Open-access Dor em pessoas não binárias: onde estamos e para onde precisamos ir

Durante décadas, a pesquisa em dor se apoiou em comparações entre homens e mulheres, sustentando uma lógica binária que simplifica processos complexos e deixa à margem aqueles que não se enquadram nesse esquema1,2. Pessoas trans e de gênero diverso (TGD) carregam experiências que não podem ser explicadas apenas por hormônios ou diferenças anatômicas, uma vez que sua vivência de dor é modulada por camadas de identidade, contexto social e biografia pessoal.

Estudos populacionais recentes vêm revelando um quadro consistente. Dados do PRIDE Study3, com mais de seis mil participantes, mostraram que um terço de pessoas não-binárias e homens trans relatam dor crônica difusa, enquanto mulheres trans e homens cis apresentaram as menores taxas. Em um estudo de coorte de grande escala, verificou-se que a prevalência de dor crônica em indivíduos transgêneros foi superior à observada em pessoas cisgêneras. Além disso, a terapia hormonal de afirmação de gênero esteve associada a uma maior frequência de diagnósticos de dor, especialmente na presença concomitante de depressão ou ansiedade4. Esses resultados não deixam dúvidas de que os modelos construídos exclusivamente sobre populações cisgêneras é insuficiente.

No plano mecanístico, há sinais de que a interação entre terapias hormonais, neuroplasticidade e imunidade desempenha papel relevante. Relatos indicam que parte das mulheres trans desenvolve novos quadros dolorosos após o início de estrogênio, enquanto muitos homens trans experimentam melhora de cefaleias com testosterona5. São observações que ainda carecem de estudos longitudinais, mas que sugerem caminhos de investigação promissores.

Os determinantes psicossociais não podem ser ignorados. O impacto das adversidades na infância é expressivo: altos índices de eventos adversos nessa fase estão associados a dor mais intensa e incapacitante na vida adulta6. Em amostras LGBTQ+, quase metade dos participantes ultrapassa esse limiar, com índices particularmente elevados entre pessoas TGD7. Histórias de trauma sexual guardam relação direta com fibromialgia e dor pélvica, configurando um eixo de vulnerabilidade que se soma ao estigma e à exclusão social7. Em adolescentes, há registros de melhora significativa da dor quando a disforia de gênero é reconhecida e tratada, ilustrando a potência da validação identitária como parte do cuidado8.

Outro aspecto relevante é a sobreposição com o espectro autista, muito mais frequente em pessoas TGD do que na população geral9. Essa sobreposição traz implicações clínicas importantes: maior risco de ansiedade, de depressão e de suicídio, todos fatores que intensificam a experiência dolorosa. Aqui também se evidencia a necessidade de abordagens interseccionais, capazes de contemplar neurodiversidade e a diferença de gênero de forma integrada.

Por fim, é preciso ressaltar que não se trata apenas de vulnerabilidade. Estudos qualitativos têm descrito a euforia de gênero como fator protetor: o alívio, o orgulho e a sensação de congruência vividos após o reconhecimento da identidade podem reduzir o sofrimento e melhorar a qualidade de vida10. Esses resultados ampliam a perspectiva tradicional, pois mostram que o enfrentamento da dor em pessoas TGD não pode ser pensado apenas em termos de déficit, mas também de recursos de resiliência e afirmação.

O que se impõe, portanto, é uma agenda de pesquisa e de prática clínica que vá além do binarismo. Precisamos de estudos multicêntricos que acompanhem, a longo prazo, os efeitos da terapia hormonal e das cirurgias afirmativas sobre a dor, de protocolos específicos de analgesia perioperatória, de rastreamento sistemático de traumas precoces e sofrimento minoritário nos serviços especializados e de métricas que incorporem a euforia de gênero como variável relevante. Mais que um exercício acadêmico, trata-se de uma exigência ética: oferecer às pessoas trans e de gênero diverso um cuidado em dor que seja equitativo, inclusivo e verdadeiramente centrado na pessoa.

Referências

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Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    10 Nov 2025
  • Data do Fascículo
    2025
Creative Common - by 4.0
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