated factors in a segment of the population of São Paulo City. J Pain. 2014;15(11):1081-91.. Estudos mais recentes apontam que os hormônios gonadais, principalmente o estrogênio, atuam na modulação da dor, podendo, portanto, explicar um fator relacionado a esse predomínio no sexo feminino1717 Rosen S, Ham B, Mogil JS. Sex differences in neuroimmunity and pain. J Neurosci Res. 2017;95(1-2):500-8..

A idade média dos pacientes do presente estudo foi de 52,8 anos, acompanhando a média obtida em outros estudos1818 Jones JD, Vogelman JS, Luba R, Mumtaz M, Comer SD. Chronic pain and opioid abuse: factors associated with health-related quality of life. Am J Addict. 2017;26(8):815-21.,1919 Fayaz A, Croft P, Langford RM, Donaldson LJ, Jones GT. Prevalence of chronic pain in the UK: a systematic review and meta-analysis of population studies. BMJ Open. 2016;6(6):e010364.. Estudo concluiu que a prevalência de DC em indivíduos entre 18 e 25 anos é de 14,3%, enquanto na faixa etária acima de 75 anos é de 62%, mostrando ser uma doença que está mais associada com o envelhecimento1919 Fayaz A, Croft P, Langford RM, Donaldson LJ, Jones GT. Prevalence of chronic pain in the UK: a systematic review and meta-analysis of population studies. BMJ Open. 2016;6(6):e010364..

A região lombar foi indicada no presente estudo como o local de DC mais comum. Neste estudo, 37,5% dos pacientes possuíam dor há mais de seis meses nessa região. Similarmente, autores1313 Carvalho RC, Maglioni CB, Machado GB, Araujo JE, Silva JR, Silva ML. Prevalence and characteristics of chronic pain in Brazil: a national internet-based survey study. Rev Dor. 2018;1(4):331-8. mostraram que 35% dos pacientes referiram dor nesse local, sendo também o local com mais queixas. Inclusive, a dor na região lombar é uma das principais causas de incapacidade relacionada ao trabalho e de dias faltados no emprego2020 Refshauge KM, Maher CG. Low back pain investigations and prognosis: a review. Br J Sports Med. 2006;40(6):494-8.. Ademais, 54,2% dos pacientes deste estudo alegaram que precisaram se afastar de seus empregos por, pelo menos, sete dias por conta das dores. Esse impacto social é confirmado por outro estudo22 Breivik H, Collett B, Ventafridda V, Cohen R, Gallacher D. Survey of chronic pain in Europe: prevalence, impact on daily life, and treatment. Eur J Pain. 2006;10(4):287-333., que mostrou que 61% dos pacientes estavam menos aptos ou inaptos a trabalhar fora de casa, 19% perderam o emprego e 13% tiveram que trocar de atividade por conta da dor. Além disso, estudo2121 Rayner L, Hotopf M, Petkova H, Matcham F, Simpson A, McCracken LM. Depression in patients with chronic pain attending a specialised pain treatment centre: prevalence and impact on health care costs. Pain. 2016;157(7):1472-9. mostrou que os pacientes com DC associada à depressão eram mais propensos a não conseguir trabalhar por problemas de saúde.

A classificação da amostra do presente estudo por grupo de risco para abuso de opioides segundo o ORT teve resultados parecidos com os que foram encontrados em um trabalho realizado com 114 pacientes oncológicos, os quais foram classificados como sendo 57% para baixo risco, 22% para moderado e 21% para alto risco1010 Barclay JS, Owens JE, Blackhall LJ. Screening for substance abuse risk in cancer patients using the Opioid Risk Tool and urine drug screen. Support Care Cancer. 2014;22(7):1883-8..

No presente estudo, observou-se que 13,8% dos pacientes já se encontravam em uso de opioides, semelhante a outros resultados2222 de Castro S, Cavalcanti IL, Barrucand L, Pinto CI, Assad AR, Verçosa N. Implementing a chronic pain ambulatory care: preliminary results. Rev Bras Anestesiol. 2019;69(3):227-32., no qual 20% dos pacientes haviam recebido receitas para opioides. Além disso, também se notou que o uso de analgésicos opioides estava relacionado com o aumento no perfil de risco para seu abuso (p=0,004). Dentre os pacientes com moderado risco, 9,5% usavam opioides e entre os de baixo risco apenas 4,5% faziam uso. No entanto, o grupo de alto risco possuía 40% dos pacientes consumindo esse tipo de fármaco, o que é extremamente alarmante.

De forma semelhante, há trabalhos que mostraram essa mesma associação. Ou seja, pacientes com baixo risco tendiam a não ter feito uso de opioides nos seis primeiros meses de tratamento, enquanto os com alto ou moderado risco tendiam muito mais a ter recebido esse tipo de fármaco como tratamento para DC1818 Jones JD, Vogelman JS, Luba R, Mumtaz M, Comer SD. Chronic pain and opioid abuse: factors associated with health-related quality of life. Am J Addict. 2017;26(8):815-21..

O uso de opioides é seguro e tem bons resultados no tratamento de DC. Pacientes sem histórico de abuso de substâncias como álcool, fármacos e drogas têm baixa probabilidade de desenvolver abuso se lhes forem prescritos opioides. No entanto, os resultados obtidos neste estudo são bastante preocupantes, pois mostram que metade dos pacientes têm risco alto ou moderado para abuso de algum fármaco dessa classe.

Os comportamentos descritos na literatura como mais comuns de abuso são: a solicitação de opioides a outras fontes, o aumento de dose sem autorização médica, usar outros opioides além dos prescritos e não ir para as consultas médicas agendadas ou cancelá-las. Esses comportamentos são vistos com maior frequência conforme o aumento no grupo de risco para abuso. Em estudo realizado com 185 pacientes atendidos em uma clínica de dor, 94,4% dos pacientes com risco baixo não apresentaram comportamentos aberrantes, enquanto dentre os pacientes classificados como de alto risco, esses comportamentos foram identificados em 90,9%99 Webster LR, Webster RM. Predicting aberrant behaviors in opioid-treated patients: preliminary validation of the Opioid Risk Tool. Pain Med. 2005;6(6):432-42..

Considerando também a associação entre os fatores biopsicossociais e o risco encontrado, outro aspecto a ser abordado na DC é a coexistência de depressão ou sintomas depressivos nos pacientes. Neste estudo, 61,1% dos pacientes entrevistados possuíam depressão associada à DC. A literatura corrobora com esses números, pois estudo2121 Rayner L, Hotopf M, Petkova H, Matcham F, Simpson A, McCracken LM. Depression in patients with chronic pain attending a specialised pain treatment centre: prevalence and impact on health care costs. Pain. 2016;157(7):1472-9. com 1204 pessoas diagnosticadas com DC mostrou que 60,8% delas preenchiam critérios para depressão e que os custos para o sistema de saúde desses pacientes eram maiores se comparados aos dos que não possuíam depressão.

Vários estudos de imagem têm mostrado que as regiões cerebrais ativadas por estímulos nociceptivos também podem ser afetadas por vários estados emocionais e comportamentais. Além disso, os estímulos nociceptivos, conscientemente percebidos, podem ser modulados pelo contexto emocional. Assim, pode-se explicar a relação entre essas duas doenças2323 Hooten WM. Chronic pain and mental health disorders: shared neural mechanisms, epidemiology, and treatment. Mayo Clin Proc. 2016;91(7):955-70..

Também foi notória a associação entre presença de depressão e aumento no risco para abuso de opioides (p=0,003) neste trabalho. Estudo2424 Sullivan MD, Edlund MJ, Zhang L, Unützer J, Wells KB. Association between mental health disorders, problem drug use, and regular prescription opioid use. Arch Intern Med. 2006;166(19):2087-93. observou que depressão está relacionada ao uso de opioides por longa duração.

O número de pacientes com DC que usa benzodiazepínico é elevado. Neste estudo, 37,5% dos entrevistados faziam uso de algum tipo de benzodiazepínico. Mesmo tal uso não se mostrando associado ao aumento do risco para abuso de opioides (p=0,464), há evidências que mostram que pacientes em uso de benzodiazepínicos precisam de mais opioides do que aqueles que não usam.2525 Cunningham JL, Craner JR, Evans MM, Hooten WM. Benzodiazepine use in patients with chronic pain in an interdisciplinary pain rehabilitation program. J Pain Res. 2017;10:311-7. Além disso, estudo2525 Cunningham JL, Craner JR, Evans MM, Hooten WM. Benzodiazepine use in patients with chronic pain in an interdisciplinary pain rehabilitation program. J Pain Res. 2017;10:311-7. mostrou que 29% dos pacientes com DC usavam algum benzodiazepínico, dentre os quais 62% também faziam uso de opioides e que o grupo de pacientes que usava benzodiazepínicos estava significativamente mais associado ao uso de opioides, maior depressão, catastrofização da dor e intensidade maior da dor em relação aos que não usavam benzodiazepínicos.

O estudo possui limitações relacionadas ao ORT, pois ele não foi validado ainda para o português, e ao pequeno tamanho da amostra (n). Além disso, também é importante destacar que a pequena amostra de um serviço isolado não pode ser extrapolada para a realidade de um país continental como o Brasil, pois a pesquisa foi realizada em único centro. Dessa maneira, é de suma importância a investigação mais detalhada e novos estudos mais abrangentes.

CONCLUSÃO

O estudo evidenciou maior prevalência de DC entre as mulheres e os adultos, sendo a região lombar a mais acometida e a etiologia mais comum a síndrome miofascial. Além disso, metade dos pacientes analisados apresentou baixo risco para abuso de opioides. O aumento do risco de abuso de opioides está relacionado à presença de depressão ou sintomas depressivos. Não foi observada relação entre o uso de benzodiazepínico e o aumento no risco de abuso para opioides. Pacientes considerados de alto risco para abuso de opioides têm mais chances de desenvolverem comportamentos aberrantes. É preciso conhecer o perfil de risco do paciente para aumentar a segurança e eficácia do tratamento da DC.

REFERENCES

  • 1
    Treede RD, Rief W, Barke A, Aziz Q, Bennett MI, Benoliel R, et al. Chronic pain as a symptom or a disease: the IASP Classification of Chronic Pain for the International Classification of Diseases (ICD-11). Pain. 2019;160(1):19-27.
  • 2
    Breivik H, Collett B, Ventafridda V, Cohen R, Gallacher D. Survey of chronic pain in Europe: prevalence, impact on daily life, and treatment. Eur J Pain. 2006;10(4):287-333.
  • 3
    Giacomello CM, Paula TA, Ferreira LB, Kunde MA, Bastos PW, Teer R, et al. Chronic pain: mechanism based management. Acta Méd. 2018: 39(1):13-21.
  • 4
    Maia Costa Cabral D, Sawaya Botelho Bracher ES, Dylene Prescatan Depintor J, Eluf-Neto J. Chronic pain prevalence and associated factors in a segment of the population of São Paulo City. J Pain. 2014;15(11):1081-91.
  • 5
    de Souza JB, Grossmann E, Perissinotti DMN, de Oliveira Junior JO, da Fonseca PRB, Posso IP. Prevalência de dor crônica, tratamentos, percepção e interferência nas atividades da vida: pesquisa de base populacional brasileira. Pain Res Manag. 2017;2017:4643830.
  • 6
    Kalso E, Edwards JE, Moore RA, McQuay HJ. Opioids in chronic non-cancer pain: systematic review of efficacy and safety. Pain. 2004;112(3):372-80.
  • 7
    Kraychete DC, Garcia JB, Siqueira JT. Recommendations for the use of opioids in Brazil: Part IV. Adverse opioid effects. Rev Dor. 2014;15(3):215-23.
  • 8
    Trescot AM, Boswell MV, Atluri SL, Hansen HC, Deer TR, Abdi S, et al. Opioid guidelines in the management of chronic non-cancer pain. Pain Physician. 2006;9(1):1-39.
  • 9
    Webster LR, Webster RM. Predicting aberrant behaviors in opioid-treated patients: preliminary validation of the Opioid Risk Tool. Pain Med. 2005;6(6):432-42.
  • 10
    Barclay JS, Owens JE, Blackhall LJ. Screening for substance abuse risk in cancer patients using the Opioid Risk Tool and urine drug screen. Support Care Cancer. 2014;22(7):1883-8.
  • 11
    Krawczyk N, Greene MC, Zorzanelli R, Bastos FI. Rising trends of prescription opioid sales in contemporary Brazil, 2009-2015. Am J Public Health. 2018;108(5):666-8.
  • 12
    Moreira de Barros GA, Calonego MAM, Mendes RF, Castro RAM, Faria JFG, Trivellato SA, et al. The use of analgesics and risk of self-medication in an urban population sample: cross-sectional study. Rev Bras Anestesiol. 2019;69(6):529-36.
  • 13
    Carvalho RC, Maglioni CB, Machado GB, Araujo JE, Silva JR, Silva ML. Prevalence and characteristics of chronic pain in Brazil: a national internet-based survey study. Rev Dor. 2018;1(4):331-8.
  • 14
    Castro MM, Quarantini L, Batista-Neves S, Kraychete DC, Daltro C., Miranda-Scippa A. Validity of the hospital anxiety and depression scale in patients with chronic pain. Rev Bras Anestesiol. 2006;56(5):470-7.
  • 15
    Hurstak EE, Kushel M, Chang J, Ceasar R, Zamora K, Miaskowski C, et al. The risks of opioid treatment: perspectives of primary care practitioners and patients from safety-net clinics. Subst Abus. 2017;38(2):213-21.
  • 16
    Vieira EB, Garcia JB, Silva AA, Araújo RL, Jansen RC, Bertrand AL. Chronic pain, associated factors, and impact on daily life: are there differences between the sexes. Cad Saude Publica. 2012;28(8):1459-67.
  • 17
    Rosen S, Ham B, Mogil JS. Sex differences in neuroimmunity and pain. J Neurosci Res. 2017;95(1-2):500-8.
  • 18
    Jones JD, Vogelman JS, Luba R, Mumtaz M, Comer SD. Chronic pain and opioid abuse: factors associated with health-related quality of life. Am J Addict. 2017;26(8):815-21.
  • 19
    Fayaz A, Croft P, Langford RM, Donaldson LJ, Jones GT. Prevalence of chronic pain in the UK: a systematic review and meta-analysis of population studies. BMJ Open. 2016;6(6):e010364.
  • 20
    Refshauge KM, Maher CG. Low back pain investigations and prognosis: a review. Br J Sports Med. 2006;40(6):494-8.
  • 21
    Rayner L, Hotopf M, Petkova H, Matcham F, Simpson A, McCracken LM. Depression in patients with chronic pain attending a specialised pain treatment centre: prevalence and impact on health care costs. Pain. 2016;157(7):1472-9.
  • 22
    de Castro S, Cavalcanti IL, Barrucand L, Pinto CI, Assad AR, Verçosa N. Implementing a chronic pain ambulatory care: preliminary results. Rev Bras Anestesiol. 2019;69(3):227-32.
  • 23
    Hooten WM. Chronic pain and mental health disorders: shared neural mechanisms, epidemiology, and treatment. Mayo Clin Proc. 2016;91(7):955-70.
  • 24
    Sullivan MD, Edlund MJ, Zhang L, Unützer J, Wells KB. Association between mental health disorders, problem drug use, and regular prescription opioid use. Arch Intern Med. 2006;166(19):2087-93.
  • 25
    Cunningham JL, Craner JR, Evans MM, Hooten WM. Benzodiazepine use in patients with chronic pain in an interdisciplinary pain rehabilitation program. J Pain Res. 2017;10:311-7.

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    08 Out 2021
  • Data do Fascículo
    Jul-Sep 2021

Histórico

  • Recebido
    31 Ago 2020
  • Aceito
    17 Jul 2021
Sociedade Brasileira para o Estudo da Dor Av. Conselheiro Rodrigues Alves, 937 Cj2 - Vila Mariana, CEP: 04014-012, São Paulo, SP - Brasil, Telefones: , (55) 11 5904-2881/3959 - São Paulo - SP - Brazil
E-mail: dor@dor.org.br